Abordagens teórico-metodológicas de pesquisa sobre a integração das Tecnologias de Informação e Comunicação em processos formativos na Educação em Ciências e Saúde1 Para tratar este tema, opto, inicialmente, por realizar uma discussão mais abrangente sobre as abordagens teórico-metodológicas situando a pesquisa sobre TICs em educação em ciências e saúde dentro do contexto do campo da pesquisa em Tecnologia Educacional (TE). Esta opção visa traçar tendências sobre os tipos de abordagens, muitas delas não exclusivas da TE, a partir da compreensão de que as escolhas metodológicas estão ancoradas em questões mais amplas do processo de pesquisa que abriga visões/concepções sobre ciência, sobre teorias de aprendizagem e sobre o papel da tecnologia, apenas para citar algumas das possíveis questões envolvidas. Muitos autores do campo da TE e, também, do ensino de ciências, que possui forte tradição na pesquisa e no desenvolvimento de tecnologias para educação, se debruçam na análise sobre o percurso metodológico do campo, tecendo críticas e propondo abordagens alternativas/inovadoras (p.ex. Clark, Reeves, Mion e Angotti, Moreira, Disessa, Barab). De uma maneira geral, as críticas sobre as abordagens teórico-metodológicas tradicionais de pesquisa em TE discorrem sobre o contexto que permeou seu nascimento e seu desenvolvimento enquanto campo científico: o acelerado processo de desenvolvimento de tecnologias instrucionais para atender com eficácia e eficiências o treinamento militar, o paradigma dominante da ciência positivista e as teorias comportamentalistas da psicologia da aprendizagem. Este panorama ajuda a compreender a tendência dominante das abordagens teórico-metodológicas do campo da TE: estudos empírico-experimentais, geralmente com enfoque na comparação entre meios tecnológicos e entre meios e ensino tradicional para a constatação sobre sua eficiência para o processo de aprendizagem. Se a aprendizagem era vista como um resultado a estímulos externos, as mídias poderiam representar “poderosas” fontes de estímulo, sendo papel dos pesquisadores buscar sua comprovação. Como aponta Reeves, uma breve apresentação sobre os principais enfoques dos estudos tradicionais de TE, poderia abrigá-los em dois principais grupos: os estudos de Este texto foi elaborado por Taís Rabetti Giannella no decorrer do processo de estudo para o Concurso Público de Professor Adjunto realizado no Núcleo de Tecnologia Educacional para Saúde; 1 comparação acima destacados (media comparison) e os estudos de replicação, ou de isolamento dos atributos simbólico-interativos das mídias (media replication or atribute isolation). Embora este segundo grupo procurasse extrapolar a visão comportamentalista agregando avanços do paradigma cognitivista (ao buscar relacionar os diferentes atributos das mídias aos diferentes processos cognitivos) mantinha abordagens teórico-metodológicas baseadas em estudos comparativos, ainda buscando relações causa-efeito entre uso de tecnologias e aprendizagem. Além disso, como aponta Reeves, pode-se perceber que o enfoque de comparação de meios constituiu-se um exemplo da aplicação da perspectiva técnica da comunicação à investigação educativa, que, de certa forma, adota como referencial o modelo de comunicação linear de Shannon e Weaver, ao considerar os meios como veículos de transmissão da informação e não como variáveis que afetam a aprendizagem. Um importante grupo de trabalhos que buscou aprofundar a discussão sobre as limitações destas abordagens, nas décadas de 80 e 90, deu origem a uma conhecida série de artigos em torno da questão: Does media influence learning? (Clark, Kozma etc). Este intenso debate trouxe algumas importantes implicações teórico-metodológicas para o campo, dentre elas a necessidade de se compreender de forma complexa e integrada os diferentes elementos envolvidos no processo de integração de tecnologias: meios, métodos, conteúdos, características dos professores, dos alunos, dos contextos sociais etc. Em síntese, pode-se dizer que os principais problemas dos enfoques tradicionais de estudo no campo da TE residem no fato de o modelo de “comparação entre meios” não dar conta das inúmeras variáveis que interagem no contexto educacional, que inclui, entre outros, aspectos sociais