A recepção freudiana do Instinto Gregário

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A recepção freudiana do Instinto
gregário
Daniel Christino e José Heck*
UM ESTUDO DA ANÁLISE DO EGO E PSICOLOGIA DE MASSA
O ponto de partida da análise freudiana do instinto gregário é a
distinção entre psicologia social e psicanálise, no que tange ao objeto de
estudo. 1 O exame da mente individual pode contribuir, mais do que a
psicologia social faz crer, para a compreensão dos fenômenos sociais. A
crítica freudiana desenvolve-se no âmbito do objeto, Para Freud a psicologia
social operou uma ruptura entre a vida mental do indivíduo e a pólis. Esse erro
de delimitação garantiu para o grupo uma falsa autonomia em relação ao
indivíduo. O grupo passou a ser considerado em si mesmo.
Uma vez a continuidade natural tenha sido interrompida desse modo, se
uma ruptura é assim efetuada entre coisas que são por natureza
interligadas, é fácil encarar os fenômenos surgidos sob estas condições
especiais como expressões de um instinto especial.2
Esse instinto especial recebeu o nome de instinto gregário. É contra ele,
ou melhor, contra a assunção de que esse instinto particular seja irredutível,
isto é, que o grupo tenha sua gênese a partir dele, sem qualquer outra
explicação anterior, que Freud se levanta. Contra a categorização do instinto
gregário como um instinto de caráter primário.
Afirmar que há um instinto que estabelece a necessidade de formação
de grupos é, por outros meios, apresentar o homem como um animal político,
*
José Heck é Prof. Titular da UFG-CNPq.
Daniel Christino é bolsista do Programa Institucional de Iniciação científica da UFG.
1 FREUD, Sigmund. Psicologia de grupo e análise do ego. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. V. 18 Rio de Janeiro: Imago,
p. 89-179.
2 Ibidem, p. 92
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
segundo o famoso aforismo aristotélico. A análise freudiana quer provar que
na verdade o grupo não é uma necessidade natural direta, ou seja, o instinto
gregário não é irredutível, e que se pode explicar a constituição dos grupos a
partir de outra perspectiva teórica.
A crítica freudiana à psicologia social aponta já o rumo da investigação.
O que Freud pretende quanto afirma que há uma "continuidade natural" entre
o grupo e o indivíduo, é fundamentar nos processos mentais individuais a
origem do grupo.
Nossa expectativa dirige-se assim para duas outras possibilidades: que
o instinto social não seja um instinto primitivo, insuscetível de
dissociação, e que seja possível descobrir os primórdios de sua
evolução num círculo mais estreito, tal como o da família.3
Para realizar essa redução do grupo aos processos mentais do
indivíduo, Freud vai lançar mão da sua "psicologia profunda" e dos protocolos
de investigação determinados por ela. Ao descer do nível do grupo para o do
indivíduo ele desloca e condiciona o estudo de formação dos grupos à
psicanálise.
Essa observação nos coloca, imediatamente, diante de outro problema.
Qual a relevância filosófica desta discussão? A idéia aqui é incluir o
pensamento freudiano acerca da gênese dos grupos na tradição da Filosofia
Política. Para tanto é necessário provar que a argumentação a respeito do
instinto gregário encontra em seu caminho problemas de cunho filosófico, e
que para construir uma hipótese a respeito da maternidade dos grupos –
utilizando-se, para tanto, do aparato teórico psicanalítico – Freud dialoga com
a tradição filosófica. Essa possibilidade irá se cristalizando na medida em que
nos aprofundarmos no pensamento freudiano.
