TRABALHO, SOCIABILIDADE PRODUTIVA E FORMAÇÃO HUMANA Prof. Dr. Eduardo Pinto e Silva Departamento de Educação da UFSCAR Introdução: Em relação à questão da formação humana, compreendemos ser importante explicitar, de forma objetiva, alguns pressupostos teóricos que norteiam as análises do presente trabalho. A formação humana, segundo a perspectiva marxista, se dá em determinadas condições históricas nas quais se verificam inevitáveis contradições e uma unidade dialética entre as esferas do em-si e do para-si, da cotidianidade e não-cotidianidade (DUARTE, 2004a; HELLER, 1972). Tal unidade dialética configura-se como um processo homogêneo de particularidades heterogêneas (DUARTE, 2004a; 2001; LESSA, 2002). A formação humana se constitui e se reproduz nas relações sociais e, portanto, em processos dialéticos de apropriação e de objetivação que envolvem inúmeras mediações: institucionais, econômicas, organizacionais, culturais e subjetivas. A reprodução social não se limita à mera repetição da objetividade institucional e socialmente posta. Pelo contrário, a reprodução social, mesmo aquela na qual predomina a esfera do em-si, é também reprodução das contradições, uma vez que a realidade social, humana e, sublinhamos, subjetiva, não corresponde a um tipo puro (fazemos aqui alusão a Weber), mas sim a uma totalidade concreta, múltipla e mutável. Se a dimensão econômica impõe delimitações ao alargamento das possibilidades históricas e da suspensão da vida cotidiana, a historicidade da formação humana e a potencialidade da dimensão subjetiva, por contrapartida, delimitam também aquela, ainda que não igualmente (LESSA, 2002). A formação humana se dá na prática social. A protoforma da prática social é dada pela realidade ontológica do trabalho (LESSA, 2002). A visão marxista aponta que o trabalho é, potencialmente, tanto prática alienante como prática humanizadora, ou melhor, prática social histórica e contraditória. Assim, a formação humana, intrinsecamente histórica e contraditória, se dá na realidade concreta, não num plano metafísico. No plano da realidade concreta há uma condensação das temporalidades históricas (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004) que inserem-se em práticas sócioculturais e institucionais que se influenciam mútua e reciprocamente. . A prática educativa é prática laboral e, concomitantemente, prática de formação humana. Na prática educativa, em suas dimensões ao mesmo tempo institucionais, organizacionais e culturais, verifica-se, por exemplo, as lógicas patrimonialista, burocrática e gerencialista, o que ilustra a condensação das temporalidades históricas logo acima apontada (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004). Tendo em vista os pressupostos acima mencionados e as considerações iniciais sobre a formação humana, tal como compreendida no campo marxista, podemos desenvolver problematizações acerca da subjetividade e da sociabilidade, assim como das relações entre trabalho e educação. Compreendemos que a sociabilidade e subjetividade devam ser compreendidas de forma articulada. Ressaltamos que tal perspectiva já se colocou no campo marxista francês há décadas atrás (SILVEIRA & DORAY, 1989; SÈVE, 1989). Tal perspectiva foi retomada indireta e diretamente por alguns autores como Semeraro (1999), Ruiz (1998) e Souza Júnior (1997) no final da década passada, assim como em algumas contribuições mais recentes de autores brasileiros (DUARTE, 2004a; 2004b; 2001; SILVA JÚNIOR & GONZALES, 2001; SAVIANI, 2004). Destacamos aqui um ponto em comum fundamental de tais abordagens: a crítica à visão psicologizante, a-histórica e naturalizante da subjetividade e/ou da sociabilidade que, baseada nas dicotomias indivíduo-sociedade e subjetivoobjetivo, distanciam-se da perspectiva do caráter histórico da formação das individualidades (SÈVE, 1989), de forma a produzir um fetichismo acerca da individualidade tão pernicioso quanto o fetiche da mercadoria (DUARTE, 2004b), ambos relacionados ao caráter mercantil da reorganização da sociedade civil (SILVA JÙNIOR & FERRETTI, 2004) e da sociabilidade produtiva que, ressaltamos, dão o tom às atuais práticas sociais e educacionais, a despeito das potencialidades críticas da formação humana. Algumas breves reflexões sobre o fordismo e o pós-fordismo: As considerações de Barros (2004) em “Fordismo: origens e metamorfoses” permitem-nos refletir sobre importantes aspectos das atuais transformações dos processos produtivos no mundo do trabalho. Tais transformações caracterizam-se como incompletas, limitadas e inseridas no desenvolvimento político-econômico