FUNÇÕES NO CINEMA I - O Diretor Por Filipe Salles* Home-page pessoal O papel de diretor começou com o próprio realizador. No início do cinema, não havia nenhum contingente técnico disponível, e quem tivesse vontade de filmar, deveria tomar todas as iniciativas para tal. Os diretores então escreviam suas próprias histórias, produziam às vezes atuavam e montavam o filme. Quando Hollywood entrou em cena, como pólo de produção de cinema, os filmes ganharam outra função, que acabou por se tornar uma espécie de monarquia do cinema: O Produtor. O produtor, por ser quem financiava os filmes, escolhia os roteiros, os artistas, e até o diretor, que se tornava mero técnico, tanto quanto os demais. Mas na Europa foi um pouco diferente. Como não existia uma produção industrializada, o diretor continuou sendo o grande realizador, o artista que usava o cinema como meio de expressão. Os primeiros grandes diretores, com exceção de Griffith e Porter, foram europeus. O Diretor tem, portanto, seguindo o raciocínio europeu, a responsabilidade do projeto. Ele deve conhecer perfeitamente todos os detalhes do roteiro, estudá-lo num storyboard, e ter previamente uma imagem feita de cada plano, que no conjunto dará significado à sua obra. Além do mais, deve conhecer detalhadamente cada função técnica do cinema, e saber o que pode extrair de cada uma com o orçamento que tem. Deve ter uma cultura literária, musical e dramática elevada, pois tudo servirá como referência em sua criação, mas também para poder escolher a melhor trilha sonora e a melhor forma de extrair a dramaticidade desejada de seus atores. Conhecimento de técnicas de fotografia serão muito úteis na agilidade do processo, pois saberá com mais precisão o que quer do fotógrafo. A noção geral da narrativa dará a ele segurança para supervisionar a montagem, e encaixar depois todos os elementos de pós-produção, como efeitos, fusões, ruídos e música. O trabalho do diretor é árduo, pois dele todos da equipe esperam segurança, tanto na escolha dos planos como na condução da filmagem tecnicamente falando. Ele deve saber até onde seu pedido está sendo atendido pela equipe de diretores, fotografia, arte e produção, para deixá-los com margem de criação também, sem que seu trabalho seja autoritário e extravagante. É necessário senso de medida apurado, que só se obtém quando se está totalmente imerso num projeto. O diretor é um criador que está lidando com um conjunto de artes que confluem para uma resultante de imagens, e por isso deve atentar para itens relacionados à filosofia da arte e teorias da estética. Deve escrever sempre que possível, para treinar a coerência narrativa, e exercitá-la no cinema, fazendo experiências de propósito bem definido. Deve aprender a olhar o mundo poeticamente, para que possa contribuir com informações diretas e metafóricas, efetivando assim a criação artística. No cinema em que o diretor é o autor, ele é o responsável pelo filme e pelo resultado, e deve zelar para que ambos confluam harmonicamente, segundo sua estética. copyright©2000 Filipe Salles *Filipe Salles é fotógrafo, cineasta e músico; é professor de fotografia na FAAP e mestre em Comunicação e Semiótica na PUC/SP O filme documentário como "documento da verdade" Umbelino Brasil Professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e cineasta. Autor dos filmes O que eu conto do sertão é isso ... (1979) e Lutas e vidas (1981). O cinema documentário pode ser considerado como uma fonte de pesquisa e ensino da história? Sim, mas esse gênero cinematográfico pode, também, significar para realizadores, estudiosos e espectadores uma prova da "verdade", uma vez que trabalha diretamente com imagens extraídas da realidade. É comum se imaginar o filme documentário como a expressão legítima do real ou se crer que ele está mais próximo da verdade e da realidade do que os filmes de ficção. Discutiremos essas questões, especificando a necessidade de se estabelecer uma determinada compreensão e o suficiente entendimento do significado das imagens vistas. Ao mesmo tempo, é extremamente pertinente fazer, pelo menos, uma breve análise do desenvolvimento e da forma como se constrói o filme documentário, enfocando, particularmente, os aspectos históricos da existência do gênero documentário