Universidade de São Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Sociologia COLÓQUIO INTERNACIONAL O QUE É O “CARE”? EMOÇÕES, DIVISÃO DO TRABALHO, MIGRAÇÕES “CARE” E POLÍTICAS PÚBLICAS: ENTRE PUBLICIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO. O CASO DOS AGENTES COMUNITÁRIAS DE SAÚDE E DOS DE PROTEÇÃO SOCIAL Isabel GEORGES IRD-Institut de Recherche pour le Développement e Unicamp/IFCH Yumi Garcia dos SANTOS Centro de Estudos da Metrópole-CEM/CEBRAP Universidade de São Paulo 26 e 27 de agosto de 2010 1 “CARE” E POLÍTICAS PÚBLICAS: ENTRE PUBLICIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO. O CASO DOS AGENTES COMUNITÁRIAS DE SAÚDE E DOS DE PROTEÇÃO SOCIAL Isabel GEORGES Yumi Garcia dos SANTOS Introdução Nos países do Norte, os estudos do trabalho do care na perspectiva de gênero chamam a atenção desde os anos 70, mas foram nesses últimos dez anos que vimos sua intensificação. Sem querer entrar numa discussão mais detalhada sobre o conteúdo dessa categoria, já realizada por autoras como Barbara Ehrenreich e Deirdre English (1973), Arlie Hochschild (1983), Patricia Paperman e Sandra Laugier (2006) e Pascale Molinier (2009, 2010), entendemos como trabalho do care, numa definição ampla, um conjunto de atividades que se inserem majoritariamente na esfera da reprodução, muito heterogêneas e fortemente sexuadas e segmentadas, desde o cuidado físico às pessoas dependentes, como enfermeira, auxiliar de enfermagem, babá, professora de creche, até aquelas exercidas no contexto da “indústria do sexo” (Parreñas, 2010; Kawai, 2004), passando pelo trabalho doméstico de modo geral, como faxineira, empregada doméstica, camareira, cozinheira, etc., podendo se estender a outras ocupações do setor de serviços, envolvendo o trabalho auxiliar como secretária, comissário de bordo, recepcionista, telefonista. Em todos os casos, o uso da afetividade e a administração das emoções aparece como o valor central de tais ocupações1, assim como uma das condições de sua concretização (Hochschild, op. cit.). Se, nos Estados Unidos, autoras feministas trataram das atividades do cuidado feminino desde os anos 1970, no sentido de resgatar o papel central da mulher nas questões medicais e de sua marginalização (Ehrenreich e English, op. cit.), hoje em dia uma dimensão central dos estudos do trabalho do care repousa-se, no contexto da globalização, nas práticas migratórias das mulheres (Ehrenreich e Hochschild, 2004; Parreñas, op. cit.; Morokvasic, 2005). Na França, as 1 Mesmo se essas características se aplicam, também, a outras profissões como no caso do médico, por exemplo, sem, portanto, serem reconhecidas e valorizadas. Consideramos tais atividades como “trabalho” desde que a sua realização envolva um conjunto de saberes técnicos, podendo constituir o objeto de formas de profissionalização (Ribault, 2010). 2 questões das políticas públicas, da divisão sexual do trabalho e “do cuidado”, e, de modo geral, dos “serviços às pessoas” têm sido levantadas. Nos estudos do trabalho doméstico, e de forma mais abrangente do trabalho das mulheres, a interrogação sobre a articulação entre o trabalho produtivo e reprodutivo, assim como o valor do trabalho feminino, foi explorada por Helena Hirata e Danièle Kergoat (1998). Assim como outros estudos franceses precursores sobre o trabalho feminino e as relações entre trabalho produtivo e reprodutivo (Guilbert, 1966), tais análises deram lugar à Sociologia do emprego (Maruani, 2000; Lallement, 1994; etc.). Por outro lado, as interrogações sobre o papel do Estado do bem-estar social, e mais geralmente, sobre as relações com o Estado, contribuíram para configurar o campo da Socio-economia dos serviços (Gadrey, 1994; Weller, 1999). Assim, cruzando uma abordagem em termos de relações sociais de sexo, com uma perspectiva de co-produção do serviço entre os agentes do Estado e os usuários do serviço, na relação triangular formada pelo Estado, seus servidores e os cidadãos/usuários/clientes, analisaremos tais serviços como o fruto das interações entre os agentes e os usuários (Gadrey, 1994, op.cit.). De modo complementar, consideramos os agentes como trabalhadores subalternos do Estado, e, nesse sentido, como “street-level bureaucrats”, dispondo de uma “margem discrecionária” de ação na definição do serviço, no sentido de regular as suas formas de acesso (Lipsky, 1980). No Brasil, as análises do trabalho do cuidado são recentes e menos freqüentes. Se, de uma forma geral, um estudo de tais atividades mobilizando uma chave de leitura em termos de análise de formas de articulação entre a esfera privada e pública permite mostrar como essas normas sociais mudam ao longo do tempo (Cabanes, 2009; Georges, 2008), tal corte traz à tona uma série de interrogações fundamentais sobre o estado atual da democracia nesse país. Particularmente, num contexto onde a manutenção de desigualdades estruturais, a despeito das transformações profundas em andamento (Leite, 2010), convive com o processo de retorno à democracia, a “publicização” de alguns setores como condição de sua politização é fundamental. Nessa perspectiva, as políticas públicas “do cuidado” constituem uma das dimensões que contribuem para a definição do “público” e do “privado”, mas também refletem a mudança das “normas societais” em termos de práticas nesses espaços. Analisaremos o trabalho