toxicomania: uma forma de existir

Propaganda
TOXICOMANIA: UMA FORMA DE EXISTIR?
Juliana Martins Costa
Trabalho apresentado como exigência parcial para a aprovação
na disciplina de Psicopatologia II, ministrada pelas professoras
Marta D’Agord e Ana Marta Meira.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Instituto de Psicologia
Curso de Graduação em Psicologia
Dezembro de 2005
I. Introdução
Este trabalho tem o objetivo de discutir o que é e como é explicada, pela
Psicanálise, a toxicomania. O interesse pelo tema surgiu durante meu estágio de
Psicopatologia, em uma unidade para tratamento da dependência química, do Hospital
Espírita de Porto Alegre.
Busco trazer entendimentos sobre o assunto, que possam responder a alguns
questionamentos, e provocar outros. É importante ressaltar que a escolha pelo termo
“Toxicomania” foi proposital, com a intenção de evitar a ênfase no químico, sugerida pelo
termo “dependência química”, e de possibilitar uma ênfase no sujeito toxicômano. A
paradoxal questão que norteou minhas leituras foi a seguinte: a toxicomania é uma forma
de morrer ou uma forma de viver? E mais, o que leva um sujeito à toxicomania? São estas
as questões que abordarei a seguir.
II. A toxicomania para a Psicanálise
O que é, afinal, o uso de drogas? Para que ele serve? Freud, no texto “O mal estar na
cultura” (1930), define o uso de drogas como sendo uma tentativa de suspensão da
existência frente à dor de existir. A cada desequilíbrio, as substâncias tóxicas agiriam como
um quitapenas, ou seja, como uma proteção contra o tormento. A intoxicação seria uma
forma de suportar o mal estar necessário imposto ao ser humano que vive em uma
determinada civilização.
Nunes (1999) traz a idéia da droga como uma tentativa de preencher a falta
Simbólica do sujeito. A instalação da falta Simbólica inaugura, no sujeito, a possibilidade
inconsciente de desejar, o que rompe com uma idéia de completude. Seja qual for o objeto,
ele não recobre essa falta. Para o sujeito toxicômano, a falta inaugural não é passível de
metaforização ao ser inscrita no Simbólico. Ela atende à exigência de um recobrimento
Real, de um objeto, como a droga, para na ilusão de preencher a falta, restabelecer uma
completude imaginária, evidenciando sua própria existência.
Costa (2004) complementa esta idéia. De acordo com este autor, o toxicômano
busca repor a incompletude com objetos ideais; tenta defender-se da angústia com um
objeto postiço. As drogas constituem uma promessa irrecusável de tapar esse buraco,
impreenchível. É a falta significante, pela castração, que libera o sujeito da dessa
2
necessidade postiça de completude. No toxicômano, tal busca de completude nos objetos
(como as drogas) se repetirá infinitamente, na angústia do sujeito para encontrar o objeto
que a causa. Essa busca totalizante dispensa o falante de confrontar-se com o desejo, pois o
que ele não quer é, justamente, pagar o preço da castração.
As colocações de Conte (1994), vão ao encontro destas idéias. Quando o bebê
diferencia-se da mãe pela intervenção da função paterna, esta divisão provoca-lhe uma
falta, que funcionará como castração simbólica. É a falta que permite que surja o desejo.
Para o toxicômano, falta a falta, falta sua simbolização. A droga cumpre, então, uma função
na vida psíquica, como diz Conte (2001), de anteparo à castração. Ela é usada, para que o
sujeito não se depare com a falta.
É esta idéia de cumprimento de uma função na vida psíquica da qual Le Poulichet,
citada por Conte (2001), irá se ocupar. A autora diferencia o uso de drogas da chamada
operação farmakon. A droga é o produto em si, e no seu uso, os demais investimentos estão
preservados; o tóxico, na operação farmakon, é o produto que assume uma função na vida
psíquica, na busca do sujeito por uma autoconservação paradoxal, por uma existência.
Para Torossian (2004), o psicanalista não trata a dependência química, mas trata de
um sujeito que sofre de toxicomania. As correntes que pregam a incurabilidade apontam
para a cronicidade do sintoma. Geralmente, nas toxicomanias tem-se uma formação
sintomática, na qual há uma cristalização da posição do sujeito numa relação de
exclusividade com a droga. Dando ênfase às questões do sujeito é possível o afastamento
do paradigma da dependência química, para considerar a relação do sujeito com o tóxico.
