3 Epifisiolise Proximal do Fêmur 1 - Introdução A Epifisiolise proximal do fêmur é uma doença que acomete o quadril, principalmente de adolescentes, podendo ser uni ou bilateral, em que há o deslizamento posterior e inferior da epífise do fêmur na região da placa epifisária (fise) sobre a metáfise. (Marx, 2002). Uma ilustração do deslizamento é mostrada na figura 1. Figura 1. Deslizamento mostrado em peça histológica a esquerda e em fotografia a direita. 2 - Epidemiologia Tem sido reportado na literatura uma incidência que varia entre 1 a 142 casos anuais por 100.000 na população em geral (Wilson, 1998), sendo mais comum no sexo masculino (2 a 4: 1), em negros, em endocrinopatas, em obesos (Dunbar & Goulding, 2001) e em pacientes submetidos a quimioterapia (Marx, 2002; Canale, 1998; Behrman, 2000) ou radioterapia. (Loder et al., 1998) É a doença do quadril mais comum em adolescentes, sendo que aproximadamente 80% dos casos acontecem nessa faixa etária. Em meninos é mais comum dos 12 aos 16 anos (média de 13) e em meninas dos 10 aos 14 anos (média de 11), devido a puberdade iniciar mais cedo no sexo feminino. (Marx, 2002). É relatado que no momento diagnóstico algo em torno de 10 a 30% são bilaterais, e com o acompanhamento e a realização de exames complementares a prevalência fica em torno de 60 a 80%. (Koczewski, 2001; Marx, 2002). 4 3 - Etiologia A etiologia é multifatorial, sendo as alterações hormonais da puberdade, a obesidade e os traumas os principais fatores. A etiologia hormonal é a mais aceita, sendo a causa ou um importante fator de risco. O hipotiroidismo, hipogonadismo e a administração de hormônio do crescimento são exemplos de alterações hormonais associadas a epifisiolise. (Marx, 2002; Behrman, 2000). Sabe-se que o GH aumenta a espessara das placas epifisárias, o que facilita haver o deslizamento (Kempers et al, 2001); também se sabe que os hormônios sexuais (estrógenos e andrógenos) atuam na consolidação da placa; já, sobre o hipotiroidismo, tanto pode haver a ação na placa quanto pode levar a uma obesidade, considerado primariamente como fator mecânico, tem extrema importância nessa doença, sendo associado em até 80% dos pacientes. (Wilcox, 1988) O trauma é considerado outro importante fator de risco, podendo ser a causa ou o fator desencadeante em indivíduos predispostos, levando a um deslizamento agudo da epífise. (Marx, 2002; Nielsen, 1975). 4 - Classificação 4.1 - Clínica A classificação tradicional quanto à clínica toma como referência o tempo de evolução, sendo agudo menor do que 3 semanas e crônico maior. Pode haver também o tipo crônico agudizado, em que a doença acontece há mais de 3 semanas, porém com recente exacerbação. Há também nessa classificação a pré-epifisiolise, em que a fise está alargada, porém sem deslocamento, além de osteoporose e cistos metafisários; os sintomas são leves e podem variar de discreta fraqueza no quadril e coxa, até dor. São normalmente diagnosticadas quando contralateralmente há o deslizamento. (Behrman, 2000). Além do modo clássico de classificação, as epifisiolises podem ser classificadas como estáveis ou instáveis, com a finalidade de estabelecer o tipo de tratamento. A epifisiolise estável ocorre em 90% dos casos, na qual a sintomatologia é caracterizada por dor no quadril, coxa ou joelho, podendo ser associado à fraqueza e fatigabilidade do membro. Com a evolução o membro tende a fazer rotação externa, flexão e abdução, podendo dificultar atividades diárias como calçar sapato ou mesmo a marcha. Já a instável é muitas vezes relacionada a algum trauma, normalmente por esporte ou queda associados a torção do membro, em que acontece uma dor intensa no local, ficando o membro em flexão, rotação externa e abdução. A estável pode se tornar instável, advindo na maioria das vezes de traumas leves ou moderados. (Marx, 2002). Um exemplo radiológico de uma epifisiolise instável é mostrada na figura 2. 