INTRODUÇÃO O tema a ser tratado neste artigo é, sem qualquer dúvida, campo fértil para a discussão, afinal se está a propor uma forma de ver o direito em que se abre mão das respostas a priori, possíveis no Positivismo Jurídico, para pensá-lo como um sistema em que unidade, coerência e completude são possíveis apenas se se considerar a Pessoa Humana como um componente fundamental. O Positivismo Filosófico, como se verá, apresenta-se como um suposto estrutural do Positivismo Jurídico. Este, a seu turno, um sistema que se faz completo com a tese do Ordenamento Jurídico. Completo por contar com uma Norma Fundamental. A Norma Fundamental, estruturante do pensamento de Kelsen, é um dos nós epistemológicos do Positivismo, já que parece aludir ao que nega: uma estrutura, antes de qualquer coisa, referida no campo da natureza. A referência negada se nos apresenta como suposto de totalidade. O Direito, veremos, é sistema completo quando tem um ponto de partida e de chegada definido por princípio. Este referencial é a Pessoa Humana. Uma referência que permite o sistema jurídico ser coerente com os valores que apregoa e parece querer preservar. POSITIVISMO FILOSÓFICO O Positivismo Filosófico é uma concepção de mundo que parte das reflexões de Augusto Comte, pensador francês que viveu no limiar do século XVIII até meados do século XIX: entre 1798 e 1857. Comte, consagrado na história como o grande sistematizador da sociologia, partia da premissa de que era possível planejar o desenvolvimento das sociedades e dos indivíduos a partir dos referenciais das ciências exatas e biológicas, referencial que se reflete no Positivismo Jurídico e seu anseio de unidade, coerência e completude na tese do ordenamento jurídico, de que foi expoente Hans Kelsen. O pensamento de Comte foi forjado na França pós-revolucionária da primeira metade do século XIX, na qual havia grupos com visões antitéticas de mundo. Ambos os grupos, todavia, viviam sob a influência da máxima liberal estampada no laissez-faire, laissez-passer. Nesta quadra, direito equivalia à lei e tinha a pretensão de encampar absolutamente tudo. Interessava a este, portanto, o que lei descrevia, pouco importando as razões de justificação desta. A idéia de positivismo se liga, como se percebe, à noção de segurança jurídica. É preciso ordem e esta ordem é encontrada quando se sistematiza a realidade. Assim o pensamento positivista se apresenta como sendo o estágio mais avançado de formatação social. Um modo de organização que suplanta o modelo teológico e metafísico. O positivismo se apresenta na forma de física social. Uma possibilidade de estudar a sociedade que permitiria se estabelecer bases racionais e científicas para uma reforma intelectual e moral na comunidade. Um momento em que o modelo social veste as roupas da ciência natural e o espírito científico (positivista) é o que se atém à observação dos fatos e “se limita a raciocinar sobre eles”1, procurando “relações invariáveis, quer dizer, suas leis”2. De maneira muito inteligente para seus propósitos, Comte divide a sociologia em duas partes: estática e dinâmica. Esta estudava o desenvolvimento orgânico e ordenado da sociedade através da lei dos três estados, naquilo que chamamos progresso social. Aquela analisava a sociedade em repouso, na chamada ordem social. A noção de progresso diz que a ciência, fornecedora de conhecimentos e aperfeiçoamento de meios técnicos, gera riqueza, felicidade e segurança. Neste sentido, é preciso se ter ciência para que o ser humano não seja pobre, infeliz e inseguro. É preciso evolução e esta se faz possível com o progresso, garantido pela ordem, em Comte é relacionada à estabilidade social, tradição, autoridade, harmonia e hierarquia. Ao apresentar uma de suas idéias motrizes – amor por princípio, ordem por base e o progresso por fim3 –, Comte acaba propondo uma terceira via às correntes políticas de sua época. A um só tempo atende aos conservadores – que buscavam restabelecer a ordem medieval – e ao grupo formado por pensadores influenciados pelo Iluminismo, afirmadores da necessidade de progresso e completa aniquilação da ordem anterior. 1 SIMON, Maria Célia. O Positivismo de Comte. In: REZENDE, Antônio (Org.). Curso de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p. 122. 2 Ibidem. 