Sayad, João. “Tudo o que você deve saber sobre dívida interna”. São Paulo: Folha de São Paulo, 16 de outubro de 2000. Tudo o que você deve saber sobre dívida interna JOÃO SAYAD 1) O governo paga os funcionários e as coisas que compra com a arrecadação de impostos; se faltar dinheiro, não paga, pendura, faz uma dívida. 2) Quando entram dólares no país, o Banco Central compra e também paga com dívida. 3) O governo faz dois tipos de dívida: a dívida à vista e a dívida a prazo. 4) Ponha a mão no bolso e pegue uma nota de real –pode ser qualquer uma, de qualquer valor, até uma moedinha. Essa é a dívida à vista. 5) Se você contratar um bom advogado e for cobrar a dívida à vista do governo, vai receber, como pagamento, outra dívida à vista, outra nota de real. 6) A dívida a prazo são títulos públicos de vários tipos: títulos emitidos pelo Tesouro Nacional ou pelo BC, com cláusula de correção monetária ou cambial, que, além da correção, rendem juros. Essa é a chamada dívida interna. O Tesouro deve R$ 500 bilhões e paga todos os anos R$ 90 bilhões em juros. 7) Nos anos 60 e 70, era elegante afirmar que a inflação brasileira não resultava do déficit público, mas da forma pela qual ele era financiado, isto é, por muita dívida de curto prazo e por pouca dívida de longo prazo. 8) Para que a dívida de longo prazo fosse aceita, foi inventada a correção monetária, que se generalizou para impostos e câmbio. Foi o começo da indexação de quase todos os preços da economia. 9) Apesar da existência de correção monetária e juros altos, o prazo da dívida depende muito mais das condições da economia do que da vontade do BC. Quando a inflação está se acelerando, o BC consegue vender apenas dívida de prazo mais curto e juros maiores. Quando existe incerteza sobre o câmbio, juros, inflação ou política, os prazos da dívida se encurtam. 10) Nessas situações, o BC garante aos compradores da dívida que, se eles precisarem de dinheiro(dívida à vista), a dívida de prazo maior será trocada imediatamente por dívida à vista, sem qualquer prejuízo para quem comprou. Em momentos de estabilidade, o BC não precisa oferecer essas vantagens. 11) Na realidade, apesar de todo o lengalenga dos monetaristas, quando a inflação sobe a dívida de longo prazo se transforma em dívida de prazo menor ou em dívida de prazo muito curto. Ou seja, aumenta a dívida de curto prazo e à vista. É como se a quantidade de moeda aumentasse automaticamente com a inflação. Os estruturalistas da Cepal sempre disseram que isso acontecia. Tinham razão. 12) Quando a dívida tem prazo muito curto e o BC oferece vantagens para os seus detentores, é impossível fazer política monetária. O governo vende títulos da dívida com garantia de liquidez e retira dívida à vista (dinheiro) de circulação. Não muda nada: trocou dívida de prazo muito curto por dívida à vista, ou seja, trocou seis por meia dúzia. 13) Al Gore, o candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, tem afirmado que vai usar o superávit fiscal para reduzir a dívida publica americana. Lá, a dívida não é semelhante a dinheiro -tem 30 anos de prazo e concorre com investimentos em fábricas e não com investimentos em dinheiro. Se a dívida longa for resgatada, os investimentos privados podem aumentar. 14) No Brasil, a dívida é diferente. Se o governo federal tivesse usado o dinheiro das privatizações para pagar a dívida, teria reduzido a liquidez da economia. Ou seja, ao pagar a dívida, tiraria dinheiro e dívida de curto prazo de circulação. Faltariam recursos para financiar a produção e o comércio. 15) A maior parte do dinheiro que depositamos nos bancos -o salário, o valor da venda do apartamento, do automóvel, os lucros, a prestação- é aplicada em dívidas do governo. Ou seja, o banco aplica a dívida à vista do governo de cada um de nós (nossos reais) em dívidas do governo de prazo maior e que rendem juros. Esses juros é que remuneram os depósitos a prazo, os fundos e a maior parte dos rendimentos que os bancos pagam para seus depositantes. 16) Os monetaristas e os sucessores neoliberais afirmam que a inflação resulta do déficit público. Déficit público é aumento da dívida pública. A dívida pública aumentou US$ 240 bilhões, ou seja, US$ 60 bilhões por ano entre 94 e 99. Os impostos eram suficientes para pagar todas as despesas do governo, inclusive Previdência. A dívida foi feita apenas para comprar dólares que entravam no país. Os dólares foram embora, a dívida interna ficou. 17) Por que alguém gostaria de renegociar a dívida interna? Para acabar com a inflação? Ou para reduzir as despesas com juros? 18) A inflação caiu. A inflação será de 6% este ano e menor no ano que vem. Por que se preocupar com a inflação e a dívida? 19) Se as despesas com juros são muito altas, a solução é baixar os juros e não renegociar a dívida. Com juros menores, aumenta a parcela da dívida à vista que não rende juros e diminui a parcela da dívida a prazo que rende juros. 20) Hoje, empresas brasileiras pagam 7% de juros em dólar, no exterior. Se a inflação esperada para o ano que vem é 4%, os juros no Brasil podem ser de 11%. A despesa do governo federal com juros passaria de R$ 90 bilhões por ano para US$ 55 bilhões, dinheiro suficiente para construir uma Itaipu por ano, por todos os anos, até o fim dos tempos. O mundo é mais complicado do que imaginam os monetaristas. E mais simples do que pensam os seus críticos. ------------------------------E-mail - [email protected]