O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem

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INTRODUÇÃO
Pensar em sexualidade na quadra contemporânea – marcada por discursos
variados, mas imbricada por valores com aspirações lineares – é uma necessidade
que decorre da reflexão sobre o próprio direito. Uma reflexão que parte da liberdade
para se chegar à garantia, da igualdade para alcançar diversidade e da fraternidade
para se obter solidariedade.
A reflexão proposta no parágrafo anterior nos apresenta uma visão
qualitativa sobre o tripé hermenêutico e estrutural do mundo que sucedeu às
Revoluções Burguesas do século XVIII. Uma valoração que aponta, invariavelmente,
para a multiplicidade. Aponta para a multiplicidade e, sobretudo, para a necessária
agregação.
A partir de uma perspectiva multidimensional, que é a face da
contemporaneidade, todas as questões carecem ser repensadas. Entre estas deve
ser pensada, também, a sexualidade e o exercício que desta se faz. É preciso se
desenvolver vários sentimentos, entre eles, de forma especial, o sentimento
republicano. Faz-se necessário que nos voltemos para garantia, diversidade e
solidariedade e nos esqueçamos dos dogmas, sobretudo quando estamos a falar em
nome do Estado, que é plural e laico. É de se dizer, de uma vez por todas, a que(m)
estamos servindo. Isto é fundamental para não sermos meros repetidores do senso
comum. Para não contribuirmos para a exclusão e o sectarismo em razão da
repetição de dogmas sem qualquer grau de reflexão.
Repensar certas estruturas nos impele a refletir sobre o papel estatal, e nisto
se inclui os papéis desempenhados por todos os atores sociais. Atores a que a
ordem jurídica empresta máscaras – uma vez que todos seriam iguais perante a lei,
portanto, dignos e dotados de direitos correlatos à personalidade –, mas muitas
vezes nega voz.
Na música popular brasileira encontramos na obra de Chico Buarque uma
canção que denota bem a teoria do papel. Em Geni e o Zepelim, de indelével marca
crítica, diz-se que Geni, a maldita, “é feita pra apanhar e boa de cuspir”. A Geni,
dama dos detentos, era a excluída, portanto, sem voz no teatro social. Servia a
todos, mas não poderia servir a si própria, porque lhe fora dado um papel restrito.
A noção de papel restrito que aqui propugnamos diz pertinência com a
vivência do conceito binário de sexo. Um conceito a partir do qual se concebe
homem e mulher, que são heterossexuais e realizados em suas sexualidades. Uma
concepção que não confere margem para discricionariedade ou variedades de
orientações e exercício da sexualidade, salvo para a marginalidade e exclusão,
ainda que tácita, do grupamento social.
No afã de se superar qualquer possibilidade sectarista, o questionamento
apresentado acerca da conceituação sexual deve ser recobrado. É preciso se
sedimentar um conceito de sexo que condiga com um Estado multifacetado e
agregador. Um Estado que se pretenda agregador e solidário, no exato sentir do
texto constitucional, denominado cidadão.
SEXUALIDADE HUMANA. PARA ALÉM DO CONCEITO GENITÁLICOCROMOSSÔMICO.
Pensar na sexualidade humana, sobretudo a partir do viés freudiano, induz a
que enfrentemos o conceito de sexo. Um questionamento, então, se faz premente:
qual o “conceito de sexo”1 se deve adotar? O biológico ou o psicológico? Sabendose que há meios de se observar o tema, porque restringir a reflexão ao conceito
biológico, como querem muitos?
O viés biológico, apreendido pelo direito como sendo o sexo jurídico, é
apenas uma forma de se ver a sexualidade. É de se considerar, por isto mesmo,
outras variantes, em especial a psicológica ou psicossocial. Tal consideração é
aposta em razão da necessidade de se reforçar, sempre, que o Ser Humano é muito
mais que corpo biológico. É racional e sua racionalidade não pode ser mitigada. Do
contrário, ter-se-á que o discurso da Dignidade da Pessoa Humana não é mais que
papel e tinta. É cláusula vazia que cabe tudo e, por isto mesmo, não comporta nada.
A conceituação jurídica de sexo é feita a partir da observação da genitália
externa do recém-nascido, de onde decorrerá o sexo que constará no Registro Civil:
masculino ou feminino. Este conceito, cunhado a partir da superação da doutrina do
sexo único, ainda se mantém no imaginário de muitos juristas brasileiros. É bastante
comum, por isto mesmo, encontrarmos decisões que ressaltem esta conceituação
em detrimento dos discursos da psicologia, da medicina e da antropologia, caso da
1 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000,
p. 135.
Apelação Cível n. 452.036-4/00, proveniente da comarca de São José do Rio Preto,
no Estado de São Paulo:
“Sob tal ângulo, o procedimento cirúrgico a que foi submetido,
não implicou em opção por um dos sexos de cujas
características era portador, mas em adaptação física,
construída artificialmente, do sexo masculino para o sexo
feminino, sem que houvesse efetiva alteração de sexo, uma vez
que, para todos os efeitos, ainda que, em tese. se admita tenha
adquirido artificialmente a aparência da genitália feminina, a natureza
de sua concepção não foi alterada.
Nesse aspecto, a adequada colocação feita pelo Procurador de
Justiça oficiante "não se trata de esterilidade apenas. Trata-se e uma
situação anômala criada artificialmente e não consagrada pelo
direito positivo, uma vez que esterilidade pressupõe possibilidade
de procriar. E o transexual operado não tinha, não tem e nem terá
essa possibilidade Ofende ao bom senso imaginar que algo ou
alguém seja estéril sem que ele próprio ou seu semelhante, para que
se diga o menos, possa fazê-lo ainda que em tese. E nem em tese o
ora Apelado poderia, poderá ou pode procriar" (fIs 121)
Ora, o registro civil espelha a realidade da pessoa, que se projeta,
por intermédio de seu nome, para as relações sociais, no campo civil
e no campo penal. Bem por isso, a preservação da identidade
realiza-se ao longo de toda a vida da pessoa, mantendo uma
unidade nas relações que vão sendo estabelecidas ao longo do
tempo.”2 (destacou-se)
Quando se diz que o procedimento cirúrgico não possui o condão de alterar o sexo,
está se ressaltando o discurso biológico. Ao mesmo tempo, quando se afirma que “o registro
civil espelha a realidade da pessoa”, a pessoa está sendo considerada em acepção limitada.
Dizer que o Registro Civil espelha a realidade da pessoa, partindo de um viés meramente
biológico, é considerar a pessoa sem qualquer reflexão sobre a Dignidade que a esta se
associa,
ignorando,
inclusive,
a
construção
doutrinária
acerca
dos
Direitos
da
Personalidade.
O discurso a que o desembargador Grava Brasil chama de científico, já que
baseado na biologia, se pretende absoluto e verdadeiro, mas peca por não reconhecer ao
Ser Humano o lócus especial que este possui na escala dos seres. Trata-o como um animal,
daí a referência cromossômica, e se esquece que é a racionalidade quem confere à espécie
humana a condição de diferenciada entre os seres viventes.
2 Retificação de registro civil. Modificação de nome e sexo. Regra da imutabilidade dos dados do
assento de nascimento, que só podem ser modificados em razão de justificativa irrebatível. Sem risco
para a verdade que todo o registro deve espelhar e sem que se retire dos terceiros o direito de
conhecer a verdade. Sentença modificada. Recurso provido. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça.
Apelação Cível n. 452.036-4/00, São José do Rio Preto. Nona Câmara de Direito Privado. Relator:
Desembargador Grava Brasil. São Paulo, 07 nov. 2006. Disponível em: <www.tj.sp.gov.br> Acesso:
15 outubro 2007.
Quando se pensa na temática da transexualidade, mostra-se improvável não
se pensar nos conceitos de sexo e nome civil. Dizemos isto porque é no Registro
Civil de Pessoas Naturais que, em última análise, o “direito se dirá”3. Por mais que a
Resolução do Conselho Federal de Medicina afirme ser prerrogativa médica
diagnosticar a transexualidade, é no direito que os reflexos da cidadania serão
pleiteados.
Não se pode pensar transexualidade sem os olhos voltados para o Registro
Civil. Esta assertiva se faz clara. As noções de gênero e nome, nesta linha, precisam
ser enfrentadas de forma objetiva, pois são meios nos quais será visto o exercício do
caráter.
Do que se expôs, não nos restam dúvidas de que a denominação a partir do
viés meramente biológico não atende à pessoa em sua plenitude. Como resta
evidente, não é em cromossomas4 que se afere Dignidade. Não é, por óbvio, a
presença dos cromossomas xx ou xy na cromátide que define Dignidade, razão pela
qual soa absolutamente desarrazoada a proposição que nega a adequação de nome
e de sexo com embasamento apenas biológico, ainda mais se se considerar as
possibilidades das síndromes determinadas cromossomicamente, como Turner5 e
Klinefelter6.
Nos casos da Síndrome de Turner não existe cromatina sexual. Desta forma,
caso “a” portadora da doença tivesse de se submeter ao teste de cromátide, seria
um ser biologicamente assexuado. Não é homem nem mulher, biologicamente
falando. Não poderia ser considerada mulher ou homem por não dispor do gene que
determina o gênero sob o viés biológico. Ainda que ostente aparência feminina, esta
situação é apenas aparente. Qualquer aparência que por ventura possua, é mera
aparência, sem qualquer respaldo na própria biologia.
3 Cf.: BOURDIEU, Pierre. Op. cit., .passim.
4 Cromossomas: s. m. Biol. Cada um dos corpúsculos, de cromatina, que aparecem no núcleo de
uma célula, durante a sua divisão. Constituem a sede das qualidades hereditárias representadas
pelos genes. Dicionário de Biologia. Cromossomas. São Paulo: Guia Homem, Espírito e Universo.
Disponível em: <www.guia.heu.nom.br/cromossomas.htm> Acesso: 13 dezembro 2007.
5 “É uma monossomia na qual os indivíduos afetados exibem sexo feminino, mas, geralmente, não
possuem cromatina sexual. O exame de seu cariótipo comumente revela 45 cromossomos, sendo
que do par dos sexuais há apenas um X; dizemos que esses indivíduos são XO (xis zero), sendo seu
cariótipo representado por 45, X.” ROCHA, Ronicely Pereira. Doenças Cromossômicas. Viçosa:
Universidade Federal. Disponível em: <www.ufv.br/dbg/BIO240/DC02.htm> Acesso: 11 dezembro
2007.
6 São indivíduos do sexo masculino que apresentam cromatina sexual e cariótipo geralmente
47,XXY. Outros cariótipos menos comuns são 48,XXYY; 48,XXXY; 49,XXXYY e 49,XXXXY que,
respectivamente, exibem 1, 2 e 3 corpúsculos de Barr. Ibidem.
Na síndrome de Klinefelter ocorre exatamente o contrário. Há mais
cromatinas sexuais do que o padrão dito normal informa. Neste caso são
encontradas cromátides de ambos os sexos. Também neste caso o exame de
cromátide é limitado. A multiplicidade cromossômica impede uma identificação aceita
como real, já que foge ao padrão normal, que é xx ou xy.
A discussão biológica acerca das síndromes foi trazida para o corpo do texto
no afã de se afastar o absolutismo do discurso biológico, de que se valem muitos
magistrados, caso do Desembargador Grava Brasil no voto a seguir transcrito:
“Ademais, em linha de registro civil, prevalece a regra geral da
imutabilidade dos dados, nome, prenome, sexo, filiação etc Há,
portanto, um interesse público de manutenção da veracidade dos
registros, de modo que a afirmação do sexo (masculino ou feminino)
não diz com a aparência, mas com a realidade espelhada no
nascimento, que não pode ser alterada artificialmente.”7 (destacouse)
Como se disse antes, não é em cromossomas que se afere Dignidade.
Desta forma, se é a Dignidade da Pessoa Humana a base de estruturação da
Constituição da República Federativa do Brasil, soa sem propósito a afirmação da
verdade biológica. Todos e quaisquer animais possuem genes que determinam
aparência. Entre os seres humanos também. Não há dúvidas de tais genes existem.
É de se ter, todavia, que o só fato da existência de síndromes cromossômicas põe
em xeque o caráter absoluto do discurso biológico-cientifico. Ao mesmo tempo,
tendo-se assente que a Dignidade está na racionalidade e na autonomia, não há
duvidas de que a verdade da psicologia deve se sobrepor à verdade biológica. Do
contrário, reduzir-se-á o Ser Humano a uma realidade animal, e não psíquica.
Tendo-se claro que o Ser Humano possui um grau absolutamente diferente
na escala dos seres, pura e simplesmente por ser racional e autônomo, entendemos
que o exercício da racionalidade e da autonomia não pode ser negado. Não se pode
negar a racionalidade, já que isto importaria em supressão da Dignidade e dos
Direitos da Personalidade na parcela que são, verdadeiramente, absolutos.
7 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 452,036-4/00, São José do Rio Preto. Nona
Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador Grava Brasil. São Paulo, 07 nov. 2006.
Disponível em: <www.tj.sp.gov.br> Acesso: 15 outubro 2007.
Assentando-se que o conceito biológico se apresenta limitado para cuidar da
realidade humana, chega-se ao conceito de sexualidade psicossocial8. Tal conceito é
importante por permitir se transpassar as questões genéticas e se chegar à
consideração de variáveis pré e pós-natais. Assim, a se assegurar efetividade
prática à conceituação psicossocial de sexo, parece sustentável se dizer que o
transexual operado é homem ou mulher, não podendo o sistema jurídico lhe impingir
qualquer tipo de restrição. O homem ou a mulher que a racionalidade e a autonomia
permitiram construir, nesta consideração, têm em si todas as prerrogativas de que
gozam todos os cidadãos, afinal, são cidadãos também.
