A emergência de novos sentidos sobre as interações tecnociência e

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A EMERGÊNCIA DE NOVOS SENTIDOS SOBRE AS INTERAÇÕES TECNOCIÊNCIA E
SOCIEDADE NA FORMAÇÃO DE ENGENHEIROS: EM BUSCA DE UMA EDUCAÇÃO
TECNOLÓGICA COSMOPOLITA PLURAL E DIALÓGICA
Edson Jacinski
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica Universidade Federal de Santa Catarina – R. Manoel Mancellos Moura, 529, apº 201,CEP
88054030, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil – tel. 48-91564266 – [email protected] –
área da Educação Científica e Tecnológica
Irlan von Linsingen
Doutor do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica –
Universidade Federal de Santa Catarina (PPGECT) – Pós-Graduação em Educação
Científica e Tecnológica - Centro de Ciências Físicas e Matemáticas UFSC - CEP 88040900 - Florianópolis - SC - tel. (48) 3721 9072 ramal 21 - [email protected] – área da
Educação Científica e Tecnológica
Eixo temático 9: Educación CTS y Educación Superior
Palavras-chave: Educação tecnológica, arranjo sócio-técnico, cidadania cosmopolita, CTS
Resumo
O campo de Estudos Ciência Tecnologia e Sociedade (ECTS) vem, há um bom tempo,
problematizando as relações que autonomizam e divorciam a atividade tecnocientífica da
sua configuração social e, de outro lado, enfatizando o caráter tecnológico da sociedade
contemporânea e a necessidade que os diferentes grupos sociais possam ser atores
efetivos nos arranjos sóciotécnicos presentes nas sociedades latino-americanas, para além
da prática tecnocrática hegemônica. Em termos educacionais, especificamente no campo da
Educação Tecnológica, tal divórcio tem provocado uma insatisfação cada vez maior da
sociedade em relação aos profissionais que estão sendo formados e participam, com seus
“saberes técnicos”, de forma efetiva na vida cotidiana da sociedade. Tal insatisfação levou
recentemente a reformas educacionais e curriculares dos cursos de Engenharia,
especialmente a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) desses cursos.
No entanto, tal processo é contraditório e percebe-se como, apesar do crescimento de
espaços formais e não formais de questionamentos das relações tecnociência e sociedade,
ainda estão naturalizados alguns sentidos tradicionais, que remetem a concepções de
determinismo
tecnológico,
neutralidade
científica
e
práticas
sociais
tecnocráticas
incompatíveis com uma perspectiva democrática, participativa e inclusiva demandada pelas
camadas majoritárias da população. Cabe, nesse sentido, repensar visceralmente as bases
educacionais e epistemológicas que sustentam tal configuração e, por outro lado, ativar os
processos que possibilitem outra configuração política e educacional das relações CT&S.
Nesse sentido, é que os estudos sociotécnicos, em especial a Teoria Ator-Rede (TAR)
desenvolvida por autores como Bruno Latour, Michel Callon e John Law, podem possibilitar
a emergência de novos sentidos para pensar a atual configuração da sociedade tecnológica
como redes, arranjos sóciotécnicos abertos, plurais e heterogêneos, passíveis de renovadas
intervenções dos diferentes atores sociais. Tal perspectiva enseja uma outra abordagem
interativa e não dicotômica das relações entre tecnociências e sociedade, bem como a
construção
de uma cidadania cosmopolita plural e dialógica, capaz de propiciar a
participação da alteridade e heterogeneidade de atores locais nos arranjos sóciotécnicos,
para além de uma democracia representativa formal presente nas sociedades latinoamericanas. Nesse sentido, é que o presente artigo, referente a uma pesquisa de doutorado
em andamento na área da Educação Científica e Tecnológica, pretende explorar tais
estudos da sociologia da tecnologia para repensar a formação dos engenheiros na
perspectiva de uma educação tecnológica cosmopolita atuante nos debates e decisões da
sociedade tecnológica. Trata-se, portanto de se pensar na emergência de relações mais
dialógicas e cosmopolitas nas relações entre tecnociência e sociedade, propiciando uma
maior sintonia com as demandas mais amplas, plurais e heterogêneas dos povos latinoamericanos.