3 Idem., p. 126. O que se viu na Europa influenciada pelo positivismo foi um progresso real com paz substancial. Este progresso, a um só tempo, permitiu e demandou ao velho continente sair de suas fronteiras em busca de meios que o garantissem. Uma busca sempre realizada pelo legitimante discurso “civilizador”4, que maquiava o imperialismo vivenciado. Como resultado, houve notória expansão colonial. A expansão relatada levou valores da Revolução Industrial a outros povos, ampliando mercados consumidores. Esta ampliação, evidentemente, precisava se consolidar, e isto demandava a transformação dos povos colonizados, então baseados em outro sistema valorativo. Era necessário, logo, se impor ao mundo que se abria a cultura européia e seus valores capitalistas de massa. Os efeitos reais sobre a sociedade européia foram imediatos. Com o nome de positivismo se viu “ordem e progresso”, fato inspirador da flâmula maior do Brasil. As cidades cresceram. A medicina se desenvolveu. Aumentou-se a produção. Consolida-se nesta época um modo linear de se ver o mundo. Nesta perspectiva não havia limite para a ciência nos moldes positivistas. A herança deixada pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial deu à Europa, em especial à França, um momento adequado para brotar a estrutura do pensar positivista. Tudo crescia em grandeza, riqueza e bem-estar. Há, então, e faz sentido na época, forte apelo para a acolhida do darwinismo, já que se imaginava ser aquele um momento de real evolução da espécie humana. POSITIVISMO JURÍDICO O Positivismo Jurídico decorre da expressão Direito Positivo, que em sua origem foi usada para se contrapor a Direito Natural. Esta noção de distinção e contraposição remonta o pensamento grego-latino, mas o uso corrente da locução só acontece a partir da Idade Média5. 4 A “missão civilizadora” pretendia levar valores capitalistas mediterrâneos europeus (judaico-cristãos) para grupos pautados no politeísmo, na poligamia, em formas de poder tradicionais, na economia agrária e no artesanato doméstico. Cf.: COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia: Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo: Moderna, 1987, p. 44. 5 Atribui-se ao Mestre Abelardo, filósofo medieval do século XI, o uso escrito pela primeira vez da expressão Direito Positivo. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. Ícone: São Paulo, 1999, p. 19. Na fase socrática encontramos no Timeu de Platão a idéia de “justiça positiva”: conjunto de leis que regulavam a vida social. “Justiça natural”, por outro lado, constituía-se no conjunto de leis naturais que governavam o cosmos, portanto, na ordem da estrutura de constituição do universo. Nesta quadra, Platão contrapõe natural a positivo. Este da ordem humana. Aquele da ordem da natureza. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, faz sua distinção dizendo que “justiça política é em parte natural e em parte legal”.6 Justiça natural teria a mesma força em todos os lugares, ao contrário da legal, que trata daquilo que pode ser regulamentado de um modo ou de outro. O poder de regulamentação diz com o mundo das possibilidades. Ocorre, porém, que, uma vez estatuída a regulamentação, esta perde seu caráter de indiferença e passa a ser exigível de modo determinado. Como exemplo de sua proposição, Aristóteles7 apresenta um exemplo elucidativo. O fogo seria exemplo de natural, pois queima em qualquer parte de igual modo. Como legal aponta o sacrifício religioso de animais, que pode ser estatuído de modo diverso. Ora um bode. Noutra hora uma ou duas cabras. O que determinará a espécie e a quantidade de animais será a norma religiosa. Esta, uma vez estatuída, valerá para todos os participantes do grupamento religioso que elaborou a norma. Uma vez apresentado o exemplo do que seria justo natural e justo legal, o filósofo em comento aponta dois critérios básicos para a distinção entre Direito Natural e Positivo: a) abrangência da norma; e, b) seu valor. Quanto à abrangência, o Direito Natural tem a mesma eficácia em toda parte e para todas as pessoas. O Positivo, em outra medida, só é eficaz dentro do grupo político que o gestou e lhe outorgou validade. Quanto ao valor, o Direito Natural alude a ações objetivas, que não se sujeitam ao juízo de valor dos sujeitos. O Positivo, por outro lado, prescreve ações (positivas ou negativas) dentro de um ordenamento. Neste ponto, o que antes poderia ser indiferente (fazer ou não-fazer) se reveste do caráter obrigatório diante da vigência da lei. Não mais há a indiferença de antes, em que era facultado a consagração8 do modelo “a” ou “b”. 6 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V, capítulo 7. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 7 Ibidem. 