do care dos agentes numa abordagem relacional, variável no tempo e no espaço, inseridas nas conjunturas políticas e econômicas atuais do deslocamento das fronteiras entre o público e o privado. Conforme a nossa hipótese de trabalho, no Brasil, as políticas públicas “do cuidado” atuais, em vista da redução das desigualdades sociais, analisadas a partir de dois exemplos – o Programa Saúde da Família (PSF) do governo federal (setor da 3 saúde) e o Programa Ação Família (PAF) do município de São Paulo (setor da assistência) – configuram um campo de tensões e de ambigüidades, relativas à gestão atual da questão social e do lugar das mulheres nessas últimas (primeira parte). Mais especificamente, a partir do estudo das transformações atuais dessas políticas (segunda parte) e da análise das práticas profissionais dos trabalhadores do Estado “em nível da rua” – os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e os Agentes de Proteção Social (APS), respectivamente – observa-se um trabalho de gestão dos fluxos de usuários que atravessam a instituição, de orientação e de tradução dos códigos institucionais, mostrando uma série de “injunções contraditórias”. Para lidar com esses constrangimentos, os agentes desenvolvem táticas diversas, objeto da terceira parte desse artigo. A pesquisa de campo2 ainda em andamento – de tipo etnográfica, combinando observações de longa duração in loco e entrevistas biográficas, assim como análises de dados secundários – decorre da qualidade dos vínculos com os moradores, trabalhadores e militantes de diversos bairros da zona leste de São Paulo (notadamente Cidade Tiradentes e Guaianazes), construídos originalmente por Robert Cabanes e sua equipe, em alguns casos desde 20063. A parte que serviu de referencial para a redação deste artigo (cerca de 40 entrevistas com trabalhadores do setor da saúde e de assistência, militantes, sindicalistas e moradores) foi realizada na mesma região, notadamente em Cidade Tiradentes, Guaianazes e Itaquera. Em alguns casos, realizamos entrevistas coletivas de trabalhadores (“grupo focal”). 1. O contexto nacional de emergência das novas políticas públicas do care no Brasil As novas políticas públicas “do cuidado” analisadas a partir de dois programas sociais brasileiros – o Programa Saúde da Família (PSF) e o Programa Ação Família (PAF) - vinculadas, respectivamente, ao Sistema Único de Saúde (SUS) e ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), nasceram no decorrer dos movimentos populares dos anos 1980 e, mais amplamente, durante o processo de retorno à democracia protagonizado pela sociedade civil. Nos anos 90, essas políticas passaram por transformações internas, a assim chamada “reforma informal do Estado” (Nogueira, 1996; 1999), implicando novos sentidos às formas de descentralização e mecanismos de controle obtidas pela sociedade civil, dando lugar às suas configurações atuais. 2 Pesquisa desenvolvida por um lado no âmbito do projeto de cooperação bilateral franco-brasileira CNPq/IRD (N°490571/2006-9) “Novas formas de inserção ocupacional de populações de baixa renda” (2007-2011), coordenado por Márcia de Paula Leite (Unicamp) e Isabel Georges (IRD, UMR 201 “Développement et Sociétés”/Unicamp-IFCH). Pelo outro, a análise baseia-se em resultados obtidos no âmbito de uma pesquisa pós-doutoral realizado no CEBRAP/CEM, com o apoio da FAPESP (2009-2011). 3 Exprimimos a nossa gratidão a Robert Cabanes e sua equipe. 4 Baseado no artigo 196 da Constituição Federal de 1988, o Brasil garante à sua população o acesso gratuito à saúde por meio do Sistema Único de Saúde – SUS. A Lei n° 8.080 de 19/09/1990, conhecida como o Código nacional da Saúde, regula as ações e serviços relativos à saúde no país. Conquista da sociedade civil que formou o Movimento Popular de Saúde e o Movimento sanitarista (movimento reformista de profissionais que atuaram com o Movimento Popular de Saúde) durante a década de 1980, um dos propósitos do SUS é reduzir a tradicionalmente enraizada desigualdade de acesso aos serviços de saúde entre as classes sociais, bem como reduzir as profundas diferenças regionais. Para combater essas distorções, o SUS implantou uma política de descentralização, distribuindo os orçamentos de saúde aos municípios para que as administrações locais possam ter maior autonomia na gestão dos seus sistemas de saúde. Outro resultado do movimento contra a desigualdade de acesso à saúde é o controle público pelos representantes dos conselhos de saúde em todos os níveis territoriais, implementados para que organizações da sociedade civil, representantes do poder público e prestadores de serviços possam discutir as questões centrais da definição de responsabilidades e prioridades. Quanto à assistência social, apesar desse setor servir a mesma população que a da saúde, constituída essencialmente pela população de baixa renda, seu peso é diferente no que tange a sua implicância com o movimento social. Se o sistema de saúde brasileiro é enraizado na intensa luta popular pela igualdade do acesso à saúde dos anos ainda regidos pela ditadura militar (1970 e 1980), os movimentos de base pela assistência social têm sido organizados mais recentemente, no início dos anos 90, marcados por esse período por políticas de redução de custos. Não obstante, o sistema de assistência pôde tomar como referência a estrutura