Como não sei quem escreveu este texto, chamá-lo-ei de autor (A). A meu ver, a tese de Marx, pensada a partir de uma matriz dialética, é transformada aqui numa matriz empirista. Segundo esta, o meio social existe previamente e, como tal, é copiado pelo sujeito (se é que se pode chamar aqui de sujeito). Isto parece claro demais: “... a natureza psicológica do homem vem a ser um conjunto de relações sociais deslocadas ao interior e convertidas em funções da personalidade e em formas de sua estrutura”. Pergunta que se deve fazer a A: Quem ou o quê faz esse deslocamento? É o sujeito ou outra instância? Resta também saber de onde A tira a convicção de que “... vemos nela [na afirmação de Marx, de acordo com sua interpretação] a expressão mais completa de todo o resultado da história do desenvolvimento cultural”. Tal profissão está mais para a fé do que para a ciência. E ainda chama isso de “lei fundamental que temos observado na história do desenvolvimento cultural ligada diretamente ao problema do coletivo infantil...”. Outra afirmação incrível que beira o idealismo: “... as funções psicológicas superiores [como a função da palavra] estavam antes divididas e repartidas entre os homens, passando logo a ser funções da própria personalidade”. Como se existisse uma totalidade a priori que seria repartida entre os homens! Olhemos a evolução. O primeiro homem que usou um som ou um grunhido com a intenção de comunicar algo fez isso individualmente. Foi então que a palavra começou. A função da palavra passou a existir com o exercício desse falante primevo. Tal totalidade não existiu previamente à fala de um primeiro indivíduo falante. É claro que essa função vai sobreviver com o surgimento de outros falantes; caso contrário, não subsistirá a função. Daí a surpresa de A: “Era impossível esperar algo semelhante da conduta entendida como individual”. Por que A tem tanta dificuldade de admitir a existência de ações – concretas ou simbólicas – individuais? De admitir que existam indivíduos? Que sociedade passa pela mente de A se os indivíduos não passam de ficções? Quem sempre fez isso foi o associacionismo, especificamente, o behaviorismo e o neobehaviorismo (Skinner). Que psicologia conhece A? Ele diz: “Antes, os psicólogos procuravam deduzir o social do comportamento individual. Investigavam as reações do indivíduo conseguidas no laboratório e depois no coletivo, estudavam como muda a reação da personalidade no ambiente coletivo.” Ele desconhece toda a Psicologia Genética, em especial o trabalho de Perret-Clermont, A construção da inteligência pela interação social. Quando Piaget estuda indivíduos ele está buscando aquilo que se forma em todos os indivíduos, o conhecimento universal e necessário, não apenas individual – conhecimento é sempre totalidade, nunca é apenas individual; não há um só argumento ou um só fato que justifique afirmar que Piaget tenha feito uma psicologia individualista. Ele diz (Estudos Sociológicos) que a sociedade não é a soma dos indivíduos, mas o somatório de todas as relações entre todos os indivíduos, o que está longe de ser a mesma coisa. E para quem conhecer o significado de “relação” em Piaget sabe o grande significado dessa afirmação. A rigor, A desconhece a própria psicologia vygotskiana que sempre pretendeu fazer uma psicologia sócio-histórica. Como ele pode pretender “... mostrar como se produz a reação individual em um ambiente coletivo” se ele nega o estatuto da individualista, ou a concebe apenas como cópia ou clone da sociedade? No momento em que A afirma: “Discordando de Piaget, supomos que o desenvolvimento não se orienta para a socialização, mas sim para converter as relações sociais em funções psicológicas”, ele revela todo seu credo. Isto é, o indivíduo nasce tabula rasa (empirismo) e alguém ou alguma coisa transforma o indivíduo em clone da sociedade – em nenhum momento ele fala que a ação do indivíduo exerceria essa tarefa, como pensa Vygotski (ponto para Vygotski, diga-se de passagem!). Em outras palavras, A pretende ser inovador e não faz outra coisa do que reprisar o velho modelo empirista, que vem desde Aristóteles, foi reciclado pelo empirismo inglês do Séc. XVII (“Nada há na inteligência que primeiro não tenha passado pelos sentidos”, diz Thomas Hobbes) e tornado metodologia científica pelos (neo)behaviorismos do Séc. XX. Perante tamanha ignorância histórica e epistemológica, A autoriza-se a afirmar: “Por isso, toda a psicologia do coletivo no desenvolvimento infantil se apresenta agora sob uma perspectiva completamente nova. Costuma-se perguntar como se comporta uma ou outra criança no coletivo”. Se por um lado o comportamento infantil no coletivo é tema relativamente novo – nem tão novo! – por outro lado o indivíduo como reprodução da sociedade é milenarmente velho e congruente com uma matriz epistemológica empirista. Continua A: “A pergunta que nos fazemos é como o coletivo constitui, em uma ou outra criança, as funções psicológicas superiores[?].” Essa afirmação, ou pergunta, de A mostra bem o dogma que mobiliza seu pensamento: “... o coletivo constitui [...] as funções psicológicas superiores” na criança; ou, no ser humano. Se houver qualquer dúvida sobre a matriz empirista, essa frase remove qualquer sombra dessa dúvida. Interação é coisa nova, empirismo é coisa