Antes de mais nada, diz Freud, é necessário saber o que é um grupo,
quais as questões que se colocam a partir de sua discussão. Ma longa
exposição do trabalho de Le Bom e McDougall dá cabo dessa tarefa. De fato,
essa é a única função da análise dos trabalhos de psicologia social sobre o
assunto; angariar informações sobre a estrutura de funcionamento do grupo de
acordo com a tradição da psicologia social e determinar quais alterações sofre
o indivíduo enquanto membro de um grupo. O que o próprio Freud destaca de
importante em Le Bon é a verificação de que no grupo o indivíduo sofre uma
3 Ibidem.
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
considerável inibição do funcionamento intelectual e que os grupos são
também caracterizados pela elevação da afetividade. Em McDougall, que os
indivíduos do grupo devem ter algo em comum uns com os outros, que o
grupo produz em cada indivíduo uma exaltação ou intensificação da emoção,
e o conceito e sugestão. De fato, as descrições apresentadas por Freud são uma
tentativa de contextualização do problema. A quase totalidade das
observações sobre as características dos grupos estão assentadas sobre
conceitos da psicologia social tradicional, aos quais Freud irá oferecer
explicação diversa, baseado na psicanálise, mas igualmente satisfatória.
Mas o que a tradição da psicologia social entende por ' grupo'? Segundo
os apontamentos de Freud sobre a literatura tradicional, o grupo compreende
uma reunião de pessoas numa ocasião determinada, com uma finalidade
definida. Porém, mais do que definir teoricamente o grupo, Freud já vai
observá-lo sob o ponto de vista do indivíduo. A análise dos trabalhos de Le
bom e Mcdougall caracteriza-se pela indagação a respeito das alterações do
indivíduo quanto rodeado de pessoas, dirigindo-se muito pouco rumo a uma
definição abstrata. O grupo é derivado a partir da constatação de uma
alteração na mente individual.4
Para efetivar a passagem do âmbito do grupo para o do indivíduo, Freud
pergunta-se pelas alterações de comportamento que este sofre quando está no
grupo.
Partimos do fato fundamental de que o indivíduo num grupo está
sujeito, através da influência deste, ao que com freqüência constitui
profunda alteração em sua atividade mental.5
A investigação segue no sentido de explicar uma "alteração mental"
Para a tradição da psicologia social, a susceptibilidade do indivíduo quando se
encontra dentro do grupo – a explicação para que lá ele se comporte de uma
maneira completamente diversa daquela que lhe é própria quando está só – é o
fenômeno da sugestão. O que Freud afirma, contudo, é que a própria sugestão
não possui nenhuma explicação, sendo apresentada como um fenômeno em si
mesmo. Como algo que simplesmente acontece e para o qual não se apresenta
explicação alguma, um dado. Ele, então, propõe-se a explicar o conceito de
sugestão a partir de libido.
4 Ibidem, Capítulo II.
5 Ibidem, p. 113
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
Libido é a expressão extraída da teoria das emoções. Damos esse nome
à energia, considerada como uma magnitude quantitativa (embora na
realidade não seja presentemente mensurável) daquele instintos que
tem a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra amor. O
núcleo do que queremos significar por amor consiste naturalmente (e é
isso que comumente é chamado de amor e que os poetas cantam) no
amor sexual, com a união como objetivo. Mas não isolamos disso –
que, em qualquer caso, tem sua parte no nome 'amor' – por um lado, o
amor próprio, e, por outro, o amor pelos pais e pelos filhos, a amizade e
o amor pela humanidade em geral, bem como a devoção a objetos
concretos e a idéias abstratas.6
Com a introdução do conceito de libido Freud começa a elaborar sua
explicação para o instinto gregário. A libido está intimamente ligada a vida
mental do indivíduo, como de resto todas as categorias que Freud vai
introduzir na investigação. O amor vai substituir o instinto gregário irredutível
como fundamento do grupo. Somente o amor pode forjar o grupo e manter
unidos os homens dentro dele.
Tentaremos nossa sorte, então, com a suposição de que as relações
amorosas (ou, para empregar uma expressão mais neutra, os laços
emocionais) constituem também a essência da mente grupal.