administrativa e princípios de funcionamento das políticas de saúde existentes, levando à elaboração de um enquadramento institucional similar. Historicamente, as políticas sociais brasileiras eram fundamentalmente apoiadas na filantropia e nas relações paternalistas (Telles, 2001; Veras, 2008). A adoção da Constituição de 1988 rompe com essa tradição, marcando o ponto de partida para a garantia dos direitos sociais da população excluída ao deslocar os programas sociais da esfera da benemerência para colocálos “na ótica dos direitos e sob a égide de políticas públicas pautadas pelos critérios universais da cidadania, romper com a invisibilidade e fragmentação que sempre foram mantidos e organizar fóruns públicos de representação, abertos à participação da sociedade civil” (Telles, op. cit.). A nova Constituição foi a manifestação do rompimento com a idéia da pobreza como condição natural incorporada no cenário nacional. No entanto, foi necessário esperar até o início dos anos 5 90 para a sua institucionalização. Assim, o Brasil assiste, em 1993, à regulamentação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) e à criação dos Fóruns e Conselhos de Assistência Social, abertos às organizações da sociedade civil para gestão das políticas e programas de assistência social. Mas é somente dez anos depois que o país vê a regulamentação do Sistema Único de Assistência Social-SUAS pela Norma Operacional Básica-NOB, que materializa as diretrizes da LOAS. A administração do SUAS é, como o Sistema Único de Saúde, descentralizado e participativo, e coloca como foco prioritário a família com base no território, público-alvo privilegiado das políticas sociais no país (Fonseca, 2001). Os PSF e PAF, respectivamente integrados no SUS e no SUAS, mostram a rearticulação dessas duas tendências de “publicização” dos problemas sociais, e de sua “privatização” no período mais recente, especialmente no que tange o trabalho feminino e o lugar das mulheres nessas novas políticas sociais. 1.1. O Programa Saúde da Família (PSF) O Programa Saúde da Família (PSF), integrado no Sistema Único de Saúde (SUS), é um programa fortemente inovador que promove a prevenção e a identificação de doenças, assim como a educação sanitária no lugar da intervenção curativa. O objetivo é intervir nos fatores que colocam a saúde da população tradicionalmente excluída ao acesso à saúde preventiva - os pobres - em situação de risco (Oliveira, 2004: 47). Embora tenha sido projetado para atender famílias de baixa renda, graças ao caráter universal do sistema de saúde brasileiro, não existem limites de classe para participar do programa. O PSF foi desenvolvido tomando como modelo algumas experiências regionais e locais bem sucedidas, como no Estado do Ceará, o "médico de família" da cidade de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, os agentes pastorais da Igreja Católica, além de considerar as demandas do Movimento Nacional para a Saúde nos anos 19804. O Programa Agentes Comunitários de Saúde (PACS) foi integrado ao Sistema Único de Saúde (SUS) em 1991, e o PSF, em 1994. Uma lei federal reconhece a categoria profissional dos ACS desde 20025. Segundo o DATASUS consultado em março de 2010, registra-se neste ano 261.497 ACS no território nacional, presentes nas zonas rurais e urbanas, integrados nas 10.704 equipes do Programa Saúde da Família, responsáveis pela intermediação entre a oferta dos serviços públicos 4 Além do programa Cubano do médica da família. 5 Lei federal n° 10.507, do 10 de julho de 2002. 6 de saúde e a população, num universo de aproximadamente 103 milhões de brasileiros usuários6 (Lima e Cockell, 2008: 489, apud Valadares, 2008). Atualmente, o PSF é desenvolvido por equipes multidisciplinares que atuam nos bairros dos diversos municípios brasileiros a partir do posto de saúde, a assim chamada Unidade Básica de Saúde (UBS)7, cuja missão é prestar localmente serviços e orientações básicas de saúde e, caso necessário, encaminhar os pacientes para as unidades especializadas mais próximas. Cada equipe é composta por um médico, um enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e os cinco Agentes Comunitários de Saúde (ACS), sendo responsável por cerca de mil famílias em uma determinada área. O nível salarial dos membros da equipe do PSF se situa no nível do mercado8; porém a diferença salarial com os agentes é importante. Assim, um ACS recebe cerca de R$ 600,00 por mês, um auxiliar de enfermagem mais do que o dobro, o enfermeiro mais do que R$ 3.000,00 (cinco vezes) e o médico mais do que R$ 6.000,00 (dez vezes). A missão de um agente é de atender individualmente cerca de 200 famílias (Ministério da Saúde do Brasil). Conforme a mesma fonte, a finalidade dos postos é de resolver a maioria dos problemas de saúde dos moradores através da prática de cuidados primários, com o objetivo de reduzir as filas nos prontos-socorros e hospitais, o abuso de medicamentos e o uso indiscriminado de equipamentos de alta tecnologia, deixando as clínicas e hospitais especializados para cumprir as suas reais funções (Idem). Na maioria dos casos, os ACS não dispõem de uma formação técnica, mas de estudos do segundo grau. Bem que no início da década de 2000, a participação de alguma forma de mobilização constituiu um critério de seleção, mais recentemente, o principal requisito é morar na mesma “micro-área” do que a população a ser atendida. Os ACS constituem a última parte na cadeia de produção de serviços de saúde: estabelecem a relação entre o posto de saúde e a população, mobilizando esta última por cuidados básicos de saúde, principalmente através de visitas domiciliares. Os ACS dispõem de uma prescrição mínima do seu trabalho: além da promoção de serviços de prevenção (exames periódicos), atendem de forma preferencial certos tipos de usuários, como diabéticos, hipertensos, grávidas e recém nascidos , idosos por meio de visita domiciliar mensal. Tais agentes passam a maioria do seu tempo de trabalho na rua, sem horários de trabalho estritamente definidos, conjugando com uma reunião cotidiana com a equipe 6 7 O número de usuários é de 2008. Em janeiro de 2005, registrou-se um total de 44.223 UBS (CONASEMS / Ministério da Saúde, 2009). 8 O nível salarial e a realização de concursos não permitem compensar a falta de profissionais, especialmente de médicos, principalmente nas áreas mais periféricas. 7 multidisciplinar para estabelecer as prioridades de atendimento e de encaminhamento especializado. São eles, também, que trazem os resultados de exames médicos para os usuários, e distribuem as senhas para as consultas agendadas. Todavia, apesar da necessidade de estabelecer estatísticas diárias sobre a sua “produtividade” (quantidade de visitas realizadas, de senhas distribuídas, etc.), o conteúdo do serviço é fortemente variável conforme a demanda do usuário e a disposição do agente, podendo abranger uma conversa rápida no portão assim como uma conversa íntima sobre problemas familiares, casos de violência doméstica, acompanhamento de pessoas depressivas, etc. 1.2. O Programa Ação Família (PAF) O “Programa Ação Família” (PAF) foi criado em 2005 pela prefeitura de São Paulo como um programa de assistência social local para operacionalizar o Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), programa nacional inscrito no Sistema Único de Assistência Social - SUAS (MDSa). As principais ações desenvolvidas pelo PAIF são: visitas domiciliares, orientações, acompanhamento familiar, promoção de atividades comunitárias, campanhas sociais e educativas, informações, advocacy, o apoio à mobilização e o fortalecimento social redes, o desenvolvimento da vida familiar e da comunidade (MDSb). Em nível local (municipal), o PAIF é operado pelas unidades locais de assistência pública, os Centros de Referência de Assistência Social-CRAS. O CRAS é a porta de entrada da população para ter acesso ao SUAS, e são distribuídos em áreas de “alta vulnerabilidade social”9. No caso da cidade de São Paulo, não são os CRAS que desenvolvem as ações diretamente com a população, embora as pessoas possam cadastrar-se para os serviços de assistência social, tais como os de transferência de renda. Nessa cidade, o serviço de assistência para a fração mais pobre de sua população (ou seja, em 2004, 1,4 milhões de pessoas, correspondentes a 13% da população do município)10 é terceirizado para entidades sem fins lucrativos (associações, ONGs, por vezes ligadas a grupos religiosos) que desenvolvem o 9 Na escala do Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS), corresponde aos valores situados entre 5 e 6, os mais altos. Entende-se por vulnerabilidade social a combinação entre elementos de privação socioeconômica – baixo nível de renda e escolaridade – com determinados perfis demográficos das famílias – elevada presença de crianças e idosos, grande presença de mulheres com baixa escolaridade ou de pessoas jovens na condição de chefes de família (SMADS). 10 Conforme o Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS/SEADE, 2004), existem 337 mil famílias que moram em bairros periféricos, com acesso precário à rede de serviços públicos governamentais e nãogovernamentais e renda familiar inferior a um terço do salário mínimo. O PAF atendia, em 2006, 30 mil famílias em 13 distritos da cidade (Capão Redondo, Jardim Ângela, Jardim São Luís, Parelheiros, Grajaú, Cidade Dutra, Cidade Tiradentes, Lajeado, São Rafael, Iguatemi, Brasilândia, Rio Pequeno e Raposo Tavares), com a meta de vir a atender a totalidade dessas famílias (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, 2006) 8 PAF sob a supervisão do CRAS da região correspondente. De fato, numa situação de carência de funcionários públicos, o desenvolvimento do Programa por entidades conveniadas com a prefeitura foi a solução encontrada pelo município para oferecer o serviço básico de assistência à população. Sem possuir caráter universal, o PAF atende as famílias por um período limitado (dois anos), selecionadas a partir do cadastro inicial das famílias beneficiadas pelo Programa Bolsa Família ou algum outro programa de redistribuição de renda (CadÚnico). Cada entidade conveniada é responsável pelo recrutamento de seus trabalhadores, assim como pela prestação de contas para a prefeitura. O PAF é desenvolvido localmente por uma equipe técnica, formada por psicólogos e/ou assistentes sociais, e a equipe de Agentes de Proteção Social (APS). De forma similar aos agentes comunitários de saúde – como o seu nível salarial - os APS, também do mesmo meio social que os usuários, devem estabelecer uma estreita relação com as famílias atendidas, sendo um "facilitador" para o acesso aos serviços públicos e sociais. Um APS atende