A FILOSOFIA DO DIREITO DE DJACIR MENEZES António Braz Teixeira (Universidade Lusófona – Lisboa) 1. Figura singular de intelectual, cuja obra múltipla de filósofo, jurista, economista e sociólogo não foi, até agora, objecto de atenção hermenêuticas que merece nem de uma adequada avaliação no âmbito da cultura e do pensamento brasileiros do século XX, Djacir Menezes (1907-1996)1 representa, de certo modo, a continuidade da herança especulativa da Escola do Recife, em especial do monismo naturalista e anti-metafísico de Tobias Barreto, Renovado, agora, com a contribuição hegeliana, naquilo que o filósofo cearense designou por multiculturalismo dialéctico. Profundamente marcado pelo positivismo de Pontes de Miranda (1894-1979), cujo magistério sempre reivindicou2e do pensador argentino José Ingenieros (1877-1925)3, o cientismo do precoce filósofo nordestino que, aos 25 anos, publicou um interessante e bem informado ensaio sobre O Problema da realidade objectiva (1932), irá encontrar no pensamento hegeliano e na sua concepção da dialéctica o elemento decisivo que lhe permitirá superar as limitações metodológicas gnosiológica do seu juvenil ponto de partida, sem, contudo abandonar os seus iniciais pressupostos monistas, evolucionistas e anti-metafísicos, que constituirão a base da crítica que, no início dos anos 60 do século findo, moveu ao seu antecessor Farias Brito.4 Embora escrito numa atitude de simpatia intelectual relativamente ao inditoso filósofo seu conterrâneo, o ensaio de Djacir Menezes revela-se mais preocupado em refutar as críticas de Farias Brito ao evolucionismo e ao positivismo do que em compreender o verdadeiro significado e valor da sua obra especulativa, que se vê apenas como um trabalho de inteligente historiografia da filosofia moderna, ignorando ou desvalorizando a sua dimensão metafísica, de claro sinal espiritualista, antagónica do monismo dialéctico que o seu intérprete partilhava. Retomando algumas das posições de Tobias Barreto, de que Farias Brito acabava por se afastar, no seu atormentado percurso especulativo, Djacir Menezes contraporá ao criacionismo britino a ideia de que nada pode começar ou extinguir-se, pois tudo se transforma e tudo é eterno; ao dualismo espiritualista misto do filósofo cearence, o seu monismo dialéctico de um ser auto-dinâmico, auto-fecundante e auto-evolutivo e de uma evolução criadora em que as formas superiores acrescentam algo de novo às inferiores; à 1 Sobre o pensamento filosófico de Djacir Menezes ver o prefácio de Miguel Real a Teses quase hegelianas, S.Paulo, Grijalbo, 1972, o prefacio de António Paim a Premissas de culturalismo dialéctico ,Rio de Janeiro ,Ed. Cátedra, 1979, Geraldo Dantas Barreto, Djacir Menezes com setenta anos e Oliveiros Literento, Djacir Menezes na cultura braisleira, ambos na Rev. Brasil. Filosofia, nº 110 e 190, respectivamente, Lidia Acerboni, A Filosofia Contemporânea no Brasil, São Paulo, Grijalbo, 1969, António Paim, Problemática do culturismo, 2ªed., Porto Alegre, CEFIL, 1995 e A Filosofia brasileira contemporânea, Londrina, EDUL, 2000, José Maurício de Carvalho, “Curso de introdução à Filosofia brasileira ,id., 2000 e Djacir Menezes (1907- ). Bibliografia e estudos críticos, Salvador, Centro de documentação do Pensamento Brasileiro, 1998. 2 A teoria cientifica do Direito de Pontes de Miranda, Fortaleza, Est. Gráfico A.C. Mendes, 1934. 3 Tema de política e filosofia, Rio de Janeiro , D.A.S.P.-Serviço de Documentação, 1962 e José Ingenieros e a minha geração, Rio de Janeiro, 1970. 