caminhante O objetivo único: viajar. Sim, era essa a motivação inicial. Precisava urgentemente de férias, necessitando ventilar antigas idéias que me faziam querer ser médica de família e destensionar algumas relações desgastadas no trabalho. A idéia foi então ir rumo a Europa, onde estavam os estágios mais distantes, e os sonhos de um incrível mochilão já tão esperado. Numa visita de Juan Guervas à nossa clinica na rocinha, ele me convenceu a ir conhecer as práticas feitas em Madrid, e num centro de saúde numa cidade chamada Zaragoza -- que eu nunca havia ouvido falar. Minha companheira de viagem foi a querida amiga Joana, também residente na Rocinha, que assim como eu, havia pego uma equipe de saúde da familia com uma demanda insaciável, e de uma vulnerabilidade social paralisante. Logo, afoita por respirar longe do trabalho. Um mês antes descobrimos que existe uma grande burocracia para ir estagiar no serviço publico de saúde espanhol e não havia tempo hábil para resolvermos tudo. Joana levantou a idéia de irmos a Portugal. Eu estava frustrada... já havia povoado meu imaginário com os sabores das tapas, as palmas do flamenco, e os coloridos dos filmes de Almodóvar. Além disso, queria também entender como os médicos da atenção primária espanhola faziam as tais consultas de seis minutos, idéia que pretendia importar na crença de que resolveria minha vida quando voltasse ao trabalho no Brasil. Conhecemos então Lourdes Luzon, uma espanhola muito simpática, que estava contribuindo na coordenação da residência e vinha de Zaragoza. Ela conseguiu que um médico de San Pablo nos recebesse como observadoras. Partimos então dia 06 de junho para a Europa com o seguinte roteiro: duas semanas em Zaragoza, uma semana no WONCA em Praga, e uma semana em Lisboa. Depois cinco merecidas semanas de férias, sem rumo, com algumas possíveis paradas -- de fato não havíamos tido tempo de organizar nada! Antes de lhes contar nossos dias no velho mundo, faço breve parêntesis para compartilhar algo que aconteceu uma semana antes da viagem, e que acabou transformando-me em também paciente. No final de maio, tivemos o Congresso Nacional de Medicina de Família em Belém, e, como eu tinha uns dias livres antes, fui conhecer a ilha fluvial de Marajó. Lugar de imensidão da natureza, onde em um minuto o céu enegrece e cai uma chuva que te faz sentir pequenininho, e onde não se consegue ver a outra margem do rio, parecendo caminhante um grande e doce mar Amazonas. Pois sem dar ouvidos a força desta natureza, fui eu desbravar os caminhos do leito do rio seco, e, atravessando um pequeno riacho, senti uma dor absurda que me atingiu rapidamente os dois pés. Sai correndo, no desespero, e logo apareceu um pescador, que me falou que eu havia sido ferroada por uma arraia. Chegando no posto de saúde local, um técnico de enfermagem especialista em arraias me atendeu com toda a atenção. Marajó esta cheia de arraias e os moradores de lá já foram picados umas tantas vezes. O técnico, que infelizmente não me recordo o nome, foi cuidando das minhas feridas enquanto me contava que eu havia tido “sorte”, pois havia sido uma arraia filhote e que então eu não precisaria passar por nenhuma cirurgia; em umas duas semanas abriria um "umbigo negro" em cada pé e depois cairia deixando uma úlcera que devia se fechar com sorte em dois meses. E eu agoniada com a dor e pensando que em sete dias estaria na Europa, de mochilão. E assim foi. No dia nove de junho nos alojamos em um albergue em Zaragoza. Pela manhã, Luis Gimeno, o tal médico espanhol que nos receberia, nos esperava para nos levar ao centro de saúde. Enquanto caminhávamos, nos contou um pouco sobre o bairro: no centro da cidade, com muitos pequenos prédios antigos, em San Pablo residem muitos idosos, imigrantes provenientes da África e Oriente Médio e, com a atual crise na Espanha, há muitos desempregados e algumas áreas de trafico. Em menos de cinco minutos estávamos no centro de saúde San Pablo. Um prédio de quatro andares, na parte baixa ficava a recepção com pessoas do administrativo organizando marcações e prontuários e uma sala equipada