Em primeira estância, nossa hipótese encontra apoio em duas
reflexões de rotina: Primeiro, a de que um grupo é claramente
mantido unido por um poder de alguma espécie; e a que poder
poderia essa façanha ser mais bem atribuída do que a Eros, que
mantém unido tudo o que existe no mundo? Segundo, a de que, se
um indivíduo abandona a sua distintividade num grupo e permite
que seus outros membros o influenciem or sugestão, isso nos dá
a impressão de que o faz por sentir necessidade de estar em
harmonia com eles, de preferência a estar em oposição a eles, de
maneira que, afinal de contas, talvez o faça 'inhenzu Liebe'.7
6 Ibidem, p. 116
7 Ibidem, p. 117.
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
Propor o amor como fundamento da estrutura de um grupo é o que torna
possível a passagem da abordagem teórica geral do grupo para a
especificidade do indivíduo. Este é o centro da tese freudiana; o amor une os
homens. É também essa mesma tese que possibilitará a aplicação, sem
constrangimento, do instrumental teórico desenvolvido pela psicanálise à
investigação. Nesse ponto, Freud se aproxima bastante da abordagem
filosófica tradicional do problema. Basta lembrar que para Hobbes o fator
civilizador na natureza humana é o medo, e em Rousseau. A piedade e a
perfectibilidade. Contudo, a reflexão de ambos os filósofos provém de uma
concepção de natureza humana, enquanto que em Freud ela é motivada por
uma mudança de paradigma científico. A sujeição do grupo à psique
individual só é teoricamente possível se aceitarmos as categorias
psicanalíticas criadas pelo vienense.
A afirmação de que o amor que os homens não tem nada de romântica.
Esse amor de que fala Freud é a caracterização anterior da libido. É instinto
sexual. Contudo, a hipótese freudiana vai precisar ser esclarecida. É
necessário determinar o teor das mudanças que ocorrem na mente individual
para que se possa daí derivar a formação do grupo.
Essa 'descida' a mente individual joga a investigação naquilo que ela
tem de mais psicanalítico. O primeiro passo para clarificar a tese freudiana – e
estabelecer sua relevância do ponto de vista filosófico – é mergulhar no
universo psicanalítico buscando os conceitos que formarão a estrutura básica
da argumentação. Devemos, então, explicar e reconstruir o raciocínio visando
demonstrar como Freud sustenta sua tese da gênese dos grupos na mente
individual.
Com o intuito de estabelecer o processo individual de formação do
grupo a partir do conceito de libido, Freud vai estudar outra forma de laço
emocional: a identificação.
Primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional
com um objeto: segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo
para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio da
introjeção do objeto no ego; e terceiro, pode surgir com qualquer nova
percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra
pessoa que não é objeto de instinto sexual.8
8 Ibidem., p. 136
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
Tanto o libido como a identificação são essenciais para a construção da
estrutura afetiva da mente grupal a partir da mente individual. De fato, estas
são categorias da mente individual. As relações entre elas são aclaradas a
partir do complexo de Édipo.
É fácil enunciar numa família a distinção entre a identificação com o
pai e a escolha dele como objeto. No primeiro caso, o pai é o que
gostaríamos de ser; no segundo o que gostaríamos de ter, ou seja, a
distinção depende de o laço se ligar ao sujeito ou ao objeto do ego. O
primeiro tipo de laço, portanto, já é possível antes de qualquer escolha
sexual de objeto tenha sido feita.9
A essas categorias Freud vai adicionar, a partir da análise do
homossexualismo e da melancolia, outra de igual importância para o
funcionamento da mente individual no processo de formação do grupo; o ideal
do ego.
Ela abrange a consciência, uma instância crítica dentro do ego, que até
em ocasiões normais assume, embora nunca tão implacável e
injustificadamente, uma atitude crítica para com a última. Em ocasiões
anteriores fomos levados à hipótese de que no ego se desenvolve uma
instância assim, capaz de isolar-se do resto daquele ego e entrar em
conflito com ele. A essa instância chamamos de 'ideal do ego' e, a titulo
de funções, atribuimos-lhe a auto observação, a consciência moral, a
censura dos sonhos e a principal influência na repressão.10
Resta agora apresentarmos os tipos de grupos estudados por Freud que
constituem a fundamentação empírica da tese. A aplicabilidade da teoria ao
objeto de estudo. A leitura da tradição da psicologia social apresenta-nos uma
leitura de análise baseada na observação de grupos efêmeros e primários,
Freud se propõe, ao contrário, analisar grupos mais sofisticados e estáveis,
como a Igreja e o exército.