por volta de 150 famílias, realizando, no mínimo, uma visita domiciliar por mês. Por meio das visitas, os APS questionam a situação familiar, verificam os documentos dos membros da família, oferecem informações sobre eventuais vagas de emprego ou de cursos de qualificação, recebem solicitações, escutam as diversas queixas dos usuários, desde a falta de serviços até questões familiares e/ou conjugais, e averiguam se há necessidade de encaminhamentos especiais (psicólogo, educador, grupos/centros de apoio). Todas as informações são repassadas à equipe técnica que procura oferecer um feedback às demandas. Além da orientação dos agentes, essa última realiza as reuniões sócio-educativas periódicas com os usuários, formando mais um momento de orientação. Os APS são levados a reunir o máximo dos seus usuários, numa demonstração de sua “performance”. Como a de ACS, a ocupação de APS é essencialmente feminizada; mas, foi possível encontrar alguns agentes masculinos, predominantemente jovens, e de alguma forma já inseridos em outro emprego ou nos movimentos político e social locais e/ou no trabalho caritativo. 2. A municipalização das políticas sociais: entre publicização e privatização Mais recentemente, isto é, a partir dos anos 1990 até os dias de hoje, observa-se uma ambivalência estrutural das assim chamadas “novas políticas sociais”, e especialmente das políticas “do cuidado”, tanto no setor da saúde como da assistência. Como já foi demonstrado em estudos anteriores sobre os agentes comunitários de saúde (Lima e Moura, 2005; Lima e Cockell, 2008), assim como sobre os setores de saúde e da assistência (Veras, 2008), as políticas públicas brasileiras nessas áreas são marcadas por duas tendências opostas: uma privatista – que 9 prevaleceu na época de ditadura militar e durante os anos 199011 – e a outra publicista, como já mencionamos. Nessa perspectiva, bem que a criação da própria categoria dos agentes comunitários de saúde, assim como dos agentes de proteção social numa certa medida, são o fruto dos movimentos populares e das lutas para o retorno à democratização dos anos 1980 (Lima e Moura, 2005, op. cit.), a generalização do Programa Saúde Família coincidiu com as políticas neo-liberais dos anos 1990, e com as políticas de redução de gastos, sob o controle do FMI. Da mesma forma, bem que inicialmente, a criação dessas políticas teve a sua origem em experiências e reivindicações locais, com o intuito de universalizar – ou de publicizar a acesso da população mais carente a esses serviços básicos em nível nacional, a sua descentralização, mais recentemente, mudou de sentido e parece indicar novamente formas de privatização dos serviços. Na cidade de São Paulo, essa tendência de “transferência de responsabilidade da União para Estados e Municípios e para organizações privadas, com a adoção de formas mistas de gestão pública, por meio de “parcerias”, por exemplo com Organizações Sociais (OS), ou outras organizações da sociedade civil (OSCIPS, ONGs, Fundações Estatais de direito privado), é característico das transformações atuais tanto no setor da saúde como transparece na criação do Programa Ação Família. Nesse processo, as organizações sociais - OS - têm ocupado um lugar importante não só no processo de terceirização de trabalhadores no setor da saúde, mas também na gestão de finanças e no controle do orçamento desse setor12. A perda simultânea de mecanismos de controle público (como a remoção dos conselhos de gestão participativa em instituições geridas por intermediação dos subcontratados que tinham sido criados pelo governo do Partido dos Trabalhadores, em 2002) leva a uma situação ambígua do serviço e do status do emprego dos profissionais de saúde, assim como da assistência, numa certa medida. Conforme a revisão bibliográfica realizada por Lima e Cockell (2008, op. cit.), as transformações da década de 1990 contribuíram para uma intensificação da precarização das relações de trabalho, com a 11 Essas políticas “favoreceram uma maior privatização da assistência médica por meio de processos como a ampliação do campo de atuação dos planos privados de saúde, o credenciamento de hospitais privados para prestarem serviços ao SUS, a terceirização de serviços das unidades de atendimento público (hospitais, policlínicas, postos de saúde) [...]; a descentralização do SUS, que embora tivesse uma motivação democratizante, foi sendo desviado em direção a uma perspectiva de desresponsabilização do Estado em relação às políticas públicas de saúde (nos termos da Reforma do Estado), resultando em precarização dos serviços públicos e em favorecimento do projeto privatista. ”. (Véras, op. cit.: 7, 8). 12 As transformações dos mecanismos de controle político do setor da saúde na cidade de São Paulo, inclusive do sistema de políticas e práticas participativas, necessita, com certeza, uma análise a parte – Cf. Observatório dos direitos do cidadão, N° 3, 19 e 29 (Instituto Polis/PUC-SP). 