4 Evolucionismo e positivismo na crítica de Farias Brito, Fortaleza, Universidade do Ceará, 1962. noção de liberdade como “consciência da acção e império da razão”, acolhida pelo autor de o mundo interior, uma concepção voluntarista da mesma liberdade, se bem que de uma vontade racional, consentânea com as normas essenciais reconhecidas socialmente; à admissão filosófica das noções de revelação, milagre e profecia, a crítica de toda a religião, vista como estádio superado da evolução humana. Em contrapartida, o seu culturalismo dialéctico vinha a coincidir ou a convergir, de modo muito significativo, com aspectos essenciais do pensamento tobiático, cujas aporias ou contradições procurou resolver ou superar por via da sua concepção dialéctica. Com efeito, como noutra oportunidade notei5, além de o mestre sergipano partilhar uma concepção neo-Kantiana da filosofia como epistemologia que, como tal, a reduz ao domínio dos fenómenos e, ao mesmo tempo, acolher uma concepção, ontológica e metafísica, o seu monismo evolucionista enfermara de uma grave contradição interna, que o filósofo não logrou evitar ou resolver, ao encobrir tal monismo em insuperado dualismo, por admitir dois princípios antagónicos, o da causalidade e o da finalidade, e por conter em si duas realidades tão radicalmente diversas como a natureza e o domínio do mecanismo e a sua antítese, a cultura e o reino da liberdade. 2. Tendo começado por admitir, com o positivismo de matriz sociológica, que o fenómeno do pensamento não seria um resultado exactamente individual mas manifestação psicológica das classes sociais, o que conferirá um caracter histórico-socialmente situado a toda a reflexão filosófica, e que os factos seriam o critério de verificação última e a noção definitiva da verdade6, Djacir Menezes, ao defrontar-se com o pensamento hegeliano e com a noção de dialéctica, irá inflectir a sua maneira de pensar num rumo de maior exigência especulativa que, continuando embora, a advertir como categorias básicas as de evolução, unidade e determinismo, o conduzirá a entender que só uma concepção dialéctica poderá explicar a mudança entre os diferentes níveis ou fases do processo evolutivo e a irredutibilidade do humano ao zoológico, do mundo social dos valores ao mundo natural dos seres orgânicos7, bem como, ao admitir a negatividade como notas do processo evolutivo, a possibilidade de interpretar o mundo axiológico sem o reduzir, simplista e mecanicamente, ao mundo natural e de compreender como, na unidade dialéctica do mesmo processo, a causalidade se transforma em teleologia8, superando, assim, o íntimo dualismo de que padecia o monismo de Tobias Barreto e garantindo uma unidade dinâmica, na oposição dos contrários, a uma evolução ascendentemente criadora, em que as formas superiores têm algo próprio, que não existe nas interiores.9 Assim, para o filósofo cearence, a categoria fundamental seria a de evolução unitária do Real como Totalidade concreta, pois só o seu é concreto na sua Imediatidade indeterminada, enquanto o indivíduo, o particular ou o geral mais não serviam do que cortes ou cisões no Real, abstracções que vivem das conexões que revelam a sua significação à consciência humana, advertindo, porém, o pensador que a contradição é já imanente ao ser como tal. Deste modo, para o pensamento de maturidade de Djacir Menezes, a Natureza como Todo não é algo de incoerente e abstracto mas constitui um cosmos concreto, do todo de uma logicidade interna, que o conhecimento científico, enquanto interpretação sistemática da Realidade, nela surpreende, a partir das conexões intimas que aí descobre, as quais revelam um ritmo imanente às coisas em devir que caracteriza o movimento dos processos naturais. 5 Caminhos e figuras da Filosofia do Direito luso-brasileiro, 2ª edição, Lisboa, Novo Imbomdeiro, pag. 143-153. 6 O problema da realidade objectiva, 2ªed., Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1971, pg. 15-20. 7 Evolucionismo e positivismo na crítica de Farias Brito, pg. 20 e 80. 8 Teses quase hegelianas, p.6. 9 Premissas do culturalismo dialéctico, p.76. Daqui decorrerá, então, que o pensamento seria imanente ao ter e que a lógica dialéctica teria um conteúdo ontológico, visto ser a ciência das leis imanentes do Real, coincidindo, por isso, a razão dialéctica com o ritmo do devir total do mesmo Real, pelo que a razão seria histórica e progressiva e a sua essência seria vital e não lógica. Por outro lado, seria a natureza processual do Real que possibilitaria que ele fosse objecto de uma interpretação unitária ou unificante, assim como a unidade teórica do conhecimento da Natureza, da Sociedade e do Pensamento, conhecimento que, no entanto, não logra nunca ultrapassar a experiência histórica, dado que é processo histórico das coisas que, objectivamente, a lógica se revela e a razão se constitui. 