Nietzsche e Deleuze: um encontro entre

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Nietzsche e Deleuze: um encontro entre pensamento, vida e arte
Felipe Wircker
Este trabalho de pesquisa pretende traçar relações entre alguns aspectos do
pensamento de Friedrich Nietzsche e Gilles Deleuze. Foi a partir da leitura de
Nietzsche e a filosofia que uma curiosidade movida por uma inquietação diante de
ambos os pensamentos impulsionou-me a pesquisar de que maneira a leitura que
Deleuze faz do filósofo das marteladas foi importante para a criação de seu próprio
pensamento, pois sabe-se que é uma leitura diferente, por exemplo, daquela feita
por filósofos alemães, como Heidegger. Em uma entrevista sobre Foucault, Deleuze
diz que ele transforma profundamente os pensamentos que recebe1. Pode-se dizer
que o próprio Deleuze faz o mesmo na criação de seus conceitos.
Num caminho diferente daquele da filosofia como manifestação de uma
racionalidade absoluta, em Deleuze, assim como em Nietzsche, pensar não se afasta
de sentir. A filosofia de Deleuze, por sinal, tem um forte aspecto pragmático, apesar
de não se reduzir a isto, ou seja, diz respeito à vida prática, às relações do homem
com outras forças – seja homem, animal, máquina ou matéria inorgânica. O
processo, o movimento tem mais importância que pretensas origens ou supostos
fins, como veremos adiante.
***
Em O nascimento da tragédia, Nietzsche acusa Sócrates de ter promovido
uma inversão “monstruosa”: “Enquanto que, em todas as pessoas produtivas, o
instinto é justamente a força afirmativa-criativa, e a consciência se conduz de
maneira crítica e dissuasora, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a
consciência em criador”2. Disso decorre, como ressalta Deleuze em Nietzsche e a
filosofia, que a vida passou a estar a serviço do conhecimento, e o pensamento, por
1
DELEUZE, Gilles. Conversações. Trad. Peter Pál Pelbart. 2a ed. São Paulo: Ed. 34, 2010, p. 151.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia – ou Helenismo e Pessimismo. Trad. J. Ginsburg.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 83.
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sua vez, a serviço da vida. No entanto, trata-se aqui de duas concepções diferentes
de “vida”. No primeiro caso, trata-se da vida em todas as suas possibilidades que,
submetida ao conhecimento, passou a ser medida, modelada, limitada, e tornou-se
reativa, “uma vida que contradiz a vida”3. É a esta, por sua vez, que se submeteu o
pensamento, a este modelo de uma vida “razoável” criado pelo conhecimento.
Como esclarece Deleuze: “O conhecimento é o próprio pensamento, mas o
pensamento submetido à razão como a tudo que se exprime na razão. O instinto do
conhecimento é, portanto, o pensamento, mas o pensamento na sua relação com as
forças reativas que dele se apoderam ou o conquistam”4.
A consequência recente dessa inversão apontada por Nietzsche nós
conhemos através de Michel Foucault, ao mostrar que o pensamento moderno
ocidental estava ancorado numa certa noção de “humano” finita, limitada, a partir
da qual desenvolveu-se um certo “humanismo” que excluía tudo o que lhe parecia
“não humano” (a loucura, a barbárie, o lado animal). Dentre os meios de
enclausuramento das sociedades disciplinares, portanto, a forma-homem foi um
modo de aprisionar a vida. Por isso Nietzsche se dizia “o imoralista” e falava da
moral como “antinatureza”. Talvez seja também por isso que, em Ecce Homo, ele
afirma que, para entender um pouco que seja de Zaratustra, é preciso estar “com
um pé além da vida”5.
No pensamento nietzscheano, a afirmação da crítica como ato criador, e não
como ressentimento ou vingança, adquire bastante força: mesmo a destruição que
se venha a promover deve ser alegre e sua agressividade não menos afirmativa. Nas
palavras de Zaratustra: “Sempre destrói, aquele que deverá ser um criador”6. Não à
toa, Deleuze e Guattari defendem que “a filosofia é a arte de formar, de inventar, de
fabricar conceitos”7, e, mais do que isso, de criar conceitos, assumindo um conceito
como resultado da atuação de forças e vontades e, por isso, jamais uma forma
fechada, mas uma criação em aberto, sujeita a transformações.
3
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Trad. António M. Magalhães. Porto: Rés, s/d, p. 150.
Idem, p. 151
5
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo – como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 25.
6
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário
da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 75.
7
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz. 3a ed. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010, p. 10.
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A noção de conceito como resultado do embate de forças contesta, por sua
vez, o ideal de que o pensamento estaria afastado de uma prática, ou mesmo da
vida prática. Nas palavras de Deleuze, “o pensamento jamais foi questão de teoria.
Eram problemas de vida. Era a própria vida”8.