10 terceirização dos serviços prestados, a criação de cooperativas de funcionários, etc. Houve um aumento significativo das formas de contratação de servidores públicos não-efetivos entre 1995 e 2005 cuja proporção do total dos servidores passou de 8,9% para 18,3% no período (Krein, 2007). Nesse contexto, a zona leste da cidade se tornou um laboratório de privatização das políticas públicas desde que o governo local mudou para a gestão do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), em 2005, precedida da gestão pelo PT (Partido dos Trabalhadores), entre 2001e 2004. No que diz respeito à gestão do serviço de saúde, entre os oito distritos da região, quatro bairros - Itaim Paulista, Cidade Tiradentes, Guaianazes e São Mateus - foram totalmente terceirizadas para a Organização Social (OS)13 Casa de Saúde Santa Marcelina (um ramo da Organização Filantrópica Hospital Santa Marcelina), enquanto os quatro distritos restantes (São Miguel, Ermelino Matarazzo, Itaquera, Penha) são administrados pelo poder público, a Supervisão Técnica de Saúde (STS), que é, por sua vez, supervisionada pela Coordenadoria Regional de Saúde da Zona Leste. A prefeitura de São Paulo, por intermédio da Secretaria Municipal de Saúde, regulamenta a Casa de Saúde Santa Marcelina, qualificada como Organização Social, para desenvolver ações e serviços de saúde na região Tiradentes/Guaianazes e na região Itaim Paulista. Como já vimos anteriormente, a própria implementação do Programa Ação Família no setor da assistência da cidade de São Paulo é a solução que o município encontrou para cumprir o seu dever com o governo federal para disponibilizar o PAIF (Programa de Atendimento Integral a Família), relativo ao SUAS (Serviço Único de Assistência Social) na ausência de um número suficiente de funcionários para atender uma grande concentração de famílias em situação de “vulnerabilidade social” nessa cidade. Nesse sentido, essa municipalização da política pública da assistência indica claramente uma tendência privatista. Tais mudanças inerentes à atual organização do serviço público de saúde e do da assistência influem sobre os atores sociais situados nos últimos extremos da cadeia de produção dos serviços, ou seja, os trabalhadores do cuidado da saúde, e da assistência, que mantêm relações diretas com os usuários (Georges, 2010; Georges e Santos, 2010). Mais especificamente, no setor de saúde, a complexificação do acesso à serviços de saúde para a população, e em alguns casos a sua rarefação, contribuem para a definição das condições de trabalho dos ACS no exercício de 13 OS-Organização Social : resultado da medida provisória n° 1.648, transformada em lei n° 9.637, de 15 de maio de 1998. 11 sua função de atendimento da população. Da mesma forma, a necessidade de cumprir metas quantitativas pré-estabelecidas, independentes do conteúdo do serviço, posa sérias questões sobre o sentido subjetivo do trabalho para os agentes, assim como a respeito da transgressão da fronteira entre o tempo de trabalho/tempo privado (Georges e Santos, idem). No setor da assistência, além da terceirização do emprego através da sub-contratação das entidades pela prefeitura para a realização dos serviços básicos de assistência, os próprios agentes são contratados pelas entidades com contrato de tipo CLT, mas pela duração do convênio com a prefeitura, podendo ser renovado. É nesse sentido – indiretamente pela rarefação e/ou complexificação do acesso aos serviços ofertados, e diretamente, pela terceirização do emprego – que pode-se falar, conforme a nossa hipótese de trabalho, da precarização das relações de trabalho e de emprego dos agentes. 3. A co-produção do serviço num contexto de “injunções contraditórias”: quais alternativas? Como já mostrou uma análise anterior de psicodinâmica da atividade dos agentes comunitários de serviço, nos meios urbanos estudados, uma das maiores fontes de sofrimento para os agentes de saúde é o fato de depender das limitações dos equipamentos do SUS disponibilizados pelo poder público (Lancman et al., 2007). De fato, sendo o último escalão de representação do Estado, e de suas políticas públicas, esses trabalhadores “de interface” são responsabilizados pelo funcionamento do sistema, um dos dilemas comuns de trabalhadores de serviço. No caso dos ACS e dos APS, uma particularidade do seu trabalho, à diferença de outras categorias de trabalhadores “do cuidado”, é a gestão de uma relação “de proximidade”, isto é, com pessoas que pertencem ao mesmo meio social. De fato, como o pertencimento à “comunidade atendida”14 constitui o principal critério de seleção dos agentes, assim como a necessidade de provocar ao mesmo tempo as demandas das famílias por serviços (de saúde, assistenciais) e ao mesmo tempo gerenciar sua insatisfação caso estes não estejam disponíveis – ou não no imediato - cria o que chamamos de “injunção contraditória”. Para lidar com essa condição de trabalho, agravada pela rarefação dos serviços efetivos, apesar da visibilização que essas categorias de trabalhadores ganharam através de sua profissionalização – anteriormente 14 São requisitos para exercerem a atividade de Agente Comunitário de Saúde, conforme Lei Federal n.