SUS: princípios, diretrizes, interesses e entraves Waldir Cardoso* Em que pesem as confusões semânticas e legais entre Princípios e Diretrizes fica claro que os Princípios são estruturantes do sistema. As diretrizes são os caminhos que devemos trilhar para atingir os objetivos do sistema de saúde previsto na carta magna. Infelizmente, interesses e entraves deixam o SUS real muito longe do SUS legal. Inegável o avanço de garantir a todos o direito de acesso aos serviços de saúde. Insculpir na carta magna o dever do Estado garantir este direito uma vitória maiúscula da cidadania brasileira. Aprovar a mudança da lógica da atenção á saúde através da integralidade das ações dá ao SUS um caráter revolucionário. Entretanto, o pilar mais significativo é a equidade. Pelo sentido de justiça social intrínseco na discriminação positiva que o caracteriza. Uma verdadeira Reforma do Estado. Assim, o SUS é um sistema que tem por base atender a todos. Com qualidade e de acordo com as necessidades da população e de cada um. E atender melhor e com prioridade àqueles que mais precisam. Particularmente, considero a participação da comunidade um quarto princípio do Sistema Único de Saúde. Não há como fazer saúde dentro dos princípios da integralidade e equidade sem ter a população participando ativamente do processo de decisão. A participação da comunidade ou controle social está muito além da simples realização de Conferências de Saúde ou do funcionamento regular dos Conselhos de Saúde. O que são uns poucos milhares de Conselheiros de Saúde diante quase 200 milhões de habitantes? A participação da comunidade deve se dar no quotidiano do fazer saúde. Deve ser exercitada no recôndito de cada serviço de saúde e não só na atenção primária.Também nos hospitais e nas UTIs. Quem é que entende de saúde? A população. Nós, profissionais de saúde conhecemos as técnicas e ações para buscar garantir melhores condições de vida e para solucionar os problemas apontados por aqueles que vivem concretamente a realidade epidemiológica. Partindo destes princípios é fácil entender a importância das Diretrizes do SUS. Só é possível garantir que o sistema de saúde seja integral, equitativo, universal e que garanta a participação da comunidade no processo de decisão se for descentralizado. E Regionalizado. E hierarquizado. Só pode ser Único se tiver apenas um comando em cada nível de governo. Encontramos outras diretrizes resolutividade, intersetorialidade, na Lei 8.080: racionalidade, Racionalidade para evitar sombreamento de ações, gastos de recursos em duplicidade, combate ao desperdício. O sistema tem que ser resolutivo em todos os níveis da atenção. Em conjunto com a integralidade das ações garante que os profissionais de saúde, em todos os níveis, tenham a sua disposição (com racionalidade) todos os recursos técnicos disponibilizados pela ciência. A resolutividade rompe com a visão de diferença de complexidade entre os níveis de atenção. A atenção primária tem recursos e habilidade tão complexas quanto àquelas exigidas num centro de excelência. A intersetorialidade é decorrente da concepção de saúde abraçada pela Constituição Federal. In verbis “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”. Garantido mediante políticas (no plural!) sociais e... econômicas. Assim fazer saúde, no Brasil, é responsabilidade de todos os setores dos governos. Principalmente a área econômica. Esta pode condenar milhares à fome. Ou retirar milhões da miséria. Ainda na Intersetorialidade vejamos o que diz a Lei 8.080 (Lei Orgânica da Saúde): “Art. 3º A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do País. Parágrafo único. Dizem respeito também à saúde as ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.” Os legisladores regulamentaram de acordo com o espírito do teto constitucional. O parágrafo único parece um exagero. Redundância. Não é. É sim um texto soberbo. Avançadíssimo, do ponto de vista formal. O desafio é implementá-lo. Os interesses em disputa na arena da saúde em geral são bastante dissimulados. Ninguém é contra o SUS. É na hora de explicitar qual a concepção de SUS que o protagonista defende é que começam os entraves para o SUS constitucional. O setor privado quer fortalecer a assistência médica. Neste estão incluídos a indústria de equipamentos e medicamentos, os grandes laboratórios. Donos de hospitais. Maus políticos instrumentalizam o setor saúde na sua rede de corrupção. Bilhões de reais são desviados por estes apátridas. Outros maus políticos, por serem ignorantes, agem com irresponsabilidade e dão à saúde gestão desqualificada. Mantém ativamente o modelo de atenção biomédico. Desconhecem os princípios do SUS. Quando muito ouviram falar das suas Diretrizes. Os setores organizados da sociedade, como o movimento sindical, fogem do SUS. Garantem assistência médica privada para os trabalhadores da sua base através dos Planos de Saúde. O SUS perde importante e qualificada “cabeça de pressão” na luta pela sua plena implementação. As camadas médias, no mesmo sentido, buscam nos Planos de Saúde assistência médica supostamente de melhor qualidade. Setores do poder público, como o Senado da República, garantem assistência privada para seus parlamentares e familiares. Exército, Marinha e Aeronáutica tem serviços de saúde próprios. Servidores de saúde federais, estaduais e muitos municipais pagam previdência estatal que lhes oferece também assistência médica. O judiciário também provê planos de saúde para juízes, promotores e servidores. A esmagadora maioria da população fica de fora. Trabalhadores do setor privado, os excluídos da cidadania, trabalhadores autônomos, a população rural. Para estes o SUS. Um SUS pobre. Esta é uma população, em geral, privada de cidadania. Desorganizada. Que não consegue verbalizar suas demandas. Contentam-se com as migalhas que sobram das elites. Ainda não perceberam a importância de lutar pelo SUS. Bem, existe o SUS da alta complexidade. Transplantes, cirurgias complexas, medicamentos de altíssimo custo. Os procedimentos e insumos que não são garantidos pelas operadoras de planos de saúde. O SUS garante. Nem que seja pela judicialização. Bem ao gosto daqueles que querem manter o atual modelo de atenção. Porque lucram com ele. Ou porque sabem que só recorrerão a ele para procedimentos de alta complexidade. * Waldir Cardoso é médico, sindicalista e sonhador