8 Cf. BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 16 e 17. A noção de Direito Positivo e Natural também é encontrada na Roma Antiga. Apresentado pelo jus civile, tinha-se o direito positivo. Diz-se isto porque este tinha a validade territorialmente delimitada por pessoas que o conheciam e reconheciam. Representando o Direito Natural se concebeu o jus gentium. Aos estrangeiros se aplicavam as leis naturais, já que estes não conheciam na totalidade as leis dos romanos. Chegado o Medievo, constata-se não ter havido introdução de diferenças essenciais à noção apresentada no período clássico. Os pensadores medievais discorrem basicamente sobre a lex naturalis e lex humana. Esta um produto da razão. Aquela uma decorrência da natureza, acessível à compreensão humana apenas no plano descritivo, não se conspurcando de interferência objetiva. A ordem natural estava posta e o homem só poderia observar e compreender o funcionamento desta. A Idade Moderna foi um momento de grande transformação do mundo. Eventos como a chegada de Colombo à América9, a conquista de Granada pelos espanhóis e o conseqüente fim do domínio mouro, a Reforma Religiosa10, a consolidação da Inglaterra como grande potência naval (decorrência do modelo de mercantilismo adotado, o comercial), a Revolução Gloriosa11, o Tratado de Paris12 e a Declaração de Independência das treze colônias inglesas da América do Norte são eventos dos mais importantes nesta fase histórica e configuram a base para a grande mudança paradigmática que se viu na entrada do mundo Contemporâneo. O Positivismo Jurídico é, assim, possibilidade advinda da Revolução Francesa e da grande mudança paradigmática que representa. Uma mudança que aponta em várias direções, mas, sobretudo, na linha da liberdade e da igualdade, reclamos da burguesia que antecedeu e lutou pelo movimento. Reclamos que, uma vez atendidos, asseguravam a pretendida segurança jurídica. Na quadra contemporânea o Positivismo Jurídico se apresenta como modelo de organização do direito que consubstancia as aspirações da burguesia e sofre notória influência do Positivismo Filosófico. Diz-se isto porque este tem a aspiração de colocar o direito como via de satisfazer as necessidades normativas advindas das 9 Cristóvão Colombo chega à América e a declarou colônia da Espanha em 1492. 10 Lutero encabeça a Reforma Religiosa na Alemanha de 1517. 11 Com a Revolução Gloriosa depôs Jaime II da Inglaterra em 1688. 12 O Tratado de Paris coloca fim à Guerra dos Sete Anos na Europa e a guerra entre franceses e índios na América do Norte no ano de 1763. relações sociais. Deste modo, estrutura-se para apresentar um conjunto de normas positivas que integram o direito de maneira a não deixar qualquer lacuna, do que se diz que corpo normativo do Direito Positivo seria completo. Esta é a tarefa a que os positivistas se propõem: apresentar um direito orgânico e completo, no qual todas as situações passíveis de ocorrer na esfera social tenham uma resposta a priori do sistema. Tal encampamento como princípio traria a pretendida segurança jurídica, uma vez que demandaria do aplicador da lei apenas o trabalho de subsunção. Sendo assim, parece-nos producente se dizer que na gênese do positivismo não há lugar para um direito valorativo e principiológico. Há, apenas, e tão-somente, uma disciplina normativo-analítica. O modelo positivista, no seguimento descrito, pretende abarcar o mundo fático com a realidade legislativa. Esta realidade se faz possível em razão da criação da tese do chamado ordenamento jurídico, a partir da qual se estrutura, de fato, o Positivismo Jurídico. O ORDENAMENTO JURÍDICO Até fins do século XVIII as normas jurídicas estavam dispersas. O movimento intelectual e social de busca de segurança jurídica, que na França ficou patente na época da Revolução, acabou gerando o ambiente propício para o borbulhar do Positivismo Jurídico. Neste ponto, ordenamento e positivação se fazem faces da mesma moeda. A teoria do Ordenamento Jurídico está estruturada em três pilares que a caracterizam: unidade, coerência e completude. A noção de unidade que a esta interessa é formal, uma vez que considera apenas o modo de apresentação da norma. Assim, existe unidade porque todas as normas derivam de uma mesma fonte que tem legitimidade para criar direito. Conseqüência desta unidade13 é a teoria da norma fundamental. 