Dom Braz – EXIGÊNCIAS E TENDÊNCIAS DA

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CONFERÊNCIA DOS RELIGIOSOS DO BRASIL – CRB NACIONAL
XXIV ASSEMBLÉIA GERAL ELETIVA – AGE
11 a 15 de julho de 2016
VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA EM PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO
“Vejam que estou fazendo uma coisa nova” (Is 43,19)
Dia 11 (Segunda Feira) – 16H30 – Primeiro Tema
EXIGÊNCIAS E TENDÊNCIAS DA IGREJA E VIDA RELIGIOSA CONSAGRADA
João Braz Card.de Aviz
Introdução
Tenho uma grande alegria de estar aqui com a vida consagrada do Brasil.
Trago para cada um minha saudação pessoal, a do nosso Arcebispo Secretário do
Dicastério e a dos 40 oficiais que trabalham conosco.
Esta XXIV Assembleia Geral da CRB está consciente do processo de
transformação por que passa a Vida Consagrada neste momento da história da
Igreja, no contexto das transformações da humanidade. Ao mesmo tempo, com a
visão da fé que guia o próprio caminho, toma nova consciência de que Deus está
fazendo uma coisa nova. Todos nós cremos firmemente nesse processo guiados pela
certeza da esperança.
Há pouco concluímos o ano da vida consagrada que teve como um de seus
efeitos mais significativos reacender em nós a esperança.
O jubileu da misericórdia nos envolveu em uma experiência profunda de Deus
e de nossas relações humanas. É nesse clima que se realiza a XXIV Assembléia Geral.
- O tema que me foi confiado nos provoca no tomar consciência dos caminhos
da Igreja hoje e na Igreja dos caminhos da vida consagrada: todos na busca do
discipulado (testemunho do evangelho de todas as vocações); todos discípulos
missionários que caminham em comunhão oferecendo à Igreja e à humanidade
aquilo que é o próprio da vida consagrada: a profecia (testemunho vivido e
anunciado dos conselhos evangélicos). Comecemos, pois, na busca da compreensão
dos caminhos da Igreja hoje com o Papa Francisco.
2
1. Os Caminhos da Igreja Hoje com o Papa Francisco1
O Papa Francisco, neste nosso tempo, colocou com vigor e clareza o
imperativo exigente da Reforma da Igreja Católica no centro de nossa consciência de
Povo de Deus, povo universal, chamado a chegar até os extremos confins da família
humana.
Todos nós, em todas as nossas vocações e em todas as circunstâncias na
Igreja, somos agora chamados a conformar-nos pessoal e comunitariamente à
mesma “forma” de Jesus, que se identifica com o desígnio do Pai sobre o homem, a
mulher e o cosmos, que está se realizando progressivamente na história.
Com muito carisma e espírito profético o Papa Francisco retoma esta herança
preciosa do Concílio Vaticano II, como bispo da Igreja de Roma, que lhe confere o
ministério petrino, a serviço da unidade de toda a Igreja.
A revista “La Civiltà Cattolica” dos jesuítas, com as bênçãos do papa, realizou
um seminário de 40 teólogos de todo o mundo. Eles afirmam: “A reforma exprime o
próprio mistério da Igreja na história. A vocação à renovação nasce do próprio
mistério íntimo da Igreja, como também de sua realização na história”. Trata-se da
reforma tanto na cabeça – a hierarquia – quanto nos membros do povo de Deus,
que começa a aparecer através de um concílio no início do século XIV.
Mais tarde essa exigência da reforma, que não se pode adiar, explode na
Reforma protestante e, do lado católico, ela se concretiza nos decretos doutrinais e
decretos de reforma do Concílio de Trento.
Nesse sentido o Concílio Vaticano II apresenta algo de novo: de um lado é
verdade o que afirma o Papa Bento XVI, isto é, a reforma proposta pelo Concílio
Vaticano II é uma “reforma na continuidade”. De outro lado é verdade também que
se trata, pela primeira vez na história da Igreja, de uma reforma que, com um único
olhar, quer traduzir no hoje o coração pulsante do Evangelho de Jesus, na força do
Espírito Santo e no discernimento dos sinais dos tempos, que anunciam, como
afirma o Papa Francisco, não uma época de mudança, mas uma mudança de época.
Alguns exemplos para ilustrar: no ecumenismo a Igreja Católica renuncia à sua
“forma” entendida como absoluta; com a globalização renuncia à sua “forma”
tipicamente ocidental; e na busca de encontro com as religiões reveste-se da
“forma” nova do diálogo.
1
A análise aqui desenvolvida tem por base o texto “Papa Francesco e la riforma della chiesa cattolica”, apresentado
por Piero Coda em Rocca di Papa (Roma), no Centro do Movimento dos Focolares no dia 05.06.2016. A tradução é
minha.
3
Trata-se pois de uma reforma inédita e de grande peso, à luz do Concílio
Vaticano II, para a qual o Papa Francisco não só convidou a Igreja, mas está nela
introduzindo.
No magistério das palavras, dos gestos e das decisões do Papa Francisco, com
uma boa dose de simplificação, se podem identificar tres grandes linhas diretivas
que nós podemos exprimir como segue:
- Sínodo é o nome da Igreja
- A verdade se faz na caridade
- O diálogo é o caminho da evangelização
- Sínodo é o nome da Igreja: São João Crisóstomo, Padre da Igreja, dos
primeiros séculos, afirma que “Igreja e sínodo são sinônimos” porque a Igreja não é
outra coisa que “o caminhar junto” do Povo de Deus pelos caminhos da história ao
encontro de Jesus ressuscitado que vem. Esta afirmação significa tres realidades: a)
na Igreja, “como numa pirâmide invertida, o vértice encontra-se à baixo da base”; b)
na Igreja a “única autoridade” é a de Jesus e é “a autoridade do serviço”; c) que uma
Igreja sinodal é uma Igreja da escuta: “escuta de Deus até o ponto de sentir com Ele
o grito do Povo; escuta do Povo até se respirar a vontade para a qual Deus chama”.
De certa maneira a Evangelii Gaudium é o manifesto programático desta primeira
linha diretiva do caminho da reforma.
A Comissão Teológica Internacional está ultimando um documento que
aprofunda este primeiro caminho da Igreja, a sinodalidade. O exercício da
sinodalidade, em todos os níveis, vai se tornando credível como critério prioritário
da reforma da Igreja católica e de sua “conversão pastoral”. De fato é a sinodalidade
a experiência que, não só reconstruirá as relações dentro da Igreja, mas oferecerá
também o espírito, o estilo e o método adequados do “sair” do Povo de Deus que
caminha na história testemunhando e anunciando a alegria e a liberdade do
Evangelho. “O caminho da sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja do
terceiro milênio”. Foi o que o Papa Francisco afirmou na comemoração dos 50 anos
da instituição do Sínodo dos Bispos (17 de outubro de 2015).