do capitalismo e na constituição do que Harvey (1993, p.140) apropriadamente conceituou como “acumulação flexível”. Barros (2004, p. 86) nos aponta que os “novos modelos” de produção (sueco, italiano e japonês) “não estão divorciados dos princípios apregoados pelo taylorismo/fordismo”. Longe de negar ou ignorar as mudanças que configuram a realidade pós-fordista ou neofordista, o autor discute criticamente a ingênua empolgação da teoria da especialização flexível de Piore e Sabel (1984), de modo a elucidar os pontos frágeis da defesa destes aos “novos” paradigmas da organização produtiva. Segundo Barros (2004), Heloani (1996) e Silva (2005), as origens tayloristas do fordismo e sua constituição enquanto modelo de organização do trabalho voltado à maximização da lucratividade, às custas da subjetividade autêntica e da sociabilidade emancipatória e coletiva, são historicamente inegáveis. Os processos de desenvolvimento do fordismo, por outro lado, de forma dialética e contraditória, implicaram em sua maturação enquanto modo de regulamentação social e política. De acordo com a visão de Harvey (1993), a acumulação capitalista no período fordistakeynesiano baseou-se na produção e consumo de massa e numa expansão econômica que se deu paralelamente à constituição e desenvolvimento do Estado do Bem Estar Social (Welfare State). A consolidação do projeto social fordista levou à criação do conceito de “fordismo” por Gramsci (2001). Este cunhou pioneiramente tal termo em sua crítica ao americanismo e em alusão ao modelo industrial de produção, que se constituiu como hegemônico no período do capitalismo monopolista. Segundo Gramsci (2001), tal modelo objetivava não somente a expansão do capital e a constituição da sociedade do consumo, mas também o controle, domesticação e padronização da vida pública e privada do trabalhador. Tais aspectos, porém, não o cegaram em relação à possibilidade de compreender a subjetividade a partir da noção de sujeito da vontade concreta (GRAMSCI, 1987; RUIZ, 1998; SEMERARO, 1999) aspecto este também presente na concepção lukacseana de sujeito ontológico (LESSA, 2002; SILVA, 2005). Distintos processos de crise do fordismo podem ser relacionados às crises político-econômicas do desenvolvimento do capitalismo. Segundo argumentação de Barros (2004, p. 46), o fordismo sofreu duas importantes crises, uma de superprodução, em 1930 (que impulsionou a constituição do New Deal e a formação do Estado do BemEstar Social) e outra de rentabilidade, em 1973 (que impulsionou a constituição dos “novos” modelos de produção e o desmonte paulatino do Welfare State). O modelo pós-fordista de produção enxuta e flexível e os seus aspectos aparentemente emancipatórios ou inovadores são comprendidos por Barros (2004) e Heloani (2003; 1996) muito mais como uma utopia, senão promessa duvidosa (dado o atual contexto de incertezas no mundo do trabalho), do que propriamente como uma realidade objetiva, aspecto este que queremos aqui ressaltar a partir do nosso foco da subjetividade e sociabilidade produtiva nas organizações e da análise crítica sobre as relações entre trabalho e educação. Assim acompanhando o argumento de Barros (2004, p. 73), consideramos que “o fordismo tradicional coexiste com o fordismo pós ou neo e, a produção em massa, concomitantemente com a produção flexível”. Ainda segundo tal autor (Barros, 2004, p. 85), os argumentos de Lipietz e Leborgne (1988) a tal propósito são “contundentes”. Segundo tais autores (Apud Barros, 2004, p. 79-84), desde a crise de 1973 observamos processos de reestruturação produtiva que transitam entre três classes modelares pósfordistas: a “neotaylorista” (total expropriação do saber operário e triunfo da engenharia e da administração), a “californiana” (que se desenvolve através de métodos cooptativos e mecanismos coercitivos) e a “saturniana” (que apoia-se em relações de trabalho cooperativas, negociações coletivas e em uma rede integrada de produção que engloba empresa-mãe e firmas subcontratadas). Tendo em vista as breves reflexões acima, podemos afirmar que há uma relativa hibridezi dos processos produtivos atuais, acompanhada por aspectos indesejados, tais como a precarização dos direitos trabalhistas e dos salários, a subcontratação e o desemprego. Tais aspectos são expressão da contínua e histórica interação de forças sociais e/ou econômicas presentes nos distintos processos de desenvolvimento e de crises cíclicas do capitalismo, assim como dos modelos de produção e de práticas educativas que lhes são correspondentes. Segundo nossa compreensão, o processo