A mudança de sexo: engodo ou direito?

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A mudança de sexo: engodo ou direito?
Simone Perelson
Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica - UFRJ
Quando, na segunda metade do século XX, o fenômeno da
transexualidade ganha existência a partir do célebre tratamento hormonal
que culminou na cirurgia princeps realizada pelo Dr Hamburger assim como
na construção, pelas mãos do Dr. Benjamin, do conceito de transexualidade,
a medicina não vem simplesmente reconhecer, nomear, diagnosticar e tratar
um fenômeno que já estaria lá, mas sim, pelo próprio ato de sua nomeação e
da prescrição de tratamento cirúrgico, constituí-lo. É nesse sentido que o
nascimento do fenômeno da transexualidade implica numa singular
articulação entre a sua nomeação e os progressos das técnicas de
tratamentos hormonais e de cirurgias sexuais que permitem uma
modificação radical da aparência sexual de um indivíduo.
Mas não são apenas os avanços no campo da endocrinologia
e da cirurgia que estão na origem dessa construção. Será fundamentalmente
graças à importação para o campo médico da noção forjada pela sociologia
de identidade de gênero, como sendo uma construção sociocultural
independente do sexo natural ou biológico, que a noção de transexualidade
poderá ganhar inteligibilidade e a cirurgia de transgenitalização justificativa.
Com efeito, enquanto Benjamim define o transexual como o ponto máximo
de discordância que sempre pode se manifestar entre os vários sexos por ele
fragmentados e multiplicados, Money já irá defini-lo como o desacordo
insuportável entre o sexo e o gênero de um indivíduo, como uma “disforia
de gênero”, e enfim Stoller irá determinar a cirurgia como o meio através do
qual esta incongruência pode ser ‘consertada’. O passo seguinte será a
definição da transexualidade como a convicção de pertencimento ao outro
gênero e o apelo para a modificação do sexo, física e juridicamente, isto é,
no corpo e na identidade É nesse sentido que a transexualidade é um
fenômeno estritamente contemporâneo, tornado possível na medida em que
a ciência ao mesmo tempo o define como uma incongruência sexual e como
o desejo de consertar tal incongruência, e torna a realização desse desejo
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uma possibilidade concreta. O transexual define-se por uma demanda que
não é possível mais sabermos em que medida é fabricada por sua própria
oferta.
A esta primeira questão, que indica o caráter problemático do
modo segundo o qual a medicina define e trata a transexualidade, podemos
acrescentar inúmeras outras. Abordaremos aqui particularmente três dentre
elas – 1) a relação entre a transexualidade, a definição médica do sexo e o
dimorfismo sexual, 2) a patologização da transexualidade e 3) a pertinência
do tratamento cirúrgico - indicando ao mesmo tempo dois modos bastante
distintos de tratá-las: aquele de uma certa corrente dentro da psicanálise
lacaniana – destacam-se aqui Czermak, Millot, Castel, Calligaris, Melman e
Frignet - por um lado, e aquele proveniente dos movimento e estudos gays,
lésbicos, transgêneros e queer, nos quais se situam, entre outros, Butler,
Brousse, Beatriz Penteado, e Berenice Bento.
Segundo Frignet, a teorização que se encontra no fundamento
da definição médica da transexualidade é problemática e perigosa na medida
em que responde a um sintoma social de denegação da diferença dos sexos e
de empuxo à uniformização, permitindo que a noção de sexo seja
progressivamente substituída pela noção de gênero, a qual dá lugar a
identidades fundamentadas unicamente na imagem e desarticuladas do real e
do simbólico do sexo. Segundo Castel, a própria biologia, ao revelar a
possibilidade de conflito entre os vários critérios definidores do sexo –
genético, hormonal e morfológico -, e, com isso, ao levar a uma definição de
gêneros cada vez menos evidentemente divididos em masculino e feminino,
serviria de suporte a essas teorizações.
Seria esta concepção de identidade sexual que conduziria,
segundo Frignet, à exclusão, a partir dos anos 50, da transexualidade da
rubrica do patológico, constituindo-se como fenômeno social, legitimado
pelo campo do direito e da medicina.
Na contramão dessa interpretação, o segundo grupo de
autores vai sustentar, ao contrario, que o discurso médico faz
inquestionavelmente da transexualidade uma patologia, ao defini-lo como
um transtorno de identidade devido á discordância entre o sexo biológico e
o gênero, chegando mesmo, junto com inúmeros psicanalistas lacanianos, a
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compreende-la como uma psicose. É, entretanto, segundo estes autores, uma
concepção normativa tanto dos sistemas de sexo-gênero (compreensão de
que haveria um sexo dado naturalmente, sobre o qual se imprimiria um
gênero construído psíquica e socialmente) quanto do dispositivo da
diferença sexual (compreendido em termos de dimorfismo sexual), ambos
fundados numa matriz binária heterossexual,
a qual conduzirá à
ininteligibilidade da incoerência entre gênero e sexo, que fundamenta essa
patologização da transexualidade.
