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A REFORMA AGRÁRIA NA CAMPANHA GAÚCHA: a (re) construção de espaços socioculturais 1
Marcelo Cervo Chelotti2
Vera Lúcia Salazar Pessôa 3
RESUMO: A reorganização do espaço agrário na Campanha Gaúcha a partir da década de 1990 corresponde ao
processo de reorientação geográfica dos projetos de assentamentos rurais no Rio Grande do Sul. A instalação
desses assentamentos rurais intensificou a presença da produção familiar em áreas de pecuária tradicional,
possibilitando uma nova dinâmica regional, numa parcela significativa do espaço rural gaúcho, onde milhares de
sujeitos estão reconstruindo, seus espaços socioculturais.
PALAVRAS-CHAVE: reforma agrária; assentamentos rurais; Campanha Gaúcha.
1. INTRODUÇÃO
A emergência de movimentos sociais em finais da década de 1970, principalmente o Movimento
dos Atingidos por Barragens (MAB), e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), fez com
que se configurasse no Rio Grande do Sul um espaço agrário possuidor de diversos atores sociais
capazes de transformarem, embora aos poucos, uma estrutura fundiária desigual e contraditória,
originada na diferença da ocupação socioespacial desse território.
Assim, nesses últimos trinta anos, os movimentos sociais tiveram muitas conquistas,
principalmente no que tange o assentamento de centenas de famílias de trabalhadores sem terra.
Sendo assim, o no ano de 2004 o Rio Grande do Sul contava com 131 Projetos de Assentamentos
(PAs) sob responsabilidade do governo do estado, beneficiando 4.206 famílias, atingindo 57 municípios.
Em relação aos PAs criados em convênios entre o Estado e a União - compartilhados -, encontravamse assentadas 940 famílias, em 29 assentamentos. No que se refere aos assentamentos sob
responsabilidades do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), este contava com
126 projetos, abrangendo 6.057 famílias.
A presente discussão é parte integrante do projeto de tese “Do latifúndio aos assentamentos: a nova (re) configuração
regional na Campanha Gaúcha” vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de
Uberlândia/MG.
2 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG. Bolsista da
Fundação de Amparo a Pesquisa de Minas Gerais – FAPEMIG. Endereço: Laboratório de Geografia Agrária/LAGEA, sala 1
H 02, Bloco 1H, Campus Santa Mônica. Av. João Naves de Ávila, 2160, CEP 38.408-100, Uberlândia (MG). Tel: (34)32394169 - ramal 47.E-mail: [email protected]
3 Professora no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Uberlândia/MG. E-mail:
[email protected]
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Nesse contexto, no período de 1979 a 2002, foram implantados um total de 286 PAs no Rio
Grande do Sul, com 11.622 famílias assentadas, em uma área total de 255.246 hectares e em 75
municípios, mas com forte presença na Campanha Gaúcha.
Esse fato se deve, em função de que a Campanha Gaúcha tornou-se região prioritária para a
realização de reforma agrária no Rio Grande do Sul, promovendo um acirramento, na década de 1990,
do processo de luta pela terra entre o MST e a Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul
(FARSUL).
Portanto, a reorganização do espaço agrário na Campanha Gaúcha corresponde ao processo de
reorientação geográfica dos projetos de assentamentos rurais no Rio Grande do Sul, onde essa
instalação intensificou a presença da produção familiar em áreas de pecuária tradicional, possibilitando
uma nova dinâmica no espaço rural do sudoeste gaúcho.
2. A ESTÂNCIA TRANSFORMOU-SE EM ASSENTAMENTO
Ao estudar o espaço agrário do Rio Grande do Sul, deve-se analisar a forma como ocorreu a
ocupação desse território, estabelecendo-se suas diferenças, principalmente no quesito sociocultural. A
primeira diferença refere-se basicamente a ocupação do território gaúcho durante o império, em que as
lutas entre Portugal e Espanha eram constantes para a conquista e anexação de terras.
Assim, a primeira diferença a ser destacada, refere-se ao fato de que o Brasil meridional emergiu
como um foco de tensão entre estes dois impérios. Desta maneira, a área que corresponde ao atual
território gaúcho, foi colonizado por militares ligados ao governo imperial, que receberam grandes
glebas de terras, denominadas de sesmarias. As pessoas que foram contempladas com as sesmarias
tinham a função geopolítica de realizar a proteção das fronteiras do território que estava sendo formado.
