48 - andanças

Propaganda
caminhante
O objetivo único: viajar. Sim, era essa a motivação inicial. Precisava
urgentemente de férias, necessitando ventilar antigas idéias que me faziam
querer ser médica de família e destensionar algumas relações desgastadas no
trabalho. A idéia foi então ir rumo a Europa, onde estavam os estágios mais
distantes, e os sonhos de um incrível mochilão já tão esperado. Numa visita de
Juan Guervas à nossa clinica na rocinha, ele me convenceu a ir conhecer as
práticas feitas em Madrid, e num centro de saúde numa cidade chamada
Zaragoza -- que eu nunca havia ouvido falar. Minha companheira de viagem foi
a querida amiga Joana, também residente na Rocinha, que assim como eu,
havia pego uma equipe de saúde da familia com uma demanda insaciável, e de
uma vulnerabilidade social paralisante. Logo, afoita por respirar
longe do trabalho. Um mês antes descobrimos que existe uma grande
burocracia para ir estagiar no serviço publico de saúde espanhol e não havia
tempo hábil para resolvermos tudo. Joana levantou a idéia de irmos a Portugal.
Eu estava frustrada... já havia povoado meu imaginário com os sabores das
tapas, as palmas do flamenco, e os coloridos dos filmes de Almodóvar. Além
disso, queria também entender como os médicos da atenção primária
espanhola faziam as tais consultas de seis minutos, idéia que pretendia
importar na crença de que resolveria minha vida quando voltasse ao trabalho
no Brasil. Conhecemos então Lourdes Luzon, uma espanhola muito simpática,
que estava contribuindo na coordenação da residência e vinha de Zaragoza.
Ela conseguiu que um médico de San Pablo nos recebesse como
observadoras. Partimos então dia 06 de junho para a Europa com o seguinte
roteiro: duas semanas em Zaragoza, uma semana no WONCA em Praga, e
uma semana em Lisboa. Depois cinco merecidas semanas de férias, sem
rumo, com algumas possíveis paradas -- de fato não havíamos tido tempo de
organizar nada!
Antes de lhes contar nossos dias no velho mundo, faço breve parêntesis para
compartilhar algo que aconteceu uma semana antes da viagem, e que acabou
transformando-me em também paciente. No final de maio, tivemos o
Congresso Nacional de Medicina de Família em Belém, e, como eu tinha uns
dias livres antes, fui conhecer a ilha fluvial de Marajó. Lugar de imensidão da
natureza, onde em um minuto o céu enegrece e cai uma chuva que te faz sentir
pequenininho, e onde não se consegue ver a outra margem do rio, parecendo
caminhante
um grande e doce mar Amazonas. Pois sem dar ouvidos a força desta
natureza, fui eu desbravar os caminhos do leito do rio seco, e, atravessando
um pequeno riacho, senti uma dor absurda que me atingiu rapidamente os dois
pés. Sai correndo, no desespero, e logo apareceu um pescador, que me falou
que eu havia sido ferroada por uma arraia. Chegando no posto de saúde local,
um técnico de enfermagem especialista em arraias me atendeu com toda a
atenção. Marajó esta cheia de arraias e os moradores de lá já foram picados
umas tantas vezes. O técnico, que infelizmente não me recordo o nome, foi
cuidando das minhas feridas enquanto me contava que eu havia tido “sorte”,
pois havia sido uma arraia filhote e que então eu não precisaria passar por
nenhuma cirurgia; em umas duas semanas abriria um "umbigo negro" em cada
pé e depois cairia deixando uma úlcera que devia se fechar com sorte em dois
meses. E eu agoniada com a dor e pensando que em sete dias estaria na
Europa, de mochilão. E assim foi.
No dia nove de junho nos alojamos em um albergue em Zaragoza. Pela
manhã, Luis Gimeno, o tal médico espanhol que nos receberia, nos esperava
para nos levar ao centro de saúde. Enquanto caminhávamos, nos contou um
pouco sobre o bairro: no centro da cidade, com muitos pequenos prédios
antigos, em San Pablo residem muitos idosos, imigrantes provenientes da
África e Oriente Médio e, com a atual crise na Espanha, há muitos
desempregados e algumas áreas de trafico. Em menos de cinco minutos
estávamos no centro de saúde San Pablo. Um prédio de quatro andares, na
parte baixa ficava a recepção com pessoas do administrativo organizando
marcações e prontuários e uma sala equipada para atendimentos de
emergência. Nos outros pisos estavam os consultórios, dois para cada equipe.
