1 Uma concepção do corpo em processo de adoecimento sob a ótica dos alunos do Curso de Fisioterapia: um estudo fenomenológico Fabiane Elpídio de Sá 1 Patrícia Helena Carvalho Holanda 2 José Olinda Braga 3 RESUMO O objetivo desse estudo é compreender nos discursos dos alunos do Curso de Fisioterapia como se configura o processo de adoecimento do corpo de pacientes submetidos aos cuidados fisioterapêuticos. A questão central desta investigação foi: “ Qual o significado de corpo em processo de adoecimento a partir dos relatos dos pacientes atendidos por estudantes de fisioterapia? Para tanto, foram entrevistados cinco discentes utilizando-se a técnica da entrevista semi-estruturada. Sendo assim foram extraídas as seguintes categorias: O significado do corpo vivido na experiência do adoecimento do outro; O significado do cuidar de um sujeito com uma incapacidade física e A contribuição da formação do aluno para o enfrentamento das implicações do adoecer do outro. O distanciamento entre corpo e mente é algo bastante presente nos pacientes que sofrem de algum transtorno físico. Esse fato também pode ser observado na concepção de corpo/alma pelo profissional e estudante no início da sua vida acadêmica já que se valoriza bastante os cuidados voltados para o corpo enquanto estrutura e função. Descritores: Fenomenologia, Fisioterapia e Corpo __________________ Mestre em Saúde da Criança e do adolescente, Coordenadora, docente do Curso Fisioterapia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e doutoranda em Educação Brasileira _ Universidade Federal do Ceará (UFC) 2 Doutora em Educação Brasileira _ Universidade Federal do Ceará (UFC) 3 Doutor, docente do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC) 2 Introdução A fenomenologia é um método filosófico que vem sendo utilizado amplamente como suporte metodológico nas pesquisas da área da saúde e, em especial da enfermagem. Atualmente, a Fisioterapia tem buscado explicações que tematizam sua propostas de cuidado, sobretudo nos aspectos que alcançam as experiências do indivíduo, enquanto portador de alguma enfermidade, em geral aquelas que acometem a sua funcionalidade e desempenho de tarefas e atividades que o excluirão da participação e convívio social com os grupos, comprometendo assim questões que irão ultrapassar o cenário biológico para o psicoafetivo. Destarte, a fenomenologia tem como objeto de trabalho e de estudo o ser humano em seu mundo “suspendendo” a tese do mundo natural, elucidando o significado do fenômeno em questão. Portanto, todo o seu trabalho gira em torno do sentido do ser, seus modos, maneiras de enunciação e expressão. O fenômeno, ou seja, o que se mostra a si mesmo tal como é, se apresenta no método fenomenológico como o objeto da investigação e como principal instrumento de conhecimento. Este método adota a intuição, já que de acordo com Husserl, as essências são dadas intuitivamente (MONTEIRO et al., 2006). Para Husserl, a fenomenologia é o acabamento da tentativa de Descartes de fundamentar todo o conhecimento na certeza reflexiva do ego cogito e de suas cogitationes. A reflexão fenomenológica parte da correlação de cada cogito com seu cogitatum, que nunca é um objeto isolado, mas desde logo deve ser concebido como objeto em seu mundo (ZILES, 2007, p. 217). A reflexão fenomenológica de Husserl mostra o outro como outro, ou seja, como um eu-sujeito consciente não pode estar presente na minha consciência da mesma maneira como outros entes do mundo. Somente é dado como “apresentado” em seu corpo, numa apresentação que nunca encontra sua plenitude numa apresentação. Monteiro et al em 2006 cita que na na concepção heideggeriana, não se separa o homem do mundo, pois isso denotaria a separação entre sujeito e objeto. Para o filósofo, o mundo não se configura um espaço topográfico, mas reflete e compreende as várias formas de se relacionar, como viver e como pode se comportar. As divergências filosóficas entre Husserl e Heidegger dão-se, principalmente, a partir da idéia de mundo da vida, da facticidade da vida e o ser-no-mundo. Esta dimensão do ser-no-mundo constitui-se, ademais, no aspecto que interroga o ser, além 3 de representar o núcleo que sustenta a crítica desse filósofo à Fenomenologia transcendental de Husserl (DUTRA, 2002). Para tanto, o fundamental nesta corrente de pensamento está na descrição. Ou seja, voltar ás coisas mesmas, até porque o nosso olhar habitual não permite evidenciar o fenômeno em si mesmo. O pesquisador considera a sua vivência em seu mundo vida, numa experiência que lhe é própria, permitindo-lhe questionar o fenômeno que deseja compreender. A principal fonte de dados é o diálogo em profundidade entre o pesquisador e o informante. Portanto, conforme Oliveira e Silva e lopes (2008) a aproximação com o método fenomenológico da concepção de corpo em processo de adoecimento por estudantes em período de aprendizagem permitirá desvelar o visto, o sentido, a experiência vivida pelo sujeito fornecendo indicadores do solo perceptual em que ocorre a experiência perceptiva. Assim, considera-se fundamental a busca não apenas do ser que aprende e vivencia sobre a doença, mas também aquele que na sua experiência vivida, única e singular, vive em redor dela e, que depende da capacidade em ser compreendido a partir da diversidade