9 Ibidem, p. 134
10 Ibidem, p. 138
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
Numa igreja, bem como num exército, prevalece a mesma ilusão de que
há uma cabeça – na Igreja Católica, Cristo; num exército o
comandante-chefe – que ama todos os indivíduos do grupo com um
amor igual. Tudo depende dessa ilusão.(...)
É de notar que nestes dois grupos artificiais, cada indivíduo está ligado
por laços libidinais por um lado ao líder (Cristo, o comandante-chefe) e
por outro aos demais membros do grupo.11
O vienense está interessado na figura do líder e no papel que ele
desempenha na estrutura afetiva do grupo. Cabe também uma observação de
que o papel do líder pode ser representado tanto por um indivíduo real (o
comandante-chefe) ou por uma idéia. O que caracteriza as observações sobre
esses grupos, é a figura do chefe, que de resto, segundo afirma Freud, foi
negligenciada na literatura tradicional. Até aqui, apenas listamos as categorias
psicanalíticas da mente individual que Freud irá utilizar para estabelecer a
gênese do grupo no indivíduo; como já mencionamos, para tanto ele necessita
explicar os fenômenos da mente individual, recorrendo à psicanálise.
Fundamentalmente, Freud vai atribuir à identificação o teor emocional
das relações entre os membros de um grupo, o que não quer dizer que sejam
estas relações sua essência emocional.
Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente entre
membros de um grupo é da natureza de uma identificação deste
tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e
podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na
natureza do laço com o líder.12
Um grupo se mantém unido pela identificação de seus membros entre
si, isto é, há, necessariamente, uma força que mantém unidas as pessoas
dentro do grupo e essa força é de natureza emocional, a identificação. Ela,
contudo, só é possível mediante a assunção de uma importante "qualidade
emocional comum" que por sua vez reside no laço com o líder. Antes, porém,
de analisarmos a natureza do laço estabelecido com o líder, mais um conceito
psicanalítico deve ser apresentado.
11 Ibidem, p. 120/121
12 Ibidem, p. 141
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
Para Freud, nem todo desejo sexual pode ser efetivado. Nem todo
objeto sexual pode ser adquirido. Quando isso acontece, experimentamos um
impedimento da satisfação sexual originando o que Freud chamou de
"instintos inibidos em seu objetivo".
Em sua primeira fase, que geralmente termina na ocasião em que a
criança está com cinco anos de idade, ela descobre o primeiro objeto
para seu amor em um ou outro dos pais, e todos os seus instintos
sexuais, com sua exigência de satisfação unificam-se neste objetivo. A
repressão que então se estabelece, compele-a a reiniciar a maior parte
desses objetivos sexuais infantis e deixa atrás de si ma profunda
modificação em sua relação com os pais. A criança ainda permanece
ligada a eles, mas por instintos que devem ser descritos como 'inibidos
em seu objetivo'. As emoções que daí passa a sentir por esse objeto de
seu amor são caracterizadas como 'afetuosas'.13
Freud ainda acrescenta que tais instintos não sofrem qualquer
diminuição de intensidade por serem assim inibidos, e que a maioria das
relações duradouras são baseadas neste tipo específico de instinto e não nos
puramente sexuais, pois enquanto os estes extinguem-se ao serem satisfeitos
os outros não encontram satisfação completa sendo, por isso mesmo, mais
perpétuos.
Podemos agora montar nosso quebra-cabeça com maior exatidão. Os
laços afetivos entre os membros de um grupo são da natureza de uma
identificação que só pode existir se baseada numa qualidade emocional
comum (a força que mantém unidas as pessoas num grupo). Essa qualidade,
segundo já indicava Freud, é o laço de natureza libidinal com o líder. Os
membros do grupo 'amam' individualmente o líder, contudo, esse laço é
baseado em instintos inibidos em seu objetivo.