Na Espanha, os médicos de família ficam responsáveis pelo atendimento dos
adultos e idosos e a equipe é completada por um enfermeiro. Eles dão
cobertura de saúde a uma lista de cerca de 1000 a 1500 pessoas, que podem
escolher com qual equipe desejam ser acompanhadas. Começamos os
atendimentos. O consultório era amplo, com maca, pia e material para
procedimentos. Reparei nos vários pôsteres nas paredes que falavam sobre a
importância de se acolher a saúde do imigrante, havia também alguns
desenhos e um cartão de Leonardo Boff. O ambiente era calmo, não se ouvia
ruídos. Luis ligou o computador e abriu o prontuário eletrônico. Havia uma
caminhante
agenda com muitas marcações a cada seis minutos a partir das 08:30. Do lado
de fora, haviam cadeiras e duas ou três pessoas -- quase ninguém, comparada
a sala de espera que eu estava acostumada. As pessoas íam chegando aos
poucos, já com seus horários marcados, podiam pedir a consulta por telefone,
na internet, ou diretamente à recepção da clinica. O compromisso do sistema
de saúde é fazer o agendamento em até 48h. Muitos pacientes íam renovar
receita de medicamentos de uso crônico, algumas raras intercorrências
infecciosas, alguns idosos com queixas de dor. Em geral, ospacientes eram
bem esclarecidos e objetivos, com as consultas evoluindo de forma organizada
e clara. Às 11h, fizemos um pequeno intervalo no atendimento para um rápido
lanche junto a outros trabalhadores da clinica. Mais algumas consultas; depois
havia vários agendamentos para checar exames e contatos por telefone. Luis
tinha acesso a sistemas integrados que permitiam checar o exame do paciente
no prontuário eletrônico ou uma internação no hospital; ele avaliava e ligava
para o paciente para dar um retorno. Próximo as 14h, saímos para ver dois
pacientes cuja as famílias haviam solicitado visita naquela mesma manhã.
Fomos eu e o Luis; não há agentes de saúde na Espanha. Visitamos um asilo
filantrópico -- há muitos na cidade ligados a igreja católica e alguns
poucos do governo -- onde acabamos por atender duas idosas, ambas com
sintomas respiratórios agudos, mas no geral muito bem. Na população da
Espanha há muitos idosos, o que ficou muito evidente durante o estágio;
atendemos muitas pessoas com 70, 80, 90 anos, alguns vindo sozinhos às
consultas. Uma realidade de população ainda bem diversa da que encontramos
na maior parte do Brasil e que te propõem a refletir sobre a importância de um
atendimento diferenciado para estas pessoas, mais condizente com suas
necessidades e modos de viver. Por volta das 15:30, regressamos à unidade e
havíamos acabado o trabalho naquele dia.
A semana em Portugal foi mais curta, e fazer uma avaliação do serviço de
atenção primária de lá seria um pouco ousado demais. O que pude perceber
nestes poucos dias foram os prejuízos da crise econômica e o impacto disto na
saúde, com aumento dos serviços pagos e consequente restrição do acesso.
Para concluir, vou contar um pouco sobre como foi ser paciente por lá. Nas
primeiras semanas na Espanha minhas feridas nos pés já demostravam que
não iam sarar rapidamente. Luis logo se interessou pelas feridas de arraia.
caminhante
Agendava a cada um ou dois dias, consultas de 6 ou 12 minutos para mim,
fazia a limpeza e os curativos. Com a evolução sombria para duas úlceras com
material necrótico, me agendou para sua enfermeira. Rosa, com cuidado e
tempo, desbridava minhas úlceras sempre atenta para qualquer sinal de dor.
Tentava me tranqüilizar que não iria doer; na verdade não doía nada, e era isso
que me assustava. Ao ir embora, eles me entregaram material para curativo; eu
peguei o suficiente para duas semanas, certa de que já estaria boa antes disso.