dos significados e expressões do ser-doente. Para tanto, o objetivo desse estudo é compreender nos discursos dos alunos do Curso de Fisioterapia da Universidade Federal do Ceará (UFC) como se configura o processo de adoecimento do corpo de pacientes submetidos aos seus cuidados fisioterapêuticos durante as práticas supervisionadas e assistidas dos módulos de Clínica Fisioterapêutica Neurológica e Psiquiátrica. O método fenomenológico procura fenômenos com base na experiência vivida. Podendo representar-se como um modo de tornar a filosofia uma ciência de rigor, descrevendo para além das relações causais, e sim mostrar a essência do fenômeno (HENRIQUES, 2013). Desenho Metodológico Para a busca da compreensão do fenômeno em questão, não se absorvendo com generalizações, abrangemos a metodologia qualitativa de enfoque fenomenológico, pois esta se adequa à nossa problemática. A questão central desta investigação foi: “ Qual o significado de corpo em processo de adoecimento a partir dos relatos dos pacientes (sujeitos) atendidos por estudantes de 4 fisioterapia? Para tanto, foram entrevistados cinco (05) sujeitos – discente utilizando-se a técnica da entrevista semi-estruturada na qual se utilizou para registro dos discursos um gravador e um diário de campo. Inicialmente os sujeitos foram convidados a participarem da pesquisa e após explicação do estudo foi realizada a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. As entrevistas foram transcritas e posteriormente analisadas através da Técnica de Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2004). Conforme Minayo (2001) a técnica constitui-se na análise de informações sobre o comportamento humano, possibilitando uma aplicação bastante variada, e tem duas funções: verificação de hipóteses e/ou questões e descoberta do que está por trás dos conteúdos manifestos. Tais funções podem ser complementares, com aplicação tanto em pesquisas qualitativas como quantitativas. O processo interpretativo das categorias que consideramos adequar-se ao estudo foi a aproximação com a abordagem fenomenológica na constituição da busca pela essência do ser para a compreensão da vivência do adoecimento do outro para o desenvolvimento das formas de cuidado que valorize não somente a doença e seu aparato terapêutico tecnológico, como também o cuidado envolvente que possibilite o sendo-com-o-outrono-mundo. Nesse estudo foram garantidos a confidencialidade, o anonimato dos sujeitos participantes, assim como as informações apreendidas. Os preceitos éticos da beneficiência, não maleficiência e justiça foram respeitados (BRASIL, 2012). A pesquisa não apresentou riscos biológicos, psicológicos e sociais, pois não abrangeu pessoas em situação de vulnerabilidade física e mental. Além disso, foram atribuídos nomes fictícios aos participantes da pesquisa. Resultados e Discussão Após análise dos discursos relativos ao processo interpretativo das entrevistas semiestruturadas foram definidas as seguintes categorias provenientes da compreensão do corpo em processo de adoecimento a partir dos discursos dos pacientes atendidos pelos alunos do Curso de Fisioterapia da UFC: O significado do corpo vivido na experiência do adoecimento do outro; O significado do cuidar de um sujeito com uma incapacidade física e A contribuição da formação do aluno para o enfrentamento das implicações do adoecer do outro. 5 O significado do corpo vivido na experiência do adoecimento do outro Nessa categoria procurou-se compreender a partir das experiências dos alunos do Curso de Fisioterapia face aos processos de cuidar, como eles vivenciam ou significam a experiência de ser-doente-no-mundo. Sendo assim, muitos pacientes relataram em seus discursos que o adoecimento leva a falta de compreensão pelo outro do ser-doente. Tal fato é demonstrado pelas queixas manifestadas pelo paciente aos alunos, que compreende a doença como um mal do corpo e da alma.Conforme segue no discurso da aluna: “ O paciente fica perdido ou restrito diante do seu estado de incapacidade física... Há uma espécie de rejeição interior e exterior... A família não o compreende e passa ao profissional toda a responsabilidade diante do mal que o acomete. Isso leva muitas vezes a uma desconfiguração da identidade corporal, que acometida pela sequela impõe ao paciente limitações perante o tratamento.” (Maria) O distanciamento entre corpo e mente é algo bastante presente nos pacientes que sofrem de algum transtorno físico, visto que na maioria das vezes ocorre uma interrupção na relação entre eles. Esse fato também pode ser observado na concepção de corpo/alma pelo profissional e estudante no início da sua vida acadêmica já que se valoriza bastante os cuidados voltados para o corpo enquanto estrutura e função. Diante desse contexto, pode-se pensar em propostas terapêuticas que fundamentem o envolvimento da imagem corporal na busca da autopercepção através dos resíduos funcionais manifestados pelo paciente compreendendo que mesmo estanto ele limitado funcionalmente o estudante poderá reajustar a partir das experiências internas os aspectos negativos da doença em busca de vantagens atitudinais. O significado do cuidar de um sujeito com uma incapacidade física Procuramos analisar nessa categoria as vivências dos estudantes diante dos cuidados terapêuticos dispensados