Apesar de possuir uma anterioridade à libido, a identificação não pode
ser considerada como fundadora do instinto gregário porque a própria
possibilidade de uma identificação do tipo apresentado por Freud necessita de
um laço libidinal (amoroso) que lhe dê consistência a condições de existir. A
tese freudiana continua enunciando o 'amor' como mãe e pai do grupo.
Contudo, o que é identificar-se com alguém e o que é 'amar' o líder?
13 Ibidem, p. 141
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
No caso da identificação, o objeto foi perdido ou abandonado; assim ele
é novamente erigido dentro do ego e este efetua uma alteração parcial
em si próprio, segundo o modelo do objeto perdido. No outro caso, o
objeto é mantido e dá-se uma hipercatexia dele pelo ego e às expensas
do ego. Aqui, porém, apresenta-se uma nova dificuldade. Será
inteiramente certo que a identificação pressupõe que a catexia de objeto
tenha sido abandonada? (...)
Antes de nos empenharmos numa discussão delicada questão, já poderá
estar alvorecendo em nós a percepção de que mais outra alternativa
abrange a essência real da questão, ou seja, se o objeto é colocado no
lugar do ego ou do ideal do ego.14
O processo interno da mente individual compreende esta relação entre
ego-objeto-ideal do ego. Quando nos encontramos diante de uma
identificação, o objeto foi tomado como exemplo pelo ego que à luz deste
sofre uma alteração. Estar amando, por outro lado, significa colocar o objeto
no lugar do ideal do ego, transformando a consciência moral do indivíduo no
objeto amado. Aquilo que funda a identificação é esta relação de substituição
do ideal do ego pelo líder, o amor por ele, a qualidade emocional comum entre
os membros do grupo. A partir deste 'amor', os indivíduos identificam-se uns
com os outros, ocasionando uma influência mútua. É por conta disso que os
indivíduos experimentam no grupo uma alteração de comportamento às vezes
bem diversa daquele que, supostamente, teriam sozinhos.
Após as discussões anteriores, estamos, no entanto, em perfeita
posição de fornecer a fórmula da constituição libidinal dos
grupos, ou, pelo menos, de grupos como os que até aqui
consideramos, ou seja, aqueles grupos que têm um líder e não
puderam, mediante uma 'organização' demasiada, adquirir
secundariamente as características de um indivíduo. Um grupo
primário deste tipo é um certo número de indivíduos que
colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do ego e,
consequentemente, se identificaram uns com os outros em seu
ego.15
14 Ibidem, p. 144
15 Ibidem, p. 147
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
Estes processos de substituição que ocorrem no ego são o fundamento
do grupo. São todos ocasionados por relações de teor claramente libidinal,
erótico, amoroso (em Freud, sinônimos). Ao usar da psicanálise para
determinar a ocorrência de tais processos e investigá-los Freud opera uma
mudança de paradigma e desenha o trajeto de um campo do conhecimento
para outro, subordinando a existência de um fenômeno até então considerado
em si mesmo a fragilidade da mente individual.
Era necessário caminhar por entre a floresta epistemológica da
psicanálise para apresentar como plausível essa transposição de eixo da
investigação. É nos processos mentais do indivíduo que situa-se o fundamento
do grupo de si mesmo para o indivíduo o principal aspecto filosófico da
investigação. A conclusão de Freud sobre o instinto gregário não deixa
dúvidas. Ousemos então corrigir o pronunciamento de que o homem é um
animal gregário, e asseverar ser ele de preferência um animal de horda, uma
criatura individual numa horda conduzida por um chefe.16
UMA ABORDAGEM FILOSÓFICA AO PROBLEMA
A noção de indivíduo é relativamente recente no cenário cultural do
Ocidente. Na cultura oriental o que designamos indivíduo é definido por um
todo maior no qual ele está inserido. Um dado semelhante os antropólogos
ocidentais detectam nos chamados povos primitivos.