Não se considera qualquer ingestão de drogas como toxicomania. As toxicomanias se
constroem enquanto sintoma quando o sujeito entra em uma relação tóxica com a droga,
isto é, quando seu consumo passa a ser solução para seus conflitos psíquicos. Nesse
sentido, o processo de cura aposta numa mudança de posição subjetiva, no qual o analista
deve abster-se de indicar qual a melhor saída para o sujeito. Diferentemente de outras
correntes, para a psicanálise, a indicação de cura não significa abstinência ou nãoabstinência, mas sim a escuta do desejo inconsciente.
De acordo com Le Poulichet, citada por Conte (2001) existem duas formas
diferentes de conceber a toxicomania, que falam da posição subjetiva do toxicômano: pela
3
lógica da suplência, referindo-se às toxicomanias mais graves e pela lógica do suplemento,
associada às menos graves.
A função da toxicomania de suplência é funcionar como prótese da instância
simbólica, resistindo à invasão do Outro. Este tipo de toxicomania exige um trabalho de
costura, que permita a constituição de um eu, de um objeto e de um endereçamento ao
Outro. Para Conte (2001), nessas toxicomanias o uso de drogas ocupa um lugar de
sustentação de um possível Sinthoma. O tóxico (sinthoma) entra como suplência na falta do
quarto elo do Real, Simbólico, Imaginário. Com isso, qualquer intervenção feita deve
cuidar para não dissolver a função da toxicomania antes que algo possa articular-se no
lugar. A orientação para a abstinência poderia produzir tal desestruturação, levando a uma
crise ou a um surto. Como nessas toxicomanias o “tóxico” favorece uma entrega total do
sujeito ao Outro, somente é possível propor uma substituição da droga via transferência. No
tratamento é fundamental uma ressignificação da história singular, e não apenas a oferta
artificial de um novo sistema de valores. Essa ressignificação levará a uma nova posição do
sujeito na palavra e à instauração de novos itinerários simbólicos.
As toxicomanias de suplemento, por sua vez, referem-se a formações de próteses
narcísicas, que são buscadas para sustentar a imagem narcísica. A droga seria uma tentativa
de dar suporte ao toxicômano para a constituição de um ideal de eu. No lugar da falta do
objeto, é colocado o tóxico. Assim, na abordagem deste tipo de toxicomania, é necessário
que o luto pelo objeto perdido seja finalizado, para que o toxicômano possa ressituar a
droga em uma cadeia significante, e prescindir do tóxico como defesa secundária. É preciso
criar a possibilidade de resolução do Édipo, para que o paciente venha a admitir a
castração. Diferentemente das toxicomanias de suplência, em que é preciso auxiliar na
construção de um pai, na de suplemento trata-se de reconhecê-lo para resgatar a eficácia de
sua função.
Segundo Le Poulichet (1996) uma descentralização da escuta permite encarar os
atos toxicomaníacos como procedimentos de autoconservação, ou como tentativas de cura.
Se o “veneno” não é mais do que um “remédio” na toxicomania, não é possível reduzí-la a
um simples uso de substâncias tóxicas. Na “Farmácia de Platão”, Jacques Derrida fala
sobre o pharmakon, que se apresenta sucessivamente como um remédio e como um
veneno. As palavras de Le Poulichet são intraduzíveis neste momento:
4
“Inspirando-me nessas diversas observações, e querendo diferenciar os simples usos de
drogas dessa tentativa de autoconservação paradoxal que é a toxicomania, propus referir esta
última a uma operação do pharmakon. De fato, o que aparece nas toxicomanias bem mais
essencial do que a ação específica de uma droga, é essa operação que inventa um curioso estatuto
auto-erótico e auto-referencial de um corpo entrega a um imperativo de autogeração cotidiano,
graças à intervenção de um ´corpo estranho` que garante uma supressão tóxica da dor e a
restauração de uma forma de homeostase na autocronia.” (Le Poulichet, 1996, pág. 115)
Para concluir a respeito da paradoxal questão da autodestruição versus tentativa de
autoconservação na toxicomania, trago uma passagem do texto de Nunes (1999). Nela, o
autor coloca que o toxicômano ao dizer “não posso viver sem a droga”, estabelece uma
relação, pela cadeia discursiva, na qual existe uma impossibilidade da experiência de
privação ou de abstinência da droga, pois, o objeto ao produzir o sujeito por identificação,
na sua ausência, elimina-o. Esta idéia fecha o trabalho, e resume o que se pretendeu discutir
a respeito da toxicomania como uma forma de existir.
