Dutra, Pedro. “A intervenção do governo na ordem econômica” São Paulo: ValorEconômico, 26 de agosto de 2003. JEL: K. A intervenção do governo na ordem econômica Pedro Dutra A crítica às agências reguladoras feitas por alguns membros do governo revelam, na verdade, uma sombria dúvida na política brasileira sobre o modelo de intervenção estatal na ordem econômica: o que busca afirmar-se traduzindo a repartição dos poderes, ou o que se formou da celebração da supremacia do poder Executivo sobre os demais? Para além das raízes ideológicas que a questão encerra, está a realidade em que ela se trava: em uma economia que precisa conciliar sobriedade monetária e fiscal e atrair significativos investimentos privados, será o governo, decidindo singularmente, o árbitro mais sábio e isento? A discreta posição da área financeira, em contraste com aquela publicamente agressiva, sugere existir no governo a percepção de que a resposta correta à questão será aquela baseada no exame imparcial da experiência. E esta, sem dúvida, é esclarecedora. Mesmo na ditadura Vargas, já não se discutia a necessidade de se dotar a administração pública de órgãos especiais para regular serviços públicos então prestados apenas por empresas privadas; mas se a esses deveria ser assegurada independência hierárquica e decisória, além da óbvia independência financeira a dizer que das decisões tomadas livremente por sua direção colegiada só caberia recurso ao Judiciário. Conforme o regime político então vigente, entendeu-se não se conferir tal independência a esses órgãos, e assim começaram eles a ser criados em maior número, sujeitos o seu processo deliberativo e as suas decisões à vontade monocrática do Executivo, presidente da República ou ministro de Estado. O regime não escondia a influência do regime italiano vitorioso na década de 1920, no qual a cooperação entre capital e trabalho era comandada pelo Executivo, que expedia decreto-leis e decidia singularmente os conflitos existentes, subordinado assim a atividade econômica do país ao seu controle incontrastado. Essa soma de poderes em mãos do Executivo alijou os demais poderes, Legislativo e Judiciário, da vida econômica do país. Nascia o estado-governo (statto-governo), síntese autoritária do Estado no Executivo. Nos Estados Unidos, a regulação teve início no século dezenove, tendo por alvo o transporte ferroviário e no início do século seguinte criado o órgão de defesa da concorrência. A superação da recessão de 1929 determinou a criação de novos órgãos reguladores, forma que praticamente condensou a intervenção estatal na economia daquele país. A questão da independência desses órgãos em relação ao governo também ocorreu, mas atendeu à separação harmônica dos poderes vigente naquele regime político, e assim a esses órgãos foi outorgada independência hierárquica e decisória para que pudessem exercer suas funções legais sem injunções político-partidárias. Em ponto menor, os órgãos reguladores reproduzem as funções dos poderes do Estado, de fazer cumprir a Lei, expedir normas infra-legais e decidir conflitos entre seus regulados, igualmente harmonizadas. Este equilíbrio repete-se no controle a que são submetidas: o Executivo indica seus titulares e propõe seu orçamento; o Legislativo aprova ambos e fiscaliza o desempenho daqueles; e o Judiciário revê suas decisões. A redemocratização iniciada em 1946 no Brasil não alterou o modo de intervenção na economia, de extração autoritária, contradição que aprofundou a seguir a crise na prestação dos serviços públicos, uma vez que os reajustes de tarifas destes serviços e outras decisões essenciais, como novos investimentos, atenderam a critérios não técnicos, e sim a interesses políticos de vária sorte. A ditadura militar a partir de 1964 retomou e extremou o modelo seguido por Vargas. Ao fim daquele regime, a prestação dos serviços públicos repetia a experiência herdada ao seu início, de ineficiência e onerosidade, em prejuízo direto ao consumidor. O governo anterior ao atual buscou enfrentar esta situação, e o fez com a inapetência que lhe caracterizou as iniciativas de reformas institucionais. Ainda assim, pela primeira vez na administração pública nacional, foi outorgada em lei independência hierárquica e decisória a alguns órgãos reguladores. À conta de tais características, alguns integrantes do atual governo acusam estes de estar fazendo "políticas públicas", função que seria, argumentam, exclusiva do governo, pois a este, ao ser eleito seu chefe, teria sido outorgado mandato para as implementar, como constariam do seu programa de governo. As críticas e o argumento são insubsistentes. As agências cumprem a lei e os contratos; se o fazem devidamente, é questão posta ao seu controlador, o Congresso, e ao seu revisor, o Judiciário. Nenhuma das normas, legais ou infra-legais que traçam diretrizes que tais órgãos devem seguir, foi por eles editada: ou estão nas leis que os criaram, ou nos decretos do Executivo, ou nas decisões dos conselhos consultivos ligados a esses órgãos reguladores. A sua vez, "política pública" é um conceito barateado ao extremo na cena nacional, a ponto de ser identificado à vontade singular do governo, quando, na verdade, significa um conjunto de normas legais (votadas pelo Congresso) e infra-legais (daquelas deduzidas), expedidas para possibilitar o alcance de um objetivo de eminente interesse público, cabendo ao governo executá-las com a autonomia que elas lhe reservem. Portanto, o governo não formula "políticas públicas" senão no limite que as normas legais o permitam, ou ao enviar ao Congresso projetos que alterem normas existentes e as vir aprovadas. Em nenhum regime democrático o presidente é eleito para agir pondo seu projeto de governo acima das normas legais vigentes, mas sim para aplicá-las efetivamente, ou para alterá-las, sempre na forma prevista, na ordem econômica inclusive. Esta é a regra prática da democracia. Por essa razão, o povo, além do presidente da república, elege também seus representantes no Congresso. Assim é o jogo da democracia.