Introdução
Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados, Gregor
Samsa encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.
Estava deitado de costa sobre a própria couraça, e ao erguer um pouco a
cabeça enxergou seu ventre marrom, acentuadamente abaulado, com
profundas saliências arqueadas, sobre o qual o cobertor, quase
escorregando, estava prestes a cair. Suas muitas pernas, terrivelmente finas
em comparação à largura do corpo, agitavam-se desamparadas diante de
seus olhos.
O que aconteceu comigo? perguntou-se. Não era um sonho. Seu
quarto, um verdadeiro quarto humano, só que um tanto pequeno, mantinha-se
calmo entre as quatro paredes de hábito [... ]‘Quem sabe se eu dormisse mais
um pouco essas tolices desapareceriam’, pensou, mas isso era
completamente impossível, pois estava acostumado a dormir do lado direito,
e no seu estado atual não conseguia se colocar nessa posição. Ainda que
usasse toda a força para jogar-se para o lado direito, sempre retornava à
posição inicial.[...] Gregor – alguém chamou. Era a mãe. – São quinze para as
sete. Você não ia viajar? (Kafka, 2002, p.7 – 12)
Parece ser necessário essas cores kafkianas fortes do estranhamento de Gregor
Samsa, transformado subitamente numa gigantesca barata, para adentrar um campo de
embate frequentemente agonístico que envolve as labirínticas relações sociotécnicas.
No caso do personagem enigmático de Kafka esse estranhamento trouxe um outro
problema: saber-se estranhamente outro (metamorfoseado) e ao mesmo tempo trafegar
num mundo seguro e familiar da identidade em que era reconhecido “plenamente” e sem
sustos pelos outros familiares (pai, mãe, irmã...), profissionais (gerente da firma na qual
trabalhava como caixeiro-viajante). No entanto, quanto mais Gregor se esforçava para voltar
ao seu mundo familiar e despertar do “pretenso” sonho mais ele se apercebia que estava
em outro mundo, colado à sua (nova) natureza híbrida de homem-inseto. Mas teria que lidar
com os riscos de (con) viver com essa recém-descoberta alteridade.
É possível dizer que há um bom tempo essa forma (moderna) de separar (e
territorializar) como entidades estáveis tecnologia e sociedade, homem e máquina, natureza
e cultura tornou-se problemática. Nesse sentido, uma significativa parte dos Estudos Sociais
sobre Ciência Tecnologia e sociedade, para além de uma perspectiva dicotômica ou dualista
entre Tecnologia e Sociedade, vem trabalhando e mostrando como tecnologia e sociedade
são indissociáveis, inconclusas e em contínuo processo interativo.
De qualquer modo, é sempre bom levar em consideração, especialmente ao
buscarmos pensar as relações ciência tecnologia e sociedade na educação, como está
naturalizada essa perspectiva dicotômica atravessando seja a organização curricular e suas
categorias analíticas, a divisão disciplinar do conhecimento e, no caso específico da
Educação tecnológica, a separação entre Humanidades e Tecnologia. Em relação ao ensino
da Engenharia no Brasil, recentes pesquisas1 mostram como as reformas curriculares
promovidas a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Engenharia (Brasil,
2002) não têm alterado significativamente esse quadro. Além disso, a introdução da
1
Nesse sentido, os estudo de Fraga (2009), Fortes Neto (2005) e Menestrina (2008), dentre outros ,
mostram as dificuldades para a transição a um outro modo de se conceber e desenvolver a Educação
Tecnológica.
perspectiva CTS na Educação Tecnológica, mesmo considerando os sentidos problemáticos
que podem estar presentes na sua inserção pedagógica, ainda parece ser bastante tímida e
periférica em relação a essas percepções hegemônicas das relações entre Ciência
Tecnologia e Sociedade.
Considerando esses dilemas, especialmente na educação, é que cremos ser
importantes explorar uma outra perspectiva que ajude a superar esse dualismo e apresente
uma alternativa significativa para pensar - de modo interativo, inconcluso e sujeito a
transformações ou, pelo menos, subversões -
as relações entre ciência, tecnologia e
sociedade. Estamos pensando não apenas numa perspectiva analítica, mas também
propositiva, que possibilite aos cidadãos estarem cada vez mais participando criticamente
das decisões sociotécnicas que nos envolvem cotidianamente.