- A verdade se faz na caridade: trata-se da verdade do Evangelho, a verdade
testemunhada e anunciada pela Igreja não é simplesmente doutrina, mas evento de
agape, evento que se faz no agape, no agape ele se comunica, como agape ele toca
e transforma os corações e as mentes. Entender e viver isto, é, talvez, a raiz mais
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profunda da reforma que brota de modo sempre novo do Evangelho de Jesus e que
hoje interpela a Igreja. Isto não é fácil. E’ algo que passa pela cruz de Jesus, no
assumir os conflitos e no confronto com as contradições. O agape é a sabedoria
(sophía) e a força (dýnamis) do Crucificado, do grito de abandono de Jesus.
Ao longo dos caminhos do tempo e nas diversas circunstâncias da experiência
e da vida dos homens e das mulheres, a transmissão da verdade do Evangelho, para
ser fiel, deve ser criativa, para conservar a identidade do que transmite deve
colocar-se em escuta daquilo que o Espírito Santo diz cada vez à Igreja para alcançar
e transformar o coração dos homens (cf. Ap 2,7).
Alguns anos atrás o teólogo Joseph Ratzinger sublinhava que “por tradição
não se deve entender uma soma de asserções bem estruturadas para serem
transmitidas intactas, mas a expressão da progressiva assimilação através da fé da
Igreja, do evento testemunhado na Escritura”, de tal modo que a fé “para
permanecer idêntica deve ser expressa em modo diverso e pensada em modo
diverso”2.
A Exortação Apostólica Amoris Laetitia sobre o amor na família, é o manifesto
programático desta comunhão espiritual e pastoral que toca um dos pontos de
verificação essenciais da vida e da missão da Igreja hoje: o matrimônio e a família, a
antropologia da sexualidade e da geração, a coesão íntima da família e a esperança
condivisa, valores capazes de sustentar a vida em sociedade.
- O diálogo é o caminho da evangelização: o beato Papa Paulo VI, na sempre
atual encíclica Ecclesiam Suam, afirma que o diálogo não é um optional, ou uma
tática externa ao anúncio do Evangelho, mas é a sua substância, a sua forma.
A Constituição Dei Verbum do Concílio Vaticano II sobre a Palavra de Deus,
quando descreve a própria revelação de Deus em Jesus, ensina que ela é como o
entreter-se e o conversar de Deus com os homens como amigos. Assim a conversão
espiritual e pastoral toca na profundidade os corações, as mentes, as dinâmicas e as
estruturas do nosso ser Igreja. Ela nos introduz naquela dinâmica do “fazer-se um”,
fazendo-se “tudo para todos” que tem em Jesus crucificado e abandonado sua
chave e seu exercício.
Em um certo modo, pode-se afirmar que a encíclica Laudato Sì do Papa
Francisco sobre o cuidado da casa comum, é o manifesto programático mais
avançado deste terceiro caminho da reforma da Igreja.
2
J.Ratzinger, Natura e compito della teologia. Il teologo nella disputa contemporanea storia e dogma, tr.it. Jaca Book,
Milão 1993, pp.122-123. A tradução portuguesa é minha, a partir do texto italiano.
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2. Os Caminhos da Vida Consagrada na Igreja Hoje
Coloco abaixo um pequeno esquema indicativo dos caminhos da vida consagrada
percorridos e por percorrer ainda.
a) Caminhos já construídos:
- Quem são os consagrados hoje na Igreja ?
. Ordo Virginum (Ordem das Virgens)
. Ordo Viduarum (Ordem das Viúvas)
. Institutos de Vida Consagrada Ativa
. Institutos de Vida Consagrada Monástica e Contemplativa (Claustral)
. Sociedades de Vida Apostólica
. Novas Formas de Vida Consagrada
- Vida Consagrada a 50 anos do Concílio Vaticano II
- Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre la Igreja, capitulo VI: os
consagrados e as consagradas são parte integrante da Igreja povo de
Deus, junto com os leigos com a hierarquia.
- Decreto conciliar Perfectae Caritatis, nn.2-4
. Seguir Jesus na forma do Evangelho é a regra suprema.
. Fidelidade ao espírito e às intenções especificas dos fundadores e das
fundadoras.
. Participar da vida da Igreja Local e dialogar con a cultura atual.
b) Caminhos em construção:
- Vinho novo en odres novos:
- Com a força do Espírito a renovação espiritual, carismática e
institucional continuou depois do Concílio Vaticano II.
- Existem áreas de fragilidade: alguns itinerários formativos; a
preocupação acentuada com o institucional e o ministerial em prejuízo
da vida espiritual; a difícil integração das diversidades culturais e
geracionais; un equilíbrio problemático no exercício da autoridade e
no uso dos bens.
- Quais são os odres novos da vida consagrada confiados ao nosso
cuidado hoje ? No ano da vida consagrada que acabamos de viver
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escolhemos três odres para procurar responder aos desafios do
momento:
. vida fraterna em comunidade
. formação (continua e inicial)
. poder e uso dos bens
- Os cinco pontos do Papa Francisco para a vida consagrada hoje:
- A alegria da consagração
- A característica própria da vida consagrada é a profecia: “despertai o
mundo”
- Especialistas em comunhão
- Ir às periferias existenciais para superar toda forma de autoreferencialidade
- Responder às novas e contínuas perguntas que se levantam hoje e ao
grito dos pobres
Em vista disso, penso que a fundamentação espiritual e teológica mais
coerente e necessária para construir esse caminho que se está percorrendo é
realizar a vida pessoal, familiar, eclesial e de abertura para a humanidade à luz
da antropologia trinitária. De fato, sendo o nosso Deus uno e trino; sendo o
nosso Deus amor e misericórdia; e sendo ainda o nosso Deus fonte de
relações, podemos, com este fundamento, perguntar: então quem é o
homem, quem é a mulher, já que eles são criados à imagem e à semelhança
de Deus? À luz de minha experiência pessoal, da experiência de muitos
outros, homens e mulheres, que também percorrem a mesma estrada de
vida, e apoiado na reflexão-vida de muitos teólogos e filósofos
contemporâneos e mais antigos, proponho como um dos caminhos em
construção mais significativos para a vida consagrada, a compreensão e a
aplicação do mistério da Santíssima Trindade como fundamento da
antropologia cristã.