13 Em Dworkin a noção de unidade e coerência amplia os conceitos sobre a matéria e nos faz repensar certas chagas que são da realidade brasileira. Em matéria tributária alguém pode se ver livre do processo investigativo pela denúncia espontânea, mesmo que seu crime envolva milhões. Existe um arrependimento que, de fato, é eficaz. Por outro lado, alguém que furte um quilo de laranja não tem as mesmas benesses. Não há arrependimento eficaz uma vez tendo havido inversão da posse. Quando muito se tem uma causa de diminuição da pena. Temos um ordenamento, que do ponto de vista positivista se faz coerente e unitário, mas na prática se faz segregador e consagrador de A segunda característica é a coerência, pela qual se nega a existência de normas incompatíveis entre si. Nenhum ordenamento admite a existência de normas contraditórias, razão pela qual eventual ocorrência se resolve pelo critério da exclusão. Uma regra afasta a outra. A noção de coerência à luz do Direito Positivo é formal e baseada no jogo das regras. Por isto se resolve no plano prático pelos critérios clássicos de interpretação: hierarquia, especialidade e anterioridade. Serve bem ao mundo em que viveu Comte, marcado pelo primeiro eixo do tripé estrutural que marca a Revolução Francesa, a liberdade. Nesta quadra o direito não é pensado à luz de princípios nem de valores, pelo que um filólogo seria um grande realizador de justiça. Kelsen14 foi extremamente importante para a tese do Ordenamento Jurídico. A partir dele unidade e coerência puderam ser pensadas de forma coesa. Tão coesa que, perguntado sobre o Estado Nazista em sua chegada aos Estados Unidos no fim da segunda guerra, viu-se obrigado a legitimar o Terceiro Reich. Certamente uma resposta coerente com sua tese. Ao mesmo, uma denúncia de que se perceber unidade e coerência neste sentido é uma visão rasa e vazia, que só faz sentido se o direito for pensado como fim em si próprio. Fazer da literalidade do texto constitucional princípio, meio e fim do direito, sem qualquer preocupação com princípios e valores, sobretudo a Dignidade da Pessoa Humana, gera situações como a relatada. Sendo a Constituição fruto da vontade geral, e se o Estado Nazista estava de acordo com ela, de fato nada havia para se criticar. Além de unidade e coerência, importa de forma sobrelevada, conforme a visão de ordenamento relatada por Bobbio15, a noção de completude. Nesta medida o autor colacionado pontua ser completude o “coração do coração” do Positivismo Jurídico. Sendo o supra-sumo da tese do Ordenamento Jurídico, a noção de completude alude à não-existência de lacunas na lei. absurdos. Uma unidade que, sem qualquer dúvida, não leva em conta a Pessoa Humana como componente de sua fórmula. Logo, uma fórmula vazia de fundamento. Cf.: DWORKIN, Ronald. Os Direitos levados a Sério. Tradução de Nélson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 14 KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 15 Cf. BOBBIO. Op. cit., p. 207. Dizer que não há lacuna no Direito é de fácil aceitação e compreensão. Parece-nos, mesmo, que este não se restringe ao conjunto de leis positivas. Neste ponto, se faz tranqüila a tese da completude do direito, lato sensu. Em sentido stricto, todavia, no qual o Direito é Positivo e equivale à lei, a tese da inexistência de lacunas parece apressada, muito embora seja cerne da noção de Ordenamento Jurídico que perdurou até a Segunda Guerra Mundial. Da tese de que não há lacunas na lei, surge a Teoria do Espaço Jurídico Vazio. Com esta se afirma não haver lacunas na lei e, ao um só tempo, assevera-se que se há algo não previsto é porque não importa para o ordenamento. No seguimento justificante da idéia de completude, surge a Teoria da Norma Geral Exclusiva, estabelecendo que a lei traz em si dois ordenamentos: a) o próprio, afirmado em seu conteúdo; e, b) o decorrente, que engloba todos os atos não previstos de forma antitética. Disto, tem-se que tudo o que não for proibido é permitido. Com base nesta noção de completude e da exigência da norma positivada, o Positivismo Jurídico nega o Direito Natural, chamado por Bentham de “pretenso direito natural”, já que contrário à noção de ciência por ser carregado de metafísica. Esta superação de conceitos metafísicos, neste momento, apresenta-se como uma condição do Positivismo, desde o Filosófico. O empreendimento para abolir a noção de um Direito Natural decorre do movimento racionalista, a partir do qual se diz que bem e mal resultam unicamente de influências sociais como educação, leis e costumes16. Se bem e mal são da ordem da sociedade, podem ser regulamentados pela mesma sociedade. Assim a conclusão positivista é no sentido de que estudo do direito é estudo de normas vigentes. Estas normas, postas pelo Estado e reconhecidas pela sociedade, seriam o ponto de partida e chegada da organização social. Dos matizes do movimento racionalista, que está na base da teoria do Ordenamento Jurídico, surge a possibilidade de negação do Direito Natural, fato assumido expressamente por Kelsen, para quem as normas encontram fundamentos em outras normas, que lhes são hierarquicamente superior17. Desta busca de fundamento, chega-se à teoria da Norma Fundamental, fundamento do Direito. 