Já em Praga precisei comprar curativos e minha surpresa foi ver que em um
país com provável poder aquisitivo semelhante ao da Espanha, eu gastava em
um curativo o equivalente a um pacote inteiro comprado numa farmácia
espanhola. Quando cheguei para o estágio em Portugal, as úlceras não íam
nada bem. Pedi para a médica que me acompanhava dar uma olhada; não se
interessou muito e me passou para outro médico. Ele avaliou, achou que não
estava bom e pediu para uma enfermeira fazer o cuidado. A enfermeira Ana
não podia, que passou para a Antônia, que pediu para uma outra ver, pois
estava enrolada. Ao final de uma hora e pouca, uma enfermeira me chamou,
fez uma limpeza superficial e fechou. Nos dias que se seguiram foi a mesma
coisa. Todas se diziam ocupadas, e nenhuma se prontificava a avaliar e cuidar
de mim. Nos últimos dias em Lisboa, eu mesma fazia meus curativos na sala
da enfermagem, sob o olhar de uma ou outra que ficava regulando o
uso do material. Triste e decepcionante, ainda mais quando você se sente
bastante vulnerável, sabendo que aqueles eram os últimos dias num centro de
saúde, e meus machucados, já com quatro semanas, só pioravam. Pensava
como estávamos ofertando nossos serviços no Brasil, e como a
limitação do acesso pode ser feita de forma bem mais sútil.
Após o período de estágio, fomos para as tão esperadas férias. Já na França,
encontrei-me com uma amiga médica que me sugeriu fazer um retalho
cutâneo!! Deste ponto em diante, já meio no desespero, lembrei das
aulas do início da faculdade, que orientavam para o uso do açúcar para úlceras
crônicas de difícil cicatrizarão. De café em café, eu comecei a pegar pacotinhos
de açúcar para fazer meus curativos. Em três dias, pasmem, os machucados
com cor cinzenta começaram a granular. Uma semana antes de voltar ao
Brasil, e dois meses depois do acidente, a primeira úlcera fechou. Uma semana
depois de chegar em casa, a outra. No final, restaram uma marquinha em cada
caminhante
pé, pra não me deixar esquecer todas estas andanças e aprendizados pelo
mundo, e uma forte lembrança no coração dos dias passados na Espanha,
deste estágio inesperado que para mim proporcionou o principal objetivo que
um estágio deve ter: conhecer pessoas que te inspiram por amarem o que
fazem. Profundamente grata ao querido Luis Gimeno.
Breves palavras do retorno ao Brasil: Retornei cheia de idéias! Querendo
facilitar o acesso, liberei para os meus agentes de saúde agendarem pessoas a
cada dez minutos -- seis era muita ousadia. Todos que buscassem
atendimento, por qualquer motivo, inclusive para ' uma palavrinha' ou 'só uma
receita', deveriam ser agendados para o mesmo dia. Queria também tentar ser
mais flexível e ter espaços diários para visitas domiciliares. Cheguei, conversei
na reunião da equipe das novidades e dos planos que trazia; meus agentes de
saúde adoraram! As consultas de dez minutos me exauriam, se esticavam,
surgiam outras demandas trazidas pelos agentes sem fluxo claro, eu ficava
sem almoço e trabalhava sempre uma hora a mais do que o previsto -- e se a
clínica ficasse aberta ficaria mais. No final, conclui, um pouco frustrada, mas
certa de que eu tinha tentado, que está não é a realidade para nosso Brasil
ainda. Nos primeiros cinco minutos, a maior parte dos meus pacientes se quer
tinham conseguido expressar claramente por quê haviam vindo; eu os
examinava objetivamente em alguns minutos e depois, em no mínimo, mais
cinco minutos, explicava a proposta de tratamento, tentava alcançar a
compreensão e o acordo do paciente, escrevia a receita em letras de forma
grandes e bem explicadinho. Quando para mim era o final, surgiam mais uns
dez minutos de demandas reprimidas, queixas nunca ditas que precisavam da
oportunidade rara da escuta. Como minha agenda estava sempre cheia, eu
não conseguia remarcar em curto espaço de tempo todos que precisavam.
Após dois anos na rocinha eu seguia vendo novos pacientes diariamente.
Conclui que para termos consultas com resolutividade em menos tempo,
precisamos de: anos de mudanças estruturais no país, com educação de
qualidade para a população e precisamos, na atenção primária, trabalhar com
1500 e não 3500 pessoas, pois só com o retorno garantido, as pessoas ficam
mais tranqüilas e contam só o que precisam naquele momento, sem o medo de
nunca mais terem a porta aberta pra chegar. Grandes desafios... Possível
sim... Eu vi acontecer em algum lugar do mundo chamado Zaragoza.
caminhante
Download