3. O Mistério da Santíssima Trindade como Fundamento da Antropologia
Cristã
Aprofundaremos este ponto particularmente importante para a vida
consagrada hoje, em tres momentos:
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3.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na Medida do Homem e da Mulher Hoje
3.2. Deus é Amor (1 Jo 4,8.16). O Homem e a Mulher também São Amor (Gen 1,27)
3.3. Tornar-se Pequeno, como Deus, para ser Amor, como Deus (Flp 2,5-11)
3.1. Vida Consagrada na Medida de Deus e na Medida do Homem e da Mulher
Hoje
Os consagrados e as consagradas de vida contemplativa e também os de vida
ativa não existem para ocupar-se em primeiro lugar com as obras e as estruturas
surgidas em sua história desde o passado. Muitas vezes estas obras e estruturas
hoje se tornaram pesadas e sempre mais difíceis de serem administradas em uma
situação de sempre menos pessoal disponível e de exigências sociais e públicas cada
vez mais abrangentes. Esta parece ser a realidade de uma boa parte das ordens e
congregações religiosas, sobretudo na Europa, nos Estados Unidos, no Canadá e na
Austrália. O mesmo fenômeno, porém, começa a se acentuar também nos outros
continentes.
Como nos pediu o Concílio Vaticano II, é necessário voltar ao sentido
verdadeiro da vida consagrada, isto é, seguir Deus, descobrir, como experiência, o
seu amor, pois Ele nos chamou através do nosso fundador, da nossa fundadora. De
fato o que caracteriza os fundadores é terem eles seguido a iluminação que Deus
lhes deu. Foi por isso que eles se realizaram, foram felizes, e construíram
monumentos de beleza e de santidade na Igreja.
De outro lado estamos tomando consciência de que o homem e a mulher de
hoje chegaram a uma nova maturidade. São ciosos de valores como os da liberdade,
da igual dignidade, da justiça, da diversidade, da paz, ... A globalização, facilitada
pelo aperfeiçoamento da tecnologia, invadiu todos os recantos da terra. Ao mesmo
tempo, porém, somos herdeiros de fenômenos que se arraigaram em nós como o
individualismo, a perda dos valores tradicionais e universais, o laicismo que, à fúria
de combater a religião, se torna ele mesmo uma religião, o eterno sonho do homem
sem Deus, que se basta a si mesmo. No coração desse homem e dessa mulher de
hoje continua viva a ânsia de felicidade, a busca da realização pessoal e coletiva,
mesmo que seja conseguida somente em alguns momentos fugazes.
E nós cristãos nos apercebemos que a grande herança de luz dos milênios
passados da história da fé, embora sentida como uma grande riqueza, já não é mais
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suficiente hoje nos mesmos moldes que recebemos do passado. A época mudou, as
exigências humanas mudaram, as possibilidades de vida mudaram e ficamos meio
perdidos no fenômeno cultural que hoje se processa. Voltam as tendências do
tradicionalismo e do “futurismo” na Igreja, como formas de encontrar segurança na
experiência de fé. O envelhecimento de muitas congregações, a ausência de
vocações, os numerosos abandonos da vida consagrada por homens e mulheres
consagrados em todas as idades da vida, o desacerto entre os consagrados mais
idosos e os mais jovens, o aparecimento de fundadores infiéis ao próprio carisma
como consequência de sua infidelidade ao evangelho, tudo isso, nos questiona. Qual
será, pois, a vida consagrada autêntica na medida de Deus e na medida do homem e
da mulher hoje?
3.2 Deus é Amor (1 Jo 4,8.16). O Homem e a Mulher Também São Amor (Gen 1,27)
No início de nosso caminho vocacional de consagrados e de consagradas nos
marcou, sem dúvida, uma experiência profunda de Deus que nos atraiu com seu
amor suavemente, ou mesmo fortemente. O que a maioria de nós não duvida é que
se tratou de uma experiência verdadeira e envolvente. Enamorados, seguimos esse
chamado, no começo, a partir de sinais por vezes simples, sem perceber quem sabe
a dimensão exigente que se mostraria depois, mas seguimos o Senhor sem medos e
por caminhos pouco conhecidos. Esse é o momento mais significativo do que
determinou nossa vida. A ele é necessário voltar com decisão para não perder a
estrada e manter acesa a chama da busca de felicidade que queima dentro de nós.
O apóstolo e evangelista João nos assegura que Deus é amor (1 Jo 4, 8. 16).
Não se trata de um sentimento em Deus, ou de uma sua virtude, mas daquilo que
define o que Deus é: Ele é amor. Este é o seu ser, esta é sua essência, se assim
quisermos dizer. Experimentar o chamado de Deus no início de um chamado para a
vida consagrada significa experimentar a presença do amor, experimentar a força de
atração do amor, sentir a vontade de ser amor. Com toda a certeza, nesse
momento, Deus não envolveu apenas a nossa inteligência para a adesão a uma
verdade de fé, ou a nossa vontade para a adesão à moral cristã que gera
comportamentos novos. Foi, sem dúvida, uma experiência mais abrangente a que
envolveu todo o nosso ser, inclusive os afetos e nossa sexualidade.
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Somente experimentando o amor podemos compreender que Deus tenha
tomado a iniciativa de tornar-se carne, tornar-se humano, na pessoa do Filho, em
Jesus de Nazaré, o filho da Virgem Maria. E’ o Amor Aquele que vem em busca de
sua criatura afastada pelo pecado, para retomar para si o que é seu. O mistério da
encarnação do Filho tem as características do amor. E’ manifestação do amor. Com
a vinda do Filho entendemos que o amor não é solidão e sim comunhão. Jesus, o
Filho de Deus encarnado, nos revela, por isso, que Ele não vive sozinho. Ele tem um
Pai que é Deus como Ele. Ele nos revela e nos comunica também o Espírito Santo
que é Deus como Ele e o Pai. Por isso Três que são o amor não formam três solidões.
Ao contrário, os Três diferentes e bem individuados, cada um como pessoa, difere
do outro, e, ao mesmo tempo, forma com o outro uma única unidade em perfeito
equilíbrio. De fato, em Deus-Amor, unidade e diversidade não se opõem, mas são
duas faces da mesma realidade. Essa aproximação do mistério central de Deus
poderá hoje ajudar a ontologia (filosofia) e a antropologia cristãs a dar novos passos
para ajudar a cultura atual a compor, de modo positivo, as dimensões da unidade e
diversidade na experiência humana e na compreensão e experimentação da
natureza e do cosmos3.
Por que buscamos no mistério da Santíssima Trindade a realidade mais
profunda para abrir o caminho de uma experiência antropológica para o nosso
tempo ?
Porque os tempos são novos, exigentes, complexos, marcados pelo progresso
tecnológico que permite novas experiências humanas não possíveis antes e
modificam muitos dos parâmetros e critérios de vida que até agora usamos. A
própria fé assumiu formas da cultura de outros tempos que hoje não sentimos mais.