A indagação sobre a conceituação sexual, que em um trabalho acadêmico
se mostra dogmática, assume ares de realidade quando o transexual bate as portas
do Judiciário com sua demanda. Quando o questionamento sobre sexualidade
chega ao Poder Judiciário uma resposta deve ser ofertada pelo Estado-Juiz. Uma
resposta que, evidentemente, deve chegar o mais próximo possível da consagração
da Dignidade, permitindo a fruição dos direitos básicos.
Retomando a indagação sobre as possibilidades de consideração da
sexualidade, uma questão desponta: qual delas se aproxima mais da fruição dos
direitos básicos correlatos à cidadania?
O questionamento proposto, sem qualquer dúvida, é de difícil resposta. Deve
se considerar, todavia, a reflexão que o espírito republicano e as razões de
justificação da Constituição da República nos impõem. A consideração desta
imposição constitucional fertiliza a discussão, fazendo crescer e frutificar a Dignidade
da Pessoa Humana.
A utilidade do sistema jurídico, de seu sistema valorativo, se consolida na
correspondência com as situações fáticas e as necessidades sociais. As situações
carentes de proteção jurídicas devem ser solucionadas pelos princípios gerais do
direito, pela analogia e pela eqüidade, mas sem se perder de vista o espírito de
agregação, rumo norte do trabalho de integração hermenêutica. Haveria, então,
apenas uma resposta correta no ordenamento jurídico. A resposta correta é a que
permite maior grau de fruição dos direitos básicos pelas pessoas. Permite a fruição
8 É a percepção do indivíduo de si mesmo, como homem ou mulher. PERES, Ana Paula Ariston
Barion. Transexualismo: O Direito a uma nova Identidade Sexual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
87.
de direitos e garantias fundamentais e não alude a qualquer situação de exclusão e
sectarismo social.
Com base nas possibilidades integrativas aduzidas, doutrina e jurisprudência
podem se manifestar acerca das situações, mesmo as não positivas. Uma
integração que, como já se assentou, deve ser efetuada com os olhos voltados para
os valores pessoais do indivíduo, independente dos valores ditos normais pela
comunidade e pelo grupo social. Uma possibilidade que não se faz pacífica, como se
percebe na fala do procurador de justiça oficiante no Apelação Cível Apelação Cível
n. 452,036-4/009: “trata-se de uma situação anômala criada artificialmente e não
consagrada pelo direito positivo”.
A se ter por válido o argumento do aludido procurador, tão-somente as
situações albergadas positivamente pelo Ordenamento Jurídico mereceriam tutela
jurisdicional. Esta aspiração, como se assentou anteriormente, já deu provas de sua
falibilidade. Por isto mesmo nos parece desprovida de razão de justificação,
sobretudo porque não leva em conta nem os elementos integrativos mínimos da Lei
de Introdução ao Código Civil, ainda mais da Constituição da República Federativa
do Brasil, declaradamente voltada para a promoção da cidadania, daí nominada
cidadã.
Pensar nas possibilidades integrativas no seguimento proposto, permite-nos
brindar com a obra de Edilsom Ferreira de Farias que, em seu Colisão de direitos à
honra, à intimidade, à vida privada, e a imagem versus a liberdade de expressão e
informação10, traz apontamentos que vão na direção defendida no corpo do texto.
Uma integração que aspira, em primeiro lugar, a realização das pessoas. Uma
realização que se dá como suposto de integridade do sistema e se apresenta
valorada em relação à tese do ordenamento, que se contenta com a validade
hierárquica, temporal ou de especialidade.
TRANSEXUALIDADE: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
9 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 452,036-4/00, São José do Rio Preto. Nona
Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador Grava Brasil. São Paulo, 07 nov. 2006.
Disponível em: <www.tj.sp.gov.br> Acesso: 15 outubro 2007.
10 FARIAS, Edilsom Ferreira de. Colisão de direitos à honra, à intimidade, à vida privada, e a
imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2000,
p. 60-61.
Transexualidade11 é tema que gera muitas polêmicas. Significa, em síntese
apertada, “divergência entre o fenótipo e genótipo”12. Consoante a lição de Maria
Helena Diniz, aponta para “a condição sexual da pessoa que rejeita sua identidade
genética e a própria anatomia de seu gênero, identificando-se psicologicamente com
o gênero oposto.”13
A discussão sobre transexualidade parte, como regra, do discurso
essencialista, onde só tem lugar o “transexual verdadeiro”14, construído pelo saber
médico, e, apenas nesta medida, percebido pelo direito. É de se ter, todavia, que a
noção de transexualidade verdadeira precisa ceder em nome das conquistas da
antropologia. Do contrário ver-se-á no direito (como, aliás, se tem visto) mera
repetição deste discurso legitimante.
A repetição do único discurso capaz de demover do apriorismo os
julgadores, que em muitos casos discursam a partir da referência dogmática, resta
evidenciada na doutrina de Aracy Klabin, onde se evidencia a existência de duas
espécies de transexualidade: a primária e a secundária.
Na transexualidade primária se encontra o transexual verdadeiro, que
compreende os “pacientes cujo problema de transformação do sexo é precoce,
impulsivo, insistente e imperativo, sem ter desvio significativo, tanto para o
transvestismo quanto para o homossexualismo. É chamado, também de
esquizossexualismo ou metamorfose sexual paranóica”15. Na transexualidade
secundária se engloba o transexual secundário, que engloba “os pacientes que
gravitam pelo transexualismo somente para manter períodos de atividades
homossexuais ou de transvestismo (são primeiro homossexuais ou travestis). O
11 A origem da transexualidade é controvertida. Em geral os estudos etiológicos do fenômeno são
agrupados em duas grandes correntes. A primeira parte da análise dos fatores relativos ao ambiente
social onde o indivíduo se desenvolve, após o seu nascimento. A segunda considera os fatores
endócrinos no desenvolvimento pré-natal do indivíduo.
12 Pedro Jorge Daguer. Apud. CHAVES, Antônio. Direito à vida e ao próprio corpo:
intersexualismo, transexualismo, transplante. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 141.
13 DINIZ, Maria Helena. O estudo atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 223.
14 Na leitura de Berenice Bento há uma construção clara no sentido de rechaçar a idéia de
“transexual verdadeiro”. Para tanto a autora parte de uma reflexão antropológica, no que supera o
discurso meramente legista, e chega à conclusão de que o discurso do “transexual verdadeiro” ainda
se mantém porque os transexuais tomaram consciência de que esta fala é um pressuposto para que
se autorize a cirurgia de transgenitalização. O discurso seria mantido tão-somente como um suposto
de comunicação, à medida que falar diferente importaria em ser ignorado pelo sistema. Importaria em
não ser ouvido pelo saber medido e, portanto, também ser abstraído pelo direito e seu “poder de dizer
o que é direito”, na perspectiva de Pierre Bourdieu. Cf.: BENTO, Berenice. A reinvenção do Corpo.
Rio de Janeiro: Garamond, 2006, passim.
15 KLABIN, Aracy. Aspectos Jurídicos do Transexualismo. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. São Paulo, vol. 90, 1995, p. 197.
impulso sexual é flutuante e temporário, motivo pelo qual podemos dividir o
transexualismo secundário em transexualismo do homossexual e do travesti.” 16
Pensar em transexual verdadeiro é importante porque nos faz recobrar a
mítica da heterossexualidade. Esta espécie de transexual não teria, então, nada que
o “desabonasse”. Não é um promíscuo, mas uma pessoa que nasceu em corpo
errado. Não é alguém que faz do exercício da sexualidade algo “pecaminoso”, mas
uma pessoa que busca realizar sua “alma”. A cirurgia, desta forma, tem como
objetivo a implementação da masculinidade ou feminilidade interna. Quer se dizer,
com isto, que apenas as pessoas que se sentem em um corpo trocado podem se
submeter à cirurgia de transgenitalização e, a partir desta, iniciar um procedimento
de comunicação com o direito para que este reconheça a realidade, autorizando, em
um segundo momento, a mudança do Registro Civil para que passe a constar a
adequação.
Quando se diz que apenas o “transexual primário” 17 pode se submeter à
cirurgia de transgenitalização, está sendo dito, ao mesmo tempo, que o secundário
não pode contar com esta possibilidade. Em verdade, à luz do Direito Positivo – e da
leitura positivista que se faz do tema –, não passa de alguém com intuição para a
promiscuidade. Alguém que faz de traços da transexualidade um meio de exercício
“desviado” da sexualidade.
Feitas as considerações iniciais sobre o tema, é de se ter que a
transexualidade18 é catalogada como patologia19 pela Organização Mundial de
Saúde. Trata-se de tema agrupado no Código Internacional de Doenças de número
16 Ibidem.
17 O transexual primário é um indivíduo anatomicamente de um sexo, que acreditaria firmemente
pertencer a outro. Trata-se de uma pessoa obcecada pelo desejo de ter o corpo alterado a fim de se
ajustar ao verdadeiro sexo. Está ligado diretamente à incompatibilidade entre o sexo biológico e a
identidade psicológica.
18 Por ser considerada doença, não há nenhum óbice a que a transexualidade seja denominada
transexualismo. Preferimos, contudo, a expressão transexualidade, já que o sufixo “ismo”, que aduz à
doença, aduz também à realização de condutas. Assim, como entendemos ser a transexualidade um
traço da personalidade manifestado a partir da orientação sexual, pensamos ser improdutivo o
emprego do termo transexualismo.
19 Uma patologia de minorias populacionais, estimando-se a possibilidade de 1,5 a 8 mil brasileiros
nessa situação injusta e degradante. JURADO, Jalma. Transexualismo no Brasil. São Paulo: Jornal
Médico. Disponível em <www.portalmedico.org.br/JORNAL/jornais1999/0299/Atualizaçãocientifica>
Acesso: 06 dezembro 2007.
10, classificada sob a rubrica F-64, onde se agrupam as chamadas disforias de
gênero20.
Da chamada disforia total de gênero o saber médico consagra a
transexualidade: F-64.021. Esta condição aponta no sentido da existência de um
indivíduo cuja condição clínica é biologicamente normal, mas que, segundo sua
história pessoal, apresenta sexo psicológico incompatível com a natureza do sexo
somático.
Os entendimentos apontados nos parecem bastante elucidativos. Nada
obstante, há doutrinadores que apontam ser a transexualidade uma espécie de
hermafroditismo hipofásico22. Não falam em disforia de gênero, mas sim em uma
ambigüidade na hipófise. Não se pode falar em ambigüidade genital, mas sim em
ambigüidade na conformação cerebral, especificamente na hipófise, como anuncia a
professora Edna Iriguti.
Na
lição
da
professora
em
comento
encontramos
a
noção
de
transexualidade como sendo o quadro clínico das pessoas que sobrem de
“neurodiscordância de gênero”. Ensina-nos, desenvolvendo seu raciocínio, que a
locução transexualidade tem origem nas pesquisas norte-americanas, nas quais se
constatou em cadáveres de transexuais do sexo masculino que a hipófise cerebral (parte
do cérebro que responde aos estímulos sexuais) possui estrias estreitas, idênticas à de uma
mulher biológica.
À noção propugnada pela professora Edna, deve-se associar a lição de Matilde
Josefina Sutter nas contribuições que trouxe para o tema em seu Determinação e
mudança de sexo. Neste encontramos aposto que:
20 Disforia de gênero quer dizer que há uma indisposição, mal-estar ou inadequação com a situação
do gênero biológico. Nos casos de transexualidade esta não-adequação se daria na totalidade, mas
há hipóteses em que o sentimento de mal-estar com o gênero é parcial.
21 Segundo a Classificação Internacional das Doenças a transexualidade se caracteriza em um
desejo imenso de viver e ser aceito como membro do sexo oposto, usualmente acompanhado por
uma sensação de desconforto ou impropriedade de seu próprio sexo anatômico e o desejo de se
submeter a tratamento hormonal e cirurgia, para seu corpo ficar tão congruente quanto possível com
o sexo preferido.
22 Baseando-se em uma pesquisa americana aponta a professora Edna Iriguti que: os transexuais
são indivíduos que apresentam ambigüidade na hipófise, caracterizando verdadeiro hermafroditismo
hipofásico. Desta forma a intenção do transexual de adequar sua genitália nada mais é que “a
simples adaptação física, para exercer suas vidas emocionais, sociais, espíritas e sexuais”.
IRIGUTI,
Edna.
Transexualismo.
São
Paulo:
Grupo
Esperanza.
Disponível
em
<www.grupoesperanza.com.br/ENTLAIDS/transexual.htm> Acesso: 09 dezembro 2007. (destacouse)
“a transexualidade se manifesta desde muito cedo. Antes dos três
anos de idade, e sem qualquer estímulo, o transexual feminino já se
utiliza de roupagem feminina. Prefere brincadeiras femininas na
infância e tal tendência também se manifesta, na idade adulta, na
sua opção profissional. Suas atitudes são femininas e não
efeminadas. Têm ojeriza do órgão masculino, pelo que desejam se
operar.” 23
A contribuição trazida por Josefina Sutter corrobora com a lição de Edna
Iriguti ao reforçar a visão essencialista do tema. Uma visão a partir da qual a
transexualidade se apresenta como algo inato e indissociável da pessoa, e não
como uma referência historicamente construída.
A visão essencialista é recobrada por Ana Paula Ariston Barion Peres, onde
se lê que transexuais não são homossexuais, mas pessoas deslocadas do próprio
corpo. Pessoas vítimas da natureza e que desejam a adequação sexual por serem
“amaldiçoadas pelo aparato sexual errado”24. São pessoas que desejam a mudança
deste aparato para poderem manter relações heterossexuais.
Em linhas gerais o conceito de transexualidade aponta, então, para a total
incompatibilidade entre sexo biológico e a identificação psicológica. Seria, dentro do
discurso médico-jurídico, o indivíduo que, anatomicamente de um sexo, acredita
pertencer a outro sexo. Uma crença que, de tão forte, impele a pessoa transexual a
querer se ajustar ao seu sexo verdadeiro, isto é, o sexo psicológico.