Concordamos, nesse sentido, com Thomas (2008, p.218-219), para quem “La
tensión determinista (determinismo tecnológico versus determinismo social), común en los
estúdios sobre tecnologia, solo puede ser superada si se abandona la representación
analítica-estructural de ‘tecnologia’ y ‘sociedade’ como dos entidades equivalentes, dos
esferas de existência independiente.” Para isso, são necessárias outras abordagens que
trabalhem, para além dessa perspectiva dicotômica, nas fronteiras, nas interações, nas
instabilidades e inconclusões das configurações sociotécnicas.
Nos chamados Estudos Sociais da Tecnologia, notadamente aparecem três
perspectivas teóricas que procuram trabalhar de modo indissociável essas relações
sociotécnicas: análise da tecnologia em termos de “sistema tecnológico” de Thomas P.
Hughes; a ótica do “construtivismo social da tecnologia” de Trevor J. Pinch e Wiebe E.
Bijker; a Teoria ator-rede de Bruno Latour, Michel Callon e John Law ou, ainda mais
especificamente as redes tecno-econômicas de M.Callon. Além dessas também
consideramos que na Teoria Crítica da Tecnologia desenvolvida por Andrew Feenberg, há
uma certa convergência em pensar a tecnologia como atividade sociotécnica.
Mesmo, levando em conta uma certa complementariedade entre as perspectivas
acima,iremos,nos deter nos limites desse texto, a explorar alguns dos aspectos da Teoria
Ator Rede, que podem ser significativos para repensar as concepções hegemônicas que
têm inspirado a Educação Tecnológica, especialmente no que diz respeito ao ensino de
Engenharia. Trata-se de um trabalho exploratório de tradução-deslocamento dos conceitos
pensados no âmbito da produção – (inovação) científica e tecnológica para campo
educacional.
1. A educação tecnológica numa abordagem sociotécnica
Retomando a metáfora kafkiana, podemos dizer que essa (benéfica) sensação de
estranhamento e questionamento presente em diferentes movimentos sociais em relação ao
“mundo tecnológico”, sejam contestatórios como o movimento ecológico ou ainda
afirmativos como as “Tecnologias Sociais” tem produzindo diferentes efeitos sociais, e não é
diferente no campo educacional. De um lado, uma crescente parcela de pesquisadores e
educadores passa a se dar conta de que não é mais possível continuar trabalhando com
uma educação que dicotomize e separe as questões sociais das questões tecnocientíficas
e, de outro, a pertinência de se instaurar uma educação tecnológica no sentido amplo, que
também esteja relacionada à emergência de uma cidadania mais sintonizada com os
dilemas da “sociedade tecnológica”. Ou seja, vai se evidenciado cada vez mais a
necessidade de se participar das decisões tecnológicas, a princípio restrita aos especialistas
– cientistas, técnicos, tecnólogos e engenheiros – que afetam a todos e, muitas vezes, se
constituem em processos irreversíveis.
Assim, como enfatiza Buch (2003), diversos países têm realizado reformas educacionais
no sentido de promover uma educação científica e tecnológica que, a despeito de suas
polissêmicas finalidades, deve ser ampla, geral e extensiva a todos os níveis de ensino,
inclusive o fundamental2 . Essa educação, entre outros aspectos, seria fundamental para
possibilitar melhores condições para o exercício da ética e cidadania na chamada
“sociedade tecnológica”.
No Brasil essa reforma educacional foi promovida em 1996 com a aprovação da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. No que tange ao Ensino Básico, essa reforma
preconizou uma espécie de transversalização dos temas envolvendo as relações entre
ciência, tecnologia e sociedade. No caso da Educação Tecnológica (no seu sentido mais
estrito), envolvendo, em especial, os cursos superiores de Tecnologia e Engenharias,
estabeleceu-se a necessidade de uma reforma curricular, através da DCNs. Entre outros
aspectos as DCN’s das Engenharias apontaram para a premência de uma organização
curricular que promovesse maior interação entre aspectos sociais e tecnológicos, demandas
locais e contextualizadas e atuação profissional, baseada numa “ [...] formação generalista,
humanista, crítica e reflexiva, capacitando a absorver e desenvolver novas tecnologias,
estimulando a sua atuação crítica e criativa na identificação e resolução de problemas,
considerando seus aspectos políticos,econômicos, sociais, ambientais e culturais, com visão
ética e humanística, em atendimento às demandas da sociedade [...]”(Brasil, 2002a).