Cresceu a consciência da importância dos valores humanos que devem ser
alcançados e não podem eles estar em contraposição com os valores que a fé
propõe. Prefere-se alcançar uma felicidade humana possível que buscar uma
felicidade futura incerta e difícil, e isso não depende do grau de dificuldade para
alcançá-la. Para nós homens e mulheres de fé, cristãos que querem arriscar tudo
pela pessoa de Jesus Cristo, aqui está o novo desafio. Por que a nossa experiência de
fé parece não nos oferecer uma felicidade maior do que a daqueles que não seguem
Jesus?
Recorremos ainda à Palavra de Deus para fazer a passagem necessária da
realidade de Deus para a nossa realidade humana e cósmica. Voltemos à narrativa
3
MORICONI B. (coordenador), Antropologia Cristiana. Bibbia, Teologia, Cultura, Città Nuova, Roma, 2001.
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da criação assim como nos é descrita no livro do Gênesis 1, 27-28: O Homem e a
Mulher são: criatura, filho e filha, e imagem de Deus.
Criatura
“Deus criou o ser humano
à sua imagem, à imagem de Deus o criou.
Homem e mulher ele os criou.
E Deus os abençoou
e lhes disse: “Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei a terra e submeteia! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais
que se movem pelo chão”” (Gen 1,27-28)
Deus criou o ser humano: A Bíblia transmite a certeza de que Deus existe e de
que o ser humano não é deus, mas é criado por Deus e, por isso, é sua criatura.
O ser humano é imagem de Deus: há uma mesma identidade entre Deus, o
homem e a mulher. Hoje, depois da vinda de Jesus Cristo, nós compreendemos que
o ser humano é imagem do Pai e do Filho e do Espírito Santo, isto é, da Santíssima
Trindade. Foi o Filho de Deus quem nos revelou e nos comunicou este grande
mistério. Como Deus é amor, o ser humano também é amor.
O ser humano é homem e mulher: estas são as duas faces da humanidade, o
masculino e o feminino. Eles são colocados em pé de igualdade, um com o outro, e
chamados a formar uma unidade de vida. Diversos, como as pessoas da Trindade,
mas chamados à comunhão de vida, como a Trindade Santa é um só Deus.
Na criação Deus abençoou o homem e a mulher: eles são criaturas
abençoadas e, por isso, agradáveis a Deus. Na origem o homem e a mulher são bons
e foram agraciados por Deus porque nasceram de suas mãos. O homem e a mulher
foram queridos por Deus desde sua origem e a história da salvação, narrada pela
Bíblia, mostra que Deus não pode viver sem procurar e amar o homem e a mulher.
Por isso, Ele os fez fecundos. A existência de outros seres humanos, que nascem do
primeiro homem e da primeira mulher, não modifica as características da origem,
enquanto todos os homens que são chamados ao banquete da vida, pela
fecundidade dos primeiros pais, são criaturas de Deus, são homens e mulheres, e
são imagem de Deus, por Ele abençoados. Também eles, que são frutos dessa
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fecundidade, são chamados a presidir a natureza, aperfeiçoando-a com sua
inteligência e conservando-a para todos.
Filho e Filha “Com efeito, vós todos sois filhos de Deus pela fé no Cristo Jesus.
Vós todos que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo.
Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher,
pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus” (Gl 3,26-28).
“Quando se completou o tempo previsto, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido sujeito à Lei, para resgatar os que eram sujeitos à Lei, e todos
recebemos a dignidade de filhos. E a prova de que sois filhos é que Deus
enviou aos nossos corações o Espírito que clama: “Abá, Pai!” Portanto, já não
és mais escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro; tudo isso, por
graça de Deus” (Gl 4,4-7).
A graça da filiação divina é a que dá ao homem e à mulher sua maior e única
dignidade humana. Nenhum ministério, nenhum carisma, nenhum estado de vida,
constitui uma nova dignidade, de tal modo que estes são apenas serviços a serem
oferecidos aos membros do povo de Deus, todos eles revestidos da mesma
dignidade de filhos de Deus. Hoje é preciso arregassar as mangas para modificar
nossas velhas e falidas atitudes pessoais herdadas de uma cultura contrária ao
evangelho. Nós bispos, como também todos os consagrados e consagradas, somos
chamados a essa necessária mudança interior.
Chegamos a esse conhecimento acima, sem contrariar a luz que nos chega da
razão, a respeito do homem e da mulher, enquanto somos iluminados pela fé. De
fato, foi o Filho, Jesus Cristo, quem nos revelou e comunicou que Deus é Pai e Filho
e Espírito Santo, um único Deus em três pessoas distintas.
Para aprofundar esse mistério (realidade maravilhosa) do homem e da mulher
criados à imagem de Deus, precisamos nos aproximar reverentes da própria
identidade de Deus. Dificilmente o homem e a mulher teriam chegado ao
conhecimento de Deus em três pessoas, sem que, do alto, o próprio Filho o tivesse
revelado. Hoje, ajudados pela “sequela Christi” e pela reflexão teológica
aprofundada a partir dos documentos atualíssimos do Concílio Vaticano II,
chegamos a compreender que a vida consagrada precisará continuar a dar novos
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passos na direção da espiritualidade de comunhão, cujos passos terão
necessariamente que partir do mistério que é fonte segura do caminho: a
Santíssima Trindade. Um esboço do caminho que deverá ser percorrido, como
experiência eclesial, pelos consagrados e consagradas, mas também por todos os
discípulos de Jesus hoje, tendo em conta os tempos profundamente mudados, é o
que segue abaixo:
Deus é Uno e Trino porque Deus é amor (1 Jo 4,7-21). A encarnação do Filho de
Deus, Jesus Cristo, permitiu ao homem e à mulher conhecer e experimentar o amor.
A Carta de Paulo aos Filipenses (2,5-11) explica o amor de Deus como kénosis
(esvaziamento). O mistério da encarnação, a vida de Jesus de Nazaré e o mistério
pascal confirmam o caminho da revelação e da comunicação do amor por parte de
Deus como kénosis (esvaziamento). Somente esta poderá ser a estrada do amor
entre os homens e as mulheres. Por isso é necessário começar a leitura do texto aos
filipenses a partir do versículo cinco.
Desse modo o nosso desafio para experimentar Deus-Amor, para experimentar
seu amor, passa pela reconstrução da relação com a pessoa que está diante de nós.
