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Zambeze, cheias e megawatts
Por José Lopes *
Pela segunda vez, em menos de um ano, torrenciais descargas de Cahora Bassa fustigam o vale
do Zambeze semeando caos e miséria. Pela segunda vez também, eu insisto na necessidade de
se avaliar o modo como a HCB está a ser gerida hidrologicamente – se bem ou mal, se há ou
não imediatas alternativas sustentáveis, se estas catastróficas inundações poderiam ter sido
melhor domadas, senão mesmo evitadas.
Desde logo repare-se no pano de fundo:
— Ao contrário de 2006/07, a Hidroeléctrica de Cahora Bassa (HCB) não teve este ano que
fazer face a desavenças hidrológicas entre os donos do rio pelo que pôde perseguir
tranquilamente a sua curva guia de operação – reforçando-a até com uma defesa de meio metro
extra relativamente à cota de entrada na época de chuvas 2006/07.
— Nesta sua curva guia, que é resultado de um modelo de gestão inalterado mesmo após a
inversão accionista, a cota mínima 321 em Janeiro continua a funcionar como o máximo
prejuízo de vendas que a HCB se dispõe conceder aos trezentos mil habitantes que povoam o
jusante da barragem – mesmo quando cientificamente se antecipam cenários de intensas chuvas
precoces.
Neste entretanto, eu não duvido que a HCB julgue estar a cumprir o seu melhor plano de
negócios, como bem epitoma o recente esfuzio dos USD 300 milhões em 2008 — e se assim
dita o plano de negócios HCB, assim terá que se cumprir o Zambeze.
Perseverantemente. Obstinadamente — usando quilómetros cúbicos de descargas concentradas
se for caso disso.
O problema, ou pelo menos o meu problema, é que eu discordo absolutamente dos critérios que
a HCB insiste em usar na modelação dos seus negócios hidroeléctricos.
Desde logo porque em situações muito complexas a vários níveis – reassentamentos geralmente
mal sucedidos após as cheias de 2007 a somar a dinâmicas climatéricas ainda mal
compreendidas p.e. — a Hidroeléctrica de Cahora Bassa, uma empresa que só há 2 ou 3 anos
pôde iniciar a sua maturação hidrotécnica e portanto com pouca experiência na gestão de
reservatórios hidro-electricamente tensos, se dispõe a arriscar 2 ou 3,000 GWh/ano em receitasextra antes mesmo de demonstrar já ter compreendido o Zambeze – ou dito de outro modo: et
pour cause.
Ficasse-se ela pelos nominais 12,000 GWH em 2008, ao invés de tentar bater recordes no poker
das receitas megawatticas (16,000 GWh/ano), e talvez pouco houvesse a criticá-la.
Infelizmente, e como se tornou de novo indesmentível, cumprir o Zambeze desta HCB voltou a
implicar o caos em Janeiro 2008. E, pela segunda vez em menos de um ano, o já esgotado povo
do Zambeze volta a ser drenado por avalanches de descargas chegando pela calada da noite — e
ainda não chegámos a Fevereiro.
O que me remete para a questão central: seria ou não possível melhor domar, ou mesmo evitar,
estas catastróficas cheias do Zambeze em 2007 e 2008?
Continuo a pensar que sim.
Desde logo se se começar por estipular uma curva guia HCB que, ao invés de privilegiar o
economicismo hidroeléctrico, coloque a segurança de 300,000 moçambicanos no topo dos
critérios hidrológicos.
Uma curva guia que, via adopção das restrições geralmente utilizadas na gestão de albufeiras
tipo Cahora Bassa, estabeleça a cada momento, e em cada estação, o melhor equilíbrio entre a
produção hidroeléctrica e a segurança vital.
Um conflito que é velho como o mundo hidroeléctrico, mas que, em larga medida, tem vindo a
ser resolvido a favor das populações em quase tudo o que é grande bacia hidroeléctrica do
mundo.
E no caso HCB isto significaria a adopção de três simples medidas:
1. Adoptar volumes de espera em Cahora Bassa adequados à segurança do vale do Zambeze —
o que significa baixar 2 ou 3 metros à cota máxima de entrada na estação de chuvas logo a partir
de Novembro (ao invés dos actuais 326, 323 e 321 metros respectivamente em Novembro,
Dezembro e Janeiro).
2. Impor restrições severas ao regime de descargas em Cahora Bassa, quer em termos de volume
(p.e. máximos de 4500 m3/s incluindo turbinamentos), quer em termos de variação diária (p.e.
máximas variações entre dias consecutivos) — incluindo as tradicionalmente pesadas
penalidades de extravasão.
3. Promulgar uma Carta de Riscos Hidrodinâmicos que coabite com a segurança e prosperidade
do vale do Zambeze — com especial enfoque na política de reassentamentos populacionais e de
protecções das zonas baixas do fértil vale.
E porque os culpados não são as vítimas eu espero que, ao invés de se sobre-politizar a tragédia,
tal como ocorreu em 2007, se reequacione o economicismo – objectivamente.
* engenheiro
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