A transexualidade reflete o desejo de se viver e de se ser aceito como
pessoa construída social e psicologicamente. Uma construção que vai de encontro
ao senso comum por não atender à expectativa de correspondência entre a
configuração cromossômica e a psíquica. Uma não-correspondência que, para o
transexual, importa em um sentimento de mal-estar e não-adaptação ao sexo
biológico.
Transexual é, ou quer fazer parecer ser25, o indivíduo que repudia o sexo
que ostenta anatomicamente. Assim o transexual não se confundiria com o
23 SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1993, p.109.
24 PERES, Ana Paula Ariston Barion. Transexualismo: o direito a uma nova identidade sexual. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p.107.
25 Berenice Bento rechaça a noção de transexualidade como um dado essencial da pessoa. Aponta
no decorrer de seu A reinvenção do Corpo que o discurso da disforia total é repetido porque os
transexuais sabem que “o direito só ouve” o discurso do transexual primário. Portanto, falar de uma
disforia parcial importaria em negação da realidade pelo direito. Assim, sabedores disto, os
transexuais insistem na repetição da fórmula lapidar do “transexual verdadeiro”. Cf.: BENTO,
Berenice. Op. cit., passim.
homossexual26, pois este não nega seu sexo. Embora mantenha relações sexuais
com pessoas do mesmo sexo, não repudia sua conformação genitálica.
Quando se pensa na transexualidade, e na leitura que a medicina e o direito
fazem do tema, é preciso diferenciá-la das práticas travestis27. Transexualidade não
se confundiria com o travestismo28, já que este seria apenas um modo fetichista de
se dar vazão à sexualidade, com o qual a pessoa se deixar levar pelo impulso de se
vestir com a indumentária do sexo oposto.
Transexualidade não se confunde, ainda, com bissexualidade. Nesta há
identificação erótico-afetiva com ambos os sexos, mas não o sentimento de
inadequação corporal vivenciado pelos transexuais. Não se confunde, também, com
o hermafroditismo29.
Pode-se concluir, portanto, dentro da visão que o direito se propõe a
assimilar, que o transexual é indivíduo que se sente intimamente pertencente ao
sexo oposto ao de sua anatomia. Trata-se de alguém que, psicologicamente,
sustenta a crença de que sua identidade de gênero não é a mesma do sexo
atribuído em seu registro de nascimento.
Do exposto, tem-se que o individuo transexual traz consigo inderrogável
convicção de pertencimento a sexo que não o cromossômico ou genético. Sem a
menor dúvida é alguém que se sente situado em corpo errado, sendo suas atitudes
e ações correlatas às do sexo oposto, caracterizando o que o Conselho Federal de
Medicina chama de “desvio psicológico permanente de identidade sexual”.
26 A diferença entre o “transexual primário” e o homossexual é que o homossexual aceita a sua
genitália. Ele se aceita do jeito que é, enquanto o para o “transexual primário” se sente em “corpo
errado”. Na transexualidade há o desejo incoercível de adequação genitálica. Na homossexualidade,
por outro lado, há apenas a identificação erótico-afetiva com pessoas do mesmo sexo.
27 Na visão antropológica não há razões que justifiquem a classificação de diferentes tipos de
transexuais, ou, ainda, motivos para se distinguir transexual e travesti. Nada obstante, quem quiser se
valer da cirurgia de transgenitalização deverá reproduzir o discurso da diferença: corpo deslocado da
alma, corpo trocado etc. Cf.: BENTO, Berenice. Op. cit., passim.
28 Transvestismo é usado na área da sexualidade humana para descrever pessoas que obtêm
prazer de natureza sexual ao se vestirem com roupas do sexo oposto. São pessoas que, mesmo se
submetendo a tratamento hormonal, não negam a própria genitália, no que se diferem dos
transexuais.
29 O hermafroditismo se apresenta em três subdivisões: pseudo-hermafroditismo masculino
(indivíduo com cariótipo 46XY, estrutura interna masculina e externa feminina), pseudohermafroditismo feminino (indivíduo com cariótipo 46XX, estrutura interna feminina e externa
masculina). No pseudo-hermafroditismo as gônadas, quando presentes, são masculinas ou
femininas, acompanhando o cariótipo e o sexo interno. Por outro lado, ocorre no hermafroditismo
verdadeiro a presença de gônadas masculinas e femininas. Trata-se de um fenômeno geneticamente
determinado a partir de deficiências enzimáticas.
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS
A palavra transexual foi apresentada pela primeira vez em 1910 30 e, no
princípio, se confundia com transvestismo, termo que hoje assume acepção
diferente, servindo para designar a utilização de vestimenta do sexo oposto. Este
termo teria sido empregado pelo médico alemão Magnus Hirshfield, consoante
anuncia Suzana de Oliveira Carmo31. A utilização ocorreu quando o estudioso usou
a locução para designar indivíduos em que há distinção sexual entre corpo e mente.
Pessoas que têm sexo psicológico diferente do biológico.
Em 1917 Harold Gillies, um dos pais da cirurgia plástica, realizou em
soldados americanos mutilados que apresentavam comportamentos intersexuais a
cirurgia de vaginoplastia32. O mesmo Harold Gillies realizou em 1919 a primeira
cirurgia de faloplastia em Laura Dillon, que, tornada Michael, foi a primeira militante à
mudança de sexo do feminino para masculino.
Posteriormente, em 1954, o endocrinologista Harry Benjamin se valeu do
termo ao escrever para o Jornal Americano de Psicoterapia33. Igual emprego ocorre
em 1966, quando este publica O Fenômeno Transexual34.
A partir de Harry Benjamim e seu O Fenômeno Transexual o termo ganha
notoriedade, sendo empregado em profusão. Desta forma, conquanto Benjamin não
tenha sido pioneiro no emprego do termo, é comum se creditar a ele a expressão, já
que a popularização desta ocorre em razão do reconhecimento de seus estudos.
Harry Benjamin, é de se dizer, traz para o estudo da transexualidade
contribuições que ainda hoje são rechaçadas pela comunidade jurídica e sua
30 O primeiro livro publicado onde se usava o termo transexual foi publicado em 1910, sendo o termo
associado a um conjunto de perversões, ainda que distinto de homossexualidade e do travestismo.
Este livro foi Die Tranvestiten. Eine Untersuchung über den erotischen Verkleidungstrieb mit
umfangreich casuistichem und historischem Material, de Magnus Hirschfeld, médico alemão.
CASTEL, Pierre-Henri. Algumas reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno
transexual” (1910-1995). São Paulo: Scientific Electronic Library Online. Disponível em:
<http://64.233.169.104/search?q=cache:hZJUGSx21PoJ:www.scielo.br/scielo.php%3Fscript%3Dsci_p
df%26pid%3DS010201882001000200005%26lng%3Den%26nrm%3Diso%26tlng%3D+Harold+Gillies+transexual&hl=ptBR&ct=clnk&cd=1&gl=br> Acesso: 25 novembro 2007.
31 CARMO, Suzana J. de Oliveira. O transexualismo e o direito à integridade existencial. São
Paulo. Direito Net. Disponível em: <www.direitonet.com.br/artigos/x/22/38/2238> Acesso: 25
novembro 2007.
32 Harold Gillies, cirurgião britânico, pratica durante a Primeira Guerra as primeiras vaginoplastias e
faloplastias.
33 BENJAMIN, Harry. Transsexualism and transvestism as psychosomatic somato-psychic
syndromes. American Journal of Psychotherapy, 8, 1954, p. 219-230.
34 BENJAMIN, Harry. The Transsexual Phenomenon. New York: Julian Press, 1966.
capacidade de abstrair e sublimar outros campos do saber. Este já dizia, na década
de 1960 que: “é evidente que a mente do transexual não pode ser ajustada ao
corpo, é lógico e justificável tentar o oposto, ajustar o corpo à mente”.
De fato não se pode ajustar o cérebro. A adequação, então, deve ocorrer no
corpo. É de se estranhar, então, que, ainda hoje, vejamos decisões como a do
Desembargador Grava Brasil, que em seu voto na Apelação Cível n. 452,036-4/00,
proposta no Tribunal de Justiça de São Paulo, mostra-se absolutamente reticente
com a possibilidade.
Pierre-Henri Castel35, recobrando a consideração histórica do termo
transexualidade, aduz a proposições esclarecedoras. Propõe uma divisão temporal
que delimita quatro fases no enfrentamento do tema, como se percebe a seguir.
A primeira, aponta Castel, nos faz remontar às origens da sexologia. Um
momento em que houve uma ambição taxonômica positivista notória. Uma ambição
que pretendia, antes de qualquer coisa, a despenalização da homossexualidade.
A segunda fase surge acompanha do desenvolvimento da endocrinologia,
fator fundamental a distinguir a medicina científica entre as duas grandes guerras.
Nesta fase surge o chamado “behaviorismo endocrinológico”, a partir do qual se
estrutura a maior parte das teses sociológicas sobre a identidade sexual sustentadas
após 1945.
A terceira fase – de 1945 a 1975 – é rica em acontecimentos. Com a
Sociologia Empírica, da tradição americana, passa-se a se sustentar que a influência
do meio é determinante para muitas questões, entre elas o hermafroditismo, a
situação dos indivíduos geneticamente anormais, dos meninos com órgãos genitais
acidentalmente mutilados e dos transexuais.
A ocorrência do caso George Christine Jorgensen36, na Copenhague de
1952, aponta uma nova diretriz sobre o tema sexualidade, especialmente em matéria
de transexualidade.
A quarta fase se abre, no meio dos anos 70, com a reivindicação libertária
de uma despatologização radical das variantes sexuais que diferem do padrão
heterossexual. Assim o “transgenerismo (transgender), que reúne as aspirações
35 CASTEL, Pierre-Henri. Op. cit., passim.
36 George Jorgensen foi operado em 1952 em Copenhague pelo cirurgião plástico Paul FoghAndersen, adotando o nome de Christine Jorgensen”. CARDOSO, Renata Pinto. Transexualismo e o
direito à redesignação do estado sexual. São Paulo: Direito Net. Disponível em: <
http://www.direitonet.com.br/artigos/x/21/64/2164> Acesso: 22 novembro 2007.
tanto dos transexuais quanto dos transvestistas e de certos homossexuais de
apresentação deliberadamente ambígua, cristaliza as aspirações militantes e as
teorias culturais do gênero”37
Transexualidade, possibilidade para a qual o mundo médico – e a cargo
deste o jurídico – começa a se abrir no início do século XX é um fato que parece ser
próprio da sociedade contemporânea. É de se destacar, todavia, que há registros de
transexualidade muito mais antigos. Neste sentido é o encontrado no Dicionário de
Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon:
“O desejo de mudar de sexo existia antes da criação do termo
‘transexualismo’, como bem mostra a história do abade Choisy
(1644-1704), que usava roupas de mulher e se fazia chamar de
condessa de Barres. Há, ainda, Charles de Beaumont, cavaleiro
d´Éon (1728-1810), que serviu à diplomacia secreta de Luis XV
vestindo-se de homem ou de mulher conforme as circunstâncias.“38
Outro registro histórico da ocorrência da transexualidade é encontrado nas
histórias sobre o palácio de Versalhes. Nestas se encontra o relato sobre Jenny
Savalette de Lange, que, geneticamente homem, casou-se seis vezes com outros
homens, passando-se por mulher. Sua condição masculina só veio a público na
ocasião de sua morte, em 159839. Toda a corte, até então, acreditava se tratar de
uma mulher.
Por fim é de se dizer que o sentimento de ser do outro sexo, afirmado pelas
pessoas transexuais, é, provavelmente, tão antigo quanto qualquer outra expressão
da sexualidade. Da mitologia greco-romana ao século XIX, passando pelas mais
variadas fontes literárias e antropológicas, encontra-se relatos de personagens que
se vestiam como membros do outro sexo, dizendo sentir-se como do outro sexo. O
que hoje se nomina transexualidade não é próprio da nossa cultura ou de nossa
época. Recente, sim, é a possibilidade da mudança de sexo, possibilitada no plano
médico por novas técnicas cirúrgicas e a terapia hormonal.
CONSIDERAÇÕES NORMATIVAS SOBRE A TRANSEXUALIDADE
37 CASTEL, Pierre-Henri. Op. cit., passim.
38 ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998, p. 764.
39 LOPES, Bárbara Martins; VELOSO, Bruno Henning. Dignidade e respeito reciprocamente
considerados: a mudança do nome por transexual na comunidade brasileira. Teresina: Jus
Navigandi. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6504> Acesso: 21 novembro
2007.
No Brasil não existe legislação especifica sobre transexualidade. Na área
médica há a regulamentação do Conselho Federal de Medicina sobre a cirurgia de
transgenitalização, que atualmente deve se pautar pela Resolução n. 1.65240, de 06
de novembro de 2002. A partir desta resolução – que amplia os conceitos contidos
na Resolução n. 1.482, de 10 de setembro de 1997 – são esclarecidos os
procedimentos para a redesignação corporal.
Com a criação da resolução de 1997 foi possível se assentar, no plano
médico, a não-proibição da cirurgia, que era expressamente vedada até 1996. Desta
forma, antes da aprovação da resolução em comento, o médico que praticasse a
cirurgia poderia ser punido, sofrendo processos criminais (a partir dos quais poderia
ser punido com pena de reclusão) e administrativos. A edição da Resolução n.
1.482/97, todavia, permitiu a superação do regime de proibição.
As resoluções de 1997 e de 2002, anteriormente citadas, apresentam-se
valoradas em relação à realidade vivenciada no Brasil da década de 1970, já que
nesta época a cirurgia fora considerada mutiladora41, e não corretiva, conforme se
estatuiu no IV Congresso Brasileiro de Medicina Legal, realizado em 1974 na cidade
de São Paulo.
Na esfera jurídica, em outro sentir, houve o projeto de lei n. 70-B42, de
autoria do Deputado Federal José Coimbra. A partir deste projeto se incluiria um
parágrafo no artigo 129 do Código Penal e se atribuiria nova redação ao artigo 58 da
Lei de Registros Públicos.