no Brasil. Teceremos, ainda, considerações acerca desse produto enquanto fonte de documentação histórica ou de meio de representação da história. Comentaremos, de início, o documentário Cabra marcado para morrer (Eduardo Coutinho, 1984), que trata da história das lutas camponesas no nordeste brasileiro nos anos sessenta, mostrando a saga da família Teixeira, cujo pai, João Pedro Teixeira, foi assassinado em 1962, na cidade de Sapé, interior da Paraíba. Uma primeira versão do Cabra foi feita em 1964, produzida pelo CPC/UNE. O golpe militar, ocorrido no mesmo ano, interrompeu as filmagens. A família Teixeira se dissolveu, tendo Elisabeth Teixeira, mulher de João Pedro, fugido das forças repressivas da "revolução" militar, trocado o seu nome para Marta, assumindo uma identidade clandestina. Em 1981, após a anistia decretada pelo governo Figueiredo, Eduardo Coutinho partiu em busca dos camponeses/atores. Novos encontros acontecem, os personagens/atores/camponeses assistem ao filme realizado há 17 anos. Emoções são revividas, mexendo em questões adormecidas, postas de lado pela coerção e pela força. O reencontro de Elisabeth e Coutinho produz efeitos imediatos. Elisabeth reassume seu verdadeiro nome, enquanto Coutinho compromete-se com ela e vai à procura dos seus filhos espalhados dentro e fora do país, estando inclusive um em Cuba. Isso é feito através de um exímio trabalho jornalístico/cinematográfico. Assim, um segundo filme fica pronto vinte anos depois. Vejamos o desenrolar de três seqüências1 do filme Cabra marcado para morrer. Na primeira, a do reencontro entre Eduardo Coutinho e Elisabeth Teixeira, as cenas se desenrolam da seguinte maneira: Coutinho mostra a Elisabeth fotos que restaram da primeira filmagem, que passam de mãos-em-mãos, a câmera se move acompanhando as fotos e os olhares curiosos das pessoas presentes, volta em seguida fixando Elisabeth em primeiro plano. Escuta-se a voz em off do seu filho Abraão: "Mãe, reconheça a abertura política do presidente Figueiredo." Elisabeth, com um ar de constrangimento fala: "Graças a ele, nós estamos aqui Coutinho, eu e você podemos nos encontrar (...)". O filho interrompe a mãe e faz um discurso veemente: "... todos os regimes são iguais desde que a pessoa possua poder político (...) todos são violentos, arbitrários (...) quero que o filme registre o nosso repúdio a qualquer sistema de governo (...) nenhum presta para o pobre". E encerra a sua fala com os olhos cheios de lágrimas. Na segunda seqüência, na qual Elisabeth rememora a morte do seu marido, a câmera começa a se deslocar em um travelling mostrando uma cruz fincada na beira de uma estrada. São feitos vários cortes na imagem e vemos, também, recortes de jornais da época se referindo ao assassinato, a sua repercussão e fotos do morto. Agora, em plano aproximado, surge Elisabeth, tendo, em segundo plano, o filho. Os dois vão completando a narração do fato até Abraão encerrar a cena dizendo: "aprendi muito com a Dra. Elisabeth, minha mãe (...)", faz, em seguida, cobranças e exigências financeiras ao diretor do filme e conclui: "meu pai era um santo". Na terceira seqüência, aparece a Faculdade de Medicina de Santa Clara, em Cuba, onde Isaac, outro filho de João Pedro e Elisabeth, cursa o quinto ano de medicina. Vemos um plano geral aberto da fachada do prédio, um grupo de pessoas está saindo do seu interior, a câmera fecha no grupo em zoom destacando Isaac. Temos um corte. Agora, ele está fixado em primeiro plano fazendo a seguinte afirmação: A lembrança que tenho do Brasil com relação à luta do meu pai (...) naquela época começava a organização das Ligas Camponesas no Brasil (...) onde meu pai teve o compromisso e a obrigação com a luta (...) isso teve uma grande repercussão (...) um camponês, um homem humilde dedicar toda a sua vida pela luta dos camponeses brasileiros. São opiniões bem diferentes a respeito da mesma pessoa. Ainda mais, são visões ideológicas bem distintas sobre a vida do líder das Ligas Camponesas ditas por dois de seus filhos. Elas podem servir a um historiador como fio condutor para análise do pensamento político de João Pedro Teixeira, e, também, como referência para se fazer uma reflexão crítica do movimento precursor da questão da posse de terra no país. Mas