2
Nesse sentido, uma das propostas (com significativo grau polissêmico) que irá circular nas reformas
educacionais de diferentes países é o de alfabetização tecnológica.
Contudo, é uma questão muito importante saber como têm sido traduzidos-deslocados
os sentidos produzidos pelas reformas educacionais num país continental como o Brasil.
De qualquer modo, em relação a esse sucinto quadro sócio-educacional descrito, em
especial aos desafios apresentados para formação acadêmica de engenheiros propostos
pelas DCNs, cabe saber que aspectos da Teoria ator-rede podem trazer novos sentidos
para repensar as relações entre tecnociência e sociedade na educação tecnológica?
1.1 – alguns aspectos significativos da TAR
Um primeiro aspecto diferencial em relação a tradição de estudos históricos,
sociológicos e filosóficos da ciência e tecnologia é a própria abordagem indissociável entre
tecnologia e sociedade que os diferentes matizes dos Estudos Sociais de Tecnologia
preconizam. Em outros termos, trata-se de se dar conta da impossibilidade de separar as
chamadas questões tecnológicas das questões socioculturais. Mais do que isso, os estudos
antropológicos vêm demonstrando já há um certo tempo a impossibilidade de estabelecer
fronteiras entre o que chamamos de humano e técnico. Em outros termos, os modos
comuns como percebemos nossa própria subjetividade, centrada, individual, autônoma,
necessita ser repensada em termos coletivos, interativos e dinâmicos.
Contudo, um problema que parece ser chave é como mostrar que essa interatividade
ocorre na prática? Ou, nas palavras do próprio Callon:
Ao longo dos últimos dez anos, os sociólogos e economistas têm chegado a uma
conclusão similar por diferentes caminhos: a criação científica e técnica, assim como a
difusão e consolidação de seus resultados, surge de numerosas interações entre
diversos atores (investigadores, tecnólogos, engenheiros, usuários, industriais). O
problema surge quando se trata de analisar estas interações e dar conta das escolhas
realizadas. Como podemos explicar o fato de que em certos casos as trajetórias sejam
exitosas e se estabilizem, enquanto que em outras apareçam novas configurações?
(Callon,2008, p. 147)
Um primeiro aspecto a considerar na TAR é o seu modo diferenciado de entender o
social, as instituições e organizações muito mais do ponto de vista de sua arquitetura
processual, interativa, provisória e inconclusa, do que do ponto de vista de sua estabilidade.
Nesse sentido, como enfatiza Law, a TAR é uma “sociologia da tradução”, mais
interessada em analisar essa mecânica do poder ou a analítica da tradução:
Podemos então perguntar como é que alguns tipos de interação conseguem se
estabilizar mais, outras menos, e se reproduzir. Como é que elas conseguem superar as
resistências e parecem se tornar “macro-sociais”. Como é que elas parecem produzir
efeitos tais como poder, fama, tamanho, escopo ou organização, com os quais somos
familiares. Este é um dos pressupostos centrais da teoria ator-rede: Napoleões não são
diferentes em espécie de “hustlers” insignificantes, nem IBMs de “whelk-stalls”. E se eles
são maiores, então deveríamos estar estudando como isso veio a acontecer – em outras
palavras, como tamanho, poder e organização são gerados (Law,2010, p.1)
Em outros termos, a TAR, contrapondo-se à uma sociologia do social, propõe uma
sociologia das associações para adentrar na realidade social. Ou seja, as organizações,
instituições aparentemente estáveis e perenes necessitam ser explicadas e não são
explicáveis aprioristicamente.