3. Por seu turno, para o autor de O Sentido Antropógeno da História, o Espírito, visto como uma unidade histórica natural, resultante da sociabilidade humana e do processo das estruturas socais, era pensado como o princípio universal do devir operativo do Real e como negação da Natureza, apresentando-se como algo que se lhe opõe, ascendendo e adquirindo novos poderes num processo de interiorização em que a Natureza se torna realidade cultural ou espírito objectivo. Entendo Djacir Menezes que, nesse processo dialéctico, o espírito nascia do amínico cujas raízes obscuras mergulhavam no terreno da fisiologia das sensações e dos instintos, vindo a despertar, depois, no sentimento, que vem a polarizar-se no indivíduo como unidade biológica que uma luta pela sua auto-conservação, até vir a definir-se, no grau mais elevado, naquilo que não os lineamentos da racionalidade, sendo esta filogenia o devir da consciência na espécie humana o quase se realiza no âmbito de uma ampla “nebulosa afectiva” que é o sentimento de si. O processo de consciência, iniciado no plano zoológico das sociedades animais, sob a forma de solidariedade, atinge, no homem, o consenso racional, como expressão sociogenética superior tornando-se, assim, conscientemente histórico e alcançando a sua plenitude na consciência de si e por si. Advertia o autor de Hegel e a Filosofia soviética que a evolução é criadora, sendo, por isso, o processo criador imanente ao desenvolvimento natural. Daí que a espiritualidade haja crescido a partir do domínio biológico, transcendendo-o e regando-o, assim tendo aumentado a riqueza instintiva do animal, que negou com a riqueza racional, que se lhe opôs, continuando-a. Deste modo, para Djacir Menezes, nesse processo evolutivo dialéctico, o Real seria o que está em permanente devir, seria a mutabilidade e a mutação pelo que, em rigor, “nada é, tudo está sendo”, afirmação que, num contexto filosófico, totalmente diverso, nem a coincidir, surpreendentemente, com uma das ideias fundamentais da auto-cosmologia do luso-brasileiro Matias Aires. É e graças à dimensão anímica e espiritual do homem que a sua acção logra transcender os limites de toda a acção animal e que o processo histórico supera as restrições ou limitações anteriores, desenvolvendo forças que não existiam na fase antecedente de pura animalidade natural. 4. Para o pensador, é o trabalho, com essência da praxis humana, que realiza a unidade dialéctica entre o mundo natural e o mundo social, nele se concretizando a unidade do agir e do interagir. É através do trabalho que o homem vai criando os atributos que o distinguem e opõem aos outros seres, tais como as técnicas racionais, comunicativas e simbólicas, a capacidade de previsão e provisão, que lhe permitem afirmar-se com consciência e como sujeito face ao objecto e ascender à qualidade de pessoas. Seria pelo trabalho que o homem lograria inserir o espírito no mundo, a ciência na vida, a teoria na prática, a razão na História, o dever-ser no ser, Deus no Universo, não deixando, contudo, o filósofo brasileiro de notar que a racionalidade como determinação essencial da Natureza humana é uma determinação histórica, o que significaria, então, não ser tal Natureza algo invariável mas uma realidade constituída lentamente ao longo do devir histórico. Para Djacir Menezes, se a parte verdadeiramente humana do homem é a transformação da Natureza e a Natureza humana é a negação dialéctica da Natureza natural, é, de igual modo, a paxis Histórica, ampliada e enriquecida, por via das lutas sociais, em mais amplas formas de Experiência, que constitui o único critério para eliminar todos os artifícios ou equívocos que separam ou cindem a realidade da vida, a substância da forma, a função da estrutura, o fenómeno do nómeno, o ser do pensamento, ignorando a radical unidade dialéctica do Real. É o lugar essencial atribuído pelo filósofo brasileiro à noção de praxis no processo histórico-dialéctico como