é necessário considerar, a princípio, o grande distanciamento entre elas e o afastamento ideológico que é, ao mesmo tempo, contraditório no que diz respeito à construção mítica de seu herói. Nesse sentido, Cabra marcado para morrer representa para o cinema-documentário brasileiro um exemplo quase inédito, que é o de se opor à visão histórica oficial, predominante na maioria dos nossos filmes, a qual consiste na criação dos seus heróis com base no pensamento histórico-naturalista. As definições do filme naturalista e a sua relação com a visão histórica são apontadas lucidamente pelo teórico de cinema Jean-Claude Bernardet e pelo historiador Alcides Freire Ramos. Resumimos em cinco pontos esse entendimento: 1) o filme histórico naturalista oferece às pessoas a ilusão de estarem diante dos fatos narrados; 2) a estética naturalista constitui-se mediante uma manipulação muito particular do conjunto de elementos que compõem a linguagem cinematográfica; 3) o filme histórico naturalista propõe uma leitura única da história e acaba impondo uma visão do presente que interessa às pessoas que conceberam a realização; 4) o espectador quase nunca questiona em qual linha teórica a história do filme está sendo contada; esta é mostrada como se fosse a única interpretação do fato; 5) no discurso histórico apresentado pelo professor através do livro didático e no discurso cinematográfico naturalista, exigido pela maior parte da crítica de cinema, existem os mesmos mecanismos: um ocultamento das contradições, das divergências e dos confrontos2. A concepção do filme histórico naturalista vem evoluindo desde os primórdios do nosso cinema documentário, que se pautou no desenvolvimento da expressão social e política dos seus mitos e heróis, com base numa linha teórica, na qual a história narrada passa a habitar o imaginário do espectador na forma de verdade e de entendimento único do fato descrito. No começo da fase muda, agora falamos da produção do cinema documental, a característica dos filmes era centrada em duas linhas de trabalho: a primeira definida como a do berço esplêndido e a segunda do ritual do poder. Berço esplêndido é o culto das belezas naturais do país, notadamente da Capital Federal, mecanismo psicológico coletivo que funcionou durante tanto tempo como irrisória compensação para o nosso atraso. O cinema recém-aparecido foi posto a serviço do culto e nele permaneceu muito tempo apesar da qualidade tosca e monotonia dos resultados (...) O ritual do poder se cristaliza naturalmente em torno do Presidente da República 3 Esse período é marcado por formas de traduzir o panorama da realidade brasileira. O espectador assiste a tudo. As paisagens do Pão de Açúcar, Corcovado, floresta da Tijuca são exaustivamente registradas. São vistas inaugurações de praças, logradouros, além de todos os Presidentes terem sido filmados. Paulo Afonso, Amazonas e Mata Atlântica já são parte do nosso cenário cinematográfico e aparecem, também, em registros documentais. Quanto aos nossos índios, são eles incorporados através de imagens colhidas, ainda, dentro de uma ingênua tranqüilidade, pelas caravanas de Rondon. Essa impressão ufanista do Brasil ganha outra dimensão durante o Estado Novo, com a criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). Os documentários compostos durante esse regime assumem as concepções do Estado autoritário e passam a expressá-las. Tudo é feito para fins propagandísticos, na tentativa de formação de uma imagem mitológica de Getúlio Vargas. É esclarecedor citar um relato a respeito dos cine-jornais criados pelo DIP. Um deles, o que tem como registro a visita do Presidente à Escola Técnica Nacional, foi descrito da seguinte maneira por um aluno, em carta enviada aos seus pais: ... determinado número de aprendizes operavam no primeiro dia, após seis horas de instrução, máquinas que não podem compreender, executando as mais variadas manipulações, mas nenhuma delas correta, de onde se depreende o caráter de "bluff". O cúmulo, porém, consistiu na filmagem de máquinas que ainda não estavam em condições de funcionar4. Esse fato nos leva a ponderações sobre a manipulação das imagens. O processo de manipular imagens contradiz, evidentemente, o pensamento ou a suposição de que tudo que se assiste