º 10.507/02 de 10 de julho de 2002: I – Residir na Comunidade onde irá atuar; II – Haver concluído com aproveitamento curso de qualificação básica para formação de Agente Comunitário de Saúde; III – Haver Concluído o Ensino Fundamental; IV – Ter idade mínima de 18 anos. 12 realizado no âmbito do trabalho voluntário e/ou por mulheres no seio da família - a concretização do serviço necessita a realização de um trabalho invisível sobre os sentimentos, o assim chamado “trabalho emocional” no sentido da indução de sentimentos no outro através da provocação de um sentimento em si (Hochschild, 1983), fonte potencial de sofrimentos. De forma geral, o trabalho de gestão de fluxos das duas categorias de agentes tem duas faces contraditórias porém complementares, como a) a criação de uma relação de proximidade, de confiança, de coleta de informações e “provocação” da demanda – no sentido da mobilização dos usuários para a sua própria saúde e/ou autonomia implicando a colocação no mercado de trabalho, geração/obtenção de renda e qualificação ou obtenção de uma vaga na escola, por exemplo – e b) a criação de um distanciamento e/ou dissimulação da ausência do serviço efetivo para lidar com a insatisfação dos usuários. a) Durante essa primeira etapa do processo de trabalho de produção do serviço, trata-se de coletar informações sobre a situação dos usuários e de convencê-los da qualidade do serviço que poderão obter e conseguir sua “adesão” à unidade de saúde (ou a uma associação que realiza o Programa Ação Família) como usuários cadastrados. Para os agentes, a negociação com os usuários a respeito da sua imagem do serviço público oferecido, ligado ao valor que esses últimos lhes atribuem pessoalmente, é objeto de comentários entre os agentes, e interrogações permanentes. Nesse processo, a negociação do acesso ao domicílio dos moradores constitui um passo importante. Do lado dos usuários existe uma hierarquia de valores entre diversos tipos de serviços, e, de forma geral, as pessoas que possuem as possibilidades econômicas preferem, ou dizem preferir, um serviço particular privado, e contratam um plano de saúde. De forma implícita, o serviço público é muitas vezes considerado como de baixa qualidade, e o acesso ao serviço pago – não necessariamente de melhor qualidade – pode funcionar como elemento de diferenciação social. Nesse contexto, a negociação do estatuto social dos trabalhadores sociais de saúde, ou de assistência, ocupa um lugar central. Além da falta de confiança nos servidores públicos de uma forma geral – no Brasil, muitas vezes considerados como beneficiando-se de vantagens indevidas, ou sujeitos a corrupção – os agentes têm acesso a muitas informações confidenciais – e podem ser considerados como potenciais informantes (para a polícia, o narcotráfico, políticos, assim como para outros membros da família e para a vizinhança). Assim, um dos problemas do trabalho dos agentes é de mostrar que respeitam o caráter confidencial das informações que transitam por elas, seja pela observação direta, seja pela transmissão oral. O acesso às diferentes partes do território, assim como qualquer forma de atuação, é passível de arranjos institucionais, isto é, entre os representantes locais do poder, tanto do poder público 13 como das assim chamadas “facções criminosas”15 que, na prática, regulam diversos assuntos na “comunidade”, o que contribui para sua legitimidade. Para conquistar a confiança da população, trata-se tanto de mostrar serviço como ter jogo de cintura, conforme a situação. O estabelecimento desses códigos morais e deontológicos é objeto de discussões permanentes entre os agentes. No que tange aos APS, a problemática é parecida: se trata de negociar uma relação de confiança para estabelecer um projeto familial e/ou individual de criação de emprego e renda, por exemplo, e conseguir a “adesão” da população atendida aos objetivos do programa, esclarecidos durante as três primeiras reuniões tendo como temáticas Vida em família, Vida na comunidade, Vida de direito e deveres. Tratar-se-ia de estabelecer “uma parceria” com a comunidade para seu desenvolvimento. b) A dinâmica relacional inversa, de distanciamento – tarefa árdua entre vizinhos, moradores e freqüentadores dos mesmos locais de sociabilidade, de comércios, serviços, etc. – pode se apresentar um tanto problemática igualmente. Por um lado, a justaposição espacial e temporal entre os lugares e horários de trabalho e de vida – no mesmo bairro, e com horários pouco definidos – dificulta a limitação da cobrança do serviço pelos usuários. De fato, são os agentes que definem, a partir dos seus relatos diários das visitas domiciliares na reunião de equipe no posto de saúde, uma parte do diagnóstico e o nível de urgência do atendimento. Os agentes de proteção, por sua vez, têm como missão a orientação da população para poder reivindicar os seus direitos a serviços públicos básicos – sem poder, não obstante, oferecer esses serviços muitas vezes escassos nos espaços pesquisados. Assim, como comenta uma das agentes entrevistadas, “Ele [o poder público] dá um tiro no próprio pé, porque nos somos representantes do poder público, a gente está orientando as famílias para poder reivindicar contra nós mesmo”. Frente a esse tipo de situação, e para lidar com a frustração dos usuários, os agentes dispõem, conforme as nossas observações, geralmente de duas tácticas opostas: num primeiro caso, se trataria de privatizar o seu próprio papel, isto é, de “sentir” compaixão (realmente ou formalmente, cf. trabalho sobre os sentimentos) em relação ao sofrimento do usuário, enfatizando a origem em comum e a semelhança das condições de vida. Esse tipo de manifestação pode procurar uma certa satisfação moral para agentes moldados ao modelo tradicional da mulher, e de amor ao próximo, 15 Atualmente nas mãos do PCC, o número de homicídios baixou significativamente na Cidade Tiradentes nos últimos anos. Como relatou uma agente entrevistada, uma das mudanças mais significativas das condições de trabalho dos ACS é de não mais servir de agente de informação para o tráfico, isto é, encarregado de « chamar à ordem » a população (de pedir para eles colaborarem e não denunciar no caso de presença da polícia). Uma das tarefas informais de certos agentes é a negociação das condições de liberação dos filhos de certas famílias, que se comprometeram com o tráfico e ficaram dependentes químicos. 