condição genética da própria História e ponto de partida do processo de humanização ou de superação da natureza, que, por um lado, o leva a pensar ser a mesma praxis antropogénese e psicogénese e, por outro, a sustentar que as noções de matéria, natureza e objectividade são categorias históricas e são dado estáticos, pois reflectem-se, como ideias, de acordo com as condições histórico-temporais mutáveis de interpretação da Realidade que é, ela própria de carácter processual. Notava Djacir Menezes que, porque o Ser ou a Realidade não tem começo nem fim, o processo histórico da razão destrói o transcendente, deixando apenas o ascendente que é a essência do monismo e do evolucionismo dialéctico. Assim, para o mestre nordestino, o Absoluto mais não seria ou poderia ser do que o ser privado de todas as determinações ou o ser indeterminado e, nessa medida, viria a coincidir com o Nada. 5. Por outro lado, porque a sociabilidade é a determinação essencial que define humanamente, o homem, enquanto natureza, vem a ser expressão do espírito objectivo, entendido como conjunto de criações intersubjectivas como linguagem, o direito, a moral, as ciências, as artes e as filosofias. Para o filósofo cearence, a cultura viria a consistir na objectivação do espírito, na formação de uma realidade resultante da humanização da natureza ou do processo de integração no universo através da acção humana consciente, apresentando-se, pois, o espírito objectivo como algo em que ser e dever-ser constituem um processo unitário e dialéctico, cumprindo ainda ter presente que aquela objectividade ou objectivação do espírito, de que a cultura é expressão, se desenvolve em função da praxis histórica, sendo incindível do conhecimento humano. A cultura e o espírito objectivo pressupõem a liberdade como capacidade de optar ou de decidir entre alternativas. Daí a consubstancial relação que, para o filósofo, existe entre a liberdade e a vontade. Com efeito, se a realidade da vontade se exprime no trabalho pelo qual o homem transforma os “dados” exteriores na humanização do universo e na atitude activa de compreensão do mundo ,livre será aquele que faz o que quer, querendo, no entanto, o que é racional, isto é, o que está de acordo com as normas fundamentais que a sociedade reconhece ou acolhe. Deste modo, a liberdade, como conversão do determinismo em acção consciente, será uma realidade concreta que se exprime no direito. O outro elemento essencial que a noção de cultura implica é constituído pelos valores e pelas ideais, entendidos, os primeiros, por Djacir Menezes, como expressão dos graus subjectivos da experiência dialéctica do Real, e compreendidos, os segundos, como momentos subjectivos da praxis, que constituem a expressão prospectiva das necessidades históricas na consciência. 10 10 Cfs. Teses, especialmente §§ 5, 6, 8, 9, 10, 13, 15, 16, 22, 33, 34, 35, 51, 65, 70, 85, 89, 90, 99, 107, 126, 140, 212, 218, 286, 331-333, 336, 340, 355, 373, 389, 406, 407, 429, 440, 442, 495 e 496 e Premissas, especialmente pp. 27, 40, 47, 63, 79, 95, 107, 113, 130, 137, 153-155, 159, 161, 172 e 201. Cfs, os textos de António PAim citados na nota 1 supra, bem como, do mesmo autor, “O conceito de espírito na obra de Djacir Menezes”, Djacir Menezes (1907 - ). Bibliografia e estudos críticos, pp. 40-42. Era este, em linhas muito esquemáticas, o substrato especulativo e o fundamento filosófico em que este assentava e de que partia a reflexão menezina sobre os vários domínios da cultura e da acção humana, do direito à política, da arte à economia, pelo que sem eles dificilmente seria entendido e compreendido o seu pensamento filosófico-jurídico. Esta a razão de lhe havermos dedicado este breve esboço de enquadramento introdutório. 