Arbix, Glauco & Cândia, João Paulo. “A Crise do Mercosul e o abraço de urso da Alca” São Paulo: Gazeta Mercantil, 23 de abril de 2001. Jel: F e P A crise do Mercosul e o abraço de urso da Alca Glauco Arbix e João Paulo Cândia 23 de abril de 2001 - Não é preciso muita acuidade analítica para perceber que a margem de manobra negociadora do Brasil diante da Alca vem se estreitando a cada dia. Essa tendência se iniciou com a crise asiática e o posterior terremoto que a desvalorização cambial provocou no Mercosul em 1999. Prosseguiu com a desarticulação dos esforços de 'relançamento' do bloco provocada pelas dificuldades crescentes da economia argentina, para chegar até a rápida deterioração do governo De la Rúa, mantido por meio de uma coalizão de duvidosa eficácia política e desafiado por governadores provinciais e pela inquietação sindical, que ajudou a turvar ainda mais os horizontes no Cone Sul. No final de 2000, já havia sido o Chile a dizer, alto e bom som, que poderia desistir do Mercosul em troca de um acordo bilateral com os Estados Unidos. Depois do Chile e da Argentina - que desde o primeiro governo Menem usou e abusou dessa possibilidade para extrair concessões brasileiras - seria a vez do presidente do Uruguai, Jorge Batlle, a insistir com veemência nas negociações com os EUA. O fato é que as diferenças estruturais e estratégicas de negociação com os EUA vêm corroendo ainda mais o frágil cimento que mantinha unido o Mercosul. Longe de uma vitória arrasadora e programada de nossa diplomacia, a crise do Mercosul está nos empurrando cada vez mais para o abraço de urso da Alca. Nessas condições, em que se faz vital a preparação de um sistema de defesas capaz de assegurar nosso direito de delinear com independência os contornos da melhor integração para o País, de modo a evitar a subordinação e a raquitização da nossa economia, fica difícil entender o afastamento do diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que não escondia suas críticas à Alca. O desequilíbrio de um eventual monitoramento oficial sobre sistemas sensíveis de geração de conhecimento pode ter conseqüências amargas. Se somarmos à rigidez do gesto o estresse em que entrou a principal estratégia externa do Brasil nos anos 90, a do Mercosul, teremos uma realidade de desconforto e mal-estar no Itamaraty. A Alca e a União Européia (UE), os dois principais horizontes de integração para o Brasil, apresentam configurações bem distintas. No caso da UE, decisões de peso dependem de um consenso mais fino entre um grande número de países. E não é provável que a UE facilite as negociações com o Mercosul sem ter clareza sobre a disposição e o fôlego das negociações multilaterais. Não é à toa que o jogo da política externa se dá cada vez mais no campo da Alca, exatamente o bloco que traz maior risco e menos vantagens ao Brasil. A Alca não apenas atropelou a agenda de relançamento do Mercosul como modificou a postura argentina nas negociações com o Brasil. Cavallo quer voltar atrás no acordo que ele mesmo assinou em 1994, transformando o Mercosul apenas numa área de livre comércio. Tenta, com isso, dar maior liberdade à Argentina, roendo a corda de uma eventual negociação em bloco com os EUA. Num certo sentido, esse projeto argentino não traz surpresa. A novidade, porém, está dada pela turbulência em que se encontra o país. O violento ataque contra os 'especuladores brasileiros' indica que Cavallo vai esgarçar ao máximo as relações com o Brasil para obter futuras concessões, ao mesmo tempo que sinaliza para os EUA que o consenso no Mercosul está abalado. O superministro está, porém, no fio da navalha, pois não será fácil cumprir suas promessas sem desatar o nó da atual paridade cambial fixa. E a questão relevante, aqui, diz respeito à capacidade da Argentina e do Mercosul de resistir a tão imprevisível quanto inevitável mudança de um regime cambial rígido para outro flutuante, seja esse qual for. Se Cavallo for bem-sucedido, o risco é de a Argentina avançar na proposta de tornar o Mercosul um bloco sem política comercial comum, enfraquecendo a posição brasileira na Alca. Se fracassar, as conseqüências de um default argentino teriam forte impacto no Brasil. Ou seja, tudo indica que com essas duas alternativas não temos muito a ganhar. Se olharmos mais para o Norte, a previsão do tempo também indica instabilidade. A vontade do governo Bush de pressionar pelo consenso dos países latino-americanos para aprovar no Congresso a Trade Promotional Authority (TPA) não conseguiu nem mesmo amenizar a profunda divisão em que se encontram os deputados e senadores americanos sobre essa questão, descortinando a possibilidade de um equilibrado braço-de-ferro. Nessas condições, a movimentação do governo brasileiro no sinuoso tabuleiro da Alca parece condicionada pelo êxito futuro da economia argentina e as fricções entre o Executivo e o Congresso dos EUA, situação essa que, pelo menos a curto prazo, não traz resultados palpáveis ao Brasil. O problema de fundo, porém, é que a diplomacia brasileira não vem conseguindo formular alternativas para essa equação que está aprisionando nossa política externa. Num cenário pessimista, o aprofundamento da crise argentina e a permanência do impasse no Congresso americano poderiam estimular o governo De la Rúa a buscar um acordo direto com os Estados Unidos, o que equivaleria a praticamente acabar com o projeto da união alfandegária no Mercosul. Num cenário menos pessimista, a Argentina conseguiria recuperar sua economia, ao mesmo tempo que Bush teria as mãos livres para as negociações da Alca. Nesse caso, o Mercosul prosseguiria em sua atual trajetória claudicante, a não ser que fosse alvo de um rápido reordenamento estratégico. Nos dois cenários extremos, o fundamental é reconhecer que o ar carregado que se respira hoje no Cone Sul está sendo bombeado pela expectativa de criação da Alca. Nesse quadro, a atuação brasileira, além de não conseguir influenciar seus parceiros regionais, está sitiada pelos movimentos da Argentina e dos EUA. Está mais do que na hora de o Brasil encontrar disposição política e estratégia para fazer com que as propostas de integração comercial não sejam apenas destino, como a Alca está parecendo ser. (Gazeta Mercantil/Página A3) (Glauco Arbix e João Paulo Cândia, respectivamente, Professor do Departamento de Sociologia da USP e pesquisador da Fapesp e do CNPq e Doutor em ciência política pela USP e pesquisador do Cedec)