Sem isso, segundo Jesus, não há experiência de Deus. Deus é um só em três divinas
pessoas porque suas relações são amor: o Pai só é pai porque tem um Filho; assim é
também o Filho. O Espírito Santo é o amor que une o Pai e o Filho. Entre nós é a
experiência de relação de amor com o outro a que permite experimentar Deus. Por
isso hoje não será fugindo do outro para se proteger que nós encontraremos e
experimentaremos Deus, mas aproximando-nos do outro, homem ou mulher, com
simplicidade de coração, dispostos a amá-lo, que nós penetraremos o mistério de
Deus. Esta é uma mudança necessária na prática da espiritualidade hoje.
Em Deus unidade e diversidade coincidem de modo perfeito. O homem e a
mulher, criados à imagem de Deus Uno e Trino são um ser em relação de amor
entre si e com todos os demais homens e mulheres. Conseqüência disso, é que o
homem e a mulher só podem construir de um modo correto sua identidade, em
relação de amor com os demais homens e mulheres. A kenosis (o esvaziamento de si
por amor ao outro) é a única maneira possível para se experimentar a unidade entre
as pessoas, sem destruir a diversidade. O amor humano que se torna divino é capaz
de amar a todos, amar por primeiro, amar sempre, como ama Deus. O amor que se
torna recíproco ao menos entre duas ou três pessoas, gera a presença de Jesus
entre elas (cf Mt 18,20). As pessoas que realizam a experiência do amor trinitário
em seus relacionamentos provam e testemunham a felicidade verdadeira. Esta
felicidade não se dá sem as condições colocadas por Jesus: renunciar a si mesmo e
tomar a própria cruz. A compreensão nova, que ilumina este caminho é que a
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renúncia a si mesmo e o tomar a própria cruz, são motivados pelo amor, como o de
Jesus.
3.3.Tornar-se Pequeno, como Deus, para Ser Amor, como Deus (Flp 2,5-11)
Para compreender o Amor e para experimentar seus efeitos no homem e na
mulher, a ponto de fazê-los experimentar a felicidade, não é suficiente elaborar um
correto sistema de idéias, por mais bem construído que seja. O Amor é antes de
mais nada, o resultado de uma experiência repetida pacientemente com relação a
Deus e em relação contínua com o homem e a mulher. E’ preciso, porém, partir do
supremo mistério da Santíssima Trindade.
O Filho de Deus foi enviado pelo Pai para garantir ao homem e à mulher que
Deus é amor e, por isso, nunca deixou de amar sua criatura, mas a destinou a se
tornar seu filho e sua filha.
Ele, o Filho de Deus, feito homem, foi quem nos revelou e comunicou que Deus
é Pai, é Filho e é Espírito Santo. Não são três deuses, mas um só Deus. Ele é o ser, o
fundamento de todo o ser. Somente Nele todas as coisas existem. Somente Nele o
homem e a mulher existem.
Deus, porém, é também não-ser, porque o Pai não é o Filho. O Filho não é o Pai.
O Espírito Santo não é nem o Pai e nem o Filho. Em Deus a diversidade é una, sem
deixar de ser diversidade ao mesmo tempo. Em Deus o ser e o não-ser coexistem
em perfeita identidade e diversidade. O homem e a mulher, imagem e semelhança
desta única fonte verdadeira, são chamados a exprimir, em sua realidade humana
de “filhos no Filho”, o mistério escondido em Deus (cf CIC 254).
Para intuir e viver algo desta infinita realidade nós precisamos aprofundar o que
é o Amor. A melhor maneira para fazer isso é observar o modo de agir de Deus Pai
quando envia seu Filho na encarnação do Verbo, no seio da Virgem Maria.
O apóstolo Paulo nos vem em ajuda na Carta aos Filipenses (2, 5-11).
Este hino cristológico nos fala de um “esvaziamento” do Filho para poder
encontrar a pequenes do homem e da mulher. Somente o Amor é capaz de um
movimento inusitado e, aparentemente, contraditório como o do Filho. Em teologia
chamamos este modo de agir de Deus “kenosis” (esvaziamento), presente no
mistério da encarnação, na vida escondida de Nazaré e de modo quase
incompreensível no mistério da cruz (paixão e morte do Senhor). Nesse percurso é o
amor de Deus que se manifesta diante do homem e da mulher do modo mais
completo e radical, chegando ao ponto do “abandono” e da morte de Jesus na cruz.
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O homem Jesus de Nazaré, Filho de Deus, morre sozinho, sem receber a resposta do
Pai ao seu grito de extrema dor. Morreu sem ouvir a resposta do Pai, sem
resposta...Ficou do nosso lado mesmo no momento mais duro em que toda sua vida
e sua obra poderiam parecer um grande absurdo e ilusão. O Pai, de quem o Filho
veio, com quem o Filho habita e que amou e ama o Filho desde toda a eternidade,
deixou o Filho “sozinho”, sem intervir, em sua condição de fidelidade ao homem e à
mulher. Por isso, o Filho deixa-nos a herança bendita de uma fidelidade a toda a
prova, continuando, como única coisa que lhe resta, a acreditar no amor do Pai. Por
isso, seu último gesto é entregar nas mãos do Pai seu espírito4.
Ά luz deste mistério insondável de dor e de amor do mistério pascal, a
espiritualidade da unidade, ou a espiritualidade de comunhão, nos ajudam hoje a
tirar uma conclusão que pode ter efeitos de grande profundidade em nossa vida de
discípulos: se o grito de abandono de Jesus na cruz é o momento de sua maior dor, é
também o momento de seu maior amor. O grito de abandono de Jesus pouco antes
de morrer na cruz torna-se, para nós discípulos, o modelo do mais perfeito amor.
Este é, de verdade, o ato de obediência perfeito.
Um Amor assim, vivido pelo homem e pela mulher diante de Deus, como
resposta incondicional de amor e, ao mesmo tempo, vivido com a mesma
intensidade e qualidade diante de cada pessoa humana, é capaz de fazer brotar a
vida e a felicidade lá onde ela talvez esteja se apagando e terminando. Penso
sinceramente que nós temos aqui uma realidade espiritual e humana capaz de fazer
renascer e se desenvolver a vida consagrada no meio de suas crises atuais5.
Um discípulo de Jesus, que ama outra pessoa na medida do Amor que é Deus,
com um Amor divino e humano ao mesmo tempo, cria as melhores condições para
que o outro, amado, experimente alegria e felicidade verdadeiras e queira também
ele fazer o mesmo caminho com o discípulo de Jesus que o amou. Quando acontece
isso entre duas ou mais pessoas, realiza-se a promessa de Jesus feita em Mt 18,20.
