Riscos privados e intervenção pública LUIZ GONZAGA BELLUZZO A assim chamada finança direta, de "mercado" ou "desregulamentada", costuma produzir ciclos de valorização e desvalorização dos ativos intensos, rápidos e propensos a reversões violentas. Por isso, já nas etapas de euforia, aparecem inevitavelmente agentes-investidores que suspeitam da possibilidade de sustentação do nível de preços atingido pelos ativos. Esses senhores começam a formar posições "baixistas", as que antecipam uma reversão do ciclo e a queda dos preços. É essa lógica que tem guiado a ação de alguns investidores que apostam contra moedas apreciadas, Bolsas de Valores da periferia consideradas sem fôlego para capitalização ulterior, mercados imobiliários excessivamente valorizados e com oferta excessiva. Habitualmente esses fundos, conhecidos como "hedge funds", costumam operar nos mercados futuros de câmbio, com grandes posições vendidas nas moedas que se candidatam a um ataque especulativo. Tanto o peso das posições assumidas pelos especuladores altistas quanto a crescente presença de agentes baixistas nos mercados emergentes forçam os bancos centrais a tomar atitudes defensivas, tornando as suas políticas monetárias prisioneiras da necessidade de evitar as fugas de capitais e de escapar das desvalorizações selvagens. Nos países periféricos, essas medidas defensivas restringem-se, quase sempre, à elevação dos juros. Essa providência é, em geral, contraproducente. Deprime a capitalização dos ativos mobiliários e dos imóveis, afeta o serviço da dívida pública e, se a alta dos juros é muito prolongada, atinge a solidez bancária. Mercados financeiros "desregulamentados" também acentuam o caráter assimétrico dos ajustamentos entre países de moeda forte e aqueles de moeda fraca. Os Estados Unidos, até agora, em função da sua capacidade de atrair capitais para os seus mercados em alta, puderam se dar ao luxo de manter taxas de juros moderadas, apesar da ampliação do déficit em transações correntes. Não bastassem as suas próprias virtudes, as sucessivas crises das moedas e dos mercados financeiros na periferia incitaram a demanda por títulos do governo norte-americano, considerados de maior qualidade. Isso vem permitindo a queda das taxas de juros de longo prazo. Num primeiro momento, o ciclo de valorização de ativos, que ora agoniza, reforçou a supremacia do dólar, contribuindo para atrair capitais e ampliar desmesuradamente o poder de "seignoriage" dos Estados Unidos. Essa é uma das razões pelas quais foi possível prolongar o crescimento norte-americano sem inflação. Em contrapartida, a recuperação da economia japonesa tornou-se mais difícil. A política monetária mostra-se incapaz de reanimar os preços dos ativos domésticos, configurando, como observou corretamente Paul Krugman, um quadro de "armadilha da liquidez". Numa economia com "abertura financeira", a manutenção de taxas de juros muito baixas, acompanhada de "credit crunch", faz com que a liquidez disponível em ienes seja transformada em demanda de títulos americanos e europeus. Nesse sentido, as taxas de câmbio são determinadas pela expectativa de valorização dos ativos denominados nas distintas moedas. O país dominante, mesmo com déficits crescentes, pode se beneficiar de fortes revalorizações de sua moeda, caso o preço de seus ativos ainda esteja subindo. Não é, no entanto, seguro imaginar que, na eventualidade de uma prolongada e profunda "correção de preços" na Bolsa de Nova York, seja possível aos Estados Unidos reagir com uma redução dos juros para salvar a sua economia e o mundo da débâcle. Na verdade, a recente evolução dos mercados financeiros exacerbaram os desequilíbrios entre fluxos e estoques, mas, sobretudo, ampliaram os riscos de deslocamentos entre os estoques de riqueza, denominados em moedas distintas. As antecipações quanto aos movimentos dos diferenciais de juros ou alterações nas taxas de câmbio podem provocar mudanças nos preços dos ativos, da mesma forma que as mudanças "autônomas" nos preços dos ativos podem afetar as taxas de câmbio e as relações entre taxas de juros nas diferentes moedas. Num sistema internacional "regulado", como o de Bretton Woods, os processos de ajustamento deveriam funcionar mais ou menos assim: taxas de câmbio fixas, mas ajustáveis; limitada mobilidade de capitais; e demanda por cobertura de déficits (problemas de liquidez) atendidas, sob condicionalidades, por meio de uma instituição pública multilateral. O câmbio e os juros, nesse sistema, são preços-âncora, cuja relativa estabilidade e previsibilidade constituem-se em guias para a formação das expectativas dos possuidores de riqueza. Contrariamente, num sistema de taxas flutuantes, ampla e rápida mobilidade de capitais e provimento de liquidez efetuada a partir do mercado, mediante a ação de agentes privados especializados, as taxas de juros e de câmbio se submetem às bruscas mudanças de expectativas. Não é de espantar que nesse sistema seja mais frequente a ocorrência de graves problemas de liquidez, "resolvidos" por meio de violentas quedas de preços dos ativos e desvalorização das moedas. As intervenções das autoridades -o G7 e o FMI- têm ocorrido "post festum" e sua inevitável repetição acaba acarretando os chamados "riscos morais". Um cenário pessimista: a expectativa de uma queda pronunciada da Bolsa de Nova York pode provocar, como vem provocando, uma desvalorização do dólar. Essa desvalorização esperada, por certo, deverá acentuar a fuga dos ativos denominados na moeda americana, o que deve acelerar ainda mais a queda do dólar. As taxas dos títulos do governo vão começar a subir, exigindo do Federal Reserve uma elevação das taxas curtas. Essa possibilidade torna-se ainda maior diante da perspectiva da formação de um padrão monetário alternativo, com a entrada em vigor da moeda única européia. Mais do que nunca a dimensão da moeda enquanto ativo nominal, desejável em si mesmo, se sobrepõe às suas demais funções. Num mundo de finanças globais e com um sistema plurimonetário, em que a moeda central está sob suspeita, a preferência pela liquidez, até hoje exercida por intermédio do dólar, pode subitamente se deslocar para uma moeda alternativa. Também por isso as crises se manifestam sobretudo como crises agudas de liquidez , que os mercados privados não têm capacidade de resolver. Neste momento, a ausência de uma intervenção coordenada, pública, multilateral, tempestiva e eficiente vem sendo preenchida pela maré montante de ações "isolacionistas" e "intervencionistas" por parte dos países afetados pela turbulência financeira. A multiplicação inevitável dessas atitudes individuais causará, por certo, ainda mais estragos nos mercados assustados e desorientados.