16 Cf. JOLIVET, Régis. Curso de Filosofia. 2. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1955, p. 376. 17 Cf. KELSEN, Hans. Op. cit., São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 4. A norma fundamental é base de toda a construção do Direito. Ocorre, contudo, que não foi respondido por Kelsen qual seria a norma fundamental. Para nós, todavia, que muitos chamam de pós-modernos, esta lacuna sistêmica deve ser preenchida, sendo a Pessoa Humana o ingrediente essencial. A NORMA FUNDAMENTAL: DE KELSEN À DIGNIDADE HUMANA Kelsen não se propõe a provar o que é Norma Fundamental. Nada obstante, apresenta-a como um pressuposto necessário. Nisto sua hipótese parece contradizer a concretude que o juspositivismo solicita. Sendo uma hipótese, deveria haver uma busca intelectual para prová-la pela razão e pela ciência. Pela ciência o limite se lhe impôs. Pela razão deveria se constata a falta de argumentos. A norma fundamental em Kelsen é um dilema. Um dilema que se nos apresenta paradoxal, já que não nos parece coerente fundamentar algo na suposição da existência de uma base, aparentemente natural, se para o direito proposto por ele natureza não é relevante. Se relevantes são as proposições racionalmente alcançáveis, um sucedâneo lógico surge: a Norma Fundamental pode ser alcançada pela razão. Se não, a completude pretendida por Kelsen se faz incompleta em si. O Positivismo, como se percebe, parte de pressupostos materiais, deixando algumas lacunas. Em nosso sentir estas são preenchidas pelo substrato ético da Pessoa Humana. Isto, porém, é uma inferência de cunho pessoal que não ressoa na doutrina de Kelsen. Em verdade, o positivismo não considera a dimensão espiritual do humano. De cunho materialista, nega a existência de alma e se atém ao corpo, parte “positivada” da pessoa. Neste ponto, como é à matéria e as coisas que se afere valor pecuniário, o corpo acaba por prevalecer sobre a pessoa na sua dimensão pessoal e íntima. Conseqüência do que inferimos é percebida em certos nós epistemológicos de nossa legislação. No artigo 148 do Código Penal, a título de exemplo, se estabelece que privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado, traz como conseqüência pena de reclusão que varia de um a três anos. No artigo 159, aponta-se que seqüestrar pessoa com o fim de obter vantagem financeira implica em uma punição que varia de oito a quinze. O exemplo trazido à colação estampa que a mesma vida humana recebe tratamento desproporcional. Uma desproporção que se baseia no âmbito patrimonial. Do ponto de vista da Pessoa Humana a privação de liberdade é uma só. Ocorre, porém, que no segundo caso a privação visa a aferir valores financeiros. O confronto dos artigos relatados segue a mesma direção do que se discutiu em notas acerca do conceito de unidade e coerência na obra de Dworkin. Não se faz razoável que a mesma referência – aqui a liberdade, e em notas o patrimônio – seja vista de forma tão antitética. É preciso coerência e para nós esta se encontra no conceito fundamental da Dignidade Humana. Nesta linha, resta-nos claro que a ciência jurídica requer, sim, outro fundamento. Este fundamento é externo e deve ser a Pessoa. Nisto a tese do Ordenamento Jurídico encontra Norma Fundamental que lhe falta. Quando se tem a Pessoa como viés fundamental, não mais se justifica proposições como a colacionada. Pessoa é pessoa, independentemente do que ela possui. Disto não parece razoável que um crime, cujo núcleo é a liberdade, seja visto de forma tão desarrazoada. Como suposto de unidade do sistema, o direito não pode ser visto desta forma. Nem mesmo Comte e seu Positivismo Filosófico conceberiam segurança jurídica em uma quadra de desproporção como a relatada. Quando se pensa na pessoa como viés de se ver o mundo, e nele se inclui o ordenamento jurídico, fica evidente que a unidade e coerência vivenciada no Brasil são uma só: colocar sob a proteção da lei o que é aferível na esfera patrimonial. Isto é lamentável e torna evidente a conclusão de que temos uma ordem principiológica nos dias de hoje, no plano constitucional, mas uma legislação infraconstitucional, e toda a