Essa patologização, observa-se aqui,
funcionaria como uma operação de exclusão inclusiva constituinte da
própria norma. Observa-se ainda que se a transexualidade é excluída do
campo da normalidade é por ela não oferecer resposta satisfatória á questão
que, com a instauração do dispositivo da sexualidade passa a nos obstinar: a
questão de saber, através da medicina, qual a verdade do sexo e, mais ainda
por colocar em evidência para a própria medicina o estranho estatuto da
identidade sexual por ela concebida, que pode ser situado, segundo os
termos de Marilena Correa, “entre o que vale nada e o que distingue tudo”.
Como mostra a autora, o transexual talvez seja o único caso em que pode
falar verdadeiramente de transgressão, no caso não de uma norma
medicamente estabelecida, mas da própria instancia instauradora da norma:
a medicina.
No que diz respeito, enfim, à terceira questão que nos
propusemos abordar, a posição sustentada pelos dois campos é, guardadas
algumas exceções a de, no mínimo, uma considerável reticência quanto à
pertinência do tratamento cirúrgico no caso da transexualidade. As razões
para essa reticência, entretanto, são bastante divergentes. Vejamos.
Segundo a maior parte dos psicanalistas citados - excetua-se
aqui Calligaris, para quem a cirurgia poderia representar um substituto
logrado da metáfora paterna - a cirurgia de transgenitalização representa um
engodo na medida em que proporcionaria ao transexual uma identidade
fundada unicamente na imagem, o sexo, em seu estatuto real, não podendo
ser por ela modificado visto que o real do sexo concerne propriamente não
apenas ao pertencimento inexorável seja ao grupo dos homens seja ao das
mulheres, como também a impossibilidade de um sujeito passar de um sexo
ao outro. Além disso, haveria aqui, segundo os termos de Lacan, uma
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confusão entre o falo simbólico e o pênis real: o transexual, não podendo
resolver o seu drama, que concerne ao falo simbólico, tenta inutilmente
eliminar o pênis real. Enfim, observa Frignet, a questão do transexual não
poderá ser suprida com a cirurgia , visto que ele quer não apenas ser uma
mulher ou um homem, mas também ser dito mulher ouhomem. E é por essa
razão que, para além da medicina, ele irá recorrer ao direito, requerendo
uma mudança de nome e de sexo.
Para indicarmos a posição do segundo campo, vale nos
referirmos ás formulações de Berenice Bento para quem a operação médica
- e a autora aqui sustenta-se no deslize semântico do verbo operar - inclui-se
no que ela chamará, apoiando-se claramente em Foucault, de um dispositivo
da transexualidade.
A operação de transgenitalização não é, segundo a autora, a
primeira a se operar sobre os corpos dos transexuais: ela é com efeito
secundária com relação a uma série de operações que a antecedem e que tem
por objetivo inserir os corpos no dimorfismo ou, para utilizarmos os termos
de Butler, na heterossexualidade compulsória. Se a essas operações, estamos
todos submetidos - e, nesse sentido, somos todos corpos operados, somos
todos transexuais – a operação de transgenitalização teria como objetivo
corrigir as falhas das primeiras.
Abordemos agora algumas das questões jurídicas colocadas
pela transexualidade.
Como observa a jurista Peres, nesse novo panorama, em que
o progresso científico mostra a complexidade da determinação do sexo
(incongruência entre os fatores responsáveis pelo sexo biológico e entre este
e o sexo psicosexual) e a medicina torna cada vez mais viável o desejo do
transexual de modificar a sua aparência em conformidade com o seu sexo
psicosocial, modificação que frequentemente conduz o transexual a requerer
uma mudança de sexo no estado civil, mudança esta considerada por alguns
psiquiatras e psicanalista como parte integrante do tratamento, e, cabe
observa, diante da inexistência de legislação específica regulando de forma
precisa as questões referentes à transexualidade (a esse respeito, conta-se
apenas com as resoluções de 1997 e 2003 do CFM) o Direito tem sido
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convocado a dar respostas às inúmeras questões, das quais destacaremos
quatro, colocadas por essa nova realidade
A primeira questão que se coloca refere-se a licitude da
cirurgia de transenitalização. Se, inicialmente, várias vozes se levantaram
para caracterizá-la como uma cirurgia mutiladora, a tendência atual inclusive no Brasil, onde ela não é mais criminalizável - desde que realizada
nas condições exigidas, entre as quais cabe destacar o acompanhamento
multidiciplinar (médico, psicológico, psiquiátrico e de assistentes sociais)
do paciente durante dois anos com elaboração de laudos confirmando o
diagnóstico de transexaulidade e a condição do paciente para submeter-se á
cirurgia – é de considera-la como a única forma de conferir aos transexuais
o direito a uma existência digna, direito que é função do Estado garantir.
Em segundo lugar, coloca-se em questão se a cirurgia
efetivamente modifica o sexo daquele que a ela se submete. Se, para alguns,
a tecnologia da ciência é capaz de conduzir a uma efetiva modificação do
sexo, para outros, por não haver implante de órgão sexuais internos, a
cirurgia não conduziria a esta modificação.