histórico, contraditório, dialético, mediado pelas dimensões institucional, organizacional e cultural, concretiza-se numa totalidade adensada por distintas temporalidades históricas (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004). Assim, o patrimonialismo, a burocracia e o gerencialismo referidos na introdução, formam um amálgama e, no seio deste, se colocam os limites e possibilidades de superação da negação da subjetividade nas organizações, assim como das relações entre trabalho e educação pautadas pelo paradigma da sociabilidade produtiva. A subjetividade e a sociabilidade produtiva nas organizações pós-fordistas A expressão da subjetividade nas organizações está longe do desejável e tal fato relaciona-se à perseverança da concepção do sujeito organizacional enquanto “recurso” humano (ENRIQUEZ, 1995; HELOANI, 1996), assim como à concreticidade de uma sociabilidade orientada por valores mercantis e produtivistas (SILVA JÙNIOR & GONZALES, 2001), tanto nas organizações empresariais e no mundo dos negócios como nas organizações escolares públicas e privadas (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004). A concepção do sujeito organizacional merece e necessita ser revista e transformada, assim como a reconfiguração da sociedade civil segundo os princípios mercantis do pós-fordismo. O sujeito organizacional deve ser compreendido na sua singularidade e complexidade, assim como na sua condição humano-genérica (HELLER, 1972). Ademais, o modelo de gestão organizacional neoinstrumental, presente nas escolas e no sistema produtivo, ignora a noção de sujeito do inconsciente, ou seja, a noção de sujeito cuja pulsão e libido jamais será inscrita no modelo “motivacional” dos “recursos” humanos (LEITE, 1995). Ignora, em seu ímpeto instrumentalizador da subjetividade e das relações de trabalho – presente tanto nas escolas como no mundo produtivo - por conseguinte, a noção de sujeito histórico e ontológico (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004; SILVA, 2005), cuja prática, tanto laboral como educacional, jamais será plenamente cooptada e/ou subsumida pela lógica do capital. O conceito de “recurso” humano vem sendo substituído pelo conceito de “subjetividade”, quer seja no campo teórico mais crítico e atual em Psicologia do Trabalho (ENRIQUEZ, 1995; 1997a; 1997b; LEITE, 1995; DEJOURS, 1993; HELOANI, 1996; 2003; VOLNOVICH, 1995), quer seja no campo ambíguo, senão ideológico, dos discursos das organizações dita ética e socialmente responsáveis. De nossa parte, compreendemos que a livre expressão da subjetividade na cena organizacional potencialmente propiciaria, ao sujeito organizacional, uma condição efetiva de cidadania e de saúde mental no trabalho (DEJOURS, 1993). Frente ao paradigma neotaylorista ou gerencialista-financeiro que se apresenta sobre o discurso falacioso do colaborador e do empowerment de forma bastante distinto daqueles proferidos pelas visões críticas da Psicologia e da Sociologia do Trabalho, é preciso dizer em alto e bom tom: “é o sujeito quem cria !”. Portanto, ele não deve ser negado pela prescrição e excessiva padronização do trabalho (DEJOURS, 1993). Ele deve poder se manifestar, participar, decidir e, conseqüentemente, transformar a gestão e organização do trabalho. E esta possibilidade do sujeito manifestar-se está, por ironia, mediada pelos “Recursos Humanos”, ou seja, obstaculizada pela lógica instrumental da dimensão organizacional, geralmente respaldada pela natureza conservadora das dimensões políticas, culturais e institucionais que a ela se articulam. Sendo assim, reiteramos ser necessário que a gestão organizacional deixe de conceber o sujeito organizacional como “recurso” e passe a vê-lo como sujeito da expressão, do desejo e da palavra, ou ainda, sujeito da comunicação e do trabalho (CHANLAT, 1992) que, vale acrescentar, insere-se no processo histórico contraditório e dialético e que, nesse sentido, é potencialmente ampliador das objetivações do capitalismo que, embora postas, não são imutáveis (LESSA, 2002; SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004). O sujeito ontológico e pulsional é o sujeito potencialmente instituinte. É o sujeito que, em sua atividade sublimatória, é o sujeito da tarefa criativa. Porém, só se constitui sujeito da tarefa criativa ao manifestar-se enquanto efetivamente sujeito, contrapondo-se ao mero “recurso” da lógica do instituído. A subjetividade instituinte mobiliza forças institucionais transformadoras e formas de sociabilidade que opõe-se à sociabilidade produtiva, mercantil. O sujeito organizacional é aquele que