14 valorizando o sacrifício de si mesmo. A atitude oposta consistiria numa forma de publicização do seu papel, deixando a sua vida particular por fora, mas se colocando como mediador entre diversos níveis de regulação e de poder local como táctica de legitimação do seu status de figura pública. Nesses bairros, onde um gerente de uma cooperativa/associação/ONG “mafiosa” nos disse “o poder, somos nós, o contra-poder, são eles [os agentes da prefeitura, os trabalhadores dos serviços sociais]”, diversos assuntos relacionados à vida privada (violência doméstica, estupro, etc.) fazem objeto de intervenções ad-hoc paralelos e imediatos, produzindo uma legitimidade pouco contestada pelo ramo dos traficantes. Todavia, uma táctica como a outra, são extremos e situacionais, quer dizer, podem mudar não só de uma pessoa para outra, haver formas mixtas, como variar conforme o momento e o tipo de contexto situacional. A formação do “bon usuário”, pouco contestatório e se encaixando nas formas de categorização institucionais operacionalizadas pelos programas, assim como a sua disciplinarização, poderia ser considerada uma terceira opção. À guisa de conclusão Numa perspectiva de “políticas de funcionalização da pobreza”, para retomar as palavras de Francisco de Oliveira (2003), a integração profissional da população pobre, em sua grande maioria, mulheres, pode ser considerada como uma forma de pacificação social. Em outras palavras, tal tendência tem contribuído para a resolução dos conflitos entre a população local, mediada por mulheres da própria comunidade. De modo geral, o trabalho nesse sentido invisível dessas mulheres consistiria, então, em lidar com os usuários/moradores/cidadãos de forma a responsabilizá-los da sua própria sorte em termos de integridade física e moral, ou seja, em uma forma de uso político da afetividade (Georges e Vidal, no prelo). Para retomar a nossa abordagem inicial a partir da privatização e da publicização de diversos assuntos da vida cotidiana – condição de sua politização – no entanto variável ao longo do tempo (Cabanes, 2009, op.cit.), cruzada com uma perspectiva de gênero e do reconhecimento do trabalho “do cuidado”, nota-se que a grande maioria de mulheres que exercem essas novas formas do trabalho social passou por um processo de visibilização e de reconhecimento de um trabalho realizado anteriormente por voluntários e/ou pelas mulheres no seio da família. Além do mais, a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho em territórios onde trabalho e emprego são raros representa um avanço importante no sentido da inclusão social. Pelo outro lado, a concretização desse trabalho – e mais ainda num contexto de restrições orçamentárias – necessita a mobilização de um trabalho invisível importante por parte das mulheres, tanto para “criar” 15 demandas como para gerenciar sua não-satisfação. De fato, são as mulheres que cumprem o papel de transformar em algo socialmente aceitável a manutenção de uma parcela importante da população em situações de “vulnerabilidade social”. Elas “gerem” a vida dessa população às margens do poder do Estado, ou, eufemizando, nas “relações de proximidade”. Considerando que a interface principal de famílias atendidas é também do sexo feminino (esposa, mãe, avó), constata-se aqui uma gestão sexuada (feminizada) das políticas sociais, tanto em nível público como privado, garantindo o sucesso dos programas sociais (Moser, 1996), e reforçando o papel “de cuidado” das mulheres – instrumentalizando-o. Pode-se dizer que essas políticas públicas contribuem para a ampliação de um novo campo profissional do trabalho social – em grande parte feminino, mas não exclusivamente – que ofusca as fronteiras entre a iniciativa privada e pública, e que reconfigura a gestão da questão social no Brasil contemporâneo, além de criar novas formas de discriminação tanto no interior desse campo de atuação heterogêneo como externamente, segmentando a população atendida. Enfim, duas interpretações opostas, mas não exclusivas, emergem da análise: tratar-se ia de políticas públicas originais e precursores de maior inclusão social, de combate à pobreza e de autonomização da população; podendo ser consideradas ao mesmo tempo como formas de instrumentalização de uma parte das frações mais pobres da população – especialmente as mulheres - para cumprir um papel de pacificação social. Nesse caso, configuraria um quadro de naturalização da precarização das relações de trabalho e de emprego, mas também das condições de vida, e de repasse a população da responsabilidade para o seu bem-estar econômico, social e físico, conforme as tendências neo-liberais internacionais, evidentes nos países do norte como os Estados Unidos, França e o Japão (Hays, 2003; Neyrand e Rossi, 2004; Santos, 2008). 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