velha, multimilenar. Insiste A: “Supunha-se anteriormente que a função existia no indivíduo de forma acabada, semi-acabada ou embrionária, que dentro do coletivo se desenvolve, complica, acrescenta, enriquece, ou, pelo contrário, se inibe, se comprime etc. Hoje em dia possuímos todos os fundamentos para supor que a situação é oposta em relação às funções psicológicas superiores.” A hipótese de Piaget não é contemplada por essa afirmação de que “... a função existia no indivíduo de forma acabada, semi-acabada ou embrionária”. Para Piaget, o ser humano nasce com a capacidade de construir suas funções psicológicas inferiores (esquemas de ação) ou superiores (fala/linguagem, vontade, consciência, conhecimento, reflexão, etc). Ele o faz por construção, isto é, o genoma traz a capacidade de construir tudo isso – e muito mais – mas não traz as próprias capacidades, nem sequer embrionariamente. Hoje em dia, a Epistemologia Genética consagrou a hipótese científica da construção que A desconhece. Em seu lugar, ele instala a hipótese, originária do senso comum, da repetição, reprodução, clonagem, cópia. Em lugar do interacionismo, ele fica com o empirismo. E ainda afirma um sabor pré-vygotskiano, pois ele não diz quem ou o quê realiza essa transposição do social para o individual, enquanto Vygotski afirma que é a atividade do indivíduo que faz essa transposição (Zona de Desenvolvimento Proximal). De acordo com a ZDP, um fenômeno psicológico é primeiramente social e só posteriormente psicológico – o que faz com que os críticos de Vygotski reconheçam nele uma crítica insuficiente ao empirismo. Continua A: “A princípio, as funções no ambiente do coletivo se estruturam em forma de relações entre as crianças, passando logo a ser funções psicológicas da personalidade.” Novamente A afirma que as funções se estruturam primeiro no coletivo e depois tornam-se funções daquela criança individual. Incrível, pois o jogo interminável de um número infinito de assimilações e acomodações realizadas pela criança, no ambiente coletivo, escapa da observação de A. Pergunto novamente, quem ou o quê realiza essas relações no coletivo, a não ser os próprios indivíduos-crianças em interação com outros indivíduos-crianças, com pais, professores, uma variedade de objetos, vizinhos, ambiente doméstico, espaço escolar, pracinha, shopping center, ruas, estradas, cinemas... Numa palavra, a ação e a coordenação das ações, por equilibração ou abstração reflexionante, realizam as funções psicológicas superiores – sempre por reconstrução das próprias instâncias do genoma e do próprio sistema nervoso. Diz A: “Considerava-se antes que cada criança era capaz de raciocinar, argumentar, demonstrar, buscar razões para alguma idéia e que do choque de semelhantes reflexões nascia a discussão.” Nenhuma criança era capaz de raciocinar, argumentar, etc. Ao contrário, a partir dos reflexos de recém-nascida ela vai construindo essas capacidades por uma infinidade de micro gêneses, nascidas de suas ações e coordenações das ações... até chegar a complexas estruturas (organizações do sistema nervoso central, organizações psicológicas, capacidades cognitivas) cognitivas – estruturas que nunca deixam de ser biológicas e psicológicas; pelo contrário, tornam-se cognitivas na medida em que evoluem como biológicas e psicológicas. A estrutura conserva as aquisições do indivíduo em interação com o coletivo; e o indivíduo, melhor dito, o sujeito na continuidade da interação transforma a própria estrutura elevando-a a patamares cada vez mais elevados de complexidade. Diz A: “De fato, entretanto, as coisas sucedem de maneira diferente. As pesquisas demonstram que das discussões nasce a reflexão.” Realmente, as coisas sucedem de maneira diferente... Aqui, A se enreda na própria armadilha. Interpretemos a passagem “das discussões nasce a reflexão”: Na discussão alguém propõe um problema. O interlocutor questiona a formulação ou o conteúdo. O proponente revida justificando sua afirmação inicial, e já introduzindo nela modificações. Novo questionamento provoca nova reformulação. No final, o proponente não pensa mais o mesmo que propusera no início nem o interlocutor o que revidara, mesmo que não se dêem conta disso. E mais, podem não ter mais a mesma capacidade, pois ela pode ter se ampliado. A usa, portanto, um exemplo próprio da interação que não serve para justificar sua matriz empirista; ao contrário, a contradiz. Continua A:. “O estudo das restantes funções psicológicas nos leva à mesma conclusão.(...).” A precisa correr para sair dessa arapuca em que se meteu, pois todas as funções psicológicas se dão por interação e não por cópia, clonagem, repetição ou reprodução que a pressão da sociedade ou do coletivo realizam nos indivíduos. Finalmente, repito, A fica devendo uma resposta à seguinte pergunta: Quem ou o quê faz com que o coletivo se torna individual? A Epistemologia Genética respondeu a isso através da exploração, pelas crianças, de mais de cem temas diferentes (espaço, tempo, velocidade, flutuação, resistência, percepção, tomada de consciência, etc.etc.), e chegou à conclusão que é por construção do sujeito em interação com a cultura, a sociedade, o mundo; numa palavra, com o meio, físico ou social. De forma alguma, por imposição unilateral do coletivo sobre o individual.