das instituições de ensino (organização, cultura institucional, filosofia pedagógica etc), de conteúdo (problemas no ensino de uma disciplina), interpessoais (relação professor-aluno, aluno-aluno etc) e individuais (interesse/motivação, experiência, estilo de aprendizagem, aptidão etc). Trata, assim, os meios como “fins em si mesmos” e não como ferramentas que possam auxiliar o desenvolvimento de uma atividade extremamente complexa como o processo de aprendizagem. Por outro lado, o tipo de avaliação por testes objetivos a que os alunos são submetidos, de um modo geral, é traduzido em medidas de retenção/memorização de informações. Isso confere à aprendizagem uma dimensão muito restrita, a partir de uma abordagem tradicional da educação, que entende o ensino como transmissão de conhecimento. Isto não quer dizer que todo este conjunto de trabalhos não tenha trazido resultados importantes, porem muitas das expectativas iniciais, como por exemplo de se comprovar qual a melhor mídia para a aprendizagem ou quais mídias são melhores para o desenvolvimento de determinados processos cognitivos, não foram atendidas, resultando nos clássicos achados de “falta de diferença significativa”, relatados em diversos pesquisas de meta-analise no campo. Vale ressaltar que este quadro não é um recorte específico de uma determinada época de pesquisas em TE, havendo muitos estudos ainda com este enfoque, grande parte deles voltados para comparação entre as modalidades de EaD e de educação presencial, cujos resultados são os mesmos de outrora (Randolph, 2008). É neste sentido que Reeves (1995) em seu artigo Questioning the questions of Instructional Technology Research, aponta que os pesquisadores do campo precisam rever suas perguntas e metodologias de estudo. Ao realizar uma revisão das metodologias adotadas em artigos publicados em dois periódicos importantes na área, constata que a grande maioria dos estudos volta-se para abordagens empíricoquantitativas e, sobretudo, que estas apresentam limitações significativas as considerando pseudocientíficas (seja por erros metodológicos, seja por falta de consistência teórica). Desta forma, Reeves aponta que para que as pesquisas no campo da TE sejam relevantes socialmente devem ter como foco a melhoria da educação e devem se basear em abordagens teórico-metodológicas situadas e voltadas para contextos e problemas reais dos processos educativos. Com esta mesma perspectiva e não simplesmente reduzindo a necessidade de ampliação das abordagens teórico-metodológicas à polarização entre estudos quantitativos e qualitativos diversos autores buscam discutir e analisar a importância da integração de metodologias alternativas aos estudos exclusivamente empíricoquantitativos. Estudos de caso, pesquisa participante, pesquisa-ação, métodos de observação, entrevista, grupo focal, analise de conteúdo, analise de discurso são apenas algumas das novas possibilidades que, embora tragam em sua essência uma visão mais descritivo-analítica das relações pesquisadas podem ser adotadas em conjunto ou não com enfoques mais tradicionais. Sem a intenção de entrar nas particularidades de cada abordagem ou método qualitativo, me baseio no capítulo sobre pesquisa qualitativa do Handbook of Research on Educational Communications and Technology (Savenye & Robinson, 2004), para uma caracterização geral. Pesquisas qualitativas são conduzidas em ambientes naturais e valem-se da flexibilidade e dinâmica real destes contextos para refinar seus objetos e métodos. Em geral, os pesquisadores se tornam membros ativos da pesquisa e, muitas vezes, trabalham em parceria com os atores da prática/realidade estudada (p.ex.: gestores, professores, alunos). Os métodos de coleta e análise podem e devem ser mistos, na medida em que a utilização de protocolos flexíveis possibilita a exploração de temas que não tenham sido antecipados. Os autores discutem que tanto o avanço dos paradigmas científicos e de construção do conhecimento, com a evolução das teorias críticas e construtivistas, como o desenvolvimento das TICs influenciam e transformam as práticas educativas diversificando/renovando as perguntas de pesquisa e demandando novos aportes teórico-metodológicos para sua investigação: fenômenos tão complexos como ensino e