Um segundo aspecto está relacionado à concepção de interatividade, que é a metáfora
da rede, uma forma de sugerir que a sociedade, as organizações, os agentes e as
máquinas, são todos efeitos gerados em redes de certos padrões de diversos materiais, não
apenas humanos. Vêm à tona aqui um dos aspectos mais controvertidos e contestados da
TAR que é o modo de entender o social como composição heterogênea formada por seres
humanos, máquinas, animais, textos, dinheiro, etc ou seja, qualquer tipo de material. Tratase de entender como as “relações humanas” são também mediadas por objetos: textos,
alimentos, máquinas, computadores, etc. É importante, no entanto, dar-se conta que a TAR
não se submete às perspectivas deterministas sociais ou tecnológicas. Ou seja, não admite,
a priori, que as máquinas ou a tecnologia determinam as relações sociais ou vice-versa. Até
porque essas posições trabalham com uma perspectiva dualista que separa seres humanos
e máquinas, tecnologia e sociedade. Fica em aberto, portanto o caráter de estabilidade ou
mudança social que deverá sempre ser pensado como aberto e provisório.
Um outro aspecto controverso dessa perspectiva de agenciamento atribuído a humanos
e não humanos é em relação à perspectiva clássica de subjetividade, focada em especial no
sujeito e na sua intencionalidade. A TAR irá entender a subjetividade de modo mais
complexo e para além da perspectiva epistemológica clássica e dicotômica (sujeito x objeto).
Em outros termos, trata-se de entender um ator, agente, como relacionado à participação
em diferentes redes heterogêneas e, de outro lado, entender as máquinas e as
organizações como:
uma rede heterogênea - um conjunto de papéis desempenhados por materiais técnicos
mas também por componentes humanos tais como operadores, usuários, e
mantenedores. Da mesma forma um texto. Todas essas são redes que participam do
social. E o mesmo é verdade para organizações e instituições: essas são papéis,
ordenados mais ou menos precariamente segundo certos padrões, desempenhados por
pessoas, máquinas, textos, prédios, cada um dos quais pode oferecer resistência
(Law,2010, p.2)
Colocando em outros termos, a questão da subjetividade que é muito cara aos debates
educacionais precisa ser entendida em termos mais complexos e amplos. Essa
compreensão sociotécnica vai além da idéia de um sujeito ou substância pensante (seja
material ou espiritual): “o pensamento se dá em uma rede na qual neurônios, módulos
cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita, livros e
computadores se interconectam, transformam e traduzem as representações (Lévy,1999, p.
135).
Finalmente um último aspecto a ser considerado é o fato de que no nosso cotidiano, em
que interagimos com várias redes diferentes, não nos damos conta dessa complexidade e
normalmente trabalhamos com identidades, instituições, organizações, objetos, pessoas que
aparecem como seres estabilizados. As redes só vêm à tona quando esses objetos,
máquinas, organizações ou até nosso próprio corpo apresentam algum problema, falha ou,
por exemplo, no caso de uma instituição política, uma corrupção criminosa vêm á tona e
coloca em xeque nossos representantes políticos e seus “esquemas” de corrupção. Só
então começamos a nos dar conta da rede heterogênea da qual participamos. Fica então a
questão: por que essas redes que compõem os atores tornam-se invisíveis, ou por vezes
não?
O que os teóricos da TAR vão responder é que ocorre um processo de simplificação ou
pontualização. Na prática nós não nos damos conta dessas complexidades que aparecem
como unidades homogêneas, prontas:
Sempre que uma rede age como um único bloco, então ela desaparece, sendo
substituída pela própria ação e pelo autor, aparentemente único desta ação. Ao mesmo
tempo, a forma pela qual o efeito é produzido é também apagada: nas circunstâncias ela
não é visível e nem relevante. Ocorre, então, que algo muito mais simples surge – uma
televisão (funcionando), um banco bem administrado, ou um corpo saudável –, por um
tempo, para cobrir as redes que o produziram. (Law, 2010, p.4)
Contudo, é importante destacar que uma rede é sempre um fenômeno precário, sujeito a
falhas, recalcitrâncias e que pode degenerar-se. De qualquer forma é importante entender
como essa pontualização é importante para dar agilidade e simplicidade à participação na
rede, fazendo parte, portanto, do trabalho de ordenamento e composição do social nas suas
diversas redes e ramificações.