concebe e não aquele que executa (DEJOURS, 1993). O sujeito instituinte é o que efetivamente se expressa e a ele deve-se dar o direito de, no trabalho, criar formas de transgressão regrada e responsável em relação ao trabalho prescrito e obstaculizador da expressão da subjetividade (DEJOURS, 1993). Eis o caminho para uma gestão inovadora não somente em relação a técnicas ou arranjos administrativos, mas sobretudo em relação a uma redefinição da subjetividade no contexto organizacional (VOLNOVICH, 1995). Caso possamos conceber o sujeito como subjetividade criadora e não como “recurso” condicionável à “motivação” (instrumental) da ideologia organizacional, então sim estaremos no sentido de uma mudança efetiva e não meramente aparente. Do nosso ponto de vista, urge criar nas organizações escolares e demais instituições, o espaço da palavra, no sentido da possibilidade concreta da redefinição efetiva e não ilusoriamente participativa das estratégias e objetivos organizacionais (DEJOURS, 1993). Para tal é necessário reconhecer o conflito indivíduo-organização, ao invés de negá-lo, ou ainda, supor que exista um modelo ideal de gestão que promova uma integração ou consenso sem conflitos entre o indivíduo e a cultura organizacional. Na instrumentalização da subjetividade presente na dita gestão da cultura organizacional, o equívoco da concepção do sujeito organizacional enquanto “custo” e/ou “recurso”, originada no taylorismo-fordismo (HELOANI, 1996), repete-se dissimuladamente. Conforme critica arguta de Aktouf (1992), os demiurgos da gestão da cultura organizacional iludem-se quanto à possibilidade de fundir o indivíduo à organização. Tal argumento é corroborado pela contribuição de Leite (1995), para quem os elementos antagônicos e conflitivos - desejo e lei; indivíduo e coletivo; subjetividade e regra organizacional; trabalho e capital – não são passíveis de serem fundidos e, muito menos, eliminados. Vale ressaltar que compreendemos que o mal estar estrutural da relação indivíduo-organização nas escolas e no mundo do trabalho só pode ser amenizado e transformado dentro de certos limites. Dito de outro modo, a relação indivíduoorganização deve ser re-situada num espaço de negociação, de escuta recíproca (LEITE, 1995; ENRIQUEZ, 1995; DEJOURS, 1993). Tal espaço deve possibilitar a redefinição de estratégias organizacionais. A ilusão da fusão e da harmonia total indivíduoorganização é, além de uma imagem ideológica, uma crença contraproducente à construção de tal espaço de negociação e, conseqüentemente, à construção da efetiva expressão da subjetividade nas organizações e da sociabilidade no pólo antitético ao da sociabilidade produtiva, dito de forma mais ampla, ou ao da subjetividade produtiva (LAZZARATO, 2001), dito de forma mais circunscrita. Em relação à nossa opção pelo termo sociabilidade produtiva no lugar do termo “subjetividade produtiva”, proposto por Lazzarato (2001), ou ainda, pela nossa afirmação de que aquele é mais amplo que este último, vale apontar algumas considerações que nos remetem ao eixo teórico deste trabalho - o da formação humana na visão marxista que, do nosso ponto de vista, é compatível às indagações e inquietações presentes em algumas das contribuições críticas da Psicologia do Trabalho expostas acima e, por outro lado, apenas parcialmente compatível à visão do autor italiano. Lazzarato (2001) aborda o trabalho imaterial na gestão pós-fordista do trabalho que, segundo nossa breve reflexão, poderia ser denominada neofordista, sobretudo em função da continuidade da racionalidade instrumental como seu eixo central. A discussão sobre o trabalho imaterial veio à tona na década de 1960, no âmbito do debate da sociologia do trabalho na França e que encontrou eco na Itália e no que ficou conhecido como neomarxismo ou operaísmo. Há simetrias relativas entre nossas postulações teóricas com tal debate e com algumas proposições de Lazzarato (2001). De certa forma, estas parecem manter um diálogo crítico com os autores que tomam a materialidade econômica para análise da reprodução social, tal qual entende György Lukács (1979). Segundo este, a reprodução social tem autonomia relativa em relação à materialidade da economia, ainda que este modo de nos formarmos na condição social – a reprodução – jamais poderá historicamente ser reduzido à economia. Isto nos é claro e disto temos convicção. Mas para Lazzarato, tudo parece indicar que, com o debate sobre a produtividade do trabalho imaterial, a tese marxista, tornada muito clara por Lukács (1979) em sua “Ontologia do Ser Sócial” e suas assertivas acerca da