Conquanto não tenha se tornado lei, parece-nos importante elucidar
algumas questões decorrentes do Projeto de Lei n. 70-B, no que apontava
essencialmente: modificar a Lei de Registros43 e o Código Penal44. A modificação da
40 Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97.
41 “A primeira operação brasileira foi realizada em São Paulo em 1971 pelo médico Roberto Farina,
que acabou preso por lesões corporais. Farina foi absolvido. A Justiça concluiu que a cirurgia era o
único meio de aplacar a angústia do transexual”. SEGATTO, Cristiane. Nasce uma mulher:
Transexuais saem do armário e a ciência mostra que a mudança de sexo não é perversão. Rio de
Janeiro: Época. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Epoca/0,6993,EPT441567-16641,00.html> Acesso: 30 novembro 2007.
42 O Projeto 70-B não foi aprovado, tendo sido substituído pelo projeto de n. 6.655-B, cuja redação
final foi apresentada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 13 de setembro de
2007.
43 Art. 58 O prenome será imutável, salvo nos casos previstos neste artigo.
§ 1º Quando for evidente o erro gráfico do prenome, admite-se a retificação, bem como a sua
mudança mediante sentença do juiz, a requerimento do interessado, no caso do parágrafo único do
art. 55, se o oficial não houver impugnado.
esfera penal objetivava a possibilitar a realização da cirurgia sem que esta pudesse
ser entendida por lesão corporal. Em relação à Lei de Registros haveria modificação
no artigo 58, que trata das hipóteses nas quais a definitividade do prenome pode ser
sopesada.
A modificação do Código Penal pretendia conferir a possibilidade de
realização da cirurgia sem que esta fosse entendida como lesão corporal. É de se
dizer, então, que, mesmo que da leitura do dispositivo ainda se possa aduzir a
existência de lesão, é verdade que a convicção social aponta em sentido diferente,
tendo havido superação social45 da regra. A nova redação, nada obstante, seria
importante por espancar quaisquer discussões sobre o tema.
A redação atribuída ao artigo 58 da Lei de Registros Públicos, para que
passasse a tratar da possibilidade de alteração do prenome quando tenha havido
intervenção cirúrgica motivada por transgenitalismo, teria um duplo efeito. Um de
caráter solidário (visto no parágrafo segundo) e outro com aspecto segregador, cuja
apreensão é feita do que prescrito no parágrafo terceiro.
A porção solidária, pensamos, é percebida quando se determina ao campo
de força em que se inscreve o direito a consideração da possibilidade de mudança
de nome e de sexo quando tenha havido a intervenção cirúrgica. A nuança
sectarista, contudo, é vista na determinação de alusão à transexualidade nos
documentos da pessoa.
O parágrafo terceiro, em que percebemos um viés de exclusão, trazia em si
mácula de inconstitucionalidade. Assim, justamente por ir de encontro do Direito à
intimidade ao expor de forma flagrante o transexual, entendeu parte da doutrina, e
§ 2º Será admitida a mudança do prenome mediante autorização judicial, nos casos em que o
requerente tenha se submetido a intervenção cirúrgica destinada a alterar o sexo originário.
§ 3º No caso do parágrafo anterior deverá ser averbado ao registro de nascimento e no respectivo
documento de identidade ser pessoa transexual.”
44 Art. 129 (...)
Exclusão do crime
§ 9º Não constitui crime a intervenção cirúrgica realizada para fins de ablação de órgãos e partes do
corpo humano quando, destinada a alterar o sexo de paciente maior e capaz, tenha ela sido efetuada
a pedido deste e precedida de todos os exames necessários e de parecer unânime de junta médica.”
45 Formulada por Welzel, de acordo com Odone Sanguiné, a Teoria da Adequação Social surge
como princípio geral de interpretação dos tipos penais. Um princípio útil em sistemas jurídicos
carentes de atualização legislativa, como o brasileiro. É útil em sistemas onde a realidade social está
em compasso adiantado em relação à positivação jurídica. SANGUINÉ, Odone. Observações sobre o
Princípio da Insignificância. Fascículos de Ciências Penais. Sergio Antonio Fabris. Porto Alegre, v.
3, n. 1, p. 36-50, jan./mar. 1990.
aqui destacamos o professor Elimar Szaniawski46, que se tratava de obrigação
constrangedora e discriminatória, constituindo um grave atentado ao Direito à
identidade sexual e a Dignidade de todo o Ser Humano. Não resolvia o problema.
Apenas agravava a vivência da intimidade de identidade entre os transexuais.
Em razão do disposto no parágrafo em comento, manifestou-se a Comissão
de Constituição e Justiça e de Redação de forma contrária ao seu conteúdo,
entendendo que este violaria o teor do artigo 5º, X da Constituição da República
Federativa do Brasil. Propôs, com isso, redação substitutiva no seguinte sentido: “no
caso do parágrafo anterior, deverá ser averbado no assento de nascimento o novo
prenome, bem como o sexo, lavrando-se novo registro”.
A partir da proposição da comissão, o registro passaria a conter o novo
nome e sexo do transexual operado. A fim de evitar entendimentos que
perpetrassem o preconceito, entendeu por bem apresentar emenda aditiva com a
qual se acresceria um parágrafo quarto, cuja redação é a que segue: “é vedada a
expedição de certidão, salvo a pedido do interessado ou mediante determinação
judicial”.
Embora os comentários tenham sido aduzidos acerca do Projeto n. 70-B, é
certo que este não foi tornado lei. Nada obstante, é de se ter que o novo projeto
(6.655-B de 2006) pouco avançou na discussão. Conquanto aprovado pela
Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania em 13 de setembro de 2007,
aponta para a necessidade de alusão à condição de transexual no Registro Civil.
Não mais em todos os documentos, como queria o anterior, mas a aposição no
Registro de Nascimento foi mantida.
A menção à condição de transexual, determinada pelo direito, aponta em
uma só direção. Em última análise é o direito quem diz o que é direito. Sabe-se que
a lógica do Estado deve ser a proteção da pessoa. Sabe-se que esta averbação, se
ilimitada, poderá contrariar prerrogativas que estão no núcleo dos Direitos da
Personalidade. Ainda assim, como é o direito quem diz o que lhe interessa, este tem
a possibilidade de determinar tal averbação. Uma necessidade que para nós diz,
sobretudo, com o exercício do Poder de Império.
É evidente que aos ouvidos de qualquer pessoa os prenomes Roberto, Adão
e Carlos evocam alguém com atributos masculinos. Do mesmo modo são femininos
46 SZANIAWSKI, Elimar. Limites e possibilidades do direito de redesignação do estado sexual.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 190-191.
os prenomes Roberta, Eva e Carla. A não-correspondência desta expectativa é, por
assim dizer, no mínimo chocante, e, por isto mesmo, capaz de provocar risos e
chacotas.
Não-obstante, partindo-se da lógica de que é o direito quem diz direito, pode
um juiz entender de forma diferente. Ainda que não deva, “pode” o direito impor a
alguém sexo jurídico de um gênero quando faticamente tenha assumido de outro.
Na prática uma punição que nada contribui para a preservação da ordem social.
Esta possibilidade existe porque a lógica imperante no Brasil é a do Direito
Positivo. Desta forma, como o tema não recebe tratamento legal, os juízes se
arvoram da condição de dizer o direito e, até mesmo, ignorar demandas como a dos
transexuais.
Ao abordar a questão da transexualidade a professora Maria Helena Diniz,
se pergunta: “feita a cirurgia de redesignação sexual ou de mudança de sexo num
transexual, o direito, a sociedade e o Poder Judiciário poderiam proibir que leve vida
feliz e normal?”47 Prossegue na indagação questionando se se poderiam “negar
efeitos jurídicos oriundos de sua nova condição sexual?”
48
Indaga ainda se “não
deveriam admitir direitos ao transexual operado? Não deveria a lei, evitando
discriminação, facilitar seu direito à identidade sexual?”49
As indagações da professora Maria Helena são absolutamente pertinentes,
pois Direitos da Personalidade implicam em direito à conservação, invulnerabilidade,
dignidade, reconhecimento da liberdade, assim como dever jurídico de abstenção
para todos os membros da coletividade.
Apoiando o entendimento esposado, traz-se para o debate o entendimento
da professora Elizabete Lanzoni Alves, onde se lê que não há,
“dentro da ética e da moral o desatendimento à súplica de um Ser
Humano que busca conviver em sociedade dignamente sem se
expor a situações constrangedoras e humilhantes quando solicitado,
por exemplo, os documentos de identificação.”50
47 DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 235.
48 Ibidem.
49 Ibidem.
50 ALVES, Elizabete Lanzoni. Transexualismo e as novas diretrizes jurídicas. São Paulo: Casa da
Cultura Jurídica. Disponível em: <www.casadaculturajuridica.com.br/artigos/my_aj06.htm> Acesso
em: 09 mar. 2006.
No mesmo sentido, sustenta Amorim que, “comprovadas judicialmente as
condições da pessoa, embora não haja legislação a respeito, somente a
jurisprudência o admite, deve o pleito ser acolhido, autorizando-se a modificação do
sexo e prenome no registro civil.” 51
Vê-se que o Brasil não dispõe de tratamento legislativo para a questão do
transexualismo. Por outro lado há países que já encontram em estágio bem mais
avançado no que se refere ao assunto. Temos, sim, considerações no plano médico
e projetos no plano jurídico, mas não leis. Por isto é comum vermos decisões de
matizes variados, inclusive em um mesmo tribunal52.
Enquanto não cuidamos do assunto, há países onde a temática se encontra
estruturada, caso da Alemanha, consoante relato de Antonio Chaves em artigo publicado na
Revista Forense 276/13:
“A lei alemã de 15.8.1969 sobre a castração voluntária e outros
métodos terapêuticos, dispõe, no parágrafo segundo, que a mesma
não é suscetível de ser reprimida penalmente, se este tratamento a
juízo da ciência médica for indicado para prevenir, sarar ou aliviar a
pessoa de doenças, perturbações ou sofrimento psíquicos graves
ligados à sexualidade anormal. O interessado deve ter 25 anos e
manifestar um consentimento livre e esclarecido sobre o ato
terapêutico oferecido, após informação sobre a natureza e gravidade
dos ricos inerentes à operação”.
A Suécia possui legislação regulando a retificação do registro do transexual
desde 21 de abril de 1972. O fez sob a condição de que tal retificação se
adstringisse a pacientes com mais de dezoito anos, desde que solteiros e estéreis.
Na Itália, a partir da influência da jurisprudência, foi criada a Lei n. 164, de 14 de
abril de 1982.
Carlos Fernández Sessarego, comentando a legislação peruana, acrescenta:
“El derecho a la identidad personal es uno de los derechos
fundamentales de la persona humana. Esta específica situación
jurídica subjetiva faculta ao sujeto a ser socialmente reconocido tal
como ‘él es’ y, correlativamente, a imputar a los demás el deber de
no alterar la proyección comunitaria de sua personalidad. La
51 AMORIM, José Roberto. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 63.
52 Interessante notar as decisões antagônicas havidas no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entre
os anos de 2005 e 2007. Sucintamente podemos colacionar decisões rechaçando completamente a
possibilidade, caso das Apelações Cíveis 2007.001.14071 e 2007.001.24198, relatadas,
respectivamente, pelos desembargadores Gilberto Dutra Moreira e Mônica Costa Di Piero. Em
sentido diametralmente oposto são as apelações 2006.001.61108, 2005.001.17926 e
2005.001.01910, cujos relatórios couberam aos desembargadores Vera Maria Soares Van
Hombeeck, Nascimento Povoas Vaz e Luís Felipe Salomão, respectivamente.
identidad personal es la ‘maneira de ser’ como la persona se realiza
en sociedad, con sus características y aspiraciones, con su bagaje
cultural e ideológico. Es el derecho que tiene todo sujeito a ‘ser él
mismo’”53.
O mesmo Sessarego, discorrendo sobre a problemática da transexualidade nos
Estados Unidos, no Canadá e na África do Sul, pontifica que:
“Estados Unidos es el país donde probablemente por vez primera se
legisla en materia de cambio de sexo. En este sentido se recuerda
que en Illinois, desde fines de 1961, se permite al registrador
transcribir la rectificación de sexo producida luego que el sujeto se
somete a una intervención quirúrgica. Esta inscripción se efectúa
sobre la base de la correspondiente certificación del hecho formulada
por el proprio médico que ha efectuado la operación. Se trata, en
secuenzia, de un simple trámite de carácter administrativo el que
facilita dicha inscripción. Similar reforma legislativa opera em Arizona
desde 1967.
[...]
En otros Estados, tales como Louisiana Y California, existem también
leyes permisivas del cambio de sexo, aunque a diferencia de los
casos anteriormente citados, este hecho supone un previo trámite
judicial en base a una intervención quirúrgica. En el primer caso la
ley data de 1968 y, en el segundo, se remonta al año de 1977. En el
Estado de New York la rectificación de sexo no requiere de una ley
sino que se practica en base a una específica reglamentación de
1971.
[...]
En diversas provincias canadienses, generalmente sobre la base de
una previa legislación se permite, a partir de 1973 y en mérito a un
procedimiento administrativo, el cambio de sexo y la consiguiente
rectificación del prenombre teniendo a la vista dos certificados
médicos. En Sud Africa es suficiente una resolutión del Ministro del
Interior que autoriza la rectificación registral del sexo de haberse
producido una intervención quirúrgica de adecuación morfológica”54.
Ainda
que
no
Brasil
subsistam
lacunas
normativas
no
trato
da
transexualidade, resta evidenciado que a prática da cirurgia é recorrente.