Finalmente, um outro aspecto importante a ser considerado é o caráter transitório das
composições e ordenamentos sóciotécnicos.
Outra forma de dizer isso é notar que os elementos reunidos numa determinada ordem
estão permanentemente sujeitos a falha, e a abandonarem o conjunto por sua própria
conta. Assim, a análise da luta pelo ordenamento é central à teoria ator-rede. O objeto é
explorar e descrever processos locais de orquestração social, ordenamento segundo
padrões, e resistência. Em resumo, o objeto é explorar o processo freqüentemente
chamado de tradução o qual gera efeitos de ordenamento tais como dispositivos,
agentes, instituições ou organizações. Assim “tradução” é um verbo que implica
transformação e a possibilidade de equivalência, a possibilidade que uma coisa (por
exemplo, um ator) possa representar outra (por exemplo, uma rede) (Law, 2010, p.4).
Ou seja, existe sempre um embate mais ou menos visível ou emergente nas redes,
possibilitando traduções, deslocamentos e transformações. Está, portanto, sempre em jogo
na composição das redes, de um lado a busca da pontualização, do apagamento e
simplificação das composições heterogêneas e das tendências centrífugas e, de outro, as
recalcitrâncias e possibilidades de outras traduções e deslocamentos.
1.2 - implicações para a educação tecnológica
Muitos dos questionamentos do movimento e campo de estudos CTS na educação
estiveram voltados para os desafios de visibilizar criticamente as interações entre
tecnociências e sociedade, intentando formar cidadãos que pudessem ser interlocutores
ativos na “sociedade tecnológica”:
Educar numa perspectiva CTS é, fundamentalmente, possibilitar uma formação para
maior inserção social das pessoas no sentido de se tronarem aptas a participar dos
processos de tomadas de decisões conscientes e negociadas em assuntos que
envolvam ciência e tecnologia. A noção de abrangência das interferências da
tecnociência amplamente aceita atualmente, permite afirmar que se trata de formar
para uma participação decisiva em praticamente todos os aspectos da vida em
sociedade. Em outras palavras, é favorecer um ensino de/sobre ciência e tecnologia
que vise à formação de indivíduos com a perspectiva de se tornarem cônscios de
seus papéis como participantes ativos da transformação da sociedade em que vivem.
É, igualmente, apostar no fortalecimento e ampliação da participação democrática (
Linsingen, 2007, p.13)
A perspectiva sóciotécnica da TAR parece que pode ter uma contribuição importante
para apresentar elementos significativos que auxiliem a entender os caminhos como
conhecimentos científicos e tecnológicos são produtos sociais, efeitos
de muito trabalho no qual elementos heterogêneos – tubos de ensaio, reagentes,
organismos, mãos habilidosas, microscópios eletrônicos, monitores de radiação,
outros cientistas, artigos, terminais de computador, e tudo o mais – os quais
gostariam de ir-se embora por suas próprias contas, são justapostos numa rede que
supera suas resistências. Em resumo, o conhecimento é uma questão material, mas
é também uma questão de organizar e ordenar esses materiais [...]um processo de
“engenharia heterogênea” no qual elementos do social, do técnico, do conceitual, e
do textual são justapostos e então convertidos (ou “traduzidos”) para um conjunto de
produtos científicos, igualmente heterogêneos. (Law, 2010, p.1)
No entanto, tal composição comumente não está visível e muitas vezes se apresenta
como invisíveis, pontualizadas, prontas e acabadas. Nesse sentido, há um trabalho de abrir
a caixa preta da ciência e tecnologia e perceber não apenas seus aspectos controversiais,
mas suas relações e composições com outros materiais e interesses que vão muito além
dos cognitivos. A forma tradicional que a escola tem de trabalhar com a ciência e tecnologia,
disciplinar, linear, contribui para reforçar o aspecto pontualizado e que trabalha no sentido
de estabelecer essa invisibilidade do aspecto interativo e composicional dos conhecimentos
científicos e tecnológicos.