Assim, percebe-se nitidamente a forma de ocupação da posse da terra nas regiões fronteiriças do Brasil
meridional, na qual a sesmaria representou o acesso a terra, e a estância 4 a unidade produtiva.
Para Haesbaert (1988, p. 36) o processo de ocupação da posse da terra na região fronteiriça do
Brasil meridional deu-se da seguinte maneira:
Apropriado o território, fixada a fronteira, articulavam-se nitidamente uma base econômica
específica (a pecuária), um grupo hegemônico regional (o caudilhismo militar-pastoril) e uma
identidade cultural-ideológica forjada no espaço latifundiário e nas práticas sociais a ele vinculada.
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Em função da influência espanhola, denomina-se estância as fazendas dedicadas à criação de bovinos e ovinos no Rio
Grande do Sul, principalmente na Campanha Gaúcha.
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Desta maneira, articula-se na região, uma economia alicerçada na pecuária extensiva baseada
na sesmaria como forma de posse da terra. Assim, pode-se inferir que a presença da grande
propriedade latifundiária no sudoeste gaúcho encontra-se na gênese da ocupação territorial.
Assim, a Campanha Gaúcha é o cerne do espaço latifundiário gaúcho, pois se caracteriza pela
presença de grandes propriedades rurais que se dedicam à criação extensiva de bovinos e ovinos.
Enfim, essa região é caracterizada por apresentar altos índices de concentração da posse da terra no
Estado do Rio Grande do Sul, como apontam Riedl e Navarro (1998, p. 223)
O latifúndio, entendido como uma forma de propriedade típica do meio rural brasileiro,
caracterizado por exercer padrões de dominação política clientelista e exploração econômica
extensiva, de baixa produtividade, tem diminuído em número no Estado, em razão do processo de
modernização. Hoje não são muitas as regiões onde é possível identificar um maior número de
propriedades com tais características – são por exemplo, as regiões formadas pelo triangulo Cruz
Alta – Santiago – São Gabriel e, certamente, em muitos municípios da fronteira [...]
A segunda diferenciação da ocupação do território gaúcho, refere-se as áreas florestais que
foram, no decorrer do processo de ocupação, desprezadas pelo latifúndio pecuarista. Portanto, estas
áreas somente começaram a ser ocupadas em meados do século XIX com o estimulo governamental à
imigração, formada basicamente por italianos e alemães.
A ocupação das áreas florestais com imigrantes europeus, organizada a partir das pequenas
propriedades familiares, desenvolveu a agricultura de subsistência, chamada também de agricultura
colonial. Assim, as áreas de colonização ao norte do estado, começaram a diferenciar-se, por produzir
os produtos que a grande propriedade latifundiária não produzia.
A diferenciação na ocupação da posse da terra no Rio Grande do Sul possibilitou o surgimento
de uma dicotomia muito marcante em sua estrutura fundiária. Assim, nas áreas de fronteira, a
propriedade da terra estava associada à sesmaria, enquanto que as áreas coloniais, ao norte do
estado, uma estrutura fundiária alicerçada na pequena propriedade familiar baseada na imigração ítalogermânica.
Essas duas formas de ocupação do território gaúcho materializou no seu espaço agrário
diferentes formas de uso da terra. De um lado, ocorreu o pleno desenvolvimento das atividades pastoris
com a grande ascendência das charqueadas e, por outro, uma produção familiar estruturada na
policultura e a presença da pequena propriedade rural.
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No entanto, a partir de meados da década de 1960, com o desencadeamento do processo de
modernização da agricultura brasileira, o Rio Grande do Sul, se inseriu nesse contexto produtivo,
levando à profundas transformações no seu meio técnico, modificando o espaço agropecuário.
As transformações que ocorreram no campo brasileiro nesse período e, em especial, no Rio
Grande do Sul, promoveram uma grande concentração das terras em todo o estado, levando à
expropriação de grande parte dos pequenos produtores familiares. Dessa maneira, a terra tornou-se
ainda mais concentrada nas áreas de pecuária, enquanto que, nas áreas de colonização,
predominantemente agrícolas, começava a concentrar-se, ocorrendo assim, a formação e consolidação
das empresas rurais produtoras de soja e trigo (BRUM, 1988).