A primeira versão de indivíduo nos adveio pelo cristianismo. Para os
cristãos, os homens são filhos de Deus porque a alma de cada homem é criada
diretamente por Deus no instante de sua concepção biológica, quer dizer, cada
homem é único e não mera repetição de um outro exemplar humano. O
problema dessa concepção é que ela é pensada a partir de um outro, no caso, a
partir de um Deus criador. Na medida em que se leva a sério essa origem,
deve-se concluir que somos únicos uns em relação aos outros, mas somos
repetições face à origem comum, ou seja, somos deuses, já que Deus é o pai de
todos. Isso o cristianismo não aceita e diz que fomos criados por Deus não
Dele mesmo, mas sim do nada. Mas do nada não provém nada, a não ser o que
é único. Sob este aspecto, viemos do nada, o que o cristianismo novamente
não aceita. Resumindo, o dogma da criação do homem por Deus não resolve
nosso problema (sabermos se somos únicos, ou cada um apenas a repetição do
16 Ibidem, p. 154
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
outro), mas resolve sem dúvida o problema de Deus, por ele ser único, ao não
ser nada daquilo que somos.
Outra idéia de indivíduo é a iluminista. Ela tem várias versões.
Simplifico, tomando a concepção de Kant. Para ele somos indivíduos, cada
um único, porque temos, cada qual, a capacidade de iniciarmos efeitos sem
que haja uma causa desse efeito fora de nós ou estranha a nossa vontade. Tudo
no mundo, observa Kant, está sob a lei da causalidade. Como nós fazemos
parte do mundo, somos seres iguais determinados igualmente como todos os
outros, quer dizer, nos movemos por mil e uma razões, chamadas inclinações,
desejos, impulsos, instintos e assim por diante. Dessas causas nós não somos a
origem, em relação a elas somos efeitos, quer dizer, nós não as criamos senão
que sofremos os efeitos que causam. Há, porém, em cada homem, segundo
Kant, a faculdade de agir por ele mesmo, independentemente de todas essas
influências assinaladas, por assim dizer, por força própria, pondo no mundo
uma causa que nele não existe, a não ser que queiramos, razão por que somos
livres e não meramente objetos de atuações alheias. Kant diz que quando o
homem faz uso de sua liberdade, ele é autônomo, faz de si a sua lei, um
fenômeno único no mundo, onde de resto tudo tem a ver com tudo. O homem
é, portanto, indivíduo porque, segundo Kant, pode não depender de outra
causa que não seja ele mesmo. Em outras palavras, ele está em condição de ser
o senhor dele próprio. O problema dessa concepção é que não podemos nunca
saber exatamente se estamos agindo de maneira autônoma ou não, o que Kant
chama de heteronomia, quer dizer, determinado não por si, mas por algo que
não fui eu quem pois no mundo. Assim, quando decido comer um pedaço de
pão, é difícil saber se o faço devido a fome, ao apetite, talvez pelo prazer que
me dá, não excluído o desprazer que busco evitar, ou se o faço à revelia de
qualquer impulso ou motivação, cujo processo decorre independentemente de
minha vontade. Por isso Kant muda de terminologia e diz que o homem deve
ser livre caso quer ser indivíduo, cada qual único graças a sua liberdade. O
problema que justifica a diferença entre o que é e o que deve ser é bem
prático. Caso não postularmos o fato da autonomia, seremos iguais aos
animais, os quais não pode ser responsabilizados por nada, já que não podem
agir de maneira diferente do que agem. Eles estão condicionados conforme ao
meio e aos estímulos que os afetam. Se nos identificarmos simplesmente com
os bichos, não podemos exigir nada de nós mesmos, nem de outrem, a não ser
variar indefinidamente nossos condicionamentos, nos culpando injustamente
pelo que fazemos ou deixamos de fazer, sem nenhuma razão, já que somos
todos objetos de algo sobre o qual não temos influência. Pois quem acha que
está determinado por aquele que condiciona. São os ratinhos e as pombinhas
que manipulam o sóbrio behaviorista, não este os bichinhos, assim como são
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
os pesquisados que determinam os resultados das estatísticas, não o
pesquisador que apresenta os resultados como se fossem dele.