Infelizmente, todavia, o reconhecimento jurídico desta prática não ocorre de forma
pacífica. Por isto é comum se seguir ao tratamento (feito de acordo com normas
internacionalmente reconhecidas, entre as quais se incluem pelo menos dois anos
de acompanhamento terapêutico por equipe multidisciplinar) uma dor maior que a
ablação física, já que, além da dolorosa recuperação do corpo são recorrentes os
preconceitos, notadamente a negação do Poder Judiciário da nova realidade.
53 SESSAREGO, Carlos Fernández. El Cambio de Sexo Y Su Incidencia En las Relaciones
Familiares. Revista de Direito Civil. n. 56, s.d., p. 07.
54 Idem., p. 35-36.
O PROCEDIMENTO MÉDICO DA TRANSGENITALIZAÇÃO
Como se relatou no item 3.3, onde se fez um breve apanhado histórico sobre
a transexualidade, Harold Gillies, já em 1917, realizou a primeira cirurgia de
transgenitalização. Neste ano realizou a primeira vaginoplastia de que se tem
notícia, permitindo, com isto, a que um transexual originariamente portador da
genitália externa masculina tivesse configuração feminina.
A primazia de Gillies na transgenitalização “masculino-para-feminino” se
repetiu em 1919, ocasião em que realizou a primeira faloplastia55 noticiada. O
procedimento teria sido aplicado a Laura Dillon, que, a partir de então, pode ter a
conformação física aspirada. Uma conformação que lhe permitiu assumir o prenome
de Michael.
Na realidade brasileira, para que seja diagnosticado a transexualidade (e via
de conseqüência possibilitada a cirurgia de transgenitalização), a equipe
multidisciplinar deve verificar determinados pressupostos, enumerados aos longo
dos incisos que explicitam o teor do artigo 3º da Resolução 1.652 do Conselho
Federal de Medicina:
“I) desconforto com o sexo anatômico natural;
II) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características
primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
III) permanência desses distúrbios contínua e consistente por, no
mínimo, dois anos;
IV) ausência de outros transtornos mentais.”
Do que se assenta nos incisos colacionados se estabelece que não basta
apenas a vontade do paciente para que seja autorizado o ato cirúrgico. O desejo de
se tornar alguém diferente da inscrição cromossômica deve ser tal que, se negado,
pode levar a estados de depressão e propensão para a automutilação.
A cirurgia, deve se destacar, somente poderá ser realizada em hospitais,
públicos ou privados, que tenham atividades voltadas para pesquisa. Esta imposição
nos parece positiva, já que limita a possibilidade de utilização do procedimento por
clínicas de apelo meramente estético ou hospitais sem o devido aparato técnicocientífico.
55 Procedimento cirúrgico de transgenitalização “feminino-para-masculino”.
Uma vez observados os requisitos para a realização da cirurgia,
regulamentada pelo Conselho Federal de Medicina, passa-se à operação
propriamente dita. Neste ponto nos parece producente se trazer para o corpo do
texto as lições do professor José Francisco Oliosi da Silveira56, nas quais se detalha
o procedimento cirúrgico por que passa a pessoa transexual no afã de “assumir a
identidade”57 que quer para si.
Para a realização da vaginoplastia segue-se o seguinte procedimento:
“A mudança cirúrgica masculino para feminino é facilmente feita e
pode, na maioria dos casos, ser feita em somente um tempo
cirúrgico.
O primeiro estágio compreende a amputação do pênis, deixando a
glande com seu feixe vásculo-nervoso. A glande necessariamente
será preservada e colocada, anatomicamente, no local do clitóris.
Dessa maneira, a sensibilidade não sofre alteração alguma,
ensejando um resgate do orgasmo mais facilmente.
A uretra é amputada, entretanto, deixando-se um segmento mais
longo, de tal sorte que a mucosa fique redundante. Se ocorrer
necrose ou infecção em pós-operatório imediato, sempre teremos
tecido disponível para novo procedimento. Na eventualidade da
uretra profusa, a mesma poderá, em um segundo tempo, ser
novamente encurtada.
Uma incisão mediana e longitudinal é efetuada no escroto para a
retirada dos testículos e funículo espermático. Todo o escroto,
excetuando-se a camada vaginal, será usado para a construção da
vagina.
No períneo, entre o ânus e a raiz do escroto, efetua-se uma incisão
em cruz ou em "v", abortando-se o espaço imediatamente cranial ao
reto e prosseguindo até a próstata. Este espaço virtual é dissecado,
e através de dilatadores de Hegar, é criado um pertuito que será a
nova vagina. A ablação pilosa escrotal é efetuada com eletrocautério.
Nestas condições, o escroto é invertido e sepultado neste novo
espaço, com sutura tão cranial quanto possível.
Um molde metálico ou siliconado é revestido com gaze e introduzido
no orifício,de tal sorte a manter hemostasia e prevenir eventual
colamento da cavidade. No pós-operatório, o paciente,
sistematicamente, dilatará a neovagina com artefato siliconado, até
sua estabilização.”58
É de se notar no procedimento narrado a intenção de preservação da zona
erógena ao máximo possível, daí a preocupação com a mantença das terminações
nervosas. Uma preservação que ocorre por se ter assente que o corpo é fonte de
prazer e que o procedimento deve se voltar, na medida do possível, para esta
56 SILVEIRA, José Francisco Oliosi da. O transexualismo na justiça. Porto Alegre: Síntese, 1995,
passim.
57 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil: Parte Geral. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 70.
58 SILVEIRA, José Francisco Oliosi da. Op. cit., 138.
possibilidade. Desta forma, conquanto seja comum se dizer que a vagina
cirurgicamente construída seja mero arremedo, as técnicas cirúrgicas têm sido
desenvolvidas com a aspiração de concederem aos pacientes mais que uma mera
imitação.
Visto o procedimento da vaginoplastia, passa-se para a análise da
faloplastia, com o qual se busca dar ao transexual que se identifica como sendo
homem uma conformação física próxima do corpo masculino. Um procedimento que,
segundo a mesma fonte doutrinária, dar-se-ia da seguinte forma:
“O paciente é levado a uma cirurgia de laparotomia, com anestesia
geral e bloqueio pelidural, para a retirada do ovário, útero e anexos.
Após a sua total recuperação, em um período de tempo não menor a
30 dias, o paciente é submetido ao segundo tempo cirúrgico.
Consiste na retirada da vagina, usando-se a parede anterior para a
reconstrução da uretra. A mucosa vaginal tubularizada se adapta
excepcionalmente bem, como uretra. A parede posterior da vagina é
exteriorizada para fazer parte do escroto. Na hipótese de uma
exagerada atrofia da mucosa vaginal o escroto é reconstituído com
retalho do músculo Gracilis, tirado da face medial da coxa. O pênis é
construído com enxerto de CHANG. O tecido é retirado do antebraço,
juntamente com uma artéria radial, duplamente tubularizada,
respectivamente para a uretra distal e para acolher futuramente a
prótese peniana. Este procedimento, especificamente, requer técnica
microcirúrgica. Para a construção do falo também pode ser usado
retalho do abdome. Esta técnica não requer microcirurgia, entretanto
o aspecto cosmético perde em qualidade para o enxerto de CHANG.
O uso do retalho do músculo Gracilis, rotado da face interna da coxa,
é reservado para a situação onde o paciente não dispõe de tecido
adequado do abdome ou não deseja ficar com cicatriz ampla no
antebraço.
O terceiro tempo cirúrgico somente é levado a efeito quando há uma
cicatrização perfeita nos tempos anteriores. Demanda aproximada de
três meses. Então, através de uma pequena incisão na base do
neopênis, é introduzido um tubo siliconado, cujo eixo é composto de
uma liga de prata maleável. Esta estrutura denominada prótese é
fixada no osso do púbis, através de um procedimento estético
denominado Dracon. A fixação estabiliza o artefato evitando a
extrução futura. A prótese peniana possui rigidez suficiente para o
coito e pode, confortavelmente, ser dobrada para baixo, quando não
há interesse em atividade sexual.
No mesmo tempo cirúrgico, são introduzidos um novo escroto, duas
estruturas ovóides, com 20 centímetros cúbicos, com silicone gel no
seu interior, simulando testículos.
O paciente, nestas condições, está autorizado à atividade sexual,
somente 90 dias após o implante das próteses peniana e testicular.
Após aproximadamente um ano, a sensibilidade se estabelece em
pelo menos 2/3 do falo.” 59
59 Ibidem.
Os procedimentos cirúrgicos trazidos à colação, conquanto partam de uma
perspectiva médica, são importantes. Assim, ainda que o Projeto de Lei n. 6.655-B
de 2006 não condicione a mudança de nome e de sexo à feitura da cirurgia, é de se
ter que o procedimento não perde sua importância, haja vista a apreensão de muitos
julgadores a aspectos citogenéticos, ainda recorrente em muitos julgados60.
ASPECTOS JURISPRUDENCIAS SOBRE O TEMA
Nada obstante o silêncio legislativo brasileiro sobre o assunto, nosso
Judiciário vem se manifestado sobre o tema. É certo que há lacunas, mas, como é
sabido, estas não são argumentos que legitimam eventual omissão do julgador, que
tem a seu dispor mecanismos de integração.
Nosso Judiciário, no mais rumoroso caso de que se tem notícia, aduziu, “na
primeira demanda proposta”61, entendimento contrário à mudança de nome e de
sexo de Luís Roberto Gambine Moreira, que aspirava a se chamar Roberta Gambine
Moreira. Na primeira instância a juíza Conceição Aparecida Mousnier (à época titular
da 8ª Vara de Família da Comarca da Capital e hoje desembargadora no Tribunal de
Justiça) esposou entendimento no sentido da mudança pretendida. Em Apelação
Cível, contudo, a 8ª Câmara Cível pugnou62, em julgamento ocorrido em 10 de maio
de 1994, pela manutenção do nome e do sexo constantes do registro de
nascimento.
O caso “Roberta Close”, como ficou conhecido, tornou-se público ao ser
objeto de diversas matérias. A cirurgia de transgenitalização ocorreu na Inglaterra
60 Ação de retificação de registro. Transexual. Pretensão de exclusão de tal termo do assentamento.
Procedência parcial do pedido. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n.
2007.001.14071. Décima Câmara Cível. Relator: Desembargador Gilberto Dutra Moreira. Rio de
Janeiro, 05 set. 2007. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro 2007.
Registro civil de nascimento. Transexualismo. Mudança do sexo. Pretensão rejeitada. Segurança
jurídica. Código Civil de 2002. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n.
2007.001.24198. Décima Sexta Câmara Cível. Relatora: Desembargadora Mônica Costa Di Piero. Rio
de Janeiro, 07 ago. 2007. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro 2007.
61 Em 2001 uma nova ação foi proposta, tendo sido distribuída para a 9ª Vara de Família do Rio de
Janeiro. Esta nova propositura foi possível por se tratar de procedimento de jurisdição voluntária, pelo
que não se há de falar em Coisa Julgada Material.
62 Registro Civil. Assento de nascimento. Retificação. Mudança de sexo em decorrência de cirurgia
de ablação da genitália masculina. Pedido improcedente. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça.
Apelação Cível n. 1993.001.04425. Oitava Câmara Cível. Relator: Desembargador Luiz Carlos
Guimarães. Rio de Janeiro, 10 mai. 1994. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro
2007.
em 1989. Após o procedimento cirúrgico foi proposta a demanda visando à mudança
de nome e de sexo, conforme se comentou no parágrafo anterior.
Não-obstante a decisão desfavorável à parte autora na jurisdição
fluminense, o pedido foi repisado no mesmo órgão jurisdicional em 2001, conforme
relata Tereza Rodrigues Vieira em seu Direito a adequação do nome e sexo de
“Roberta Close”63. Uma possibilidade que se abriu por se tratar de um processo de
jurisdição voluntária, onde não se fala de Coisa Julgada Material64.
O processo de 2001 foi julgado em 04 de março de 2005 pela juíza da 9ª
Vara de Família da Comarca do Rio de Janeiro, Leise Rodrigues Espírito Santo,
podendo se destacar sobre a Coisa Julgada que:
“não-obstante a coisa julgada versar sobre questão de ordem pública
já superada, se faz mister registrar que o pedido formulado é
referente ao estado de pessoa, e que a ação manejada admite
revisão quando presentes os requisitos legais autorizadores da
modificação jurídica pretendida, por se encontrar inserida no
âmbito da jurisdição voluntária. (...) Não há como afirmar que a
coisa julgada foi atingida, primeiramente, como já foi dito, ela
sequer foi formada, ademais, a evolução da medicina e precisão dos
técnicos da perícia, deixam claro que a presente ação tem novo
fundamento” 65.
A sentença em comento nos parece muito feliz porque assevera que o
direito deve sempre buscar a verdade. Não apenas a verdade biológica (como
querem alguns), mas sim a verdade que está inscrita na intimidade das pessoas,
notadamente suas racionalidade e autonomia. Uma verdade que não deve ser
buscado apenas no corpo do direito e sua pretensão de completude. Esta busca
deve contemplar, sem qualquer dúvida, a interseção do direito com outras
disciplinas. Este é um meio de a matéria se fazer autopoiética, no exato sentir do
que propugnou a magistrada em exame:
63 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Direito a adequação do nome e sexo de “Roberta Close”. São
Paulo:
Centro
de
Estudos
em
Bioética
e
Direito.
Disponível
em:
<www.cebd.com.br/si/site/bdados?codigo=7&ver=9> Acesso: 02 janeiro 2008.
64 A desmistificação da Coisa Julgada perpassa a superação da premissa sobre a qual por muito
tempo se fundou essencialmente o direito: segurança. Não que a segurança tenha deixado de
importar ao direito, mas hoje esta assume o papel de realizadora de justiça. Deve se preservar, sim,
as decisões que sejam realizadoras dos valores constitucionais.