5 Figura 2: Epifisiolise instável 4.2 - Radiológica A radiologia é essencial no diagnóstico, sendo as incidências anterior e lateral em “penas de sapo” as mais indicadas, sendo que esta última deve ser evitada nos quadros instáveis, pois pode agravar o deslizamento, substituída pela lateral com o paciente deitado. Sempre tem que ser analisado bilateralmente. A figura 3 mostra a importância de se realizar mais de uma incidência o exame radiográfico. Figura 3: Radiografia da esquerda em AP mostrou aparentemente normal, enquanto na incidência em perfil pode ser notado um importante deslizamento. A linha de Klein, a qual passa pelo colo fêmur, normalmente passa por dentro da cabeça fêmur, e no deslizamento a cabeça fica abaixo dessa linha, como é demonstrado na figura 4. 6 . Figura 4: À esquerda - Incidências antero-posterior (A e B) e lateral em perna de sapo (C e D). A e C com deslizamento; B e D normais. (Adaptado de Chung S: Diseases of the developing hip joint. Pediatr Clin North Am 33:1457, 1986.). A direita – Exemplo de uma análise feita em uma radiografia Para descrever o grau da lesão há dois modos. O primeiro analisa o tanto que a cabeça está deslizada em relação ao colo, sendo até um terço leve, de um terço até metade é moderado e mais do que a metade é grave. O segundo é através do método de Southwick, tendo uma acurácia maior, sendo então indicado quando possível. Consiste de 3 linhas: a primeira passa paralela a placa epifisária; a segunda é uma perpendicular a essa; sendo a terceira a linha paralela a diáfise femoral. Então, faz-se a análise do ângulo entre as duas últimas linhas, sendo considerado leve abaixo de 30º, moderado entre 30 e 50º e grave acima de 50º. Um exemplo é mostrado na figura 5. (Marx, 2002) Figura 5: Radiografia ilustrando o método de Southwick 7 5. Diagnóstico 5.1 - Clínico A história, aguda ou crônica, de dor no quadril, coxa ou joelho, com ou sem a presença de trauma, deve ser analisada na primeira instância; a dor pode ser constante, intermitente, após exercícios físicos ou decorrente de um trauma. Os fatores de risco, como obesidade, adolescência, endocrinopatias têm que ser levados em consideração. Biótipos considerados comuns são obesos baixos hipodesenvolvidos sexualmente, e longilíneos. (Behrman, 2000) No exame físico, tem que ser analisado se o membro se encontra em rotação medial, flexão e abdução. O sinal de Drehnann consiste em ao flexionar passivamente a coxa sobre o quadril, o que provoca uma rotação lateral do membro. É importante salientar que nos casos agudos não é bom realizar a movimentação passiva ou a marcha, pois pode agravar o quadro. (Marx, 2002). 5.2 - Exames Complementares A radiologia, como já foi mencionada, é indispensável no diagnóstico e acompanhamento da epifisiolise. Graduar (figura 6) as alterações ajuda a determinar o prognóstico e o tipo de tratamento que deve ser realizado. Outros exames de imagem mostram ser importantes no estudo detalhado, como a ultra-sonografia, através da qual pode se visualizar as estruturas intra-articulares; a tomografia computadorizada (figura 7) e a ressonância magnética mostram-se mais sensíveis na graduação do deslizamento, podendo ser de grande valia no planejo terapêutico. (Reinolds, 1999) Figura 6: Epifisiolise leve, moderada e grave sucessivamente. 