centralidade da categoria trabalho, seria criticável, sugerindo certo conservadorismo. Tal corrente parece compreender o trabalho imaterial embasados no espaço midiático e mediador entre o trabalhador e os meios de produção, o que faria de grande parte da força de trabalho ser imaterial e produtiva. Mas não nos ateremos aqui sobre este debate, que nos exigiria muito mais papel e reflexão. No entanto, em razão das relativas simetrias em relação a Lazzarato (2001), apesar de nossa posição mais próxima às proposições de Lukács (1979), aceitamos o argumento do espaço midiático e a exigência de caráter mais imaterial do trabalho no capitalismo na atualidade, bem como da desconcentração de plantas industriais e da acentuação da exploração do trabalho material produtivo no contexto da acumulação flexível. Não obstante, enfatizamos que a existência do trabalho imaterial objetiva-se numa linha de continuidade da economia, que é a esfera fundamental da reprodução social da vida humana e das relações sociais de produção. Em razão disto, procuramos usar a expressão sociabilidade produtiva em vez de “subjetividade produtiva”, posto que aquela seria construída pela prática social, na qual os valores e alternativas que se movimentam na atividade humana constroem a subjetividade em cada prática que o ser humano realiza. Portanto não há uma subjetividade fixa do ser humano, ela é sempre movimento em cada prática social, em cada atividade humana. A subjetividade, que transita incessantemente entre a mera reprodução da extensive order e da reprodução das contradições nela presentes, segundo nossa compreensão, inevitavelmente se articula à dimensão da sociabilidade mercantil. Assim, a sociabilidade produtiva é constitutiva da subjetividade produtiva e, ao mesmo tempo, é mais ampla que ela, ainda que, para objetivação de seus fins instrumentais e econômicos, conte com a participação das dimensões simbólicas e subjetivas, tal como verifica-se na abordagem freudo-marxista de Leite (1995) e Enriquez (1997a; 1997b). Podemos dizer, em síntese, que as atividades humanas estão sempre entre dois pólos ideais (tal como na concepção de Weber do Tipos Ideais de Dominação), entre as suas práticas movidas por uma ética exclusivamente voltada para o em-si e, de outro lado, práticas voltadas exclusivamente para o gênero humano, a esfera do para-si (HELLER, 1972; DUARTE, 2001). A primeira não é plausível no âmbito histórico em face do processo de socialização ser histórico, humano e contraditório, enquanto a segunda, por sua vez, é extremamente limitada pela base econômica-Estatal da atual configuração histórica (mercantil), dada a sua forte tendência de negação do sujeito (instituinte) e de sua identidade. Com base nesta argumentação, podemos dizer que a subjetividade é sempre movimento dentro da sociabilidade, ambas envolvendo sentidos contraditórios e antagônicos. Sendo assim, nos parece importante considerar que a subjetividade e a sociabilidade sejam duas dimensões dos processos da formação humana indissociáveis, mas dois processos heterogêneos de um mesmo processo homogêneo. Com base no exposto, é possível afirmar-se o mesmo sobre os heterogêneos “subjetividade produtiva”, como propõe Lazzarato (2001) e o termo sociabilidade produtiva, por nós preferido. A conceituação sócio-histórica da subjetividade e as relações entre instrumentalização da subjetividade, práticas educacionais e sociabilidade produtiva A subjetividade, segundo as perspectivas críticas e sócio-históricas, não deve ser reduzida às dimensões individuais, psicológicas ou de personalidade (LANE, 1984). Politzer (1968), em sua abordagem marxista acerca do homem e da subjetividade, critica os fundamentos da Psicologia e a construção de um pressuposto de uma autonomia do psíquico em relação aos seus determinantes macro-sociais, aspecto este também discutido por Jacques (1995) quando de suas considerações a respeito das relações entre subjetividade, saúde mental, identidade e trabalho. Vygotsky (1968), cuja obra aponta para a importância fundamental das dimensões culturais na formação da mente e do que denomina como funções cognitivas superiores, adota visão semelhante à de Politzer (1968), criticando os equívocos epistemológicos calcados na dicotomia indivíduo-sociedade. Desta forma, contribui sobremaneira à construção da Psicologia marxista e, ao lado de Politzer (1968) e Leontiev (1978), assume a condição de referência clássica à crítica ao reducionismo psicologizante ou individualizante, historicamente presente em diversas correntes teóricas da Psicologia e, por conseguinte, nas