Freud não oferece um conceito de indivíduo. Ele partiu da observação
de que há variações biológicas nos seres viventes individuais, quer dizer,
quando um adoece o outro não adoece necessariamente com ele. Sob este
aspecto, quem está com um furúnculo é único, comparado com todos os
outros que não tem furúnculo. Ocorre que as doenças biológicas possuem uma
explicação comum, quer dizer, as causas que explicam meu furúnculo são
mais ou menos iguais às causas que explicam o furúnculo do vizinho. Freud
observou que nas chamadas doenças psíquicas essa universalização científica
não é tão óbvia, ou seja, eu posso ter distúrbios psíquicos devido a causas que
deixam um outro sadio como um jovem Deus. À medida que Freud foi vendo
que para os problemas do psiquismo individual não há uma injeção, como há
para o mesmo tipo de infecção, ele foi levado a tratar cada doente psíquico
como indivíduo, isto é, como único em seu destino, razão pela qual
desenvolveu uma técnica de terapia individual, para fazer jus à doença de cada
um de seus pacientes. Muito cedo, porém, Freud começou a elaborar hipóteses
no sentido de supor que houvesse, talvez, algo comum no psiquismo dos
indivíduos e que, por mais pessoal que a dor psíquica fosse, ela estivesse sobre
leis universais, assim como é o caso de doenças meramente biológicas. Assim,
Freud relata nos Estudos sobre Histeria que, ao prometer ajuda aos pacientes,
confrontava-se com a seguinte objeção: "Ora, o senhor mesmo me diz que
minha doença provavelmente está relacionada com circunstâncias e fatos de
minha vida. O senhor de qualquer maneira não pode alterá-los. Como se
propõe a ajudar-me então? E tenho podido dar esta resposta: Sem dúvida o
destino acharia mais fácil do que eu aliviá-lo de sua doença. Mas você poderá
convencer-se de que ganharemos muito, se conseguirmos transformar seu
sofrimento histérico em infidelidade comum." Em outras palavras, Freud se
deu conta de que ao psiquismo individual faz bem em perceber que ele não é
tão único em sua capacidade de sofrer quanto supõe. Basta lhe mostrar que
aquilo do qual sofre tem algo a ver com aquilo do qual outros também sofrem.
É mais fácil mascarar o que é comum, no caso a infelicidade, do que fugir de
uma dor de doente que só eu tenho ou proteger-se de um sintoma que não
constato em outrem. Por mais que Freud se tenha ocupado de sintomas
universais, a ponto de dizer que tinha a humanidade toda como sua paciente,
em momento algum ele a idéia de que o psiquismo é um dado individual, e não
coletivo. Portanto, se cura houvesse, ela não seria ilusória para o indivíduo,
assim, como não é ilusório o bem-estar que sinto quando sou curado da febre
ou o dentista dá cabo de minha dor de dente. Confrontado com explicações do
tipo da psicologia social da época, Freud reagiu com o texto em questão. Ele é
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
uma obra-prima de argumentação de alguém que está convencido do contrário
daquilo que os outros dizem, e consegue explicar os fenômenos com um
raciocínio oposto àquele empregado por quem não segue o seu modelo de
explicação.
CONCLUSÃO
Se Freud tem ou não razão, o filósofo não pode decidir. Uma coisa,
porém, é clara sob um ponto de vista cultural: Freud é um radical aliado do
indivíduo, vale dizer, ele acha que cada doente psíquico pode ser dono de sua
doença. Que não existe força no mundo e no além que lhe pode tirar esse
privilégio. Se o indivíduo não conseguir curar suas mazelas psíquicas,
ninguém o poderá fazer por ele. Só lhe resta a chamada natureza. Diante dela,
e não de seus semelhantes, Freud se curvou, como qualquer médico se curva
diante do indivíduo que merece e do indivíduo que morre.
Fragmentos de Cultura, Goiânia, 7(23): 11-24, 1997.
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