leitura que desta se faz, pautada em regras positivadas. O POSITIVISMO NA REALIDADE BRASILEIRA Aspirações fundamentais da Revolução francesa foi o progresso e a melhor divisão dos bens. Igualdade, então, assume função fundamental: afastar os privilégios decorrentes do status de nascimento18, a partir do qual apenas o Terceiro 18 Havia 25 milhões de franceses ao tempo da Revolução. O clero tinha cerca de 120 000 religiosos, constituindo-se no primeiro estado. A nobreza constituía, com 350 000 membros, o segundo estado. O terceiro estado compreendia 98% da população. Cf.: VICENTINO, Cláudio; DORIGO Gianpaolo. História Geral e do Brasil. São Paulo: Scipione, 2001. Estado concorria para a manutenção da máquina pública, gozando Nobreza e Clero de uma tranqüila – e inquietante para os demais – situação de não-tributação. A lei, neste contexto, surge para assegurar uma situação de equalização, possível em razão do movimento revolucionário. No Brasil ocorreu o oposto. Não houve movimento de ruptura. Pelo contrário, somos dados a conjugar até mesmo o inconjugável. Por isto mesmo vivemos bem com a vigência de ordenações depois da independência. Por isto também absurdos de incoerência podem ser detectados nossa legislação, fato que denuncia com grande clamor as inconsistências de um positivismo em crise. Embora a vigência das Ordenações Filipinas fosse pacífica no Brasil posterior a 1822, ocorreu uma mudança substancial em nossa legislação no ano de 1833. Nesta ocasião – por pressão da Inglaterra, diga-se – se pôs fim ao comércio escravocrata. Nada obstante, a escravidão foi mantida. Em um regime escravocrata escravos são necessários. Sendo necessários continuaram a chegar ao país. Não mais em razão do comércio, mas do tráfico. Este tráfico gerou dividendos consideráveis e os traficantes precisavam lavar o dinheiro. A lavagem de dinheiro no Brasil começa regada a muito sangue. Navios negreiros geravam dividendos voluptuosos, que precisavam parecer limpos. Um modo prático para se fazer esta limpeza era com a compra de bens, o que fez lembrar a todos um problema. Ainda tínhamos propriedade imóvel na estrutura jurídica. Dividendos de um lado. Necessidade de se legitimar este dinheiro do outro. Neste contexto foi criada a Lei de Terras, fato consolidado em 1850. Esta surge para garantir a propriedade e, apesar das mazelas que legitima, traz em si uma noção de Função Social que nossa história ainda não recobrou. Posse e propriedade andavam juntas. Nossa Lei – e isto se inicia com a Lei de Terras – não foi fruto de um processo revolucionário. Na verdade o que tivemos foi uma importação do modelo francês sem qualquer preocupação de contextualização. Nisto nossa propriedade configura um modelo que não se preocupa com a legitimidade. A noção de domínio vigente no Brasil, às vezes garantido de forma indecente, está, em sua gênese, maculada com a coisificação de pessoas. Este momento de objetificação (lembremos que o comércio de escravos foi proibido em 1833) permitiu a que pessoas fossem artefatos de negociatas dos traficantes. Negociatas que demandaram a positivação do domínio entre nós com a Lei de Terras. No Brasil, ao contrário da França pós-revolução, a garantia da propriedade se fez sem se importar com a legitimidade da posse que a antecedeu. Pegamos a letra da lei de assalto, mas não seus propósitos. Nesta medida, não mais podemos pensar nosso ordenamento como coerente sem fazemos as filtragens que a ótica da pessoa nos impõe. O positivismo jurídico exacerbou a racionalidade científica, aqui entendida como uma capacidade que o ser humano possui para fundamentar a verdade das representações produzidas na sua mente. Nos moldes atuais, todavia, não mais se faz coerente uma visão de ordenamento jurídico nos moldes do Positivismo Jurídico19. O conhecimento, e nisto se inclui o direito, não pode esquecer dos pilares da racionalidade e da historicidade. O Direito é uma realidade que permeia a sociedade e a convivência dos seres humanos. Por isto se questiona sua capacidade de responder às demandas apresentadas pela sociedade se este é sua própria finalidade, O direito é produção humana. Mais profundamente é produção social pontuada no tempo e espaço. Deste modo a ciência jurídica tem que levar em conta o momento histórico e a sociedade para a qual existe, para que a pessoa tenha condições jurídicas de ser reconhecida em suas necessidades e finalidade. O Positivismo Jurídico afirma o primado da Lei em detrimento da Justiça. Tal colocação (absurda para nós) é afirmada no prefácio à segunda edição da obra basilar de Kelsen, onde este diz que o problema da Justiça está fora de uma teoria do Direito. Sua teoria se limita a analisar o “Direito positivo como sendo uma realidade jurídica”.20 A Justiça é remetida para um apêndice. O que vemos da obra citada é uma apresentação teórica voltada para o conhecimento, e não para uma ordem jurídica especial. Tem-se, em verdade, uma teoria da interpretação21. Uma teoria de interpretação que se esquece dos valores e perde sentido ao fazer remição a um fundamento que não diz qual é. Nada obstante, um fundamento pode ser encontrado, a nosso sentir na noção de pessoa. Nisto, sem qualquer dúvida, este encontraria razão de validade. 