A discussão envolvendo jurisdição voluntária, evidentemente, não precisa do abrandamento
que a reflexão sobre a flexibilização da Coisa Julgada propicia. Ainda assim nos parece de bom tom
fazer alusão à possibilidade por consideramos que mesmo a Coisa Julgada Material deve ter por
fundamento as pessoas. Desta forma, diante de ações que envolvam o estado de pessoas, devemos
ter por assente o princípio da imprescritibilidade, que é próprio dos Direitos da Personalidade.
65 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Op. cit., passim.
"em face da unanimidade dos pareceres e laudos médicos, resta
inequívoco que a parte requerente não possui tão somente perfil
psicológico feminino, mas também possui caracteres biológicos
próprios de uma mulher, sendo, portanto, indiscutível seu direito de
pleitear a alteração de nome civil e sexo.”66 (destacou-se)
A sentença sob exame é importante porque considera os efeitos que dela
própria pode advir. Por isto é precisa ao afirmar que a adequação do prenome e do
sexo não prejudicará terceiros, justamente porque, à margem do registro, deverá
constar que a modificação se deu por determinação judicial. Verbis:
"julgo procedente o pedido, pelo que determino, a expedição de
mandado de averbação da retificação do nome e do sexo no registro
de nascimento de Luis Roberto Gambine Moreira, que deverá figurar
agora em diante como sendo ROBERTA GAMBINE MOREIRA, do
sexo feminino, mantendo-se os demais dados, constantes quanto à
naturalidade data de nascimento e filiação. Determino ao fim de
resguardar possíveis interesses de terceiros que conste à
margem do registro a anotação quanto ao fato de a alteração de
nome e de Estado, deu-se por força de sentença"67. (destacou-se)
A decisão em comento seguiu o parecer do promotor Marcelo Carvalho
Mota, que opinara pela procedência do pedido:
“os pareceres e laudos médicos constantes dos autos são
conclusivos no sentido de que a requerente não possui apenas perfil
psicológico feminino, como também caracteres biológicos próprios de
uma mulher.(...) Ademais, se faz necessário também, eliminar as
situações de constrangimento, com intensa dor moral, por que
passa a requerente, ao ter que exibir no meio social identidade
que não é a sua realidade, mas decorrente de assento de cartório
desconforme a sua realidade - hoje diagnosticada como verdadeira
pela perícia recente”68. (destacou-se)
A decisão de Leise Rodrigues Espírito Santo é importante porque se pauta,
sempre, por princípios que estão na base constitutiva da República Brasileira,
merecendo destaque a Dignidade da Pessoa Humana. Nesta linha discorre sobre as
dimensões positiva e negativa do princípio, assentando que de nada adianta ter
direitos se não se pode exercê-los efetivamente. No mesmo seguimento aponta que
“o Estado-Juiz deve entender que o homem é o objetivo da existência do direito,
66 Ibidem..
67 Ibidem..
68 Ibidem..
assim como da ciência médica”69, não fazendo qualquer sentido a negação da
realidade psicofísica.
Ainda em relação à decisão em comento, destaca-se a referência ao artigo
2º da Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, que foi
aprovada em 11 de novembro de 1997:
“todos têm o direito ao respeito por sua dignidade e seus direitos
humanos, independentemente de suas características genéticas.
Essa dignidade faz com que seja imperativo não reduzir os
indivíduos a suas características genéticas e respeitar sua
singularidade e diversidade”. (destacou-se)
A citada Declaração é fundamental, pois vai na direção exata do que se quer
com a presente dissertação. Dizer que o homem é realidade biológica, mas que não
se reduz a isto. Dizer que a marca do Ser Humano é sua racionalidade, a partir da
qual se sedimentam a Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da
Personalidade.
O caso “Roberta Close”, em razão da notória exposição na mídia, tornou-se
emblemático. É de se dizer, contudo, que há muitas demandas reclamando os
mesmo direitos. Algumas alcançando êxito. Outra nem tanto.
Roberta Close, como se assentou anteriormente, só conseguiu proceder à
efetiva mudança de nome e de sexo no plano jurídico em 2005. Antes disto,
contudo, o próprio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já tinha se manifestado em
sentido favorável, precisamente na Apelação Cível n. 2001.001.16591, cujo relato
coube ao desembargador Ronald Valladares.
A apelação em comento foi julgada pela 16ª Câmara Cível em 25 de março
de 2003. Nesta foi acolhida a pretensão de mudança de nome e de sexo,
determinando que no registro civil constasse sexo feminino e, à margem deste, a
averbação70 de que mudança ocorrera por ordem judicial. Trouxe, ainda, outros
apontamentos importantes, sobretudo que não deveriam ser feitas referências à
condição de transexual nos documentos de identificação, vez que qualquer alusão
importaria em supressão do direito à intimidade.
69 Ibidem..
70 Esta averbação só seria publicizada para terceiros em caso de habilitação de casamento. Fora
esta hipótese, apenas o registrado poderia solicitar certidões, possibilidade também concretizável nos
casos de determinação judicial.
O voto vencedor de Ronald Valladares, pelo caráter paradigmático na justiça
fluminense, deve ser colacionado. Diz-se isto porque traz consigo inconteste
referência a valores afeitos à Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos da
Personalidade. Apontou, inclusive, que a modificação serviria para o encontro da
efetiva identificação civil, pressuposto para a harmonia pessoal e para o pleno
desenvolvimento da capacidade cognitivo-comportamental:
“passando, a pessoa portadora de transexualismo, por cirurgia de
mudança de sexo, que importa na transmutação de suas
características sexuais, há de ficar acolhida a pretensão de
retificação do registro civil, para adequá-lo à realidade existente. A
constituição morfológica do indivíduo e toda a sua aparência sendo
de mulher, alterado que foi, cirurgicamente, o seu sexo, razoável que
se retifique o dado de seu assento, para 'feminino', no registro civil o
sexo da pessoa, já com o seu prenome mandado alterar para a
forma feminina, no caso concreto considerado, que é irreversível,
deve ficar adequado, no apontamento respectivo, evitando-se, para
o interessado, constrangimentos individuais e perplexidade no
meio social. As retificações no registro civil são processadas e
julgadas perante o Juiz de Direito da Circunscrição competente, que
goze da garantia da vitaliciedade, e mediante processo judicial
regular. A decisão monocrática recorrida não contém nulidade
insanável. Preliminares rejeitadas. Recurso, quanto ao mérito,
provido, para ficar modificado, parcialmente, o julgado de 1º grau”.71
(destacou-se)
Em sentido semelhante ao decidido pela 16ª Câmara Civil do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro em 2003, decidiu a 5ª Quinta Câmara da Seção de Direito
Privado de São Paulo em 2005 na Apelação Cível 165.157.4/5-0072, cujo relato
coube ao desembargador Boris Kauffmann.
No processo em exame o autor visava à alteração do assento de nascimento
em relação a nome e sexo. Apresentava como fundamento ser transexual que se
submetera à cirurgia de adequação do sexo físico ao psicológico, a partir do que
entendia ser a utilização do prenome masculino constrangedora. Consignou que,
71 Registro Civil. Retificação do registro de nascimento em relação ao sexo. Pedido Procedente. RIO
DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 2001.001.16591. Décima Sexta Câmara Cível.
Relator: Desembargador Ronald Valladares. Rio de Janeiro, 25 mar. 2003. Disponível em:
<www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro 2007.
72 Registro Civil. Nome. Modificação de prenome masculino para feminino. Pretensão manifestada
por transexual que se submeteu a cirurgia de mudança de sexo. Circunstância que expõe o
requerente ao ridículo. Interpretação do art. 55, parágrafo único, c/c o art. 109 da Lei 6.515/73.
Admissibilidade, ainda que não se admita a existência de erro no registro. SÃO PAULO. Tribunal de
Justiça. Apelação Cível n. 2000.165.157-4/5. Quinta Câmara de Direito Privado. Relator:
Desembargador Boris Kauffman. São Paulo, 22 mar. 2000. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso:
15 outubro 2007.
sendo de fato uma mulher, não via razões para a mantença da situação registral.
Ademais apresentou argumentos sobre a falibilidade do princípio da definitividade do
prenome.
Instada a se manifestar, a Procuradoria-Geral de Justiça, em parecer da
procuradora Leila Mara Ramacciotti Vasconcellos, consignou entendimento no
sentido de se prover o recurso na íntegra, alterando o nome e o sexo no assento de
nascimento do autor, no que foi acolhido na íntegra.
A
decisão
do
Tribunal
Paulista
demonstra
nova
possibilidade
de
entendimento sobre o tema naquele estado. Uma possibilidade completamente
divergente do que se decidiu no ano de 1991 na Apelação 148.07873, na qual se
assentou que apenas nas hipóteses de intersexualidade se poderia admitir a
alteração do que consta no registro civil, argumento de notória marca biológica74.
Tanto na corte paulista como na carioca parece ter havido um avanço rumo
ao reconhecimento da realidade transexual. Este reconhecimento, contudo, não se
faz linear, o que se diz a partir da análise da jurisprudência recente destes tribunais,
ainda claudicante.
As divergências jurisprudências são muitas. Assim, conquanto os votos dos
desembargadores Ronald Valladares e Boris Kauffmann sejam verdadeiros
paradigmas para os tribunais de Rio de Janeiro e São Paulo, estes ainda proferem
decisões completamente divergentes.
Exemplo da divergência recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
são as Apelações Cíveis ns. 2007.001.24198 e 2007.001.14071, votadas nos meses
de agosto e setembro de 2007 e cujo relato coube aos desembargadores Mônica
Costa Di Piero75 e Gilberto Dutra Moreira76.
73 Registro Civil. Assento de nascimento. Retificação para mudança de sexo e nome. Admissibilidade
apenas nos casos de intersexualidade. Despojamento cirúrgico do equipamento sexual e reprodutivo
e sexo psicologicamente diverso das conformações e características somáticas ostentadas que,
configurando transexualismo, não permitem a alteração jurídica (TJSP, Ap. 148.078 (segredo de
justiça), relator: Flávio Pinheiro, julgado em 06/08/1991. RT 672/108).
74 No julgado em exame se alude a intersexualismo, a que se costuma nominar hermafroditismo.
Intersexualismo, todavia, ocorre quando o mesmo corpo biológico possui características genéticas
femininas e masculinas, o que não ocorre com a transexualidade, e, sim, com as síndromes
genéticas, já discutidas.
75 Registro civil de nascimento. Transexualismo. Mudança do sexo. Pretensão rejeitada. Segurança
jurídica. Código Civil de 2002. Ação de retificação do registro de nascimento. Transexual. Adequação
do sexo psicológico ao sexo genital. Sentença de procedência. Apelação. Sentença que julgou
procedente o pedido, deferindo a alteração no registro civil, consistente na substituição do nome do
requerente, passando a figurar como pessoa do sexo feminino. Características físicas e emocionais
do sexo feminino. Artigo 13 do Código Civil. Defeso o ato de dispor do próprio corpo. Exceção quando
for por exigência médica. Ciência moderna trata o transexualismo como uma questão neurológica.
As decisões referidas foram trazidas em notas por não apresentarem
argumentos novos em relação ao que já se discutiu. Ressaltam, em verdade, o
discurso da “análise citogenética” e rechaçam a possibilidade de identificação sexual
a partir do viés psicológico. Aludem, inclusive, a uma suposta vedação do Código
Civil quanto a mudança, que, segundo os relatos, autorizariam o casamento entre
pessoas do mesmo sexo, fato proibido pelo artigo 1.604 do Codex.
É de se entender, pelas razões já esposadas ao longo do texto, que as
decisões em comento não contribuem em nada para o regime da Dignidade da
Pessoa Humana e dos Direitos da Personalidade, já que reduzem o Ser Humano à
sua existência biológica. Insistem no fato de que ter a aparência não implica em
mudança cromossômica, fato que é absolutamente verdadeiro, mas que, em
hipótese alguma, leva em consideração o lócus especial do Homem na escala dos
seres. Partem de uma análise citogénetica e findam a discussão nesta mesma
análise.
Análise citogenética. Prova definitiva para determinar o sexo. Diferença encontrada nos
cromossomos sexuais é a chave para a determinação do sexo. Cirurgia de mudança de sexo não é
modificadora do sexo. Mera mutilação do órgão genital, buscando a adaptação do sexo psicológico
com o sexo genital. Mudança de sexo implicaria em reconhecimento de direitos específicos das
mulheres. Segurança jurídica. Mudança do nome do apelado se afigura possível. Artigos 55 e 58 da
Lei 6.015/73. Nome pode ser alterado quando expõe a pessoa ao ridículo. Quanto a mudança de
sexo, a pretensão deve ser rejeitada. Modificação do status sexual encontra vedação no artigo 1.604
do Código Civil. Ensejaria violação ao preceito constitucional que veda casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Retificação do sexo no assento de nascimento tem como pressuposto lógico a
existência de erro. Inexistência de erro. Apesar da aparência feminina, ostenta cromossomos
masculinos. Dá-se provimento ao recurso. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n.
2007.001.24198. Décima Sexta Câmara Cível. Relatora: Desembargadora Mônica Costa Di Piero. Rio
de Janeiro, 07 ago. 2007. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro 2007. (destacouse)
76 Apelação Cível. Ação de retificação de registro. Transexual. Pretensão de exclusão de tal termo
do assentamento. Procedência parcial do pedido, com a alteração das expressões filho e nascido por
filha e nascida.Fatos e atos jurídicos levados a registro junto aos cartórios de registros públicos.
Sujeição ao princípio da veracidade, o que obriga a reflexão da verdade real das informações a que
dão publicidade, sob pena de nulidade. Gênero sexual que é definido sob o aspecto biológico cuja a
prova é feita por laudo de análise citogenética, que pode determinar precisamente o cromossomo
sexual presente no DNA do indivíduo. Operação de mudança de sexo não tem o condão de alterar a
formação genética do indivíduo, mas apenas adequar o seu sexo biológico-visual ao psicológico.