Por outro lado, esse trabalho de perseguir os traços sociotécnicos da ciência e
tecnologia pode também ajudar a questionar de que modo esses conhecimentos são
traduzidos na nossa realidade latino-americana. Nesse sentido pode convergir com algumas
preocupações que fazem parte do Pensamento Latino Americano em CTS (PLACTS), que
busca problematizar que ciência e tecnologia circulam na nossa região e em que medida
estão comprometidos com os desafios sociais e econômicos que atravessam nossa
realidade. Ou, nas palavras de Linsingen:
Sintonizado com os ECTS europeus e norteamericanos, o PLACTS tratava a ciência
e tecnologia como processos sociais com características específicas e dependentes
do contexto onde são introduzidas, compartilhando, portanto, a perspectiva CTS de
não-neutralidade e não universalidade. Dessa compreensão emerge o que foi
entendido como um paradoxo: “ao mesmo tempo em que os países menos
desenvolvidos tentam produzir conhecimento científico local, estão submetidos a
uma relação de dependência do conhecimento – particularmente tecnológico –
produzido em países industrializados (Kreimer, 2007). (Linsingen, 2007, p. 7)
Já em relação especificamente a formação de engenheiros, como já salientado
acima, existe uma preocupação cada vez mais enfática, expressa nas DCNs, em relação
a uma aproximação maior entre a formação tecnocientífica e humanística e o
comprometimento profissional, para além das já naturalizadas demandas do mercado,
com as necessidades sociais locais. Como salienta Linsingen :
É perceptível [...] a capacidade de interferência da tecnociência nas sociedades, bem
como a importância dos tecnólogos nesse processo de construção social e reforça,
em nível mundial, a necessidade de uma reorientação e contínua análise das
políticas pedagógicas das instituições de ensino tecnológico, a par da participação
social mais ampla nas políticas públicas de ciência e tecnologia. (Linsingen, 2007, p
9).
Acreditamos que a formação de engenheiros pode ser entendida como uma
mediação fundamental na composição (na engenharia social) dos diferentes mundos
sociais. Nesse sentido, torna-se cada vez mais premente uma formação que possibilite
uma atuação sintonizada e aberta às recalcitrâncias do mundo social. Ou seja, que os
engenheiros não apenas estejam atentos aos impactos sociais de sua participação
incisiva na concepção sociotécnica, mas aberto dialogicamente à pluralidade e à
participação dos cidadãos-atores-híbridos, direta ou indiretamente afetados pelas suas
deliberações e possivelmente cada vez mais atentos e recalcitrantes em relação às
composições e engenharias sociais arbitrárias.
1.3 Educação Tecnológica e cidadania cosmopolita
Essa questão remete, então, a um dos aspectos que consideramos muito
significativo na teoria Ator-Rede para o campo educacional: o redimensionamento da
dimensão política na sociologia das associações.
Um primeiro aspecto que fica evidenciado é que se amplia significativamente a
dimensão política na perspectiva da TAR, em relação à concepção moderna de
democracia liberal e representativa.
Essa ampliação acontece num duplo sentido: primeiro em relação à extensão do
campo sujeito ao debate público, muito além do mundo social dos humanos e envolvido,
portanto, também naquilo que se chama de modo clássico “políticas da natureza”.
Envolve, então, o resgate que Latour, respaldado em Stengers, irá fazer da concepção
grega de cosmopolítica: “leva-se em conta aqui o sentido grego de arranjo, de
harmonia, ao mesmo tempo que aquele mais tradicional, de mundo. É então um
sinônimo do bom mundo comum, o que Isabelle Stengers chama cosmopolítica (não no
sentido multinacional, mas no sentido metafísico de política do cosmo)” (Latour, 1994,
p.374).
Trata-se, portanto, de ir além da separação convencional que deixava o “mundo
natural” como campo dos especialistas-cientistas ou o “mundo da tecnologia” como
campo específico da deliberação de tecnólogos e engenheiros. Evidentemente que
esses porta-vozes da natureza e tecnologia continuarão sendo partes do processo
deliberativo, mas deixarão de estar sozinhos nas suas deliberações.
O mundo - cosmos - é, então, entendido com um mundo comum que necessita ser
composto, orquestrado coletivamente pela heterogeneidade dos atores-cidadãos.
