A EMPRESA E O DIREITO: A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais É percepção cada vez mais generalizada que as sociedades comerciais de responsabilidade limitada são, por vezes, utilizadas como escudo protector para os seus sócios/accionistas (iremos utilizar indistintamente o termo “sócios” para nos referirmos aos titulares de quotas ou de acções) na imputação de responsabilidades por actos ilícitos por eles praticados, através da sua utilização, como “veículo” para a prática desses mesmos actos. Por outras palavras, a sociedade comercial de responsabilidade limitada é por vezes utilizada, pelos seus sócios, para a prática dos mais variados actos ilícitos, escudando-se os mesmos na responsabilização da sociedade e não na deles, uma vez que tal sociedade comercial é um sujeito de direito com personalidade jurídica própria. Maputo, Sexta-Feira, 2 de Maio de 2008:: Notícias Para melhor entendermos o alcance desta explanação inicial, torna-se necessário, antes de mais, entender que a personalidade jurídica de uma determinada pessoa (singular ou colectiva) é definida como a susceptibilidade de ela ser um sujeito de relações jurídicas. Isto significa que, a partir do momento em que adquire personalidade jurídica, a pessoa torna-se titular de direitos e de deveres. Nos termos do artigo 66.º do Código Civil, a pessoa singular adquire personalidade jurídica no momento do nascimento completo e com vida. Já as pessoas colectivas (ou jurídicas) – que têm em vista a prossecução de determinados objectivos, agindo, para tal, através dos seus representantes/sócios – adquirem a personalidade jurídica através (i) de um acto discricionário (o reconhecimento), praticado por um ente de direito público – é o que sucede, por exemplo, com as associações – ou (ii) pela verificação de um facto jurídico, como é o caso das sociedades comerciais, conforme resulta do estabelecido no artigo 86.º do Código Comercial, segundo o qual as sociedades comerciais adquirem personalidade jurídica a partir da data do respectivo acto constitutivo – este facto jurídico (o acto constitutivo da sociedade) equipara-se assim ao nascimento “completo e com vida” das sociedades comerciais. Ao adquirir a personalidade jurídica, a sociedade comercial: · torna-se num sujeito de direitos e deveres; · não se confunde com os seus sócios, sendo ela a comerciante (ou empresária comercial, nos termos da al. b), do artigo 2.º, do Código Comercial) e não os seus sócios; · tem responsabilidade civil diferente da dos sócios; · tem o seu próprio património (autonomia patrimonial), distinto do dos sócios; · tem um nome (a firma) distinto do dos sócios; · tem um domicílio (a sede social) distinto do dos sócios; · pode modificar a sua estrutura. Em face disto, e como foi referido no parágrafo anterior, uma das consequências da aquisição da personalidade jurídica, por parte das sociedades comerciais, é a sua autonomia patrimonial – a sociedade tem o seu próprio património, distinto dos patrimónios dos respectivos sócios. Logo, o seu património não se pode confundir com o património dos seus sócios, daí que, por um lado, (i) somente o património das sociedades comerciais de responsabilidade limitada respondem pelas dívidas da sociedade e (ii) por outro, os sócios não podem utilizar os bens da sociedade para fazer face às suas dívidas. Contudo, apesar da “separação” entre o património dos sócios e o da sociedade, casos há em que se verifica um abuso, por parte dos sócios, da personalidade jurídica da sociedade, por via da utilização, por parte daqueles, do nome da sociedade e do seu património para cometer actos fraudulentos, ilícitos e de abuso do poder económico, nomeadamente: a criação de “zonas cinzentas” na determinação da propriedade de bens próprios de sócios ou de bens societários, por forma a, em caso de uma acção executiva movida por credores contra a sociedade ou contra o sócio, se poder defender com base na autonomia patrimonial, quer do sócio, quer da sociedade, conforme melhor lhe(s) aprouver; a violação de medidas de protecção do ambiente, previstas na lei do ambiente (aprovada pela Lei n.º 20/97, de 1 de Outubro). Para fazer face a este tipo de situações, temos a figura (inovadora no nosso ordenamento jurídico) da desconsideração da personalidade jurídica, que se caracteriza por ser um mecanismo que permite tornar “ineficaz” a personalidade jurídica da sociedade e, sobretudo, responsabilizar os sócios por certos actos praticados em nome da empresa, de modo a poder “atingir” o património desses sócios. Deste modo, nos termos do artigo 87.º do Código Comercial, é desconsiderada a personalidade jurídica da sociedade e responsabilizados os sócios, quando estes ajam culposa ou dolosamente, mais concretamente nos seguintes casos: a) Quando a sociedade é utilizada como instrumento de fraude e de abuso do poder económico; b) Quando ocorra uma violação dos direitos essenciais do consumidor e do meio ambiente; c) Em qualquer hipótese em que a personalidade jurídica da sociedade seja utilizada para prejudicar os interesses do sócio, do trabalhador da sociedade, de terceiro, do Estado e da comunidade onde actue a sociedade; e/ou d) Em caso de falência da sociedade do mesmo grupo de sociedades. Nestes termos, em virtude de a sociedade comercial possuir personalidade jurídica distinta da dos sócios, ela responde civilmente pelos actos ou omissões de quem legalmente a represente ou a obrigue. Porém, nos casos acima descritos, para que se possa responsabilizar os sócios e “atingir” o seu respectivo património, é necessário que a personalidade da sociedade seja desconsiderada, ou seja, que a sociedade deixe de possuir personalidade jurídica em relação àqueles actos em concreto. Com a desconsideração da personalidade jurídica, os sócios poderão ser responsabilizados, sempre que a personalidade jurídica da sociedade for por eles utilizada para a prática de actos fraudulentos ou ilícitos e de abuso de poder económico, sem que isso prejudique outros negócios e/ou actos jurídicos que não estejam relacionados com aqueles. Levanta-se assim a personalidade jurídica de uma determinada sociedade comercial de responsabilidade limitada, criando-se uma “ficção jurídica” tendente a efectivamente responsabilizar os agentes dos actos ilícitos, e não fazê-lo a interposta pessoa (a sociedade), que poderia resultar numa declarada e notória desresponsabilização dos agentes da infracção. É este o escopo essencial desta inovação jurídica no nosso ordenamento jurídico que, no entanto, já existia noutros ordenamentos jurídicos, incluindo nos sistemas jurídicos da common law, sendo aí, regra geral, conhecidos como disregard of legal entity. É de referir ainda que, numa perspectiva estritamente fiscal, a legislação tributária previa, nalgumas situações, a responsabilidade solidária, por dívidas fiscais dos administradores das sociedades de responsabilidade tributária. Neste caso, contudo, não se verificava uma desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, porquanto eram os bens da sociedade, juntamente com os dos administradores, que respondiam pelas dívidas, responsabilidade essa que era solidária, ou seja, a Administração Fiscal tanto podia exigir o pagamento das dívidas tributárias à sociedade, assim como aos seus administradores (a qualquer um ou a todos), independentemente do direito de regresso que, a posteriori, lhes poderia assistir (entre os administradores ou entre estes e a sociedade). A nova figura, constante do Código Comercial, vai mais longe, porquanto “despe” a sociedade, temporariamente, da sua personalidade jurídica, por forma a que possam ser penalizados os verdadeiros autores da prática do acto punível, previsto no citado artigo 87.º do Código Comercial – os seus sócios, os quais, intencional e dolosamente tenham utilizado a sociedade para a prática de actos ilícitos. * NIPUL GOVAN - Advogado e Agente Oficial da Propriedade Industrial