A MESA ESCANDALOSA DE JESUS Jesus quis resgatar a vida humana fazendo-se gente, sentimento, fome, alimento, isto é, ser encarnado na realidade humana. Seu caminho? A vida a partir da mesa, do pão e da festa da partilha. Uma das chaves de compreensão da pessoa de Jesus é a relação d’Ele com a “mesa da refeição”, pois Ele passou de mesa em mesa, até se deixar fazer pão na grande mesa da Ceia Pascal. Ele entrou na história a partir de uma mesa (cocho) e partiu para o Pai a partir de uma Ceia. Em todos os encontros de Jesus com os excluídos do Reino, Ele sempre os incluiu em suas refeições. Por isso, cada vez que nos reunimos em torno de uma mesa, fazemos memória das “refeições escandalosas” de Jesus com os pecadores, pobres, doentes, marginalizados... Ao participarmos da “mesa cristã” nos descobrimos solidários com todo o povo que caminha; ao mesmo tempo, a “mesa do Senhor” quebra em nós qualquer solidão ou muralha e nos ajuda a acolher as pessoas, a amá-las na sua diferença. A partir do compromisso de Jesus com a “mesa da vida”, nossa refeição à mesa nunca mais foi a mesma, pois Ele elevou e plenificou de sentido a mesa e a refeição. Se para nós, a mesa já era bendita, sagrada..., depois de Cristo ela se tornou mais ainda um lugar de encontro no sacramento do pão partilhado. Desde então, cada vez que dela nos aproximamos para uma refeição, o Verbo feito carne continua sua ação salvífica, recriando cada vez mais a vida em expansão. Quando um grupo de pessoas se reúne para comer o mesmo alimento, simboliza o propósito ou o desejo de participar da mesma situação, da mesma alegria, da mesma realidade. Comer e beber juntos sempre foi uma forma de expressar a “aliança”, aproximação, união, fusão... Quando tem convivas, o ser humano civiliza a refeição: já não senta à mesa apenas para matar a fome, mas para saciar outras necessidades mais profundas de seu ser social ou do seu ser-para-o-outro. No ser humano não palpita apenas a necessidade de comer e de beber, mas também a necessidade de associar-se, de juntar-se. Os laços que antes existiam, talvez frágeis, reforçam-se com a participação à mesma mesa. Os obstáculos que impediam aproximações cedem frente ao dom que a mesa propicia. O conhecimento cresce e com ele crescem o envolvimento, a participação, a presença na vida da comunidade. É na mesa, como lugar da morada do Sagrado, que podemos nos humanizar um pouco mais; tão rica é essa mesa que sua espiritualidade, vista como manancial da vida, não exclui nenhum momento: situações tristes, felizes, momentos de sofrimento, de luta, de vitória... Nessa fonte sagrada, o sofrimento pode ser compartilhado, a tristeza transformada em alegria, as trevas em luz, o desejo em realidade, a esperança pode ser reacendida. Sentar-se à mesa com o outro é descobrir-se vivo, corpo pulsante, saúde latente, carente. Nela e com ela aprendemos a acolher o outro como dom. Aprendemos a nos doar, a partilhar, a receber, a escutar e a falar, a contemplar o outro em sua singularidade. A mesa é também o lugar onde acolhemos a dor e as tristezas do outro, com quem partilhamos nossa refeição. A mesa-refeição, portanto, é o lugar do suporte das relações, espaço que garante o sustento, que alimenta o corpo, o emocional, o psíquico, o espiritual e o social. Lugar fecundo, onde o imprevisível pode acontecer. Quê fazia e quê queria fazer Jesus na Última Ceia? A chave de resposta está no capítulo 13 de João; a única forma de compreender a Eucaristia é entender o Lava-pés. O gesto escandaloso de Jesus revela um enfoque nem sempre percebido em seu sentido último. Jesus não faz um gesto teatral; Ele revela aos apóstolos um “novo ângulo” ou um novo modo de ver as coisas: não a partir do lugar dos comensais, mas a partir da perspectiva de quem não está sentado à mesa. O gesto de Jesus nos convida a deslocar-nos, ou seja, ocupar o lugar da pessoa que não participa da mesa. Quê novidade percebemos a partir