Entre eles, então, tem início uma comunidade verdadeira, onde se percebe a
presença de Jesus. Esta presença, atraente por si mesma, se torna evangelizadora, e
de tal modo que a comunhão se converte na condição verdadeira e imprescindível
da própria evangelização (missão), com resultados que se tornam visíveis e
surpreendentes6.
4
Cf. São João Paulo II, NMI 37; CIVCSVA, Caminhar a Partir de Cristo, 27.
Cf. VC 24: A Dimensão Pascal da Vida Consagrada.
6
“Na vida de comunidade também se deve tornar de algum modo palpável que a comunhão fraterna , antes de ser
instrumento para uma determinada missão, é espaço teologal, onde se pode experimentar a presença mística do
Senhor ressuscitado (cf Mt 18,20) (cf S.Basílio, As Regras Mais Breves, q.225: PG 31, 1231). Isto verifica-se graças ao
amor recíproco de quantos compõem a comunidade ... “ (VC 42 § 3; cf 72).
5
15
Assim, o Amor, que é reciprocidade entre as Pessoas da Santíssima Trindade, se
faz reciprocidade entre os discípulos, e gera a presença do Senhor entre eles. Desta
forma compreendemos como a missão nasce da comunhão e nela se alimenta.
Podemos mesmo afirmar com convicção que o Verbo se fez carne para que a carne
se fizesse comunhão, alimentada pela Palavra e pela Eucaristia. Reunimos assim,
como experiência realizada hoje na comunidade, as características da primeira
comunidade de Jerusalém: eram unidos na doutrina dos Apóstolos (o mesmo que
“Palavra de Deus”), koinonia (comunhão fraterna) e “fração do pão” (Eucaristia) (cf
Atos 2,42).
O Catecismo da Igreja Católica, citando a “Fides Damasi”7 afirma: “Deus é único
mas não é solitário (n.254). O Amor, essência de Deus, comunhão essencial das Tres
Divinas Pessoas, é o manancial e a origem da essência do homem e da mulher.
Jesus, o Filho enviado pelo Pai, foi quem nos revelou e comunicou este mistério.
Jesus viveu desse modo entre nós, deixando-nos através dos apóstolos os escritos
de seus gestos e palavras.
Podemos então crer na encarnação do Verbo que revelou e comunicou ao
homem e à mulher o Amor que faz dos Três comunhão. Como para o Verbo de
Deus, assim também para o homem e a mulher o caminho para encontrar o Amor e
ser o Amor é a “kénosis”, o esvaziamento de si, para ser para o outro por amor8.
Este mesmo caminho foi percorrido pelo Senhor até à medida da Eucaristia. A
Eucaristia é um abismo por demais grande de esvaziamento por parte do Senhor. A
entrega deste mistério aos discípulos causou um grande escândalo. Alguns
abandonaram definitivamente o Mestre. ”O’ res mirabilis” a chamou a piedade
eucarística, porque no Calvário o Amor, que é Deus, já escondera a divindade de
Jesus para poder estar próximo de cada pessoa. Na Eucaristia o Amor esconde
também sua humanidade, fazendo-se “coisa” para poder estar perto dos seus em
todos os lugares do mundo ao mesmo tempo.
4. Vinho Novo em Odres Novos
Três Odres Novos a Serem Cuidados Hoje na Vida Consagrada:
4.1.- Vida Fraterna em Comunidade;
4.2.- Formação Contínua e Inicial;
7
Profissão de Fé do Papa Dâmaso (cf DS 71; CatIC 192)
LONGHITANO T., Vita Trinitaria e Kénosi, Urbaniana University Press, Roma 2013; CODA P., L’altro di Dio, Rivelazione
e Kénosi in Sergej Bulgakof, Città Nuova, Roma 1998; MITCHELL D.W., Saggio sulla Kenosis cristiana nell’ottica del
dialogo interreligioso, Nuova Umanità XXV (2003/3-4) 147-148, pp.457-502.
8
16
4.3.- Experiência do Poder e o Uso do Dinheiro e das Propriedades.
O Papa Francisco, no final do ano de 2014, aprovou a realização da Assembléia
Plenária do nosso Dicastério em Roma. Os cinquenta membros provindos dos vários
países olharam para a vida consagrada a partir do Evangelho de Marcos: “Vinho
Novo em Odres Novos” (Mc 2,22). Isto é, o vinho novo que é Jesus, que é o
Evangelho, nos dias de hoje, também para a vida consagrada, deve ser
experimentado em estruturas culturais e em estruturas institucionais novas,
diferentes das do passado. Surge, então, a pergunta: Quais são as estruturas e
instituições que não servem mais, e quais os processos que precisamos desenvolver
para permitir o nascimento de novas estruturas e instituições?
Durante todo o ano da vida consagrada (2015), começamos a nos mover nessa
direção, fortemente orientados pelas palavras e gestos iluminadores do Papa
Francisco. E’ sua a afirmação que “depois do Concílio Vaticano II o vento do Espírito
continuou a soprar com força, por um lado levando os Institutos a atuar a renovação
espiritual, carismática e institucional que o próprio Concílio pediu; por outro lado
suscitando no coração de homens e mulheres modalidades novas de resposta ao
convite de Jesus para deixar tudo e dedicar a própria vida ao seguimento Dele e ao
anúncio do Evangelho”.
O Papa Francisco, porém, chamou também nossa atenção para certas áreas de
fragilidade da vida consagrada: “a fragilidade de certos itinerários de formação; a
preocupação desmedida com as responsabilidades institucionais e ministeriais em
detrimento da vida espiritual; a difícil integração das diversidades culturais e
geracionais; um equilíbrio problemático quanto ao exercício da autoridade e quanto
ao uso dos bens”. Para responder ao convite do Papa Francisco a “não ter medo de
deixar os odres velhos” para assumir os novos, a CIVCSVA propõe para a vida
consagrada o cuidado em particular de três âmbitos, ou, com a linguagem do
Evangelho, de três odres: a vida fraterna em comunidade; a formação contínua e
inicial; a experiência do poder e o uso do dinheiro e das propriedades.
4.1. Vida Fraterna em Comunidade
O primeiro odre da vida consagrada que precisa hoje se renovar, depois da
primeira clara chamada amorosa por parte de Jesus e da amorosa resposta de cada
17
um de nós, é o da vida fraterna em comunidade. No novo momento em que
vivemos, somos chamados a contribuir com o cuidado e a regulamentação das
diversas formas de estruturas de comunhão e de comunidades na vida consagrada.
Cada pessoa consagrada e cada comunidade de consagrados e de consagradas são
hoje chamadas a fundamentar sua vida no mistério e na missão de Deus-Trindade,
no Amor. Isto é o mesmo que dizer: somos chamados a uma intensa vida de
comunhão, sem a qual nossa união com Deus se torna mentirosa.