em um filme documentário poder ser encarado como verdade. Por isso, a melhor definição de documentário deve ser estabelecida através dos seus elementos constitutivos, que são idênticos aos dos filmes de ficção que, não podendo proporcionar a reprodução da realidade, estabelecem, assim, a sua construção ou interpretação. Essa posição nos conduz, sem dúvida alguma, a afirmar que o documentário pode, perfeitamente, estar mais próximo do filme de ficção do que a suposta realidade que ele traduz. Acrescentamos, para reforçar as nossas convicções sobre o entendimento do filme documentário apenas como uma "modalidade de discurso que tende a construir a realidade ao invés de apenas reproduzi-la"5, que a técnica de entrevista usual utilizada nos filmes documentários está comprometida, à medida que o entrevistado assume uma interpretação de si mesmo, criando uma "dramaturgia natural"6, diminuindo, portanto, a fronteira entre o entrevistado e o ator, que não pode ser delimitada de forma tão rigorosa. Para exemplificar a noção de dramaturgia natural, usaremos uma seqüência do filme A idade da terra (Glauber Rocha, 1981), em que pese ser este um filme de ficção. Nas cenas em que o ator Antônio Pitanga entrevista o jornalista Carlos Castelo Branco sobre o golpe militar de 1964, essa película assume a característica de um documentário. Vemos, inicialmente, Carlos Castelo Branco no seu apartamento em Brasília, sentado numa poltrona tomando uísque. A sua frente está o ator Antônio Pitanga que, nesse momento, não assumiu a personagem que interpreta no filme: o Cristo Negro. A câmera está fixa na maioria dos planos, os enquadramentos quase nunca centram os dois, entrevistado e entrevistador e, às vezes, procura multiplicá-los, colocando-os sentados com um espelho nas costas. Pitanga pergunta: "Castelo, houve uma revolução dentro da Revolução de 1964? Castelo responde: É, você sabe o que aconteceu no Brasil depois da renúncia do Presidente Jânio Quadros? Mas não vale a pena entrar em pormenores (...)". Pitanga volta a fazer outra pergunta: "Castelo, e o povo em tudo isso? Teve algum benefício com a Revolução? Castelo: Já dizia o Presidente Médici, em visita ao Nordeste, no auge do crescimento econômico do Brasil, que a nação ia bem mas o povo ia mal (...)" Há uma encenação por parte de Antônio Pitanga e Carlos Castelo Branco. Eles representam os seus próprios papéis ao invés de um papel estético, como é o destinado aos atores profissionais, como normalmente ocorre nas encenações de ficção. No documentário, essa representação de si mesmo tem uma função que é o modo pelo qual os participantes/personagens assumem a realidade social na qualidade de sujeito. Outro dado significativo na elaboração do documentário é o da montagem, elemento de extrema importância, pois através dela os realizadores podem trocar, amputar, deslocar e redimensionar o tempo e o espaço, dando ao produto fílmico a sua própria dimensão espacial/temporal, definida como situação diegética. A montagem favorece, de forma clara e concisa, a possibilidade da verdade ser profundamente alterada, transformada em inverdade e vice-versa. Diante disso, faz-se necessário ao historiador aplicar a mesma metodologia usada para o manuscrito, impondo-a igualmente ao documentário ou filme de ficção, ao tratá-lo como produto, fonte de documentação ou de representação da própria história. Para se chegar a esse entendimento, a evolução do filme documentário brasileiro obedeceu ao delineamento de uma trajetória que pontuamos em seus momentos mais expressivos. Após os anos trinta, surge uma produção significativa realizada por Humberto Mauro, com o apoio do Cinema Educativo da Fundação Roquette Pinto. Mauro fez inúmeros filmes e, entre eles, destaca-se a série As brasilianas, da qual faz parte Engenhos e Usinas (1955). Nesse documentário, o cineasta pioneiro do cinema brasileiro estabelece uma relação orgânica entre a evolução econômica e industrial das usinas em comparação com os engenhos de cana-de-açúcar, usando a narrativa dramática dos poemas de Ascenso Ferreira. O filme penetra nos problemas sociais, tentando evidenciar as causas da tensão na relação homem-máquina, motivando Glauber Rocha a fazer a seguinte análise: Este seria um documentário de três