No decorrer do processo de consolidação da modernização da agricultura na década de 1970,
grandes levas de produtores familiares oriundos das áreas coloniais do norte do Rio Grande do Sul,
tornaram-se sem terras, e outra parcela, direcionaram-se para as áreas de expansão das fronteiras
agrícolas.
Nesses quase trinta anos, a luta pela terra no Rio Grande do Sul, registrou um movimento
geográfico. Inicialmente gestadas no norte do estado, depois se dirigindo à parte central (já em
1987/88), e no período pós 1990 concentrando-se no sul do estado, ou seja, na região dos latifúndios e
de ocupação antiga.
Riedl e Navarro (1998), destacam que as propriedades rurais da Campanha Gaúcha passaram a
ser vistoriadas pelo INCRA, em função de apresentarem baixíssimos índices de produtividade. Apesar
da forte resistência regional as vistorias, o instituto realizou uma série de desapropriações, com o
objetivo de implantar assentamentos rurais de reforma agrária.
Haesbaert (1988, p.89) ressalta que
Apesar de sua clara decadência (ou estagnação), com a agricultura empresarial capitalista
representando a principal base econômica em vários de seus municípios, ainda permanece nítido
o domínio espacial do latifúndio na área da Campanha, pois mesmo os campos nativos de
pecuária extensiva ainda cobrem cerca de três quartos do espaço ‘regional’.
A reorientação dos projetos do MST para a Campanha Gaúcha consolida-se na medida em que
ocorre um aparente esgotamento de propriedades a serem adquiridas em outras regiões do estado.
Assim, no pós 1990, verifica-se uma forte reorientação desses projetos de assentamentos em direção
ao sudoeste do Rio Grande do Sul. Portanto, a Campanha Gaúcha, constituiu-se num “espaço de
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reserva de terra”, para futuros assentamentos, como fez o INCRA, ao procurar imóveis na região para
futuros assentamentos rurais.
Nesse contexto, torna-se evidente, que a Campanha Gaúcha se insere em um novo contexto
socioespacial, ou seja, via (re) organização de seu espaço agropecuário. Assim, a instalação de
assentamentos rurais é acentuada na região, e a produção familiar, começa a adquirir importância em
âmbito regional.
Dessa maneira, verificasse que, municípios como Santana do Livramento, Hulha Negra, Dom
Pedrito, São Borja, dentre outros, tiveram a instalação de assentamentos rurais em antigas estâncias,
como se verifica na tabela 1.
Tabela 1: Número de assentamentos, famílias e área ocupada em hectares na Campanha Gaúcha no
ano de 2005.
Microrregiões
Nº de
Nº de
Área ocupada
Geográficas
assentamentos
famílias
(ha)
Alegrete
0
0
0
Barra do Quarai
0
0
0
Garruchos
1
44
722
Itaqui
0
0
0
Maçambará
0
0
0
Manoel Viana
1
227
6.118
Quarai
0
0
0
São Borja
4
77
1.512
São Francisco de Assis
0
0
0
Uruguaiana
1
15
81
Campanha Ocidental
7
363
8.433
Rosário do Sul
1
48
979
Sant’Ana do Livramento
23
682
20.609
Santa Margarida do Sul
0
0
0
São Gabriel
1
55
1.493
Campanha Central
25
795
23.081
Aceguá
3
162
3.930
Bagé
1
80
4.022
Dom Pedrito
3
102
1.707
Hulha Negra
25
796
21.367
Lavras do Sul
0
0
0
Campanha Meridional
29
1.140
31.026
Total da Mesorregião
61
2.298
62.540
Fonte: www.ra.rs.gov.br (2005).
Org.: Chelotti, M.C. (2005).
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Portanto, na Campanha Gaúcha, existem 61 assentamentos instalados, onde foram assentadas
mais de 2.000 famílias, que na sua maioria são provenientes de outras regiões gaúchas. Mas a
instalação desses assentamentos concentrou-se basicamente em dois municípios. Como exemplo
citam-se os municípios de Sant’Ana do Livramento, com 23 assentamentos, e Hulha Negra com 25
assentamentos.
A inserção dos trabalhadores sem terra, enquanto novos agentes no espaço agrário da
Campanha, alterou as relações sociais até então vigentes na região. Com esse novo processo,
algumas relações sociais tornaram-se mais complexas, tendo em vista a pluralidade de sujeitos que ali
passaram a interagir.