Exatamente por isso um conceito não preexiste ao problema a que remete,
sendo, pois, fruto de uma necessidade; e portanto é preciso usá-lo, caso contrário
não há motivo para criá-lo. Seja na arte ou na filosofia, um criador não faz algo de
que não tenha absoluta necessidade9, de maneira que a criação está ligada a um
acontecimento, uma circunstância, e não a uma pretensa essência. Em Mil Platôs,
cada platô tem uma data, liga-se a determinado momento em espaços e tempos
variados. Pois, sendo o pensamento, ele também, movimento, o conceito é um ato
de pensamento. É interessante perceber como os conceitos deleuze-guattarianos se
contaminam e se entrelaçam, abrangem campos de problema comuns – o próprio
conceito de conceito possui zonas de vizinhança com o ritornelo, o rizoma, os
agenciamentos etc; do mesmo modo, o livro visto como máquina ou rizoma.
***
Pelo movimento, o fluxo e o devir, o pensamento é ele próprio manifestação
de vida. Da mesma forma, é esse aspecto que parece determinar a escolha dos
intercessores em Deleuze. Para ele, não cabe à filosofia refletir sobre o que quer que
seja, de modo que tratar a filosofia como uma disciplina capaz de “refletir sobre”, ao
contrário de dar muito a ela, é retirar-lhe tudo10. Por isso, Deleuze usa as disciplinas
científicas e as formas de arte como intercessores para criar conceitos, ou seja, ao
contrário de colocar a filosofia num suposto nível superior que permite a ela analisar
e refletir sobre todas as coisas (algo em que definitivamente não acredita), ele
percebe nas artes e nas ciências ideias, campos de problema comuns que lhe servem
para a criação de conceitos.
8
DELEUZE. Conversações. Op. cit., p. 135.
DELEUZE, Gilles. Deux Régimes de Fous: textes et entretiens 1975- 1995. Org. David Lapoujade.
Paris: Minuit, 2003, p. 292.
10
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia? Op. cit., p. 12.
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“Acerca do Ritornelo” é bastante representativo dessa “estratégia”. Neste
texto, os autores usam noções oriundas da música, como ritmo e ritornelo, bem
como escritos de músicos (Pierre Boulez), pintores (Paul Klee), teorias da biologia
sobre diversas espécies animais e da física sobre cosmologia para criarem conceitos
como os de meio, agenciamento, territorialização e desterritorialização, plano de
consistência etc.
A música é de extrema importância para Deleuze e Guattari. É basicamente
pela música ou pelo som que se organiza a vida em sociedade, seja, por exemplo,
para os pássaros ou para os seres humanos – não há distinção hierárquica. É
fascinante nesse platô perceber como, ao contrário do que supunha a racionalidade
do pensamento ocidental em relação ao homem, somos muito mais movidos por
instintos do que imaginamos – os muros sonoros delimitando territórios, a formação
de um “em-casa” pela música ou pelo som. Até mesmo ao falar do que são
conceitos, em O que é a filosofia?, definem-os como “centros de vibrações” que
ressoam uns nos outros em lugar de se corresponderem ou se seguirem11.
Esse fascínio pela música é sem dúvida uma característica que Deleuze e
Guattari têm em comum com Nietzsche. Em O nascimento da tragédia, percebe-se a
primazia que ele confere à música em relação às outras artes – a tragédia mesma
não existe sem música. Ela é a própria expressão da vontade e da sabedoria
dionisíacas: “somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria
pelo aniquilamento do indivíduo”12. Contudo, a atração de Deleuze pelas artes não
se restringe à música, como se percebe pela variedade dos intercessores.
Ele aponta que a arte, para Nietzsche, é a expressão desta “bela afinidade”
entre pensamento e vida. Em resposta aos limites traçados à vida pelo
conhecimento e ao modo como este a colocou a seu serviço, Nietzsche defende “um
pensamento que iria até o limite daquilo que a vida pode, um pensamento que
conduziria a vida até ao limite daquilo que ela pode”, pois “a vida ultrapassa os
limites que o conhecimento lhe fixa, mas o pensamento ultrapassa os limites que a
vida [tal como o conhecimento modela] lhe fixa”13. É nesse sentido que ele critica
11
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia? Op. cit., p. 33-34.
NIETZSCHE. O nascimento da tragédia. Op. cit., p. 99.
13
DELEUZE. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 152-153.
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tão incisivamente a inversão promovida por Sócrates, revelando o “segredo présocrático” do “instinto como força afirmativa-criativa” – a sabedoria instintiva em
lugar da racionalidade lógica. Por isso o próprio Sócrates condenava a arte.
Segundo Deleuze, “a concepção nietzscheana da arte é uma concepção
trágica” e se dá a partir de dois princípios: a arte como estimulante da vontade de
poder, que provoca o querer criador, e a arte como “o mais alto poder do falso”.