6. Se bem que, desde a sua juvenil tese de doutoramento sobre Kant e a ideia do direito (1932), defendida na Faculdade de Direito do Ceará, em que se formara, e em trabalhos como Introdução à ciência do direito (1934), A teoria científica do direito de Pontes de Miranda (1934) ou A regra jurídica: o problema da indicatividade e da imperatividade (1937)11, Djacir Menezes houvesse dedicado especial atenção reflexiva ^`a realidade jurídica, só, praticamente, no termo do seu longo magistério universitário, no Rio de Janeiro, viria a dar forma sistemática ao seu pensamento filosófico-jurídico, primeiro num seu trabalho de declaração de intenção didáctica12 e, cinco anos depois, de uma forma mais desenvolvida e completa, num Tratado de Filosofia do Direito13 que, inegavelmente, lhe confere um lugar cimeiro no quadro da contemporânea meditação jurisfilosófica luso-brasileira, ao lado de autores como Pontes de Miranda, Cabral de Moncada, Miguel Reale, António José Brandão, Lourival Vilanova, Castanheira Neves, Renato Cirell Czerva ou António José de Brito. Para o mestre cearense, a Filosofia do Direito teria carácter reflexivo e crítico, sintético e totalizador, tendo como objectivo primeiro responder à pergunta sobre o que é o direito. Para tal, caber-lhe-ia considerar as relações entre as estruturas normativas e o sistema axiológico, através do estudos dos problemas suscitados pelas interconexões do pensamento jurídico e das instituições do direito positivo, do devir do direito e da sua universalidade, naquilo que tem de variável e de permanente, da ideologia jurídica em função da realidade do homem, alargando a sua investigação às zonas meta-empíricas. Apresentando-se, assim, como consciência crítica que incide sobre a totalidade do processo histórico, a filosofia jurídica, na perspectiva de Djacir Menezes, envolverá, necessariamente, os problemas teológicos e ontognosiológicos, do direito, abrangendo, por isso, a axiologia jurídica, a metodologia jurídica, e a gnosiologia jurídica, tendo como questão nuclear a crítica axiológica do direito positivo, pois este pressupõe sempre um sistema de valores que se traduz numa teoria da Justiça14. Seria esta natureza essencialmente especulativa e crítica que distinguiria com clareza a filosofia jurídica da ciência jurídica dado que esta última nem consistir num sistema de análise e interpretação da realidade heteronormativa em determinada sociedade, enunciando indicativos acerca de imperativos15. 7. O direito era concebido pelo jurisfilósofo brasileiro como um modo de ser real e historicamente determinado, como um fenómeno do mundo axiológico e fáctico, que constitui uma estrutura normativa, uma ordem de imperativos socialmente elaborados, de acordo com um sistema de valores vigentes, qualificativos da realidade e visando uma organização justa de interesses sociais. 11 A temática filosófico-juridíca comparece, igualmente, em diversos artigos publicados na mesma época, como “Energia social e fenómeno jurídico”, Ciência do Direito, Rio de Janeiro, nº2, 1936, “A normatividade na teoria jurídica de Hans Kelsen”, Revista da Faculdade de Direito do Ceará, Fortaleza, 1939, “Direito subjectivo e ordenamento jurídico”, Valor, 1940, “ influência do pensamento de Tobias Barreto na conceituação filosófica do direito de Clóvis Bevilaqua”, O Direito, ano 20, 1942 e “A norma jurídica, a lei natural e a ????? ciências históricas”, id. , ano 24, 1943. 12 Filosofia do Direito, Rio de Janeiro, Ed. Rio, 1975 13 Tratado de Filosofia do Direito, São Paulo, Ed. Atlas, 1980. 14 Tratado, pp. 15-17, 25 e 70-71 15 Idem, pp. 17 e 71. Deste modo, seria uma realidade cultural ou um fenómeno que surge no mundo da cultura, enquanto mundo teológico criado pela acção do homem, registo por intenções humanas, na relação intersubjectiva, no pensamento objectivo. O direito seria, para Djacir Menezes, o resultado do trabalho espontâneo e inconsciente do espírito, que produz normas de consciência não formuladas, vigências de conduta que não chegam a ser consciencializados, normatividades, normatividades que se encontram imanentes nos mitos e em estilos políticos de acção. Assim, embora seja um fenómeno cuja conotação reside no mundo finalístico da cultura, o direito mergulha as suas raízes nas formas prévias da cosmovisão das sociedades primitivas, podendo dizer-se, por isso, não ser a vontade do legislador que o faz, pois resulta das condições em que os homens agem. Para o pensador nordestino, o direito torna-se