Dessa maneira, o aspecto cultural deverá ser considerado uma variável importante para
compreender as novas relações que foram estabelecidas no espaço agrário da Campanha. A instalação
de trabalhadores Sem Terra provenientes de outras regiões implica numa adaptação ao novo ambiente,
às vezes não muito fácil.
3. A RECONSTRUÇÃO DOS ESPAÇOS SOCIOCULTURAIS
A partir dos assentamentos rurais realizados pelo INCRA houve a divisão do latifúndio pastoril,
em pequenas unidades de produção familiar. Desta forma, foram alocados para os assentados lotes
que variaram de 15 a 30 ha, ou seja, verdadeiros minifúndios. Verifica-se então, um processo de
minifundização acentuada a partir da década de 1990 na Campanha Gaúcha.
Na medida em que os assentamentos estão sendo instalados, as primeiras transformações
ocorrem na paisagem regional. Assim, ocorre uma ruptura na paisagem homogenia característica da
região, dominada até então, pelos grandes propriedades, pastagens e criação extensiva de gado de
corte.
As principais transformações na paisagem podem ser vistas principalmente na estrada que liga o
município de Rosário do Sul/Sant’Ana do Livramento/Dom Pedrito. Ao longo dessa estrada, no decorrer
da década de 1990, foram instalados inúmeros assentamentos rurais, visivelmente perceptíveis nas
novas formas de ocupação e produção da área. Onde até então somente existia grandes propriedades
e criação extensiva de gado, surgem várias pequenas propriedades rurais desenvolvendo uma
agricultura familiar, destoando totalmente da tradicional paisagem regional.
Mas, cabe destacar que a grande parte desses assentamentos criados são espacialmente
dispersos, dada a grande dimensão territorial da Campanha Gaúcha, onde muitas vezes apresentam
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uma infra-estrutura viária deficiente dificultando ou mesmo inviabilizando mercados para os produtos
oriundos dos assentamentos. A instalação de assentamentos rurais tem fortalecido a produção familiar
em âmbito regional, possibilitando um novo modo de exploração da terra.
A inserção dos trabalhadores sem terra, enquanto novos agentes no espaço agrário da
Campanha, alterou as relações sociais até então vigentes na região. Com esse novo processo,
algumas relações sociais tornaram-se mais complexas, tendo em vista a pluralidade de sujeitos que ali
passaram a interagir.
Assim, tornou-se evidente que a luta pela terra na década de 1990, ampliou e tornou mais
complexa as relações sociais no rural da Campanha, principalmente entre os proprietários de terra, e os
Sem Terra que ali chegaram. Essa alteração deu-se deu basicamente em função da contestação da
posse da terra. Os demais sujeitos historicamente nunca contestaram essa posse.
Uma questão importante de ser destacada é o fato de que esses Sem Terra serem provenientes
de outras regiões do Rio Grande do Sul, e numa menor escala da própria Campanha. Isso em termos
socioculturais é um fator muito importante, tendo em vista que a identidade cultural do camponês da
Campanha não é a mesma daqueles provenientes das áreas coloniais.
Tem-se, por exemplo, de um lado, o camponês nativo, ou seja, o tradicional pequeno proprietário
de terras da Campanha, com fortes laços sócio-culturais com o espaço latifundiário; e de outro lado, o
camponês migrante sem terra, proveniente das áreas coloniais, possuindo uma outra racionalidade,
conseqüentemente uma cultura estranha.
Pode-se dizer então que dois espaços culturais distintos foram aproximados através da luta pela
terra. Assim, ao mesmo tempo em que os assentados transformam a realidade regional, eles também
são transformados. De uma certa maneira, é o que Pebayle já dizia em meados da década de 1970,
sobre o difícil encontro de duas sociedades rurais no Rio Grande do Sul.
Até o início do século XX, os contatos entre os criadores luso-brasileiros dos campos e os
policultores das florestas foram raros. Ou melhor, nada parecia anunciar então novos encontros
entre essas duas sociedades rurais tão opostas por suas origens étnicas, por suas tradições
culturais e suas mentalidades. Esses homens [os estancieiros] rudes e fatigados das violentas
técnicas de pecuária de uma outra época, afeitos a deslocamentos e já curiosos a respeito das
novidades técnicas de seus vizinhos do Prata, rejeitam maciçamente o arado, a inovação agrícola e
as terras de floresta [...] O colono era a antítese desses gaúchos das Campinas: era o homem da
floresta, o agricultor isolado com técnicas ainda predatórias, o pequeno proprietário (PEBAYLE,
1975, p. 3).