aprendizagem não podem ser estudados como variáveis isoladas e controladas a parte de seus contextos de desenvolvimento; as TICs não são simples produtos, mas processos que são moldados e adaptados pelos diferentes atores envolvidos. Além destas questões mais amplas, vale destacar que as TICs oferecem novas ferramentas de coleta e análise de dados são incorporadas, como os mapas/históricos de navegação e os instrumentos de analise de interações/conversações, só para citar alguns. Dentro deste contexto das pesquisas qualitativas podemos destacar uma abordagem teórico-metodológica que vem sendo cada vez mais adotada no campo da TE e que possui grande relevância para a pesquisa e o desenvolvimento de intervenções inovadoras mediadas pelas TICs: a metodologia da pesquisa baseada em design (Design-based research – DBRC, 2003), que possui raízes similares a outros enfoques como os Design experiments (Collins, 1992; Brown, 1992), Design research (Cobb, 2001) e a Development Research (Reeves, 1995; Van den Akker, 1999). Como aponta Van den Akker (1999), a pesquisa baseada em design (PBD) aborda o estudo de intervenções educacionais como uma “Design science”. Assim, a PBD é uma abordagem interdisciplinar que tem como fundamento básico a natureza aplicada da pesquisa educacional e pressupõe ações como projetar, implementar, observar e analisar os resultados de intervenções em processos educativos, em contextos reais de ensino-aprendizagem. Caracteriza-se pelo foco em problemas educativos complexos situados nos contextos de ensino-aprendizagem; pelo desenvolvimento de experiências/intervenções educativas, em que se incluem, também, aquelas com o uso das TICs para contribuir na solução desses problemas; pela integração de teorias educacionais (teorias norteadoras), tanto para compreender os problemas, quanto para desenvolver a experiência pedagógica; pelo desenvolvimento de intervenções a partir de um processo cíclico de análise, desenvolvimento, avaliação e (re)design e pela construção de conhecimentos a respeito dos processos de desenvolvimento e de ensinoaprendizagem proporcionado pela intervenção (WANG e HANNAFIN, 2005). Pode-se dizer que A PBD compartilha de pressupostos compatíveis com o “programa de investigação-ação educacional crítico-ativa” que Mion e Angotti propem para o campo da educação em ciências. Segundo os autores, tal programa concebe a ação reflexiva da prática como transformadora da teoria que a guia e vice-versa e “requer o trabalho em parceria com outros indivíduos que compartilham as mesmas preocupações temáticas.” (p. 174). A preocupação temática ou situação-problema é o ponto de partida deste processo que, uma vez delineado, possibilita o design da investigação-ação que se estrutura em quatro momentos inter-relacionados formando ciclos de espiral autoreflexiva: (1) planejamento, (2) ação, (3) observação e (4) reflexão. A PBD tem sido crescentemente desenvolvida na pesquisa internacional do ensino de ciências, de modo que alguns pesquisadores vêm se destacando na produção acadêmica sobre a metodologia, contribuindo com formulações teóricas (EDELSON, 2002; BARAB e SQUIRE, 2004; DISSESSA e COBB, 2004). Outros trabalhos tratam especificamente da pesquisa e do desenvolvimento de ambientes virtuais para o ensino de ciências (EDELSON, 1999; REISER, 2001; LINN, 2003). Em uma recente revisão da literatura pudemos analisar alguns trabalhos que adotam a PBD na pesquisa e no desenvolvimento de intervenções educativas mediadas pelas TICs para o ensino de ciências. Foi possível verificar o caráter inovador e crítico destes trabalhos que, a partir do estabelecimento de parcerias com professores e alunos, partem de problemas práticos (preocupações temáticas) do ensino de ciências, tais como a descontextualização dos conteúdos científicos, a desmotivação para a aprendizagem e a visão fragmentada sobre os processos de reflexão e interação, para o planejamento, implementação e avaliação de intervenções mediadas pelas TICs. Os pesquisadores abraçam princípios de teorias de aprendizagem construtivistas (como a aprendizagem situada, a aprendizagem baseada em investigação, e a teoria do discurso progressivo) tanto para aprofundar a compreensão dos problemas como para desenvolver princípios norteadores para a