19 BOMBASSARO, Luiz Carlos. As fronteiras da Epistemologia: uma introdução ao problema da racionalidade e da historicidade do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1992. 20 KELSEN, Hans. Op. cit., p. 1 CRISE NO POSITIVISMO JURÍDICO. PARA ALÉM DA LEI E EM ENCONTRO DA PESSOA O Positivismo Jurídico ignora qualquer questão além da lei posta pelo Estado. A lei o estrutura e ele se volta para a satisfação desta mesma lei. Este entendimento foi marcante até a segunda Guerra Mundial. Hoje, contudo, há em torno da pessoa um amplo debate. Um debate que entre nós se faz intenso depois da Constituição da República Federativa de 1988. Nossa última Assembléia Constituinte acolheu noções fundamentais acerca da Pessoa Humana. O princípio da Dignidade foi positivado em sede constitucional. Tal fato, pos si somente, denota ser pretensa a idéia de completude que o positivismo asseverou como suposto de unidade e coerência de seu ordenamento. A importância da Dignidade Humana é total. Este princípio deve servir de critério direcional do legislador e do aplicador do direito, uma vez que, apesar do declínio, o positivismo permanece na estrutura do Direito. Enquanto instrumento do Estado, todavia, devemos questionar seus agentes políticos, legisladores e juízes até que ponto o Direito Positivo oferece soluções satisfatórias para nossa sociedade. Devemos aqui enfatizar a expressão “satisfatória” por representar o cerne da questão. Não se trata apenas de solução, mas de solução satisfatória. Uma vez visto que o Positivismo Jurídico não mais se faz adequado, restanos buscar um embasamento filosófico que possa dar sustentação ao Direito. Um embasamento que sirva de questionamento, crítica e norte para que o Direito (ciência autônoma que de fato é) possa responder ser um elemento de bem para a comunidade humana. Uma vez considerando que o direito não pode ser fim em si próprio, e que esta consideração é o cerne da crise do Positivismo Jurídico, faz sentido a colocação da pessoa no centro do sistema jurídico, sobretudo se consideramos que nossa Constituição apresenta em seu artigo primeiro a Dignidade da Pessoa Humana como seu fundamento explícito. A elevação da pessoa como relatada traz alguns nós epistemológicos, sobretudo que não mais podemos ler a Constituição com olhos meramente 21 Ibidem. positivistas. O Positivismo Filosófico e Jurídico, ainda arraigados entre nós, como parte do inconsciente coletivo jurídico, não podem ser fundamento para se esvaziar o alcance da pessoa em nome de uma pseudo-segurança jurídica. É preciso se lembrar, sempre, que vivenciamos um Estado Democrático de Direito e este tem uma função, antes de tudo, transformadora. Não mais podemos nos contentar com Estado de Direito (regulador) e Social, voltado para a promoção. É preciso que aspiremos e vivenciemos um Estado que seja, em essência, transformador. Uma transformação que deve ser feita a partir do pilar fundamental que é Pessoa Humana. Visto o Direito na perspectiva transformadora, um problema subjacente aparece. O Positivismo Filosófico, e também Jurídico, é, em essência, de cunho materialista. É preciso lembrar que desde Comte toda e qualquer dimensão espiritual foi banida em nome da ciência. Que foram ultrapassadas as fases teológica e metafísica da civilização humana. Que o direto se fez positivo e pretensamente absoluto e sem lacunas. É preciso se lembrar, também, e, sobretudo, que a negação de lacunas na Lei foi um dado da pretensão humana, já superado. Sendo assim, é de se perguntar: o que foi proposto para ocupar estas lacunas? É possível se afirmar que matéria cuida de matéria? Parece-nos que não. Nossa Constituição mudou. O espírito positivo, contudo, continua vigorando de modo expressivo no mundo do Direito. Vivemos em um Estado Democrático de Direito, mas isto significa pouco para a grande maioria da população. Nós, todos, conhecemos