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Nesse contexto, pode-se dizer que a Campanha Gaúcha não é mais a mesma. As
transformações no âmbito de suas relações sociais têm propiciado nos últimos anos, novas leituras a
partir da transformação de sua paisagem cultural
Em função da nossa pesquisa realizada em 2003 5, sabemos que mais de 90 % dos colonos sem
terra são provenientes de outras regiões do Rio Grande do Sul. No entanto, naquele momento não era
nosso objetivo identificar as transformações socioculturais, e sim entender o processo que favoreceu
esses sujeitos a conquistarem um pedaço de chão em pleno território do latifúndio gaúcho.
Portanto, naquele momento nosso olhar não se fixava nas relações sócio-culturais desses
sujeitos, pois não era nosso objetivo central. Num segundo momento, em função da nossa nova
pesquisa 2005 6, essa preocupação foi incorporada. Portanto, nosso olhar durante a realização dos
primeiros contatos no decorrer de janeiro e fevereiro de 2006, já se pautou nessas especificidades.
As primeiras impressões sobre o “choque cultural” ocorrido com os colonos sem terra puderam
ser obtidas em informais conversas com esses sujeitos durante algumas visitas que tinham como
objetivo o mero reconhecimento do lugar.
Assim, em algumas conversas informais constatei entre os colonos sem terra um enorme
estranhamento ao chegarem no assentamento. Inicialmente destacaram a paisagem como sendo muito
diferente da região de onde provinham, que de certa maneira representava uma sensação de liberdade,
tendo em vista que os campos são tão abertos que se perde de vista, e onde residiam anteriormente, o
relevo era mais ondulado e íngreme.
É evidente que as primeiras percepções se deram a partir da relação estabelecida com o meio.
Muito se falou das características do clima, muito frio no inverno e calor intenso verão, seguido de um
período de poucas chuvas.
Evidenciou-se que essa foi a primeira adaptação que teve que ocorrer. Assim, mudou-se a
relação homem x meio, já que seus saberes ligados ao clima tiveram que ser reavaliados, como
período de plantio que é diferente, o rigor do frio no inverno por ser campo aberto, e o déficit hídrico no
verão que restringe o cultivo de certas lavouras.
Outro elemento importante que gerou enorme estranhamento foi o relativo isolamento geográfico
do assentamento em relação à vida em comunidades, já que o rural da Campanha é marcado pela
baixa densidade demográfica e um número muito pequeno de comunidades rurais com uma vida social
A instalação de assentamentos rurais e a inserção de novos agentes no espaço agrário do município de Sant’Ana do Livramento/RS,
FCT/Unesp, 2003.
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Projeto de tese: Do latifúndio aos assentamentos: a nova (re) configuração regional na Campanha Gaúcha, IG/UFU, 2005.
5
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(igrejas, clubes, armazéns, campo de futebol, etc.). Esses sujeitos são provenientes de regiões onde a
comunidade rural possui um certo nível de organização e articulação, típico das áreas de imigração no
Rio Grande do Sul.
Nessa tarefa de desvendar os assentamentos rurais, constatamos também que nem tudo é feito
de adaptação. Existem elementos culturais que são mantidos pelos sem terra, como maneira de
construir suas casas e organizar seus lotes. Assim, a arquitetura das casas mantém um padrão
associado a seus antigos lugares de residência.
São gentes, que estão reescrevendo a história de suas vidas, e também remodelando a
geografia da Campanha Gaúcha. Por isso que consideramos os Sem Terra como os novos atores
sociais inseridos no espaço agrário dessa região na década de 1990.
Parafraseando José de Souza Martins, podemos dizer que “A chegada do estranho” na
Campanha Gaúcha é representada pela territorialização de milhares de sujeitos, ou seja, colonos sem
terra, que migraram das mais diversas regiões do Rio Grande do Sul, e ali estão reconstruindo seus
espaços socioculturais.
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4. REFERÊNCIAS
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UNIJUI, 1997.
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UFRGS, 2000.
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PESAVENTO, S. J. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.
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