8 Figura 7: Reconstrução tridimensional em tomografia computadorizada Pode ser realizado também dosagem de hormônios tiroideanos e sexuais para diagnóstico e tratamento de possíveis endocrinopatias. (Wells et al, 1993) 6 - Tratamento O tratamento da epifisiolise visa prevenir posterior deslizamento minimizar as complicações. (Behrman, 2000). Estudos sobre o tratamento conservador indicam que o risco de haver complicações são maiores, desde instabilização de uma epifisiolise crônica (18%), passando por condrólise (20 a 70%), necrose avascular da cabeça femoral (7%), e a longo prazo artrose precoce (35%). É realizada com a imobilização do quadril, conseqüentemente a retirada da carga. (Crawford & Steel, 1990; Canale, 1998). Jayakumar relata bons resultados em tratar conservadoramente pacientes com deslizamento leve e hipotiroidismo. (Jayakumar, 1990). O tratamento cirúrgico pode ser realizado a pinagem, epifisiodese com aloexerto ósseo e osteotomia corretiva. A pinagem in situ é normalmente a mais indicada, obtendo bons resultados com pequeno índice de complicações, porém existentes e relevantes. A tração préoperatória pode diminuir o risco de necrose avascular. (Gonzalez-Moran et al, 1998). O procedimento é simples, basicamente visa fixar a epífise internamente. Outra indicação tem sido para a realização de pinagem profilática contralateral, principalmente em pacientes com alguma endocrinopatia. (Seller et al, 2001). Um exemplo de pinagem é mostrado na figura 8. 9 Figura 8: Exemplo de pinagem bilateral em paciente com epifisiolise de grau leve. A epifisiodese com aloenxerto ósseo pode ser uma alternativa para o tratamento cirúrgico. É uma técnica desenvolvida na década de 30, e ultimamente sua popularidade vem aumentando, devido a complicações da cirurgia de pinagem, como, por exemplo, a entrada de pinos no espaço articular. (Canale, 1998) Estudos epidemiológicos recentes mostraram baixos índices de complicações, porém com morbidade maior, o que a faz não deve ser a primeira escolha para o tratamento da epifisiodese. (Schmidt et al, 1996; Rao, 1996) Alem desses procedimentos, pode ser realizado também a Osteotomia Corretiva, descrita normalmente para a correção dos casos graves, em que se faz necessária a correção de grandes deformidades. (Canale, 1998) Evoluções dessa técnica têm sido propostas, como o uso de fixador externo no pós-operatório com bons resultados (Ito et al, 2001), além de avaliações das técnicas existentes, comparando resultados e complicações. (Zupanc et al, 2001). Portanto, a escolha do tipo de tratamento a ser realizado depende do estágio e evolução da doença, sendo a pinagem importante para casos leves e moderados, deixando como segunda escolha a epifisiodese, muitas vezes para tratamento de complicações do primeiro procedimento, e a osteotomia reservada aos casos graves. (Marx, 2002). 7 - Complicações As complicações mais temidas em curto prazo são a necrose avascular (figura 9) e condrólise (figura 10). Elas podem ocorrer sem ou em decorrência de tratamento (Lubicky, 1998). A necrose avascular pode ocorrer em 10 a 15% dos casos, e a pinagem profilática pode diminuir consideravelmente, indicado nos estudos de 0 a 5%. A condrólise, outra temida complicação, acontece em aproximadamente 5% dos casos, aumentando até 10 vezes mais o risco quando o paciente é submetido ao tratamento conservador por imobilização; estima-se que 50% resolvem espontaneamente e que a outra parte pode complicar, tendo dores fortes e contratura do membro. (Canale, 1998). 10 Figura 9: Necrose de cabeça femoral a esquerda. Figura 10: Condrólise após pinagem. Note a diminuição do espaço articular a direita (<3mm). Outras complicações podem ser a não união ou o fechamento prematuro da placa epifisária, além de alterações degenerativas. Em longo prazo, a artrose precoce ocorre em uma incidência considerável, principalmente decorrente de casos mais graves da epifisiolise. (Canale, 1998; Tudisco, 1999). Uma radiografia em que há alterações degenerativas em estado avançado é mostrada na figura 11. Figura 11: Alterações degenerativas resultantes de epifisiolise. 