Os consagrados e as consagradas, sendo concretamente esta realidade
trinitária, são chamados a dispor-se à saída missionária, de acordo com o próprio
carisma, para ir em direção a cenários e desafios novos, especialmente em direção
àquelas periferias que mais tem necessidade da luz do Evangelho. Isto comporta a
previsão de estruturas comunitárias que sejam mais missionárias e atividades mais
dinâmicas e abertas para esta saída.
A crescente comunhão deve levar à crescente consciência da “intimidade
itinerante” do consagrado e da consagrada com Jesus (EG 23). Ele e ela só podem
viver sua consagração se for de modo permanente como discípulos de Jesus durante
toda a vida.
E’ a necessidade permanente de tornar-se discípulos que fundamenta a
atuação da “formação contínua”. Por isso, tal caminho será realizado cultivando a
escuta da Palavra do Senhor através da “lectio divina”, para então colocar na vida a
mesma Palavra; deixando-se formar pela liturgia, pelo ano litúrgico e pela oração
pessoal. E ainda: será necessário criar as condições para um correto discernimento
comunitário da vontade de Deus, habituando-se assim com a circularidade das
relações. “A história nos ensina, diz o Papa Francisco, que as boas estruturas servem
quando existe uma vida que as anima, que as sustenta e que as avalia” (EG 26).
Além disso, caminhamos sempre mais em direção a comunidades multiculturais
e interculturais. A presença de várias culturas nas comunidades é um dom de Deus
para a vida consagrada e para a Igreja, mas nem sempre produziu comunhão
intercultural, tanto na formação como na missão. Para que isso aconteça, cada um
precisa ser sujeito livre e responsável pelo próprio dom e, ao mesmo tempo, aberto
ao dom do outro. O que está à frente da comunidade precisa saber motivar e
provocar a convergência das diversidades em direção à sinodalidade, à sinergia, à
corresponsabilidade. O olhar contemplativo recíproco, o desejo de construir juntos a
18
Igreja e a hospitalidade solidária devem se tornar fermento de diálogo e de
confiança em um mundo onde falta acolhida e reciprocidade fraterna.
4.2. Formação Contínua e Inicial
O Papa Francisco afirmou: “ “Vinho novo” são os jovens que pedem para entrar
na vida consagrada. “Odres novos” são as estruturas de acolhida e de formação,
inicial e permanente, afim de que aquele vinho se torne “vinho generoso capaz de
revigorar a vida da Igreja e alegrar o coração de muitos irmãos e irmãs”.
A formação é a ação do Pai que, a partir da nossa conversão, forma em nós o
coração do Filho, pela potência do Espírito Santo. Por isso se faz necessário que a
formação seja integral (humana, intelectual, teológica e espiritual), que tenda a
formar uma pessoa consistente em seu querer (íntegra e “docibilis”, isto é, que
permite ser trabalhada), através de um modelo de integração, afim de que o
consagrado e a consagrada tenham “os mesmos sentimentos de Cristo” (Flp 2,5; VC
70ss).
De modo particular a formação precisa ser nutrida por um sábio discernimento
vocacional e mostrar-se atenta à área afetiva e sexual, com um método formativo
bem integrado com as dimensões espiritual e psicopedagógica. Os recentes
escândalos nessa área expõem falhas objetivas no caminho percorrido.
A “docibilitas”, ou o “deixar-se trabalhar por Deus” deve se tornar aquisição
também dos formadores e das formadoras por toda a vida. Por isso nós pedimos
que seja prevista na “Ratio Institutionis”, isto é, no “programa formativo” a
obrigação de preparação dos formadores através de percursos de formação que
proporcionem uma preparação integral daquele ou daquela que acompanha a
formação. Isto deverá ser feito por uma formação não somente técnica, através das
ciências humanas, de acordo com uma antropologia cristã, mas também não
somente espiritual.
Naturalmente o formador precisa ser uma pessoa suficientemente madura,
capaz de integrar em si as duas dimensões e colocar-se em posição de escuta em
seu confronto constante com a cultura dos jovens.
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Papel específico da formação inicial é a “docibilitas”, isto é, o comportamento
da “pessoa que aprendeu a aprender da vida por toda a vida”. “Docibilis” é o “vir obaudiens”, isto é, o que procura Deus em todas as coisas e se dispõe a deixar-se
formar por sua mão, na missão e na oração, inserido no contexto da Igreja
Particular, na fraternidade – “sororidade” e na “periferia”, nas coisas previstas e nos
imprevistos da vida, nos sucessos e nos insucessos, em todas as estações da vida.
Neste sentido não pode ser apenas o noviciado a formar o consagrado. E’ a própria
vida, em cada um de seus momentos e circunstâncias a que se torna mediação
misteriosa da mão do Pai, do nosso único Pai formador.
Nosso desejo é que cada Instituto assuma com seriedade e coerência a
formação contínua. Precisamos promover uma cultura da formação contínua nas
suas duas dimensões essenciais: a ordinária, que acontece dia após dia, em cada
instante, cujo responsável é a pessoa no contexto de sua comunidade; a dimensão
extraordinária, que acontece através de cursos de atualização, ou em momentos de
dificuldades particulares do consagrado (a), sob a responsabilidade de próprio
Instituto. Para tal fim pedimos que se considere a possibilidade de dar vida a uma
estrutura, isto é, a uma comunidade de consagrados e consagradas que assuma
emconjunto o que se refere à formação contínua, para ajudar o caminho das
situações ordinárias e extraordinárias da vida como são as crises, as passagens de
idade, os novos encargos e outras muitas dificuldades.
À luz destas exigências da formação contínua e inicial, se faz necessária uma
atualização do documento “Potissimum Institutioni”, Instrução da Congregação para
os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica de 2 de fevereiro
de 1990, sobre as orientações para a formação na vida religiosa.
4.3. Experiência do Poder e o Uso do Dinheiro e das Propriedades
Trata-se do ensinamento do Evangelho a respeito do governo e da economia.
Em 2008 a CIVCSVA publicou uma Instrução muito oportuna, nesse sentido, a
respeito da autoridade e da obediência: O Serviço da Autoridade e a Obediência,
Faciem tuam, Domine, requiram.
A pedido do Papa Francisco a CIVCSVA realizou em março de 2014, um
Simpósio Internacional em Roma com o título A Gestão dos Bens Eclesiásticos dos
Institutos de Vida Consagrada e das Sociedades de vida Apostólica a Serviço do
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“Humanum” e da Missão na Igreja. Um novo Simpósio sobre o assunto está sendo
preparado em Roma para concluir este trabalho, com a participação de todos os
interessados.