realidade praxis histórica, sendo o seu sentido apreendido ou captado na imanência do processo dos seres conviventes, resultando a sua natureza axiológica da intersubjectividade em que se cria o mundo substancialmente humano da cultura, em que vigoram, em recíproca interligação, as leis da causalidade e da finalidade das ideias e dos valores jurídicos16. Fenómeno convencional por excelência que penetra a intimidade das relações intersubjectivas e se entranha no mundo da cultura, o direito implica uma unidade dialéctica entre facto e valor, cuja mediação se realiza na praxis histórica, assim como uma mediação entre natureza e sociedade, que não suprime a natureza. O direito constitui, assim, um complexo de normas disciplinam socialmente a convivência, sancionados através da força coerciva, bem como de outras normas que se integram na ordem jurídica, como regras técnicas para o exercício e cumprimento da função coerciva. Para o jurista-filósofo nordestino, os fenómenos jurídicos apresentavam uma estrutura dialéctica, já que, neles, a imperatividade própria do dever-ser provém do processo em que os seres conviventes se conjugam ou congregam na experiência intersubjectiva e revela-se na realidade social, plena de intencionalidade normativa e de significações empiricamente reconhecíveis. Daí que a lei tenha de apreender o direito como forma normativa que tem a capacidade de exprimir um equilíbrio dinâmico que concilie os interesses humanos com os superiores valores da justiça, com vista a ordenar justamente as relações sociais17. Por seu turno, a ordem jurídica aparecia a Djacir Menezes como a formulação objectiva do sistema axiológico representado na ideia de Justiça em determinado momento da vida social, que se objectiva no conjunto normativo existente, o qual constitui a expressão da constelação axiológica socialmente vigente ou tendente a vigorar18. Deste modo, no pensamento do especulativo brasileiro, a norma jurídica implicará uma certa hierarquia de valores, os quais possibilitariam a apreensão dos factos sociais, de acordo com critérios que permitem distingui-los de outros factos sociais, o que significaria ser a normatividade, na sua essência teológica e valorativa, que constituirá o critério da juridicidade19. 8. Necessário se torna distinguir aqui, a propósito do conceito de norma, as noções de validade, eficácia, vigência e positividade. Assim, a primeira referir-se-ía, para Djacir Menezes, à prioridade intrínseca de toda a norma, que decorre do facto de ela constituir sempre uma prescrição, ou ter natureza prescritiva, ser um imperativo dirigido à consciência do homem e seu domínio próprio ser o da intersubjectividade. Lembrava o autor das Teses quase hegelianas que a esfera humana em que a imperatividade se define é o momento axiológico, que penetra o mundo fáctico, pois 16 Idem, pp. 23, 28, 55, 66, 79, 81-82, 88, 99, 116, 131 e 133. Idem, pp. 17, 51-52 e 71. 18 Idem, p. 28 19 Idem, pp. 23-24, 27, 61 e 79. 17 unicamente no plano fáctico, em que ocorrem referencias a valores, surgem os extractos qualitativamente diferentes do domínio axiológico, constituindo as restantes regiões do mundo da factividade o mundo da natureza, por definição, cego aos valores. Por sua vez, a eficácia seria o que permitiria medir ou avaliar os graus de validade da norma, enquanto a sua vigência seria avaliada ou medida pelo dever-ser, fundado no ser mas revelado na praxis social. Quanto à positividade, encontrar-se-ia ela no consenso sobre a obediência À norma, que se manifesta no reconhecimento generalista da sua obrigatoriedade editada pelo poder, sendo aí que o imperativo jurídico adquire a efectividade. Deste modo, para Djacir Menezes, seria nas relações sociais que deveria procurar-se o sinal de positividade do direito, sendo também aí que, por recurso aos critérios do justo e do bem, seria possível distinguir os imperativos jurídicos das morais20. Decisivo e fundamental papel desempenhava, na ontologia jurídica do nosso autor, a noção de coercibilidade ou de força, que, para ele, não seria mero atributo ou instrumento da realização do direito