para atendimentos de emergência. Nos outros pisos estavam os consultórios, dois para cada equipe. Na Espanha, os médicos de família ficam responsáveis pelo atendimento dos adultos e idosos e a equipe é completada por um enfermeiro. Eles dão cobertura de saúde a uma lista de cerca de 1000 a 1500 pessoas, que podem escolher com qual equipe desejam ser acompanhadas. Começamos os atendimentos. O consultório era amplo, com maca, pia e material para procedimentos. Reparei nos vários pôsteres nas paredes que falavam sobre a importância de se acolher a saúde do imigrante, havia também alguns desenhos e um cartão de Leonardo Boff. O ambiente era calmo, não se ouvia ruídos. Luis ligou o computador e abriu o prontuário eletrônico. Havia uma caminhante agenda com muitas marcações a cada seis minutos a partir das 08:30. Do lado de fora, haviam cadeiras e duas ou três pessoas -- quase ninguém, comparada a sala de espera que eu estava acostumada. As pessoas íam chegando aos poucos, já com seus horários marcados, podiam pedir a consulta por telefone, na internet, ou diretamente à recepção da clinica. O compromisso do sistema de saúde é fazer o agendamento em até 48h. Muitos pacientes íam renovar receita de medicamentos de uso crônico, algumas raras intercorrências infecciosas, alguns idosos com queixas de dor. Em geral, ospacientes eram bem esclarecidos e objetivos, com as consultas evoluindo de forma organizada e clara. Às 11h, fizemos um pequeno intervalo no atendimento para um rápido lanche junto a outros trabalhadores da clinica. Mais algumas consultas; depois havia vários agendamentos para checar exames e contatos por telefone. Luis tinha acesso a sistemas integrados que permitiam checar o exame do paciente no prontuário eletrônico ou uma internação no hospital; ele avaliava e ligava para o paciente para dar um retorno. Próximo as 14h, saímos para ver dois pacientes cuja as famílias haviam solicitado visita naquela mesma manhã. Fomos eu e o Luis; não há agentes de saúde na Espanha. Visitamos um asilo filantrópico -- há muitos na cidade ligados a igreja católica e alguns poucos do governo -- onde acabamos por atender duas idosas, ambas com sintomas respiratórios agudos, mas no geral muito bem. Na população da Espanha há muitos idosos, o que ficou muito evidente durante o estágio; atendemos muitas pessoas com 70, 80, 90 anos, alguns vindo sozinhos às consultas. Uma realidade de população ainda bem diversa da que encontramos na maior parte do Brasil e que te propõem a refletir sobre a importância de um atendimento diferenciado para estas pessoas, mais condizente com suas necessidades e modos de viver. Por volta das 15:30, regressamos à unidade e havíamos acabado o trabalho naquele dia. A semana em Portugal foi mais curta, e fazer uma avaliação do serviço de atenção primária de lá seria um pouco ousado demais. O que pude perceber nestes poucos dias foram os prejuízos da crise econômica e o impacto disto na saúde, com aumento dos serviços pagos e consequente restrição do acesso. Para concluir, vou contar um pouco sobre como foi ser paciente por lá. Nas primeiras semanas na Espanha minhas feridas nos pés já demostravam que não iam sarar rapidamente. Luis logo se interessou pelas feridas de arraia. caminhante Agendava a cada um ou dois dias, consultas de 6 ou 12 minutos para mim, fazia a limpeza e os curativos. Com a evolução sombria para duas úlceras com material necrótico, me agendou para sua enfermeira. Rosa, com cuidado e tempo, desbridava minhas úlceras sempre atenta para qualquer sinal de dor. Tentava me tranqüilizar que não iria doer; na verdade não doía nada, e era isso que me assustava. Ao ir embora, eles me entregaram material para curativo; eu peguei o suficiente para duas semanas, certa de que já estaria boa antes disso. Já em Praga precisei comprar curativos e minha surpresa foi ver que em um país com provável poder aquisitivo semelhante ao da Espanha, eu gastava em um curativo o equivalente a um pacote inteiro comprado numa farmácia espanhola. Quando cheguei para o estágio em Portugal, as úlceras não íam nada bem. Pedi para a médica que