11 8 - Referências Bibliográficas 1. Wilson: Williams Textbook of Endocrinology. (1998). Treatment of Growth Disorders. W. B. Saunders Company. 9th ed. p1484. 2. Marx: Rosen's Emergency Medicine: Concepts and Clinical Practice. (2002). Mosby, Inc 5th ed. p670-672; 2387-2388 3. Canale: Campbell's Operative Orthopaedics. (1998). Slipped Capital Femoral Epiphysis. Mosby, Inc. 9th ed. p2451-2475. 4. Behrman: Nelson Textbook of Pediatrics. (2000). The Hip. W. B. Saunders Company. 16th ed. p2105. 5. Loder RT, Hensinger RN, Alburger PD, Aronsson DD, Beaty JH, Roy DR, Stanton RP, Turker R. (1998). Slipped capital femoral epiphysis associated with radiation therapy. J Pediatr Orthop 1998 Sep-Oct; 18(5):630-6 6. Koczewski, P. (2001). An epidemiological analysis of bilateral slipped capital femoral epiphysis in children. Chir Narzadow Ruchu Ortop Pol - 01-Jan-2001; 66(4): 357-64 7. Dunbar J, Goulding A. (2001). Slipped capital femoral epiphysis: more New Zealand cases likely as obesity rises in children and adolescents? N Z Med J 2001 Dec 14; 114(1145):559-60 8. Kempers MJ, Noordam C, Rouwe CW, Otten BJ. (2001). Can GnRH-agonist treatment cause slipped capital femoral epiphysis? J Pediatr Endocrinol Metab 2001 Jun; 14(6):72934 9. Wilcox PG, Weiner DS, Leighley B. (1998). Maturation factors in slipped capital femoral epiphysis. J Pediatr Orthop 1988 Mar-Apr; 8(2):196-200 10. Nielsen HO. (1975). Acute slipped capital femoral epiphysis. Treatment in 8 cases. Acta Orthop Scand 1975 Dec; 46(6):987-95 11. Reynolds RA (1999). Diagnosis and treatment of slipped capital femoral epiphysis. Curr Opin Pediatr; 11(1): 80-3 12 12. Wells D, King JD, Roe TF, Kaufman FR. (1993). Review of slipped capital femoral epiphysis associated with endocrine disease. J Pediatr Orthop 1993 Sep-Oct; 13(5):610-4 13. Mann DC, Weddington J, Richton S. (1988). Hormonal studies in patients with slipped capital femoral epiphysis without evidence of endocrinopathy. J Pediatr Orthop. 1988 Sep-Oct; 8(5):543-5. 14. Crawford AH, Steel HH. (1990). Operative versus nonoperative treatment of slipped capital femoral epiphysis. Orthopedics 1990 Jan; 13(1):99-111 15. Jayakumar S. (1980). Slipped capital femoral epiphysis with hypothyroidism treated by nonoperative method. Clin Orthop 1980 Sep; (151):179-82 16. Seller, K. Raab, P. Wild, A. Krauspe, R. (2001). Risk-benefit analysis of prophylactic pinning in slipped capital femoral epiphysis. J Pediatr Orthop B - 01-Jul-2001; 10(3): 17. Gonzalez-Moran G, Carsi B, Abril JC, Albinana J. (1998). Results after preoperative traction and pinning in slipped capital femoral epiphysis: K wires versus cannulated screws. Pediatr Orthop B 1998 Jan; 7(1):53-8 18. Schmidt TL, Cimino WG, Seidel FG. (1996). Allograft epiphysiodesis for slipped capital femoral epiphysis. Clin Orthop 1996 Jan; (322):61-76 19. Rao SB, Crawford AH, Burger RR, Roy DR. (1996). Open bone peg epiphysiodesis for slipped capital femoral epiphysis. J Pediatr Orthop 1996 Jan-Feb; 16(1):37-48 20. Ito H, Minami A, Suzuki K, Matsuno T. (2001). Three-dimensionally corrective external fixator system for proximal femoral osteotomy. J Pediatr Orthop Sep-Oct;21(5):652-6 21. Zupanc O, Antolic V, Iglic A, Jaklic A, Kralj-Iglic V, Stare J, Vengust R. (2001). The assessment of contact stress in the hip joint after operative treatment for severe slipped capital femoral epiphysis. Int Orthop 2001; 25(1):9-12 22. Lubicky JP. (1996). Chondrolysis and avascular necrosis: complications of slipped capital femoral epiphysis. J Pediatr Orthop B 1996 Summer; 5(3):162-7 23. Tudisco C, Caterini R, Farsetti P, Potenza V. (1999). Chondrolysis of the hip complicating slipped capital femoral epiphysis: long-term follow-up of nine patients. J Pediatr Orthop B 1999 Apr; 8(2):107-11