III. Considerações finais
Compreender o sujeito usuário de drogas a partir do entendimento da toxicomania,
permite uma ampliação do olhar sobre esse sujeito que o ponto de vista da dependência
química não proporciona. Uma das conclusões a que cheguei é que este referencial
possibilita a escuta do sujeito da dependência, e não apenas da dependência do sujeito. Esse
é um elemento que se repete na clínica: tratar o sujeito do sintoma ou o sintoma do sujeito?
Fico com a primeira opção, sabendo que ela reflete uma escolha epistemológica.
Minhas questões iniciais puderam ser clarificadas e pude entender a toxicomania a
partir de uma outra perspectiva, que me permitiu enxergar que esta clínica não se reduz a
fenômenos de compulsão e de falta de limites, e que não representa uma tentativa crua do
sujeito de destruir-se. Pelo contrário, percebo a toxicomania como uma busca do sujeito por
um lugar para existir. Esta noção garante o entendimento da diferença entre o usuário
eventual e o toxicômano, indo além de questões socias e biológicas, pois considera a função
psíquica do tóxico para o sujeito.
Apesar de muito rico, o entendimento da toxicomania para a psicanálise, com base
nas leituras que fiz, me parece não estar bem sistematizado ainda, com controvérsias entre
5
autores. As leituras, muitas vezes complexas, exigem um conhecimento maior da teoria
psicanalítica, o que de certa forma se torna um obstáculo para muitos profissionais e
estudantes iniciantes no assunto. Este foi, com certeza, um dos desafios que enfrentei. Pude
perceber, como afirma Conte (1994,) que a maioria das abordagens psicanalíticas sobre a
toxicomania, com a utilizada neste trabalho, analisam as motivações individuais
inconscientes do toxicômano, raramente articulando-as ao contexto sócio-cultural. Estudos
de psicanalistas como Melman, Calligaris e Oliveinstein (citados por Conte, 1994) sobre a
toxicomania articulam a subjetividade e o contexto social, entendimento este que viria a
enriquecer este trabalho.
Uma questão que fica em aberto para mim é como aplicar o entendimento
psicanalítico da toxicomania no tratamento de dependentes químicos em uma unidade de
internação psiquiátrica. Essa questão surgiu no momento que pensei em como trabalhar em
meu estágio a partir deste referencial. Como abordar os pacientes no grupo de prevenção à
recaída, por exemplo, a partir desta leitura sobre a toxicomania? Seria possível uma técnica
que pusesse em prática esta abordagem? Considero importante ressaltar que outras
correntes teóricas têm contribuições interessantes no tratamento da toxicomania, a meu ver.
Parece-me que técnicas cognitivo-comportamentais, quando aliadas a um trabalho de escuta
subjetiva do desejo inconsciente do paciente, trazem resultados mais satisfatórios do que
traria apenas uma das abordagens. Seria possível conciliar, em algum nível, estes
entendimentos? Esta é mais uma pergunta sem resposta ainda. No entanto, acho que um
trabalho é válido exatamente por este motivo de abrir caminhos e provocar inquietações.
6
IV. Referências
Conte, M. (1994). Toxicomania e ambiente Logo: uma Perspectiva Psicanalítica.- Dissertação de Mestrado.
Conte, M. (2001). O luto do objeto nas toxicomanias. Em: Os nomes da tristeza.Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. Nº 21, 2001.
Costa, A. L, L da (2004). Drogas. Pagar com a carne? Em: Tóxico e Manias. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre. Nº 26, 2004.
Freud, S. (1930). O mal-estar na civilização. In: Freud, Sigmund. Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. 2.ed. Rio de Janeiro : Imago, 1987. vol.21, p.81-171
Le Poulichet, S. (1996). O tempo na psicanálise. Tradução Lucy Magalhães. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.
Nunes, O. A. W. (1999) A representação da subjetividade na escrita de pacientes de toxicomania.Dissertação de Mestrado.
Torossian, S. D. (2004). De qual cura falamos? Relendo conceitos. Em: Tóxico e Manias. Revista da
Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Nº 26, 2004.
7
Download