práticas educacionais apoiadas no pragmatismo político e no cognitivismo pedagógico-didático (DUARTE, 2001; SILVA JÚNIOR & FERRETI, 2004). Sève (1989), acompanhada por outros autores do campo marxista francês que arvoraram-se na década de 80 a propor uma teoria acerca da subjetividade (SILVEIRA & DORAY, 1989), assinalam-nos para o caráter histórico das formas de individualidade, ou ainda, para a natureza mútua e recíproca entre os determinantes psicossociais e sócio-institucionais na constituição das realidades objetivas e subjetivas. No campo da Psicologia do Trabalho, em suas vertentes críticas, verifica-se esforços para a compreensão da subjetividade numa perspectiva freudo-marxista que tematize as relações de poder no trabalho, criticando os processos de dominação e as armadilhas estratégicas das organizações (ENRIQUEZ, 1997a; 1997b, 1995; LEITE, 1995). Acrescentamos a esta a abordagem crítica acerca da cultura organizacional, concebida como forma de se impor formas hegemônicas de se pensar, sentir e agir, condizentes aos interesses do capital, em detrimento da autonomia, identidade e consciência crítica dos grupos e indivíduos nas práticas sociais, laborais e educacionais (MOTTA, 1986; 1997; AKTOUF, 1992). Já o ser social, conforme denominação de Lukács (1979) em sua abordagem ontológica da sociabilidade - fundada no trabalho que é compreendido como protoforma de toda a prática social – é por ele caracterizado como dotado de radical historicidade, o que significa dizer que seu agir inclui inúmeras possibilidades, tanto aquelas do agir alienado, como aquelas de uma praxis transformadora, ou seja, de um agir no qual o pôr teleológico é algo real e concreto e não uma abstração ou mera idealização em torno de uma prática social inexistente (LESSA, 2002). A objetividade, segundo a visão de Lukács (1979), é fundada em atos teleologicamente postos. Tal aspecto relaciona-se à sua concepção de subjetividade, ou seja, à sua caracterização do homem enquanto ser social, histórico, cuja ação configura um salto ontológico em relação à natureza, assim como à sua compreensão ontológica acerca da teleologia, a saber, ação concreta e potencialmente transformadora. Sendo assim, podemos afirmar que a existência e a formação humana nas práticas sociais (educacionais e laborais), numa contradição dialética e histórica em relação à objetividade posta na instrumentalização da subjetividade nas organizações e na sociabilidade produtiva pós-fordista, justamente se caracteriza por sua retirada das determinações biológicas ou da individualidade restrita a si mesma, o que nos permite aproximar, ainda que em maior ou menor grau, ao pensamento de Lukács (1979), vários autores supracitados e alguns importantes autores brasileiros da área da Psicologia Social (CIAMPA, 1984; LANE, 1984), que também apontam para os seguintes aspectos: historicidade do homem; noção de sujeito coletivo; compreensão do trabalho como atividade humana central; indissociabilidade entre consciência e ação social transformadora. Tais proposições estão fundamentadas em autores clássicos da Psicologia marxista (LEONTIEV, 1978; POLITZER, 1968; VYGOTSKY, 1984). Por último, vale considerar que a compreensão da individualidade humana como inevitável e concomitantemente social é também encontrada na produção sociológica de Freud (1927; 1920), tal como expõe, com sólidos argumentos, o acima referido psicossociólogo de inspiração psicanalítica, Enriquez (1990), em sua obra sobre a psicanálise do vínculo social, aspecto este por ele retomado em “Organização em análise”, onde discute a sua concepção de organização como sistema cultural, simbólico e imaginário, afirmando que a dimensão do imaginário enganador tende a prevalecer, nas organizações pós-fordistas, sobre a dimensão do imaginário crítico, utópico ou criativo (ENRIQUEZ, 1997b). Ainda retomando a visão de Lukács (1979), podemos afirmar que o homem é partícipe da construção da totalidade social, dada a radicalidade histórica de sua concepção de subjetividade. O sujeito ontológico não é mera presa dos determinismos econômicos, ainda que estes delimitem o horizonte de possibilidades da ação humana. Tal horizonte, segundo Lukács (1979) pode ser alargado pela ação do sujeito ontológico ou sujeito-assim-existente. Em outras palavras, o ato humano opera uma relação entre causalidade e teleologia pela mediação da objetivação e apropriação. Segundo argumentos de minuciosa análise da obra de Lukács (1979) feita por Lessa (2002), a compreensão acerca da noção de subjetividade em Lukács requer uma explanação acerca da dialética dos