De certo modo, é possível dizer que não estamos diante de uma u-topia – um lugar a
ser buscado num futuro distante. Ele já começa a emergir nos mais diferentes
movimentos sociais que reivindicam uma participação efetiva nesse mundo comum.
Alguns exemplos já bastante enfatizados pelos ECTS, como o movimento ecológico,
movimento feminista, movimento de protesto contra a guerra do Vietnã, movimento suis
generis de
usuários da Internet, movimento das Tecnologias Sociais, ou ainda da
participação dos pacientes infectados pelo vírus da AIDS nas pesquisas médicas, etc.
(Collins e Pinch, 2005)
É importante frisar que tal perspectiva cosmopolítica vai muito além dos movimentos
de divulgação científica e tecnológica, ou participações meramente consultivas em
aspectos éticos controversos das produções científicas e tecnológicas. A própria ética
adquire um sentido muito mais complexo, na medida em que complexifica-se os atos
sociais e, por outro lado, as responsabilidades éticas alargam-se na medida em que nos
damos conta que participamos direta ou indiretamente na manutenção, composição ou
mesmo desconstrução de diferentes redes sociotécnicas.
Considerações finais
Essas incipientes aproximações entre a TAR e a educação tecnológica já ajudam a
entrever sua produtividade para estabelecer outros sentidos para as relações entre
ciência–tecnologia e sociedade na Educação Tecnológica. Sem dúvida, ela acaba
causando um estranhamento como o de Gregor ao se perceber metamorfoseado.
Especialmente porque ela, mais do que uma abordagem metodológica, apresenta-se
como uma outra abordagem ontológica, epistêmica e sociológica das relações
sociotécnicas.
Em
termos
educacionais
ela
também
estabelece
um
certo
redimensionamento em algumas das categorias fundantes da prática pedagógica:
(inter)subjetividade, escola como espaço-tempo sóciotecnico,
professores e alunos
como sujeitos híbridos, múltiplos relacionados à várias redes, o aprendizado e a
educação numa perspectiva interativa, etc. Mas , sobretudo, ela oferece elementos para
repensar e questionar as formas hegemônicas como as relações ciência – tecnologia e
sociedade estão sendo trabalhadas na escola. Em especial, no que diz respeito à
educação tecnológica e à formação de engenheiros ela estabelece possibilidades
substanciais para um questionamento crítico da formação tecnicista e alternativas
pedagógicas para trabalhar com um ensino mais crítico, interdisciplinar e possivelmente
mais dialógico voltado para uma abertura maior aos embates gerados pela atividade
sociotécnica desse ator-mediador, e por vezes, intermediário profissional que tem um
papel cada vez mais crucial na chamada sociedade tecnológica.
Finalmente, um outro aspecto a ser ressaltado, é como a TAR pode ser importante
nas
pesquisas
educacionais,
notadamente
voltada
à
educação
tecnológica.
Evidentemente que vem estabelecer um desafio em termos de se assumir uma postura
ontológica, epistemológica, ética e política bastante controvertida na tradição mais ampla
dos ECTS. Além disso, ela estabelece exigências metodológicas muito rigorosas para
que os resultados possam ser produtivos e socialmente significativos. Contudo, por outro
lado, parece que podem significar um reavivamento do modo de se entender e
problematizar a educação. Também vale lembrar que, mesmo considerando seu aspecto
mais descritivo e empírico para buscar rastrear as múltiplas redes sociais, a TAR
apresenta-se também como uma nova possibilidade para repensar o exercício da
cidadania na sociedade tecnológica. Essa perspectiva cosmopolita da TAR mostra a sua
preocupação em também não separar as questões epistemológicas e sociais do
exercício político. Nesse sentido, ela pode também ser muito significativa para renovar
as discussões na tradição dos estudos pedagógicos preocupados com uma perspectiva
transformadora e emancipatória da educação, especialmente nesses nossos territórios
latino-americanos ainda bastante colonizados, mas sempre inconclusos e abertos a
subversões e outros arranjos sociotécnicos.
Bibliografia
BRASIL .Conselho Nacional de educação. Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos
de Engenharia. Resolução CNE/CES 11, de 11 de março de 2002b. Publicada no DOU,
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