me acompanhava dar uma olhada; não se interessou muito e me passou para outro médico. Ele avaliou, achou que não estava bom e pediu para uma enfermeira fazer o cuidado. A enfermeira Ana não podia, que passou para a Antônia, que pediu para uma outra ver, pois estava enrolada. Ao final de uma hora e pouca, uma enfermeira me chamou, fez uma limpeza superficial e fechou. Nos dias que se seguiram foi a mesma coisa. Todas se diziam ocupadas, e nenhuma se prontificava a avaliar e cuidar de mim. Nos últimos dias em Lisboa, eu mesma fazia meus curativos na sala da enfermagem, sob o olhar de uma ou outra que ficava regulando o uso do material. Triste e decepcionante, ainda mais quando você se sente bastante vulnerável, sabendo que aqueles eram os últimos dias num centro de saúde, e meus machucados, já com quatro semanas, só pioravam. Pensava como estávamos ofertando nossos serviços no Brasil, e como a limitação do acesso pode ser feita de forma bem mais sútil. Após o período de estágio, fomos para as tão esperadas férias. Já na França, encontrei-me com uma amiga médica que me sugeriu fazer um retalho cutâneo!! Deste ponto em diante, já meio no desespero, lembrei das aulas do início da faculdade, que orientavam para o uso do açúcar para úlceras crônicas de difícil cicatrizarão. De café em café, eu comecei a pegar pacotinhos de açúcar para fazer meus curativos. Em três dias, pasmem, os machucados com cor cinzenta começaram a granular. Uma semana antes de voltar ao Brasil, e dois meses depois do acidente, a primeira úlcera fechou. Uma semana depois de chegar em casa, a outra. No final, restaram uma marquinha em cada caminhante pé, pra não me deixar esquecer todas estas andanças e aprendizados pelo mundo, e uma forte lembrança no coração dos dias passados na Espanha, deste estágio inesperado que para mim proporcionou o principal objetivo que um estágio deve ter: conhecer pessoas que te inspiram por amarem o que fazem. Profundamente grata ao querido Luis Gimeno. Breves palavras do retorno ao Brasil: Retornei cheia de idéias! Querendo facilitar o acesso, liberei para os meus agentes de saúde agendarem pessoas a cada dez minutos -- seis era muita ousadia. Todos que buscassem atendimento, por qualquer motivo, inclusive para ' uma palavrinha' ou 'só uma receita', deveriam ser agendados para o mesmo dia. Queria também tentar ser mais flexível e ter espaços diários para visitas domiciliares. Cheguei, conversei na reunião da equipe das novidades e dos planos que trazia; meus agentes de saúde adoraram! As consultas de dez minutos me exauriam, se esticavam, surgiam outras demandas trazidas pelos agentes sem fluxo claro, eu ficava sem almoço e trabalhava sempre uma hora a mais do que o previsto -- e se a clínica ficasse aberta ficaria mais. No final, conclui, um pouco frustrada, mas certa de que eu tinha tentado, que está não é a realidade para nosso Brasil ainda. Nos primeiros cinco minutos, a maior parte dos meus pacientes se quer tinham conseguido expressar claramente por quê haviam vindo; eu os examinava objetivamente em alguns minutos e depois, em no mínimo, mais cinco minutos, explicava a proposta de tratamento, tentava alcançar a compreensão e o acordo do paciente, escrevia a receita em letras de forma grandes e bem explicadinho. Quando para mim era o final, surgiam mais uns dez minutos de demandas reprimidas, queixas nunca ditas que precisavam da oportunidade rara da escuta. Como minha agenda estava sempre cheia, eu não conseguia remarcar em curto espaço de tempo todos que precisavam. Após dois anos na rocinha eu seguia vendo novos pacientes diariamente. Conclui que para termos consultas com resolutividade em menos tempo, precisamos de: anos de mudanças estruturais no país, com educação de qualidade para a população e precisamos, na atenção primária, trabalhar com 1500 e não 3500 pessoas, pois só com o retorno garantido, as pessoas ficam mais tranqüilas e contam só o que precisam naquele momento, sem o medo de nunca mais terem a porta aberta pra chegar. Grandes desafios... Possível sim... Eu vi acontecer em algum lugar do mundo chamado Zaragoza. caminhante