a audição e os implantes cocleares

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Texto de apoio ao curso de Especialização
Atividade Física Adaptada e Saúde
Prof. Dr. Luzimar Teixeira
A AUDIÇÃO E OS IMPLANTES COCLEARES
Pedro Bloch
A audição é o sentido que mais nos coloca dentro do mundo. Através da
voz se consolida de forma cada vez maior e melhor,
o relacionamento mãe-filho. A linguagem é aprendida, basicamente,
pelo que o meio fornece para ser ouvido. E nem é preciso acentuar as
conseqüências importantes da ausência ou prejuízo do feedback
auditivo.
O esquema corporal não se limita às definições que circulam
comumente, mas tem dimensões psicológicas amplas, em que a audição
ocupa lugar destacado.
Cada ser humano tem a sua voz, a voz que o identifica, a voz que o
torna pessoa. A ausência de identidade vocal já é uma perda,
altamente significativa, na quase homogeinização da voz e da fala do
surdo. O menino se identifica com o pai através, também, da
identificação vocal. A menina ouve a voz da mãe e com ela sintoniza.
Basta sentir o que ocorre, quando algumas pessoas reunidas ficam
silenciosas, permanecem caladas. Cada minuto se amplia de forma quase
absurda. Basta lembrar a insuportabilidade do silêncio do altiplano
boliviano, em que se explode uma bomba, para rompê-lo e estabelecer
um parâmetro sonoro. Basta sentir o que ocorre quando um rádio ou uma
TV estão mal sintonizados e a voz nos chega distorcida, ainda que
ligeiramente. Basta analisar o que se passa quando pessoas falam
baixo ou quando as condições acústicas são más. O feedback,
entretanto, não se limita ao que nós mesmos podemos avaliar quando
falamos, nem depende apenas da resposta, mas da reação, por mais
insignificante que seja, de quem nos ouve.
Uma pessoa com hipoacusia grave capta um mundo limitado. A
convivência dos sentidos traz compensações, mas modifica, ao mesmo
tempo, o mundo. Diga-se, desde já, que o implante coclear, por mais
limitados que eventualmente possam ser seus resultados, é uma
implantação de parte do mundo que nos envolve. Quando se fala em
implantes cocleares é da maior importância o estudo da codificação da
mensagem auditiva, o estudo do que possa resultar de benéfico para o
paciente, do tipo de informação que pode contribuir, para colocá-lo,
ainda que muito limitadamente, dentro de um mundo sonoro. A privação
provisória do que o implante proporciona ao paciente, sua reação de
perda, diante do que se lhe havia acrescentado, mostra bem o que
significa o alcançado. Sentimos bem isso no primeiro caso do
Professor Mangabeira. O segundo, quando houve necessidade de
verificar a pilha e teve interrompidas, momentaneamente, suas
recentes informações, exclamou : "Que falta está me fazendo !!!" Ao
se falar do surdo, se tem, geralmente em conta, os sons pertinentes
da linguagem, da música, dos ruídos, das atividades diárias. Há uma
tendência a esquecer os sons que são captados sub-liminarrnente.
Teatini estudou e condensou bem as dimensões da codificação da
mensagem auditiva. Basta abolir os sons ambientais e ver o que
ocorre. A diminuição gradual do mundo sonoro leva a alterações de
ordem psíquica. O feedback auditivo, por menor que seja, é uma base
de futuras aquisições. Se não alcançarmos a audição linguística (sons
que significam), há um outro nível de significação que é a audição
acústica (ruídos, vozes). A pessoa que ensurdece vai deteriorar a
palavra, mesmo a já adquirida. A criança surda, ou a que ensurdeceu
muito cedo, vai traduzir em inúmeros aspectos, sua deficiência. Podese ensinar ao surdo a emitir, mas de urna forma em que a identidade
vocal não tem lugar e a nuança afetiva está ausente.
Através da melodia verbal também se drena a emoção. A pessoa que
ouve, vê, prevê, completa, integra. A identidade vocal (que o surdo
não adquire ou perde em boa parte), é tão peculiar quanto as
impressões digitais ou o rosto. Essa identidade vocal, personalizada,
ainda mais, pelos valores para-linguísticos, pela melodia verbal,
etc... carrega, não só emoção, como altera sentido, significação. A
palavra não se completa apenas pelo contexto. O implante coclear vai
nos obrigar a urna visão mais profunda de urna série de problemas.
Vai aprofundar nossa visão. Ou deveria dizer nossa audição?. Ouvir.
Sons, ruidos. Escutar - estar atento ao ouvir, para perceber. A
criança, além do outro, precisa do banho de linguagem. Nos grandes
centros, são tantas as solicitações sonoras, tal a poluição, que a
audição se faz, quase sem distinguir seu objeto. A resistência ao
ruído de quem ouve é um esforço nervoso enorme. É um contínuo
desvencilhar-se de parasitas e seleção do que vai entrar em nosso
campo cerebral. É uma tarefa extenuante, quando intencional. No surdo
o esforço é inverso. Quer captar todo o possível, quer romper sua
barreira de silêncio. No que diz respeito à linguagem propriamente
dita, conforme o meio de onde provém, a criança pode ter um código
restrito (calcado sobre o concreto) ou um código elaborado (abertura
para o abstrato). Isto significa que uma mesma mensagem pode ser
decodificada em níveis diferentes. Uma pessoa se estrutura e se
desestrutura com o feedback que recebe dos outros. As atitudes alheias
moldam muito o surdo. Há uma dimensão que ele pretende alcançar. É o
acesso legítimo ao abstrato.
Um dicionário não faz uma linguagem. Tudo isto nos ocorre (e muito
mais! ) diante do extraordinário trabalho do Professor Pedro Luiz
Mangabeira-Albernaz e sua equipe, que com o entusiasmo e a
criatividade científica de William House e seus colaboradores corroboram e colaboram, entre nós, num avanço altamente
significativo, pelo que já se alcança e, sobretudo, pelas
perspectivas futuras que se vão abrindo. A luta contra a surdez faz
de William House uma figura única. A equipe de São Paulo, do
Professor Pedro Luiz Mangabeira-Albemaz é bem digna dele, através da
profunda seriedade de seu trabalho, da discrição com que apresenta
seus admiráveis estudos, implantes e resultados e segurança com que
se debruça sobre este quase milagre sonoro que é o implante coclear.
Esta monografia dispensa qualquer comentário acerca de seu conteúdo.
A cada página cresce o nosso interesse, aumenta nossa informação, se
acresce nosso conhecimento, até desembocar nos dois casos que
apresenta e que falam por si mesmos, com veemência. Mostram,
claramente, científica e humanamente, o que o implante coclear já
logrou, nos casos selecionadíssimos em que foi realizado. Mostra
mais: que, enquanto existirem pessoas e pesquisadores como William
House e Pedro Luiz Mangabeira-Albernaz, as palavras progresso e
humano conservarão e ampliarão seu sentido. Quando, entre tantas
outras vezes, eu falava com Guimarães Rosa acerca de problemas de
audição, ele concluiu sintetizando: "É, meu caro. É isso mesmo. Cada
surdo tem a sua música." O implante coclear me faz pensar e sentir
que um mero ruído ambiental, tão banal para nós, tão ignorado pelos
que ouvem, pode significar para o surdo uma sinfonia de Beethoven.
Este texto foi escrito pelo Dr. Pedro Bloch como prefácio para o
Suplemento da ACTA AWHO sobre o implante coclear (ACTA AWHO 1981,
Supl. 1, 1-2).
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