processos de objetivação e apropriação, interpretação esta também presente na já referida análise de Silva Júnior e Ferretti (2004). Segundo Lessa (2002, p.32), há um “papel central da objetivação” no desenvolvimento histórico dos homens. A objetivação, embora possa gerar uma realidade objetiva, que se torna exterior ao próprio sujeito que a criou, tal como argumentam Berger e Luckmann (1978), não é compreendida por Lukács (1979) como fenômeno dissociado da apropriação, ou seja, é compreendida como transformação teleologicamente orientada do real. Segundo Lessa (2002, p.79): “ainda que a totalidade social apenas possa existir e se reproduzir tendo por mediação os atos singulares dos indivíduos concretos, ela apresenta, diante desses mesmos indivíduos, um exterioridade e uma objetividade que, para ser transformada, deve passar por uma ação dos homens (...) transformação que tem por mediação a consciência dos indivíduos”. Os homens são, assim digamos, de forma relativa, senhores da sua própria história. A sociabilidade dos mesmos não implica em uma antinomia gramsciniana entre necessidade e liberdade (LESSA, 2002, p.65). A subjetividade, por sua vez, possui função essencial na vida social (LESSA, 2002, p.243), mesmo que sempre delimitada pelas possibilidades históricas postas pelas objetivações capitalistas, inevitavelmente confrontadas ao devir humano e histórico. O trabalho é peça fundamental da sociabilidade. É através do trabalho que “o homem constrói, concomitantemente, a si próprio como indivíduo e a totalidade social da qual é partícipe” (LESSA, 2002, p.28). O ser precisamente-assim-existente é, segundo Lessa (2002, p.56), “a base sobre a qual se desdobra a relação entre subjetividade e o mundo objetivo”. A praxis transformadora advém, segundo seus argumentos, de “objetivações de préviasideações” (LESSA, 2002, p.66). As considerações de Lukács (1979) e de Lessa (2003) acerca da radical historicidade humana e da dialética e da indissociabilidade dos processos de apropriação e objetivação, nos permitem considerar que o sujeito, tal como argumentam Lane (1984) e Garcia (1966), não é exatamente alienado ou sobredeterminado (visão da subjetividade como mero epifenômeno da realidade social objetiva), nem tampouco sábio, consciente ou crítico-reflexivo no seu pensar e agir (visão da subjetividade que seria idealizada, pois não insere o sujeito num horizonte de possibilidades que, inevitavelmente, implica em restrições do seu pensar e agir). A subjetividade, a sociabilidade e a formação humana, portanto, não são reféns do processo social reprodutivista (DUARTE, 2004a; 2001; SOUZA JÚNIOR, 1997), quer sejam elas inseridas na dimensão de uma prática educacional neopragmática e cognitivista, voltada à adaptação acrítica dos indivíduos à lógica das competências e ao mito ilusório do empowerment no trabalho, quer sejam elas submetidas, direta ou indiretamente, ao sistema econômico através do trabalho produtivo. Outrossim, tratamse de elementos integrantes de ambas práticas, tanto na condição de produtos como de produtores das mesmas, tal como depreendemos da citação abaixo explicitada: “Se, no interior do desenvolvimento histórico, cabe aos processos econômicos a determinação em última análise do sentido da evolução da reprodução social, não menos verdadeiro é que cabe à totalidade social, à sociabilidade (grifos nossos), o papel de mediação concreta entre desenvolvimento econômico e o desdobramento categorial de todos os complexos sociais parciais – inclusive a estruturação particularizadora da cada forma historicamente concreta de trabalho” (Lessa, 2002, p.35). Considerações finais: As articulações entre sistemas produtivos e educacionais, assim como entre estes e as concepções de subjetividade, sociabilidade e formação humana que aqui apresentamos devem ser compreendidas como fruto de estudos ainda em processo de construção e aprofundamento. Tais estudos foram inicialmente norteados pela apropriação das noções de processo dialético mediado pelas dimensões institucional, organizacional e cultural presentes nas contribuições e reflexões de Silva Júnior e Ferretti (2004) acerca das práticas sociais, cujo debate vem se intensificando a partir das pesquisas e artigos produzidos pelo Grupo de Pesquisa de Economia Política da Educação e da Formação Humana constituído na Universidade Federal de São Carlos em 2007. Conforme abordamos, Silva Júnior e Ferretti (2004) consideram que a reflexão acerca da prática sócio-educacional e do sujeito coletivo e histórico inserido em sua processualidade material requer a explicitação das