planos, inclusive, caso Mauro quisesse: após a força do plano inicial, tendo montado uma roda de engenho e logo uma turbina de usina, toda a história da economia açucareira do Brasil, que marcou a agricultura no primeiro período colonial, estaria levantada. Aí nesse plano inicial está a raiz do enquadramento do filme brasileiro ...7 Aqui, nas mãos de Humberto Mauro, o documentário adquire uma forma capaz de estabelecer um diálogo com a realidade, de travar uma relação dialética que possa levar à crítica e à prática transformadora das questões postas em imagens pelo cinema documental, assegura até o marco inicial da origem de um cinema brasileiro endógeno, mas não garante que a transposição da realidade seja perfeitamente real. A modernidade se instala no cinema documentário nos anos 60, com a realização de dois filmes Arraial do Cabo (Paulo César Sarraceni e Mário Carneiro, 1960) e Aruanda (Linduarte Noronha e Rucker Vieira, 1960). Sobre esse último, Glauber afirmou: Linduarte Noronha e Ruker Vieira entram na imagem viva, na montagem descontínua, no filme incompleto. "Aruanda", assim, inaugura o documentário brasileiro nesta fase que atravessamos ...8 Esse filme possui um formato que, rigorosamente, confirma a fusão entre documentário e ficção. Ao narrar a história de uma família de ex-escravos formando um quilombo no interior da Paraíba, o filme, na primeira parte da sua narrativa, enfoca a construção da trajetória de Zé Bento, sua mulher e filhos na busca de uma terra nova. Faz uma reconstituição dos fatos com as pessoas que habitam o quilombo no seu tempo contemporâneo. Em seguida, aglutina-se à primeira uma segunda parte narrativa, destacando o cotidiano do quilombo e a produção de utensílios em cerâmicas, garantia da sua subsistência. O espectador assiste a tudo como uma composição única de realidade, sem questionar a fusão entre tempo presente e tempo passado e sem se dar conta ou fazer distinção entre ficção e documentário. Entre os anos 60-70, a produção documentária passa pelo registro das tradições populares, na procura de uma identidade nacional. Essa produção é praticamente financiada pelo mecanismo da política cultural desenvolvida pelo MEC, através de seus órgãos executores como: Funarte, Departamento de Assuntos Culturais e, principalmente, Embrafilme. Antes disso, houve, no período 1964/1965, o que Jean-Claude Bernardet classifica como modelo sociológico9, caracterizado pelo tipo de documentário cujos temas estão direcionados aos problemas sociais das minorias abafadas pela pressão do novo regime, e há uma grande preocupação quanto à evolução da linguagem cinematográfica10 . O passo adiante dado pelo gênero documentário é correspondente à fase democrática dos anos 80 , onde o Cabra marcado para morrer vai ser um contraponto aos filmes feitos na época como: Anos JK — uma trajetória política (Sílvio Tendler, 1980); Jango, (Sílvio Tendler, 1984); Jânio a 24 Quadros (Luiz Alberto Pereira, 1981); Jânio vinte anos depois (Sílvio Back, 1980), para citar alguns exemplos. Esses filmes estão calcados e mantêm uma proximidade com o historicismo, o que não acontece no Cabra, que se apresenta desvinculado totalmente dessa forma de interpretar a história. O filme escapa dessa tendência e por isso é louvável e louvado por críticos e historiadores na sua busca de elaborar uma história baseada em um processo de construção da memória e do resgate dos oprimidos. Porém, não escapa, segundo o nosso entendimento, do arcabouço estabelecido pela linguagem do cinema que só consegue ser decifrada através da compreensão e entendimento dos seus elementos expressivos, classificados por teóricos e especialistas da linguagem de signos, símbolos ou códigos. Suas interpretações, leituras ou decodificações são sempre instituídas por pressupostos arquitetados por um observador que, obviamente, estará carregado de um dispositivo próprio. Devemos considerar que isso reflete não só o deciframento do significado da imagem como pode, perfeitamente, carregála com suposições ideológicas contidas a priori no pensamento de quem vê essas imagens. A rigor, o cinema está vinculado a uma narrativa e isso implica que o filme sempre conta uma história e há, evidentemente, no caso, uma estreita ligação entre o desenrolar de uma