aos pacientes com diagnósticos clínicos de acidente vascular cerebral (trombose), onde foi fundamental perceber a preocupação dos estudantes com questões relativas ao sofrimento psíquico de ser-doente, principalmente 6 quando envolve uma enfermidade que gera limitações significativas às atividades e participação social das pessoas envolvidas. “ Quando apresentam baixa auto-estima, interfere de forma negativa no tratamento deles, pois quando o paciente é desanimado, desmotivado, interfere...o que se pretende é ajudar o paciente a externar seus medos, anseios e angústias... e se essas emoções são causadas pela dor física, ou psicológica pelo desejo de ficar logo bom, ou até mesmo medo de ficar incapacitado permanente... Eu digo para eles que há formas de superação que irá auxiliar a nossa assistência e uma delas é o acolhimento. Essas coisas não estão escritas no currículo, mas na nossa vivência de estar com o paciente e entender o seu mundo.” (João) Percebemos pelo discurso que o estudante mesmo não estando apto profissionalmente no desenvolvimento da tomada de decisão clínica que possa garantir sua autonomia profissional, presta cuidados de recuperação funcional, mas tende também a deslocar sua assistência aos aspectos psíquicos do adoecer. Portanto, a compreensão da corporeidade do indivíduo portador de uma sequela física e o acolhimento do doente são favorecidos pela simbiose manifestada pelo toque do fisioterapeuta no corpo do paciente numa espécie de experiências sensoriais que favorecerão o vínculo terapêutico para uma recuperação permeada pela segurança e, sobretudo, para a superação das limitações impostas pela doença. “ O indivíduo compreenderá por meio de uma abordagem integral, como seu corpo reage aos fatores negativos da doença. Há de criar uma consciência de que esses fatores poderão ser reestruturados para o desenvolvimento de uma reflexão sobre a doença e suas formas de resiliência. Nós tratamos o corpo levando em consideração o que o sujeito apresenta de resíduo funcional para poder tirar proveito disso, pois o cérebro é plástico e alguns movimentos resgatados.” (Josefina) e funções poderão ser 7 A contribuição da formação do aluno para o enfrentamento das implicações do adoecer do outro Quando questionamos aos alunos qual o papel do currículo e professores para a formação destes quanto ao enfrentamento das implicações subjetivas do processo de adoecimento dos pacientes com sequelas físicas submetidos à Fisioterapia, os mesmos expressaram em seus discursos que tais aspectos subjetivos devem estar presentes nos seus processos de formação e, que tais conteúdos não poderão estar apenas em semestres iniciais, mas deverão percorrer longitudinalmente todo o currículo do curso. Além disso, o aluno deverá ser estimulado a procurar formações contínuas que incluam tais questões. “ O Curso de Fisioterapia tem uma preocupação em fortalecer os aspectos subjetivos, mas também científicos da profissão, apesar de que a sociedade ainda impõe que se fortaleça as evidências científicas para a comprovação das técnicas e procedimentos que otimizem a função e a atividade do indivíduo em detrimento de questões relativas às experiências de vida das pessoas que cuidamos.” (Joana) “ Além de estudar a patologia precisa inserir o paciente na esfera de atenção biopsicossocial, além de relacionar os fatores físicos, ambientais e pessoais, conhecer o homem no seu mundo vivido.” (Jorge) “ Desenvolver o futuro fisioterapeuta nas habilidades clínicas e no modo de cuidar do paciente, tratando-o de froma mais humanizada possível. Além de passar alguma experiência a respeito do que se pode encontrar no exercício de sua vida profissional. “ (João) Os alunos referem o quanto é essencial um cuidado mais contingente e individualizado para a compreensão do ser humano na vivência do seu adoecer. Para o doente a manifestação da doença pode significar não somente seus sinais e sintomas, mas ela pode anunciar-se, segundo o que anuncia a si mesmo, o que, em seu mostrar, aponta e indica algo que não se mostra. Assim, o fenômeno doença e suas formas de expressão dependem puramente de um fenômeno, que é exatamente estar-no-mundo- 8 em-processo-de-adoecimento, onde a própria mundanidade pode modificar-se e transformar-se, cada vez, no conjunto das estruturas de mundos particulares. Considerações Finais Diferente das possibilidades de reação com o mundo do doente o aluno, relacionase com o mundo que a ele é próprio trazendo assim suas experiências, produzindo autoconhecimento, caracterizando-se pela significação que essas experiências obtidas do outro representarão para o ser-si-mesmo a construção de sua identidade pessoal e profissional, pois o modo de ser-no-mundo pelas vivências de aprendizagem de faz efetivo através do sendo-com-o-outro-no-mundo. 9 REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. 3. ed. Lisboa: Edições 70. 2004. BRASIL. Resolução 466/2012. Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Ministério da Saúde/Conselho Nacional de Saúde, Brasília, 12 dez. 2012. DUTRA, E. A narrativa como uma técnica de pesquisa fenomenológica. Estudos de Psicologia. 2002, vol. 7, n.2, pp. 371-378. HENRIQUES, C.M.G; CATARINO, H. Da C.B.P. Cuidar em enfermagem: estudo fenomenológico. 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