as dificuldades para se conseguir educação pública, atendimento adequado nos hospitais e, até mesmo, alimentos por uma parcela considerável da população brasileira. O Estado Democrático de Direito é uma evolução do Estado de Direito aspirado pela burguesia e concretizado nas Revoluções Liberais22. Neste a lei era a base do Estado, e ponto final. No Estado Democrático de Direito é preciso se vivenciar soberania popular. Logo a base está nas pessoas. Soberania popular, então, suplanta a noção de sufrágio universal. Aduz, em verdade, para a idéia de 22 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 16. participação (in)fluente do maior número de atores sociais. Uma participação que, de fato, permite a realização dos valores afetos à Pessoa Humana23. Em uma breve análise de nossa história republicana é fácil se concluir que não houve, até o momento, a efetivação da Pessoa Humana como fundamento do Estado. O positivismo está em crise e é bom que esteja. É preciso se superar sua noção de completude para que a pessoa possa ser o elemento de complementação do direito. É preciso se fazer interpretações conforme a Pessoa. Ler a Constituição é necessário. Suplantar a literalidade desta mais ainda. Interpretar a Constituição é, então, fazer uma leitura conforme a Pessoa Humana. Nossa sociedade tem como fundamento a Dignidade da Pessoa Humana. O Direito é fruto da sociedade que se manifesta através de seus representantes. Deste modo, nosso direito tem que estar baseado neste princípio. O que se constata, todavia, é que este ainda não foi incorporado ao fato à nossa realidade jurídica e social. Há distorções das mais variadas. Há diferenças sociais mais que notórias. Nosso país, um dos mais ricos do mundo, sustenta níveis de pobreza comparáveis aos dos mais pobres. Nisto a concentração de renda por parte de um pequeno número de pessoas viola o que o princípio da Dignidade Humana tem a dizer: respeito e consideração de todos. A base filosófica adequada ao Direito, que o coloque no tempo e espaço com a devida eficácia, livrando-o de anacronismos e paradoxos, deve levar em conta a totalidade da Pessoa. A Ciência Jurídica tem um motivo e um fim. Para isto, levar em conta a Dignidade da Pessoa é conferir ao ordenamento a superação da crise do positivismo. Uma possibilidade de visão do ordenamento que se faça unitária, coerente e completa na medida em que as pessoas sejam atendidas naquilo que lhes é essencial: a Dignidade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Em seu artigo 1º, III a Constituição da República Federativa do Brasil aponta como um de seus fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana. O legislador constitucional fez reconhecer que é a Pessoa a razão de ser do Direito, sendo seu 23 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 121. princípio, meio e fim. Nisto responde a um dos nós do positivismo. Confere a este o objeto de sua Norma Fundamental. A consagração constitucional é decorrência de um movimento iniciado no pós Revolução Francesa – e seu Positivismo Filosófico –, e repensado de forma essencial depois da Segunda Guerra Mundial. Um movimento que aponta na direção de um direito valorativo, e não mais apenas descritivo. Um movimento que visa coerência e unidade para o direito. Coerência e unidade na porção material, e não mais meramente formal. A mudança anunciada se deu na quadra histórica chamada contemporaneidade. Para tanto concorreram o Positivismo Filosófico, o Positivismo Jurídico e sua Norma Fundamental, apenar do vácuo não respondido por Kelsen e percebido nesta. A lacuna do que vem a ser Norma Fundamental nos parece ser bem preenchida com a noção de Dignidade Humana. Disto se tem um Positivismo Jurídico em crise. Uma crise que denota suas falibilidades e abre espaço para a (re)consideração da Pessoa. REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro V, capítulo 7. São Paulo: Nova Cultural, 1996. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ________. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1999. BOMBASSARO, Luiz Carlos. As Fronteiras da Epistemologia: Como se Produz o Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1992. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. COSTA, Maria Cristina Castilho. Sociologia: Introdução à Ciência da Sociedade. São Paulo: Moderna, 1987. ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. DWORKIN, Ronald. Os Direitos levados a Sério. Tradução de Nélson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 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