deste lugar? “Fazer memória” dos que não estão junto à mesa significa ter presentes àqueles que estão afastados ou excluídos, porque não compartilham a mesma fé, ou o nível social, nossa formação religiosa, nossa maneira de pensar e de viver. Fazemos memória de Jesus quando, a partir desta perspectiva, nos perguntamos o que deveria ser feito de criativo por eles. Como se pode fazer memória do desejo tão intenso de Jesus, de fazer sentar a todos como irmãos ao redor da mesa, sem abrir possibilidade para que essas pessoas possam se sentir como em casa? Jesus adverte que não se pode entender sua vontade de que os excluídos participem na ceia se vemos as coisas como comensais e não como excluídos. A refeição compartilhada deveria ser o “fiscal” permanente de nossa traição aos ideais de Jesus. Se somos seguidores de Jesus não deveríamos mais falar de “marginalizados”, pois essa linguagem indica que nos situamos no centro, “perto” de Deus e colocamos os demais distantes de nós e “longe” de Deus. Pareceríamos ao fariseu que perguntou a Jesus quem era seu “próximo” e o “distante” a quem devia ajudar (Lc. 10,25-37). Jesus lhe deu a entender que a questão estava mal colocada. Não se trata de buscar o “próximo” entre os marginalizados, mas de deslocar-se para a margem e colocar os outros no centro. Só dessa forma é possível olhar e aproximar-se do próximo. A autêntica questão é de quem queremos nos aproximar. Recordar os excluídos da mesa permite recuperar o sentido profundo daquilo que se chama “sacrifício da missa”. Sacrificar significa transformar. E aqui poderíamos recuperar o sentido original bíblico de “sacrifício”, que não significa simplesmente imolação, penitêntica... “Sacri-ficar” (do latim, “sacrum facere” ) é “tornar santo”. Tanto o Primeiro como o Segundo Testamento nos ensinam que a melhor coisa que podemos transformar em “sacrifício”, em coisa santa para oferecer a Deus, é a própria vida e tudo o que fazemos. Nesse sentido, a referência máxima de “sacrifício” foi o próprio Jesus. Ele é o sacrifício, a “realidade santa” por excelência, por sua verdade, sua fidelidade e disposição para fazer a Vontade do pai e exercer a sua missão. O que faz o sacrifício é a oblação, a entrega, deixar Deus ser Senhor da nossa vida. Nosso sacrifício de hoje nos deve colocar em atitude de poder transformar a situação daqueles que não tem lugar e nem amigos, dos “distantes”, dos “enfermos”, aqueles que “não são como nós”, ou não pensam como nós, os “marginalizados”... Assim fica claro que não é normal que haja pessoas excluídas da refeição, quando todos fomos criados para sentarmos como irmãos na mesma mesa do Pai. Enquanto houver excluídos não será o banquete que quis Jesus, e portanto, é necessário dar-se conta da exigência de mudança para que todos eles possam participar. Somente fazendo-nos solidários da promoção e libertação daqueles que não se sentam à mesa comum poderemos realizar, na verdade, a prática do sacrifício de Jesus. Esse era o desejo que habitava o mais profundo do coração d’Ele: reunir todos os homens e mulheres ao redor de uma mesa, sem exclusões e nem marginalizações. Não é possível reconhecer o Corpo do Senhor presente na Eucaristia se não se reconhece o Corpo do Senhor na comunidade onde alguns passam necessidades. Pois, se fechamos os olhos às divisões e às desigualdades mentimos ao dizer que Cristo está presente na Eucaristia. “Enquanto houver fome em alguma parte do mundo, a Eucaristia estará incompleta em todas as partes do mundo” (Pedro Arrupe) Enquanto não nos mobilizamos a mudar nossa sociedade de maneira que mais pessoas aceitem a alegria de compartilhar o pão e a vida, faltará algo em nossa Eucaristia. Essa “ferida” o cristão deve sempre tê-la presente. Textos bíblicos: Jo. 13,1-17 1Cor. 11,17-34 Na oração: - a quem fazemos sentar à nossa mesa: a mesa de nosso tempo, nossa amizade, nossos bens,...? - a quem excluímos e por quê? Pe. Adroaldo, SJ