construção de suas intervenções mediadas pelas TICs. As TICs, compreendidas como elementos constituintes do processo de investigação e não como instrumento, são desenvolvidas ou adotadas com base nos problemas e objetivos das pesquisa: por exemplo, jogos de realidade aumentada e MUVES para promover motivação e apoiar a aprendizagem contextualizada, ambientes de comunicação síncrona e assíncrona para promover processos de reflexão-interação e estudar as relações discursivas. Finalmente, vale ressaltar o projeto de pesquisa e desenvolvimento de ambientes educativos mediados pelas TICs para o ensino de ciências da saúde que vem sendo desenvolvido pelo grupo de pesquisa da professora Miriam Struchiner (LTC/NUTES). Com base na abordagem teórico-metodológica da PBD, este projeto, tem como premissas básicas: (1) foco em problemas educacionais/prática educativa complexos e relevantes da área de ciências da saúde. Os materiais e ambientes educativos baseados nas TICs são pesquisados e desenvolvidos a partir de três principais enfoques: a aprendizagem dos alunos das áreas das ciências da saúde (problemas tais como a dificuldade de integração das disciplinas básicas e clínicas, dificuldade de visualização e compreensão de fenômenos naturais, desvalorização da dimensão subjetiva sobre adoecimento e tratamento no ensino, dentre vários outros); a aprendizagem de profissionais de saúde em contextos de educação permanente (problemas tais como a dificuldade de se integrar educação e serviço, a complexidade de se trabalhar em equipe, etc) e a prática de trabalho e a formação de docentes para o uso das TICs (problemas tais como a dificuldade de se integrar atividades de pesquisa, ensino e extensão, dificuldade/complexidade de integração crítica das TICs, aliando-se conteúdos, estratégias pedagógicas e potencialidades tecnológicas etc); (2) Colaboração intensa entre participantes do processo de pesquisa. Todo o processo de pesquisa e desenvolvimento é realizado de maneira integrada e colaborativa a partir de uma equipe multidisciplinar composta por profissionais da área da educação, informática, webdesign e professores/especialistas das várias áreas das ciências da saúde; (3) Integração entre teorias educacionais, princípios de design, estratégias e possibilidades tecnológicas. Com base nos problemas educacionais e dos contextos de prática, debruçamos sobre diferentes teorias e princípios de aprendizagem construtivistas, tais como a teoria da atividade, a aprendizagem significativa, a flexibilidade cognitiva e a aprendizagem situada. Estas teorias/princípios apóiam a análise dos problemas educativos e orientam o planejamento/implementação/análise da intervenção, incluindo a construção dos modelos pedagógicos dos ambientes mediados pelas TICs; (4) Investigação para analisar o ambiente de aprendizagem (intervenção), envolvimento de longo prazo com o objeto de estudo e refinamento metodológico constante. As intervenções são realizadas em contextos naturais, utilizando-se diferentes métodos de coleta e análise de dados, dependendo do objeto de estudo: observação e anotação em encontros/reuniões com professores e equipe de desenvolvimento, observação em sala de aula ou laboratório, questionários, entrevistas, assim como estudo do perfil de uso e navegação nos ambientes virtuais e das interações/comunicações; abordagens qualitativas de análise (p.ex. analise de conteúdo, discurso) são apoiadas por analises quantitativas (estatísticas de acesso, uso dos ambientes etc). Os ambientes estão em contínuo processo de desenvolvimento/investigação podendo ser objeto de diferentes pesquisas, sendo comum sua análise em diferentes contextos e situações educativas; (5) Solução de problemas e construção teórica. Procura-se fazer com que os resultados obtidos contribuam não apenas com os contextos locais de sua aplicação mas também, para futuras pesquisas em contextos semelhantes. Para isso, é fundamental a construção de narrativas sistemáticas e transparentes sobre todo o processo de pesquisa e desenvolvimento que reflitam o continuo processo construção teórica do problema, negociação e tomada de decisão, articulação entre problemas, teorias e princípios de design dos modelos e ambientes desenvolvidos e sua relação com os achados encontrados.