Pretensão incongruente de modificar a verdade de tal fato, fazendo inserir o nascimento de um
indivíduo de sexo masculino como se feminino fosse. Impossibilidade.Inexistência de critérios
objetivos que permitam delimitar o sexo sob o ponto de vista psicológico, o que poderia levar a várias
distorções. Potencial risco a direitos de terceiros quanto ao desconhecimento acerca da
realidade fática que envolve o transexual. Direito à intimidade e à honra invocados pela autoraapelante, que não são suficientes para afastar o princípio da veracidade do registro público e
preservar a intimidade e a honra de terceiros que com ela travem relações.Parecer do Ministério
Público, em ambos os graus, nesse sentido. Desprovimento do recurso. RIO DE JANEIRO. Tribunal
de Justiça. Apelação Cível n. 2007.001.14071. Décima Câmara Cível. Relator: Desembargador
Gilberto Dutra Moreira. Rio de Janeiro, 05 set. 2007. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22
novembro 2007. (destacou-se)
A análise citogénetica, conhecida do grande público por ocasião das
Olimpíadas de Atlanta, quando se questionou da condição de mulher da Judoca
Edinanci Fernandes da Silva, não considera o Homem no que o difere: racionalidade
e autonomia. Reduz a espécie humana a uma realidade biológica. Uma redução
que, de tão pequena, não consegue dar conta das síndromes genéticas,
especialmente Turner, já que neste caso não há o cromossomo que define
caracteres sexuais. Assim, a se entender a sexualidade humana a partir da análise
citogénetica, “o portador da Síndrome de Turner não é nada”.
Enquanto se entender a transexualidade como nas últimas decisões que se
colacionou, será possível se dizer que o Ser Humano não é nada mais que um
animal. Assentar que a “diferença encontrada nos cromossomos sexuais é a chave
para a determinação do sexo” é muito pouco se se considerar a multiplicidade do
humano. De igual modo soa tacanho se chamar a cirurgia de transgenitalização de
mera mutilação. Dizer isto no afã de se negar o reconhecimento de “direitos
específicos das mulheres” é dizer que homens e mulheres não são iguais perante a
lei. Implicaria dizer, parece-nos, que a Constituição da República Federativa do
Brasil vê o homem tão-somente em sua perspectiva biológica, fato que não nos
parece poder subsistir, tendo em vista o regime da Dignidade que deve ser o vetor
do ordenamento jurídico.
Assim como no Tribunal do Rio de Janeiro, há também no Tribunal de São
Paulo decisões que significam retrocesso em relação a decisões paradigmas da
corte. Neste caso merece destaque a Apelação n. 452.036-4/0077, proveniente da
77 Retificação de registro civil. Modificação de nome e sexo. Regra da imutabilidade dos dados do
assento de nascimento, que só podem ser modificados em razão de justificativa irrebatível. Sem risco
para a verdade que todo o registro deve espelhar e sem que se retire dos terceiros o direito de
conhecer a verdade. Sentença modificada. Recurso provido. “Sob tal ângulo, o procedimento
cirúrgico a que foi submetido, não implicou em opção por um dos sexos de cujas
características era portador, mas em adaptação física, construída artificialmente, do sexo
masculino para o sexo feminino, sem que houvesse efetiva alteração de sexo, uma vez que,
para todos os efeitos, ainda que, em tese. se admita tenha adquirido artificialmente a aparência da
genitáha feminina, a natureza de sua concepção não foi alterada.Nesse aspecto, a adequada
colocação feita pelo Procurador de Justiça oficiante "não se trata de esterilidade apenas. Trata-se e
uma situação anômala criada artificialmente e não consagrada pelo direito positivo, uma vez que
esterilidade pressupõe possibilidade de procriar. E o transexual operado não tinha, não tem e nem
terá essa possibilidade Ofende ao bom senso imaginar que algo ou alguém seja estéril sem que ele
próprio ou seu semelhante, para que se diga o menos, possa fazê-lo ainda que em tese. E nem em
tese o ora Apelado poderia, poderá ou pode procriar" (fIs 121) Ora, o registro civil espelha a
realidade da pessoa, que se projeta, por intermédio de seu nome, para as relações sociais, no
campo civil e no campo penal. Bem por isso, a preservação da identidade realiza-se ao longo de toda
a vida da pessoa, mantendo uma unidade nas relações que vão sendo estabelecidas ao longo do
tempo.” (destacou-se) SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 452.036-4/00, São José
comarca de São José do Rio Preto. Uma decisão que retrocede até mesmo em
relação ao que se decidiu no primeiro grau de jurisdição, significando, por isto
mesmo, uma negação de realidade.
Embora retrocessos possam ser percebidos pelo tecido da jurisprudência
brasileira, cabe ressaltar que há também muitas decisões que atendem ao chamado
do Ser Humano a partir da Dignidade da Pessoa Humana e dos Direitos da
Personalidade, como pensamos dever ser. Exemplos disto são as decisões nas
Apelações Cíveis ns. 2006.001.61108, 2005.001.17926 e 2005.001.01910, relatadas
pelos desembargadores Vera Maria Soares Van Hombeeck78, Nascimento Povoas
Vaz79 e Luís Felipe Salomão80. Decisões que, infelizmente, dividem espaço com
medidas que limitam o Ser Humano.
do Rio Preto. Nona Câmara de Direito Privado. Relator: Desembargador Grava Brasil. São Paulo, 07
nov. 2006. Disponível em: <www.tj.sp.gov.br> Acesso: 15 outubro 2007.
78 Transexual. Registro civil. Alteração. Possibilidade. Cirurgia de transgenitalização. Aplicação do
art. 4º da Lei de Introdução ao Código Civil diante da ausência de lei sobre a matéria. Sentença que
atende somente ao pedido de alteração do nome. Reforma parcial para também permitir a
alteração do sexo no registro de nascimento. Provimento do apelo. A jurisprudência tem
assinalado a possibilidade de alteração do nome e do sexo no registro de nascimento do transexual
que se submete a cirurgia para redesignação sexual, com fundamento no princípio da Dignidade da
Pessoa Humana. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 2006.001.61108. Primeira
Câmara Cível. Relatora: Desembargadora Vera Maria Soares Van Hombeeck. Rio de Janeiro, 06
mar. 2007. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro 2007. (destacou-se)
79 Transexualismo. Registro civil de nascimento. Retificação. Mudança de prenome. Mudança do
sexo. Pedido de retificação do prenome e do sexo constantes do assentamento de nascimento do
postulante na serventia de Registro Civil das Pessoas Naturais. Pessoa que, inobstante nascida como
do sexo masculino, desde a infância manifesta comportamento sócio-afetivo-psicológico próprio do
genótipo feminino, apresentando-se como tal, e assim aceito pelos seus familiares e integrantes de
seu círculo social, sendo, ademais, tecnicamente caracterizada como transexual, submetendo-se a
exitosa cirurgia de transmutação da sua identidade sexual originária, passando a ostentar as
caracterizadoras de pessoa do sexo feminino. Registrando que não é conhecido pelo seu prenome
constante do assentamento em apreço, mas pelo que pretende substitua aquele. Conveniência e
necessidade de se ajustar a situação defluente das anotações registrais com a realidade constatada,
de modo a reajustar a identidade física e social da pessoa com a que resulta de aludido
assentamento. Parcial provimento do recurso, para determinar que sejam promovidas as alterações
pretendidas no aludido assentamento. RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n.
2005.001.17926. Décima Oitava Câmara Cível. Relator: Desembargador Nascimento Povoas Vaz.
Rio de Janeiro, 22 nov. 2005. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22 novembro 2007.
80 Transexualismo. Registro civil de nascimento. Retificacao. Mudança de prenome. Mudanca do
sexo. Apelação. Registro Civil. Transexual que se submeteu a cirurgia de mudanca de sexo,
postulando retificacao de seu assentamento de nascimento (prenome e sexo). Adequacao do registro
`a aparencia do registrando que se impoe. Correcao que evitara' repeticao dos inumeros
constrangimentos suportados pelo recorrente, alem de contribuir para superar a perplexidade no meio
social causada pelo registro atual. Precedentes do TJ/RJ. Inexistencia de inseguranca juridica, pois o
apelante mantera' o mesmo numero do CPF. Recurso provido para determinar a alteracao do
prenome do autor, bem como a retificacao para o sexo feminino. RIO DE JANEIRO. Tribunal de
Justiça. Apelação Cível n. 2005.001.01910. Quarta Câmara Cível. Relator: Desembargador Luís
Felipe Salomão. Rio de Janeiro, 13 set. 2005. Disponível em: <www.tj.rj.gov.br> Acesso: 22
novembro 2007. (destacou-se)
REFLEXOS JURÍDICOS DA TRANSEXUALIDADE NO ORDENAMENTO
BRASILEIRO
Embora o tema transexualidade possa refletir em muitas direções, parecenos claro que é em matéria de Direito Civil que os reflexos são mais controvertidos.
Em matéria penal houve grandes discussões, vide o caso do doutor Farina na
década de 1970, mas hoje, em vista da superação social da norma que associava a
cirurgia de transgenitalização à lesão corporal, sobretudo após 1997 e a
regulamentação do procedimento pelo Conselho Federal de Medicina, subsistem
discussões acaloradas apenas81 no âmbito civil.
Como se disse, é no âmbito do Direito Civil (visto sob o enfoque
constitucional dos Direitos Fundamentais) que o tema apresenta traços mais
marcantes e as maiores complexidades, fato que decorre da preocupação desta
matéria com o que o homem tem de mais próprio: sua Personalidade – onde se
inscreve a identificação82 –, sua Dignidade e sua Relação com a Família.
A questão da Dignidade se mostra essencial, pois a partir desta o homem
não mais pode ser pensado sem a matriz que o caracteriza, particulariza e distingue
na escala animal: racionalidade e autonomia. Por isto mesmo, nenhuma leitura que
se faça do Ser Humano pode se dar fora desta referência.
No
que
concerne
aos Direitos da
Personalidade
os reflexos da
transgenitalização se projetam de modo muito especial na identificação, qual seja,
nome e sexo. Fica claro, então, que não se pode pensar em vaginoplastia ou
faloplastia sem a correspondente83 mudança de nome e de sexo, ou, como querem
alguns, “adequação de nome e de sexo”84.
81 É certo que há discussões sobre a transexualidade em outros campos dos saberes, inclusive uma
leitura muito própria do tema pela religião. Nada obstante, em razão do objetivo e limitação
metodológica do trabalho, será objeto de análise apenas os reflexos do tema no Direito Civil.
82 O Direito ao Nome, consoante disposição da Lei de Introdução ao Código Civil em seu artigo 7º, é
regulado pela lei do domicílio da pessoa: “a lei do país em que for domiciliada a pessoa determina as
regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”. Este
sistema é encampado pelo Código Civil no seu artigo 16 (que aduz a prenome e sobrenome) e pela
Lei de Registros Públicos.
83 É importante se destacar que no Projeto de Lei n. 6.655-B de 2006 não se faz menção à
necessidade de submissão à cirurgia de transgenitalização para a propositura da ação judicial
visando a mudança de nome e de sexo.
84 A não-partidarização metodológica tem por fundamento a consideração que a utilização do termo
mudança ou adequação ocorre a partir de matizes diferentes. Essencialistas se valem do termo
adequação, assentando que a realidade sempre foi a reclamada. No discurso antropológico, em outra
medida, deve ser utilizada a expressão mudança, há vista que esta só se dá a partir do exercício da
orientação sexual que reclama a alteração.
Nome e sexo são essenciais para se compreender a dinâmica dos reflexos
civis da cirurgia sob exame. Desta forma, a fim de se ter melhor entendimento sobre
o tema, faz-se necessário que nos atenhamos sobre o regime jurídico do nome e
sua aspiração de individualização.
O nome, surgido no afã de afirmar a individualidade, é aposto a partir do
gênero e da consideração genética deste. Trata-se, portanto, de aposição realizada
a partir da realidade da genitália externa85 do recém-nascido. Um modo de
identificação que durante muito tempo se mostrou suficiente, mas que perde seu
caráter absoluto de imutável86 ante a nova dinâmica social.
Entre as primeiras civilizações de que se tem notícia a identificação se dava
por um só nome, equivalente ao prenome nos dias atuais. Esta prática foi superada
com o adensamento populacional que impôs a adoção de nomes complementares,
permitindo uma identificação efetiva e minorando o problema da homonímia.
Os hebreus – conforme o Novo Testamento – foram responsáveis pela
agregação de nomes ao prenome, a princípio denotando a origem da pessoa. Disto
decorre, por exemplo, Jesus Nazareno, já que nascido na cidade de Nazaré. No
mesmo sentido os gregos acresceram ao prenome o nome do pai e o da gens. Um
acréscimo que visava, sempre, a permitir que o nome trouxesse em si os reflexos da
pessoa. Para que fosse o depositário da imagem pública, transportando as
impressões da coletividade sobre o seu portador.
Os romanos, associando ao prenome circunstâncias pessoais, procederam a
acréscimos. Publius Cornelius Scipio Africanus87, por exemplo, denotava o indivíduo
de prenome Publius, nascido na Cornelia, da família dos Scipio e notabilizado por
85 O avanço da antropologia permite-nos uma visão sobre o tema que supera a noção biológica.
Apresenta-nos como uma construção que se dá no intercâmbio do eu com o mundo. Uma noção que
se sedimenta a partir dos valores assimilados no processo de sedimentação cultural, e não
determinada cromossomicamente. Nada obstante, ainda hoje a lógica do Registro Civil conta com a
perspectiva da biologia para a questão do nome
86 De há muito apontava Serpa Lopes que o nome é uma obrigação frente à sociedade, quanto ao
seu uso necessário e à sua imutabilidade. SERPA LOPES, Miguel Maria de. Op. cit., passim.
87 Cf.: TABALIPA, João Guilherme. Aspectos Jurídicos dos Nomes Ridículos. Florianópolis:
Momento Atual, 2005, passim.
feitos em batalhas na África. Os sobrenomes88, como se percebe, era indicativos de
naturalidade, família e um “feito especial”89, caso houvesse.