Aqui cabe fazer uma digressão: a valorização de Nietzsche em relação ao “poder do
falso” faz parte de seu esforço por desfazer oposições entre essência e aparência,
original e simulacro, verdade e mentira. Pois, para ele, se não há “verdade” a ser
desvelada pelo que quer que seja (religião ou conhecimento), pois tudo é invenção
humana, da mesma forma não há essência a ser revelada por trás de aparências – o
mundo verdadeiro é o mundo em que vivemos, a realidade é a realidade “terrena”.
Para fazer do simulacro afirmação, Nietzsche entendeu e viveu a filosofia como “a
busca de tudo o que é estranho e questionável no existir, de tudo o que a moral até
agora baniu”14.
Afirmando o falso, o artista dá à verdade uma nova significação: “verdade é
aparência”. Sua procura por conhecimento e verdade não passa pelo ideal ascético –
antes, pela aliança entre pensamento e vida, e “pensar significaria o seguinte:
descobrir, inventar novas possibilidades de vida”15. Deleuze, por sua vez, afirma:
“Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou
essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por esse povo
que falta… (‘por’ significa ‘em intenção de’ e não ‘em lugar de’).”16
Não é à toa que Assim falou Zaratustra é a consumação máxima da filosofia
de Nietzsche: uma vontade artista que produz um pensamento pelo qual se cria
novas possibilidades de vida. O próprio autor assume que em Ecce Homo não há
nada que já não houvesse dito em Zaratustra. Nesse sentido, o próprio Nietzsche
parece ter se encarregado de dar uma bela resposta a Sócrates, fruto de uma
vontade de potência afirmativa, criadora e alegre. Zaratustra é o próprio pensador
14
NIETZSCHE. Ecce Homo. Op. cit., p. 16.
DELEUZE. Nietzsche e a filosofia. Op. cit., p. 152.
16
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed. 34, 1997, p. 15.
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6
trágico, o que afirma o sofrimento e a dor e transforma-os em prazer, afirmando
também, pelo movimento da dança, a vida como fluxo, devir.
Para Deleuze e Guattari, há uma interferência intrínseca entre os planos da
filosofia e da arte que ocorre por um deslizamento sutil entre eles e torna difícil
qualificar o plano em que se encontra Zaratustra. Afinal, a divisão proposta por eles
entre os planos da ciência, da arte e da filosofia não se pretende fixa ou
engessadora.
Pela concepção nietzscheana de artista como aquele que cria novas
possibilidades de vida, Deleuze não seria menos artista do que filósofo, pois não lhe
faltaram maneiras de descobrir e inventar linhas de fuga aos problemas que
percebia como os de seu tempo, modos de vida, outras maneiras de pensar e sentir
que tinham como um fundo comum a vontade de ultrapassar o “humano”, a formahomem em que a vida foi aprisionada.
A criação de “afectos”, por exemplo, já não diz respeito a sentimentos, mas
antes a “devires não humanos do homem”17, que nos “arrancam da humanidade”18.
Criar afectos, portanto, é um modo de dissolver a forma e experimentar, ser
atravessado por outras forças que não as do homem – e aqui cito Deleuze:
O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano,
de um devir universal animal: não tomar-se por um animal, mas desfazer a
organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo,
cada um descobrindo as suas próprias zonas, e os grupos, as populações, as espécies
que o habitam.19
Se Nietzsche dirigiu seu esforço crítico contra a moral (seja ela diretamente
ligada à religião ou não), nas páginas finais de O que é a filosofia? fica claro que o
pensamento de Deleuze e Guattari se dirige em grande parte contra a opinião, a
doxa que tenta sufocar as possibilidades de criação de outros modos de vida, de se
escapar do consenso, hoje dissipado e reafirmado principalmente pelos meios de
comunicação.
17
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia? Op. cit., p. 200.
DELEUZE; GUATTARI. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol 4. Trad. Suely Rolnik. São
Paulo: Ed. 34, 1997, p. 21.
19
DELEUZE. Conversações. Op. cit., p. 21.
18
7
Tangenciando a ideia nietzscheana da criação como ato simultaneamente
destrutivo, Deleuze e Guattari afirmam o seguinte:
“O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca,
mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes,
preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para
fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão.” 20
Será sempre necessário, como eles dizem, abrir uma fenda no guarda-sol da
opinião que nos abriga, rasgá-lo para fazer passar um pouco de caos e, no
enfrentamento com o caos, criar – sob o risco de nele se precipitar. Exatamente por
isso o pensamento de Deleuze e Guattari, assim como o de Nietzsche, tem uma
potência política muito forte. E, se assumirmos que toda atitude tem uma
ressonância política, mesmo nos menores atos, é precisamente aí onde essa
potência adquire mais força.
20
DELEUZE; GUATTARI. O que é a filosofia? Op. cit., p. 240.
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