película e o fato de contar histórias por procedimentos específicos, cuja matéria básica empregada para obter esse resultado é a utilização da imagem figurativa em movimento. Considerando isso um meio de registro, a imagem figurativa oferece ao espectador um certo número de convenções, chamadas, também, de "representação visual"11 , onde os objetos registrados são perfeitamente reconhecíveis. O reconhecimento aqui está empregado no sentido de rememoração e de acordo com Ernest Gombrich que, ao estudar as imagens, observou a oposição de duas formas principais de investimento psicológico na imagem: o reconhecimento e a rememoração. Na explicação desses dois termos, observa, primeiramente, que a dicotomia coincide com a distinção entre função representativa e função simbólica, sendo uma espécie de tradução em termos psicológicos. Uma puxando mais para a memória, logo, para o intelecto, para as funções do raciocínio, e a outra para a apreensão do visível, para as funções mais diretamente sensoriais. A formulação gombrichiana indica a seguinte hipótese: A imagem tem a função de garantir, reforçar, reafirmar e explicitar nossa relação com o mundo visual. Ela passa a desempenhar o papel da descoberta visual 12. Para nós, essa descoberta visual acontece no momento em que o espectador constrói a imagem que está vendo, podendo ocorrer um processo onde a imagem passa a construir, também, a visão desse espectador. Nesse caso, o espectador age como parceiro ativo da imagem e sua reação pode ser medida emocionalmente. A medida emocional da visão do espectador se dá no momento do processo de reconhecimento de alguma coisa, uma imagem para identificar. Trata-se de um procedimento que utiliza o emprego das propriedades do sistema visual e esse trabalho de reconhecimento, na própria medida em que trata de reconhecer, apóia-se na memória. A estratégia da narrativa do Cabra marcado para morrer está montada na memória. Construído em duas versões, a primeira é um filme de ficção com marcas do neo-realismo e influências do realismo socialista, mostrada em fragmentos que são vistos pelos camponeses e espectadores dentro da segunda versão, o documentário. Acontece uma sessão permanente de rememoração e de reconhecimento. Dentro da moldura cinematográfica, os camponeses, passados longos 17 anos, vão-se revendo, confirmando ou negando os fatos e quebrando o caráter dogmático que poderia existir no filme. Do lado de fora, no espaço destinado à platéia, os espectadores vão acompanhando as duas histórias simultaneamente e reavivando a memória da história recente do país. Nesse caso, a história aproxima-se da definição de Walter Benjamin: A história não é somente uma ciência, mas também uma forma de memória 13. No caso do filme, a memória tem a função de modificar os fatos fixados pela história oficial, ela vai tendo o papel de concluir o que não foi permitido. A narração do Cabra possui uma operação totalmente fragmentada nas duas versões. Adotando essa sistemática de trabalho, o diretor/autor Eduardo Coutinho desdobra a atenção do espectador em todos os seus personagens e a projeção segue em busca de um tempo perdido e de sua permanente reconstrução. Nessa busca, semelhante à narrativa proustiana, Coutinho se insere dentro do filme. Agora já não está fora do quadro, como no primeiro momento. É parte integrante dele, nesse segundo instante, assume as coordenadas fazendo uma narração que funciona como reflexão/análise do seu próprio passado e dos camponeses e faz isso eticamente, ... no documentário além da presença de elementos políticos, a presença da ética é algo essencial. O que não é no cinema de ficção. No cinema de ficção a ética é do resultado final. No documentário a ética está presente no próprio material que você filma (...) Quando você fala com a pessoa, deve considerar em cada momento o que essa pessoa vai sofrer. Já prejudiquei filmes meus tecnicamente por questões éticas14. O Cabra está marcado, assim, por uma técnica distante do primor encontrado pelos espectadores em filmes que fazem parte do chamado cinema clássico. A sua forma é outra. Sendo composto de outra maneira, a sua compreensão tem que ser feita na base da verdade, da ótica, da ética e da memória dos oprimidos e nunca na visão dos dominantes.