Na quadra atual nome e sexo devem se voltar para a real identificação como
pressuposto de realização dos Direitos ligados à realização da Personalidade. Esta
correlação – que durante muito tempo se limitou ao aspecto biológico – deve se
associar a uma visão ampliativa, a partir da qual sexo deixa de ser a mera
manifestação cromossômica para ser a configuração antropológica da orientação
sexual.
Como não há mais dúvida de que o nome civil da pessoa natural é
integrante da personalidade, sendo elemento externo com o qual se individualiza e
se reconhece a pessoa na sociedade90, resta evidenciado que este não pode expor
seu titular a situações vexatórias, fato que parece ocorrer na transexualidade
quando o direito não reconhece a realidade e impõe ao transexual a mantença de
nome que nada tem a ver com o exercício de sua Dignidade. Neste caso nem se tem
como falar de reflexos da cirurgia de transgenitalização, já que a prerrogativa de
dizer o direito lhe é exclusiva. Por isto, quando o direito abstrai a realidade, nada
pode ser feito em outras esferas.
Vê-se que quando o direito ignora a demanda apenas ele próprio pode voltar
a considerá-la. Em matéria de transexualidade, então, por se tratar de tema tutelado
em sede de jurisdição voluntária, o próprio direito, às vezes no mesmo órgão
judicante, pode voltar ao assunto, como ocorreu no caso “Roberta Close”, antes
referenciado.
Em relação à mudança de nome as discussões têm caminhado em sentido
mais uníssono. Discussão mais acalorada ocorre em relação ao sexo, sobretudo
pelas preocupações dogmáticas acerca do casamento. Visto isto é de se dizer mais
uma vez: qual o conceito consagrado pela Constituição? Quando a Carta
88 Por ser indicativo de família, entendeu o Superior Tribunal de Justiça (REsp 66.643-SP, relatado
pelo ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira) em um caso de renegação do sobrenome paterno
motivado pelo abandono do genitor ser possível a troca. Este entendimento foi baseado na premissa
axiológica sobre o sobrenome: identificar laços familiares. Se os laços não existem, não faz sentido a
mantença de um patronímico que aluda a esta relação.
89 Além dos feitos notáveis, era comum entre os romanos o emprego de nomes que refletiam o
anseio dos pais: Verissimus, amante da verdade; Constantinus, quem é constante; Tranquillus,
tranqüilo, calmo ou sossegado.
90 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 183.
Republicana diz em seu artigo 226 que homem e mulher podem contrair matrimônio,
de que conceito está se valendo?
O questionamento é feito mais uma vez por se considerar que a adoção de
uma tese ou outra importará em conseqüências distintas, em especial para o ramo
especializado do Direito Civil que é o Direito de Família.
Partindo-se do postulado que o sexo legal (aferido na observância da
genitália do recém-nascido) é o que melhor se ajusta ao estágio vivenciado pelos
Direitos da Personalidade, é de se dizer – como, aliás, fazem muitos julgados – que
homem é o Ser Humano que tem na cromatina sexual o cromossomo y e mulher o
que possui o cromossomo x91. Por outro lado, a se fazer uma leitura antropológica
ou psicológica do assunto – reclamada na visão psicossocial, por exemplo – a
definição cromossômica se mostrará absolutamente limitada.
As maiores conseqüências no âmbito do Direito Civil em relação à
transexualidade se dão quando o julgado acolhe a pretensão de mudança de nome
e de sexo. Diz-se se isto porque a pretensão acolhida produz seus efeitos no mundo
real quando é levada à averbação no Registro Civil de Pessoas Naturais, momento a
partir do qual a pessoa (re)nasce para a sociedade. Um novo registro que lhe
permitirá retirar novos documentos e dar seguimento à vida com a conformação
física e jurídica que aspirou.
Já se disse em muitas passagens do texto que é o direito quem tem o poder
de se dizer. Tendo-se isto por assente, é possível se afirmar que a mulher e o
homem reconhecidos pelo direito são diferentes da mulher e do homem
configurados pela natureza? A mulher e o homem frutos da faloplastia e da
vaginoplastia são verdadeiramente mulher e homem ou são transexuais?
Em nossa Constituição só existem dois espaços de categorização: homem e
mulher. Homem e mulher que são iguais em direitos e obrigações. Sendo assim,
pertencendo-se à espécie humana, cremos que a pessoa será, necessariamente,
homem ou mulher. Não haveria, na leitura constitucional, lugar para um terceiro
gênero.
Como não há lugar para a criação de um terceiro gênero, que a nós soaria
preconceituoso e sem qualquer fundamento, temos por assente que a mulher e o
91 A partir da leitura biológica dos conceitos de homem e mulher só poderão contrair casamento (e
também União Estável, vez que esta deve poder ser convertida naquele) quem tiver sido identificado
desta forma no registro. Qualquer outra hipótese adentraria o campo da inexistência.
homem advindos da cirurgia de transgenitalização serão mulher e homem
verdadeiros, não podendo sofrer restrições em suas aspirações.
Quando apontamos que o texto constitucional não abre espaços para a
criação de terceiros gêneros estamos a sustentar a efetividade prática ao sexo
psicossocial, a partir da qual seria sustentável, inclusive, a defesa do casamento do
transexual feminino – por decisão judicial chamado mulher – com um homem e viceversa.
Muitos julgados negam a possibilidade de mudança de sexo justamente
porque esta poderia se transmudar em casamento. Esta negação não nos parece
sustentável. Pensamos ser razoável, sim, a averbação da mudança, pois neste caso
a situação seria trazida à baila em uma eventual habilitação para casamento, fato
que permitiria aos nubentes – caso ainda não tivessem ciência, o que nos parece
pouco provável – saber da realidade um do outro.
Pensamos ser importante a averbação porque esta obstaria futura alegação
de “erro essencial quanto à pessoa”92 do outro cônjuge baseada na identidade93 ou
honra. Assim, admitido o matrimônio nos casos de transexualidade, desde que
conhecida pelo outro parceiro antes da união, não se poderia falar em anulabilidade
do ato. Com isto um ato, historicamente chamado de inexistente, poderá ser
plenamente válido. Uma validade que se sustém ao se garantir efetividade jurídica
ao sexo psicossocial.
À idéia proposta anteriormente é provável seguir vozes dizendo que da
união não poderá nascer filhos. Este argumento, conquanto verdadeiro, não é
absoluto. É falho porque nem todos os casais “geneticamente heterossexuais”94
também o podem. Ademais, como já se assentou em outros momentos, o argumento
meramente genético possui falhas elementares, vide as possibilidades das
síndromes cromossômicas.
Do que se expôs, mostra-se producente se trazer à colação o entendimento
do magistrado paulista Ênio Santarelli Zuliani. Um entendimento que nos parece
totalmente em dia com a teoria dos acerca dos Direitos Fundamentais, Direitos da
92 Art. 1.556. O casamento pode ser anulado por vício da vontade, se houve por parte de um dos
nubentes, ao consentir, erro essencial quanto à pessoa do outro.
93 Art. 1.557. Considera-se erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge:
I – o que diz respeito à sua identidade, sua honra e boa fama, sendo esse erro tal que o seu
conhecimento ulterior torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado;
94 A se conferir reconhecimento ao sexo psicossocial, ter-se-ia um casal chamado heterossexual, já
que formado por homem e mulher, mas homossexual do ponto de vista cromossômico.
Personalidade e com a Dignidade da Pessoa Humana. Embora muitos possam ver
em sua fala um local de vanguarda, vemos na construção feita por ele apenas
sintonia com a realidade fática e com o espírito constitucional. Uma sintonia que
pode contribuir de forma efetiva para a implementação dos valores inscritos na
Constituição. Verbis:
“como a função política do Juiz é de buscar soluções satisfatórias
para o usuário da jurisdição – sem prejuízo do grupo em que vive –,
a sua resposta deve chegar o mais próximo permitido da fruição dos
direitos básicos do cidadão (art. 5º, X, da CR), eliminando
proposições discriminatórias, como a de manter, contra as evidências
admitidas até por crianças inocentes, erro na conceituação do sexo
predominante do transexual” 95.
Como restou assentado, deve a resposta do Estado-Juiz chegar mais
próximo possível de onde permita a fruição dos direitos básicos pelo cidadão.
Retomando a indagação acerca do sexo legal e psicossocial, qual deles se aproxima
mais desta fruição? Responder a esse questionamento não é objetivo fácil, mas
parece-nos válida a interrogação.
Dando seguimento a seu voto, assevera ainda que: “a medicina poderá
aliviar o peso da dubiedade, com técnicas cirúrgicas. O Estado confia que o sistema
legal é apto a fornecer a saída honrosa e deve assumir uma posição que valoriza a
conquista da felicidade”. Outra questão exsurge: a felicidade é encontrada na
mantença de dogmas ou no reconhecimento das diferenças? Trata-se de outro
questionamento de difícil resposta, mas que se justifica à luz da Constituição aberta
e compromissária que o Estado Brasileiro promulgou, primaziando, logo seu artigo
1º, pela valorização da Cidadania e a Dignidade da Pessoa Humana.
APONTAMENTOS FINAIS
Entre os direitos associados aos Direitos da Personalidade, destacam-se os
que se ligam à cidadania, mais reclamados nas situações de transexualidade. Esta
consideração é aposta em razão da preocupação dogmático-religiosa de
95 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 052.672-4/6, Sorocaba. Sétima Câmara de
Direito Privado. Relator: Desembargador Ênio Santarelli Zuliani. São Paulo, 07 nov. 2006. Disponível
em: <www.tj.sp.gov.br> Acesso: 15 outubro 2007.
manutenção do conceito binário de sexo. Uma manutenção que pode, inclusive,
importar na criação de um gênero que o sistema constitucional não alberga.
O conceito binário de sexo ainda tem por base, predominantemente, a
referência
biológica.
Assim,
conquanto
possam
ser
sustentadas
outras
possibilidades de identificação sexual, é recorrente o discurso biológico de aferição
de cromátide (através da análise citogénetica) quando a demanda envolvendo
transexualidade chega ao Poder Judiciário.
Nas hipóteses em que se fala de análise citogénetica o caminho percorrido é
o de negação da possibilidade de mudança de sexo. Nestes casos, em nome da
verdade biológica, nega-se toda a realidade vivenciada pelo transexual, chamando-a
de artificial ou de arremedo. Nestes casos o Ser Humano resta limitado ao aspecto
animal, esquecendo-se que é a racionalidade que o caracteriza.
Parece producente se considerar que mesmo o discurso biológico, ajustado
ao discurso científico reclamado por muitos julgadores, tem suas limitações,
notadamente nos casos de síndromes cromossômicas, em que pode haver,
inclusive, a ausência da cromatina sexual, como ocorre na Síndrome de Turner. Este
peculiaridade da natureza, que inclusive é mais comum que a ocorrência da
transexualidade, denota bem a falibilidade do discurso citogenético como meio único
de aferição de sexo.
Embora seja comum a utilização do discurso biológico (e nestes casos
recorrente a negação de mudanças), é de se sustentar a existência de diversos
julgados superando o conceito da biologia para oferecer ao transexual uma resposta
que lhe permita fruir de forma efetiva direitos que à sua condição Digna se associam.
Nestas ocasiões ocorre o deferimento da mudança de nome e de sexo, havendo
divergência, apenas, em relação à necessidade ou não da averbação da condição à
margem do registro.
A limitação da discussão ao viés biológico, recorrente nos julgados do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro ao longo do ano de 2007, quando já há alguns
anos o mesmo tribunal apresentou outros argumentos, faz sobrelevar as
proposições de Bourdieu sobre a função do direito, que é se manter. Embora a
Teoria Sistêmica tenha defensores ardorosos, não se pode ignorar que a
assimilação da irritação não é tão pacífica. Fosse assim, uma vez irritado o sistema
e ocorrendo assimilação, não poderiam se detectar tais idas e vindas, mais bem
compreendidas na tese do jogo de poder.
A cirurgia de transgenitalização é um fato. Fato também é que no sistema
jurídico só há lugar para homem e mulher. Entendemos, por isto mesmo, que a
pessoa submetida à vaginoplastia ou faloplastia é homem ou mulher, exatamente
como quer sua racionalidade exercida de modo autônomo ao se submeter à
intervenção cirúrgica.
Transexual, deste modo, é condição do homem e da mulher, e não categoria
própria. Uma condição que não retira da pessoa nenhuma prerrogativa de fruição
dos direitos e garantias fundamentais. Em verdade é uma condição que diz com a
intimidade da pessoa e que só pode ser trazida à baila em uma eventual habilitação
para o casamento.
Esta sustentação tem por base a necessidade de preservação do próprio
sistema, haja vista que o desconhecimento desta particularidade poderia ser
reclamada a posteriori. Assim, no afã de se evitar reclamações sobre erro essencial,
por exemplo, pensamos ser produtiva a averbação da condição transexual à
margem do registro de nascimento, fato que não se repetiria em qualquer outro
documento.
As hipóteses envolvendo a transexualidade precisam ser entendidas no
contexto de consideração que homens e mulheres pertencem à mesma raça: a
humana. Ninguém é superior a ninguém, sendo o sexo biológico uma contingência
que não autoriza qualquer tipo de discriminação. Sendo contingencial, não
subsistem argumentos para que seja meio de se negar a identidade pessoal, que é
garantia da Pessoa Humana.
A identidade pessoal, operacionalizada a partir do Registro Civil, é o modo
de ser e de estar da pessoa em sociedade, na qual se impregnam qualidades e
defeitos, realizações e aspirações externadas, bagagem cultural e ideológica. É,
enfim, o Direito que todos os indivíduos têm de se assumirem verdadeiramente. A
identidade sexual, a seu turno, é um dos aspectos da identidade pessoal, formada
na estreita vinculação com a pluralidade de direitos associados ao desenvolvimento
da personalidade.
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