mas elemento da sua essência. Com efeito, não seria através de proposições normativas, emitidas ou editadas pelo Estado, que se disciplinaria a vida social, pois aquelas careciam de ser acompanhadas por um sistema de controlos para se tornarem efectivas. O direito teria em si a força imanente, havendo nele uma unidade dialéctica entre jus e vis, pelo que, no processo da sua realização, a força não seria um processo puramente fáctico nem o direito constituiria um epifenomeno puramente axiológico. O direito seria força racionalizada ou força no seio do devir histórico de uma crescente racionalidade, a qual absorve valores e vem a configurar-se no mundo teleológico, em que adquire sentido na perspectiva histórica. Daqui resultaria, então, que a violência seria inerente ao sistema normativo, que lhe confere sentido e do qual é parte integrante. Ao considerar o processo em que o direito vem a consistir, o que se nos oferece é o “devir da força vitoriosa em poder político jurigeno”, pelo que, parafraseando Tobias Barreto, podia-se dizer que “ a força que devera a força é, na simultaneidade dialéctica, o devir do direito, cujo nível de visibilidade é, essencialmente, histórico-natural.”21 9. Se bem que o sistema axiológico de Djacir Menezes atribuísse fundamental lugar à ideia de Justiça, que entendia nascer das “entranhas da História, trabalhada por uma razão viva”, como resultado de uma longa elaboração da consciência humana e exprimindo formas históricas vitais da consciência. Irredutíveis Às formas interiores da vida animal”22, o autor de Premissas do culturalismo dialéctico não só admitia a existência, como direito, de um direito injusto23, como, fundado no imanentismo evolucionista que se constitua a base do seu pensamento, recusava a ideia de qualquer Direito Natural. De acordo com o pensamento filosófico-jurídico do especulativo cearense, todos os direitos nascem da ordenação racional das relações humanas, as quais se desenvolvem na praxis social em que se processa a vida do espírito, em estreita ligação com todo o processo histórico. Deste modo, aqueles direitos subjectivos que têm sido considerados como direitos naturais não teriam sido inscritos na alma humana, como pretende a tradição jusnaturalista, mas resultariam da experiência biogenética e sociogenética, só se havendo definido à medida que se foi afirmando e configurando a racionalidade humana24. Recusando, embora, a noção de direitos naturais a priori, inscritos na consciência humana ou na natureza do homem, o jurisfilósofo não deixava no entanto, de admitir a existência de algo deles próximo, que designava por direitos fundamentais, não criados mas 20 Idem, pp. 27 e 82 Idem, pp. 60-63, 66 e 127 22 Idem, pp. 24, 28, 62, 69, 81, 82, 109 e 110. 23 Idem, p. 110 24 Idem, p. 102. 21 reconhecidos pelo Estado, ao qual seriam anteriores, direitos cujo objecto seria um modo de ser do próprio sujeito, pelo que feri-los ou desrespeitá-los seria ferir a pessoa individualmente. Esses direitos fundamentais, concebidos como os que definem a pessoa, seriam a liberdade, a vida e a dignidade humana. Destes a primazia ou a prioridade pertenceria à liberdade, sendo o sentimento de liberdade que mediria, qualitativamente, o grau de heteronomia de qualquer sistema normativo, jurídico ou moral25. Este conceito de direitos fundamentais, baseados na noção da pessoa humana, não deixava de constituir uma forma “sui generis” de jusnaturalismo, só não reconhecido como tal pelo pensador brasileiro devido a um certo preconceito seu acerca da ideia de Direito Natural, que tendia a identificar com a tradição escolástica, ignorando outras formas que aquela ideia revestiu ao longo da História do pensamento ocidental e aquilo que nela é essencial: a afirmação de valores ou princípios pré-jurídicos, anteriores e superiores ao Estado, que este terá de respeitar naquilo que Djacir Menezes denominava como a sua “função jurígena”, sob pena de o direito não contribuir para uma ordenação justa das relações sociais nem respeitar a pessoa humana noq eu tem de mais essencial. Julho de 2009 25 Idem, pp. 188-189, e Teses, § 149.