referidas dimensões mediadoras do processo histórico-dialético e dos conceitos de apropriação e objetivação. Segundo o argumento dos referidos autores (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004, p.45), “cada unidade escolar, ao mesmo tempo que incorpora valores, normas, procedimentos, etc, socialmente instituídos, constrói sua própria forma de ser e de se organizar”. Sendo assim, a escola é abordada como “espaço de conflitos e contradições sociais”, constituída pelos “múltiplos processos de apropriação e objetivações das relações que se dão em seu espaço e pelo controle dos sujeitos presentes nos processos de socialização que enseja” (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004, p.47). A identidade histórica da escola e sua maior ou menor adaptação ao neoconservadorismo pós-fordista do sistema produtivo deve ser buscada, preliminarmente, na sua dimensão institucional, pois “a instituição escolar tem sua origem na produção histórica do Estado moderno” (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004, p.49). Não obstante, é necessário ressaltar que a organização escolar, com origem no ordenamento formal, é subsumida de forma contraditória ao institucional, ou seja, “o institucional e a organização formal da escola, por mediação da cultura institucional, relacionam-se, resultando na organização escolar historicamente concreta” (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004, p.55-56). Ainda segundo tais autores (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004, p.56), o institucional deriva do político, sendo que em ambos existem, de forma condensada, “diferentes temporalidades históricas”. As apropriações e objetivações produzidas na cotidianidade da educação e do trabalho, se nos remetem sobretudo à esfera econômica, a ela não se tornam reféns, sendo que o mesmo pode ser dito em relação à subjetividade ou ser social (sujeito ontológico ou da vontade concreta) que insere-se em tal cotidianidade como produto e produtor. A escola e a prática sócio-educacional concretizam-se, portanto, em um horizonte de possibilidades, passível de ser mais estreitado e/ou mais alargado conforme o devir histórico, suas temporalidades distintas (condensadas) e o processo dialético de apropriações e objetivações que são mediados pelas dimensões institucionais, organizacionais e culturais, ou ainda, acrescentamos nós, pela dimensão subjetiva, englobada na sociabilidade. A escola, portanto, é compreendida por Silva Júnior e Ferretti (2004, p.84-85), que fazem referência a Duarte (2001), como espaço mediador entre a esfera da cotidianidade e da não-cotidianidade. Ou seja, nela se concretizam práticas que podem impor necessidades relacionadas à esfera da não-cotidianidade à consciência (SILVA JÚNIOR & FERRETTI, 2004, p.84-85). Sendo assim, podemos afirmar que a praxis educacional e laboral, eminentemente socializadoras, o são tanto no sentido da sociabilidade produtiva, inscrita no polo acrítico, subsumido ao mercantil e ao paradigma gerencial-financeiro, como o são no sentido da sociabilidade humana, inscrita no pólo antitético, na qual se concretiza, teleológica e objetivamente, o sujeito coletivo, histórico, relacional, ou ainda, ontológico e dotado de vontade concreta (GRAMSCI, 1987; RUIZ,1998; SILVA, 2005). A concepção de sociabilidade em Silva Júnior e Gonzales (2001) articula a visão de Lukács (1979) à visão de vários autores por nós referidos, tais como Heller (1972), Duarte (2004a; 2001), Lessa (2002) e Souza Júnior (1997), entre outros e, ainda que com algumas distinções, como as proposições de Lazzarato (2001). A análise de Silva Júnior e Ferretti (2004, p.86), articulada às contribuições de Lukács (1979) e Lessa (2002), apontam que a subjetividade é dotada de uma característica humana e social mediada pela objetividade na qual vive o ser social Concluímos assim que há, no bojo das adversidades, seduções e falácias da realidade objetiva posta pela configuração pós-fordista do mundo do trabalho e das proposições da pedagogia das competências, que está a serviço da primeira, a possibilidade da alteração ontológica da consciência na relação dialética indivíduosociedade. Enquanto “consciência potenciada (produto da apropriação)” na praxis (sócio-educacional e laboral) e na dialética entre as esferas do em-si e do para-si, a subjetividade, portanto, é compreendida como elemento fundamental para as (im)possiblidades das transformações e/ou reproduções da realidade sócioinstitucional. Referências bibliográficas: AKTOUF, Omar (1992). 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