A respeito de governo e economia é necessário abrir espaços de participação. A
Exortação Apostólica “Vita consecrata” afirmou que é “urgente dar alguns passos
concretos, a partir da abertura para as mulheres de espaços de participação em
vários setores e em todos os níveis, também nos processos de elaboração das
decisões, sobretudo naquilo que se refere a elas (VC 58). Respondendo a essa
orientação nosso Dicastério assumiu mais mulheres e está revendo os valores dos
salários que normalmente é mais baixo que o dos homens.
Um exame de consciência sincero em nossos Institutos a respeito da economia,
do uso dos bens e das propriedades, poderá nos ajudar a discernir se de fato
estamos servindo a Deus ou ao dinheiro. Uma mentalidade capitalista pode muito
bem ter entrado em muitas de nossas comunidades a ponto de acharmos que sem o
dinheiro ou os bens não podemos evangelizar. Nesse caso será necessário retomar
nas mãos as instruções que Jesus mesmo dá aos seus discípulos para que possam
partir para a missão.
Com relação a autoridade e a obediência há muito que modificar em nossa
experiência de vida consagrada a partir do Evangelho levado a sério. O batismo nos
deu a todos os cristãos uma só dignidade, a de filhos de Deus. Para nenhum
discípulo de Cristo (cardeal, bispo, padre, diácono, consagrado, casado, diretor,
professor, reitor, profissional, agricultor, artista, ...), há uma outra dignidade. Somos
todos irmãos e irmãs, filhos do mesmo Pai. Por isso quem tem uma autoridade na
Igreja não é maior do que os outros; não possui uma dignidade maior do que os
outros. E a consequência dessa verdade é que para usar de autoridade e para
obedecer, antes é necessário ser irmão, irmã de verdade. Da mesma forma o
carisma de um fundador não está apenas num superior ou no seu conselho, mas
está em todos os membros daquele Instituto. O autoritarismo esmaga as pessoas e a
obediência sem o esforço de comunicar a luz de Deus, que está também em quem
obedece, infantiliza as pessoas. Sou chamado a obedecer sim, como último gesto
que manifesta minha fé, mas não estou dispensado de dar a quem tem a autoridade
a luz de Deus que está em mim. Muitas vezes parece mais fácil nos omitir para não
criar complicações ou para evitar perigos. Mas isso não corresponde a uma
experiência de um discípulo do Senhor.
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Com referência aos Institutos masculinos mistos (compostos de membros
irmãos consagrados e de sacerdotes) é preciso lembrar as palavras do Papa
Francisco: “o sacerdócio ... pode se tornar motivo de particular conflito se se
identifica demais a potestade sacramental com o poder” (EG 104). Por isso a
CIVCSVA levará adiante o trabalho para o reconhecimento da natureza específica
dos Institutos “mistos” e do exercício da autoridade na sua estrutura jurídica.
Ainda com relação ao poder, ou à autoridade, a pedido do Papa Francisco,
estamos preparando um texto com a finalidade de reescrever o documento
“Mutuae Relationes”, que se refere às relações entre bispos e Institutos de vida
consagrada. No centro do novo documento, cujo primeiro esquema foi preparado
pela CIVCSVA, juntamente com a USG (União dos Superiores Gerais) e a UISG (União
Internacional das Superioras Gerais), estão, a pedido do Papa Francisco, a
Espiritualidade de Comunhão e os duas dimensões coessenciais da Igreja, isto é
hierarquia e carismas. Com esta nova luz o novo documento alargará o horizonte
das relações em todas as direções.
Com relação ao patrimônio e a administração dos bens será necessário
direcioná-los e organizá-los de tal modo que nossa pobreza testemunhe uma “Igreja
pobre para os pobres”. Para isto é necessário partir do conhecimento do contexto
econômico em que vivemos. É necessário organizar a economia com
profissionalismo e transparência. É necessário afirmar a igualdade e participação de
todos os membros. É necessário definir as estruturas de corresponsabilidade na
comunhão. É necessário garantir a formação dos ecônomos e das ecônomas. É
necessário alargar as áreas de partilha dos bens desde as comunidades até se
alcançar o horizonte global das mega estruturas.
Conclusão
Colho, para finalizar, alguns pontos do caminho que fizemos para que sejam
estímulo positivo para o nosso compromisso de consagrados e consagradas.
A experiência de Deus como Amor e Misericórdia precisa voltar a ocupar o
centro da vida de cada consagrado e consagrada, como de nossas comunidades. Por
isso, o primeiro cuidado no âmbito da formação e no dia a dia da comunidade
deverá ser com o discipulado, com o seguimento de Jesus na forma do evangelho. É
nesse húmus que se insere a concretização do carisma do fundador ou da fundadora
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de modo a espelhar hoje a luz por eles recebida de Deus e confirmada pela Igreja. A
beleza de cada carisma deverá hoje compor um caminho de comunhão com os
demais carismas, para que seja percebido como uma flor da Igreja que se insere no
conjunto das muitas flores, somando sua beleza no mesmo jardim da Igreja.
Será preciso construir pacientemente a vida das comunidades concentrando
todas as forças em viver a Palavra de Deus para depois comunicá-la aos irmãos e
irmãs em forma de experiências vividas.
É preciso caminhar, mesmo que seja com uma certa dificuldade, de uma
espiritualidade individual para uma espiritualidade comunhão (coletiva),
reconstruindo as relações interpessoais à luz do mistério da Santíssima Trindade. E
assim criar e assumir, no espírito de comunhão, as estruturas de comunhão, que
passam através dos conselhos nos vários níveis eclesiais e carismáticos de nossas
famílias consagradas.
É necessário ainda aperfeiçoar pessoalmente a experiência dos conselhos
evangélicos de pobreza, castidade e obediência, que deverão, antes de tudo,
exprimir a liberdade dos filhos de Deus. A esse respeito a Exortação Apostólica Vida
Consagrada nos convida a redescobrir sua dimensão trinitária.
Esta nova luz, proveniente da construção dos odres novos, nos permite entrar e
saber permanecer nas chagas pessoais de nossas comunidades, da Igreja e da
humanidade, com o mesmo espírito de Cristo que entra nas chagas da humanidade
e não titubeia em entregar sua vida, passando pelo momento extremo do grito de
abandono, medida do amor mais completo.
Por último: crer no cêntuplo que o Senhor nos dá nessa vida e na vida eterna
nos permite viver com leveza nossa consagração e voltar a sorrir em nosso esforço
de coerência, como expressão autêntica de nossa felicidade. Isso nos leva a
simplificar o caminho dando todo o valor possível ao momento presente de nossa
vida porque é o único de que verdadeiramente dispomos.
Obrigado, irmãs e irmãos pela escuta e acolhida.
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