Coutinho, Luciano. "Risco Brasil", risco para o Brasil." São Paulo: Folha de São Paulo, 10 de outubro de 1999. FSP 10-10-99 Texto Anterior | Próximo Texto | Índice LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS "Risco Brasil", risco para o Brasil LUCIANO COUTINHO O processo de valorização do capital está sempre e inextricavelmente voltado para o futuro. É a promessa de retornos (lucros) futuros que, descontada a juros para o presente, move as decisões de produção e de investimento e forma o preço dos ativos. A riqueza capitalista, por isso, não depende do "valor intrínseco" dos ativos instrumentais (fábricas, equipamentos etc.), comerciais (marcas, "goodwill"), mobiliários (títulos públicos, privados, ações etc.) ou de poder decisório (bloco de ações que garante controle das empresas). Isso pode parecer difícil de compreender, mas o valor intrínseco de um ativo (e.g. "custo econômico de reposição") não faz sentido isoladamente se ele não propiciar uma expectativa de, colocado em função, gerar lucros vigorosos que mais que compensem o risco do empreendimento. Lembremo-nos de que, sendo o sistema baseado numa economia de crédito, há sempre a possibilidade de emprestar a juros. Por isso, o capital a juros sempre foi a referência geral de cálculo entre o presente e o futuro e a base de escolha entre diferentes classes de ativos. O investimento num ativo fixo, de baixa liquidez, só faz sentido se "o lucro esperado exceder o custo de encargos financeiros por uma margem considerável para cobrir os riscos envolvidos. A taxa prospectiva de lucros sobre o montante de capital financeiro a ser investido só pode ser equalizada à taxa de juros apenas após a subtração de um prêmio de risco. Se o prêmio de risco é baixo (ou alto), equivale a dizer que a propensão a investir é alta (ou baixa)", diz Joan Robinson no seu clássico "A Acumulação de Capital", de 1962. Da mesma forma, qualquer investimento em ativos financeiros só faz sentido se houver uma boa expectativa de ganho, associada à valorização destes. Em resumo, todo o processo de valoração do capital (em todas as suas formas) depende de como se formam as expectativas a respeito dos seus lucros e ganhos prospectivos. O diabo é que o futuro é incerto e, portanto, o processo depende de como se formam -socialmente- conjecturas sobre o futuro. Em 1937, Keynes advertia ("Teoria Geral") sobre "o fato de que o nosso conhecimento sobre o futuro é flutuante, vago e incerto... não há fundamento científico sobre o qual se possa formular, de forma autorizada, qualquer expectativa estatisticamente plausível. Nós não conhecemos o futuro, simplesmente. Não obstante, a necessidade de agir e de decidir nos obriga, na condição de homens práticos, a fazer o nosso melhor esforço para superar essa realidade embaraçosa e a nos comportarmos exatamente como se estivéssemos diante de um bom cálculo benthamiano...". Os gestores do capital (posição em que Keynes se colocou na frase acima) precisam, portanto, conjecturar sobre o futuro e formar uma expectativa logicamente coerente a respeito dele, lançando mão de todos os procedimentos racionais e informações de que dispuserem. Esse é um processo socializado, liderado pelos agentes mais prestigiados e poderosos (bancos, grandes empresas). A ampla desregulação dos mercados de capitais nas duas últimas décadas os integrou num grande mercado global, fluido e líquido. Sob esse, teoricamente, não há limites objetivos para a valoração da riqueza. Se a maioria dos tomadores de decisão estiver persistentemente otimista, projetando lucros auspiciosos, e se, ademais, dispuser de crédito para alavancar sua acumulação, os preços dos papéis subirão continuadamente, configurando um movimento de "inflação de ativos". O otimismo gera mais otimismo e bolhas especulativas tendem a se formar. Não há relação com "valores intrínsecos" e sim um processo que explicita o caráter fictício da riqueza. Descendo dessa peroração abstrata para o aqui, agora. 1) A Bolsa de Nova York é, sem dúvida, um perigoso exemplo de bolha especulativa que pode estourar com graves sequelas -mas, para perplexidade geral, é impossível dizer como e quando. Alan Greenspan, presidente do Banco Central dos EUA, tenta a façanha de desinflá-la ordenadamente, enquanto os crescentes desequilíbrios macroeconômicos americanos não se tornam intratáveis. 2) O Brasil, sob o Plano Real, subjugou-se imprevidentemente à tirania desse grande mercado ao incorrer num elevado déficit externo em transações correntes que, infelizmente, não é fácil de reverter -apesar de já termos escapado da armadilha da sobrevalorização cambial. Lembrando o sentido da citação da professora Joan Robinson, a economia brasileira está hoje submetida a uma brutal taxa de "risco Brasil" que lhe é imputada pelo mercado global, diante da fragilidade de nossa posição cambial. Esse enorme prêmio de risco se embute na nossa taxa de juros, definha nossas empresas, deprime nossa capacidade de investimento e degrada o valor dos nossos ativos. Moral: é mais que urgente começar a construir um balanço de pagamentos sólido.