Em terceiro lugar, questiona-se se é um direito do transexual
modificar o seu sexo e o seu prenome no estado civil na medida em que
submeteu-se a cirurgia. A discussão aqui coloca em confronto a
indisponibilidade do estado civil que seria, segundo algumas compreensões,
imutável, inalienável e imprescritível, e o direito fundamental à dignidade
da pessoa humana, à proteção à sua vida privada
Embora a inexistência de legislação específica autorizando
essa modificação sirva frequentemente de justificativa para a sua recusa, a
jurisprud~encia brasileira e estrangeira vem se movimentando no sentido de
reconhecer o direito á mudança de sexo e de nome.
Como observa Perez, a própria existência, fora do campo da
transexualidade, de em alguns casos de não coincidência entre o sexo
declarado rapidamente demais, como exige a lei, no registro civil, e a
identidade sexual, que algumas vezes exige um tempo maior para se
determinar, indica que não podemos compreender as informações que estão
no registro civil, da ordem segundo os termos do jurista Rodotà, de uma
presunção ou ficção jurídica, como definitivas. Esses casos colocam em
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causa, portanto, o princípio de indisponibilidade do estado civil, permitindo
que se admita que, com o desenvolvimento tecnológico, os indivíduos
possam hoje, tal como é reivindicado pelos movimentos transgênero, dispor
não apenas de seu próprio corpo, como também desse estado.
Vale observar, portanto, que a transexualidade questiona o
Direito não apenas no que se refere aos chamados direitos da personalidade,
mas também quanto à definição jurídica do sexo.
Em quarto e último lugar, colocam-se as questões referentes
às conseqüências, em caso de modificação do sexo no estado civil, no plano
da família. O direito à modificação do sexo desdobra-se no direito á
constituição de uma família? Pode, por exemplo, o transexual constituir
matrimônio e adotar filhos; como fica o estatuto de possíveis filhos de um
anterior casamento diante da modificação de seu estatuto sexual?
Para concluir, gostariamos de nos referir a dois comentários
interessantes de um jurista a respeito das propostas contidas no projeto de
lei 70-B de 1995 que autoriza a cirurgia e a modificação de sexo e nome.
Em primeiro lugar, ele observa que a determinação de que seja inscrita, no
estado civil, a palavra transexual, nos colocaria diante do problema da
constituição de um terceiro sexo. Em segundo lugar, ele observa que o
projeto exclui dos não operados o direito de mudança de estado civil. Sobre
o fato da mudança do estado civil estar condicionada á cirurgia, Frignet
observa que constitui-se aqui uma discriminação entre aqueles que estão
satisfeito com o seu sexo e aqueles que desejam muda-los, visto que para os
últimos é exigida a passagem por uma cirurgia mutiladora. Assim, segundo
o autor, aquilo que, devido aos avanços técnicos, se torna possível para o
sujeito, transforma-se numa prescrição, na imposição de um sacrifício
consentido à Autoridade. Entretanto, se, por um lado, o autor afirma que
seria legítimo abolir essa exigência, por outro, ele considera a conseqüente
concessão ao indivíduo da liberdade de escolha do sexo do estado civil
descartaria,
de
modo
extremamente
perigoso,
todo
e
qualquer
questionamento sobre a noção de sexo real. São, entretanto, esses sujeitos,
que requerem a mudança de sexo no estado civil recusando-se a passar pela
operação, e consequentemente a definir seu sexo pela anatomia, que
colocam mais radicalmente em questão se os vocábulos homem-mulher são
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realmente pertinentes e suficientes para dar conta da questão do sexual.
Resta saber se a medicina e o direito lhes fornecerão algum dia alguma
inteligibilidade.
Referências bibliográficas
Arán, M. “A transexualidade e a gramática normativa do sistema
sexo-gênero”, in Ágora (Rio J.), jan./jun. 2006, vol.9, no.1, p.49-63.
Arán, M. “Transexualismo e cirurgia de transgenitalização:
biopoder/biopotência”, in Série Anis, Brasília, v. 1, p. 1-4, 2006.
Castel, P.-H., “Quelques problèmes relatifs á la définition de l’identité
sexuelle dans l’anthropologie sociale contemporaine » in Sur l’identité sexuelle : à
propos du transsexualisme, Paris : Éditions de l’Association freudienne internationale,
1996, p. 559-582.
Corrêa, M “Sexo, sexualidade e diferença sexual no discurso médico”, in
Loyola, M. A. (org), A sexualidade nas ciências humanas, Rio de Janeiro: EDUERJ,
1998, p. 69-91.
Czermak, “Le cas Amanda”, in Sur l’identité sexuelle : à propos du
transsexualisme, op. cit, p. 401-432
Czermak e Frignet, “Préface”, in Sur l’identité sexuelle, op. cit., p.
11-23.
Frignet, H. Le transsexualisme, Paris: Desclée de Brouwer, 2000.
Melman, “Le corpo est-il lê lieu de la vérité ? », in Sur l’identité sexuelle,
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Millot, C. Extrasexo. Ensaio sobre o transexualismo, São Paulo:
Escuta, 1992.
Peres, A. P. A. B, Transexualismo. O direito a uma nova
identidade sexual, São Paulo: Renovar, 2001.
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