Problemas da epistemologia

Propaganda
Problemas da epistemologia1
Jonathan Dancy
Keele University
Tradução de Eliana Curado
A epistemologia é o estudo do nosso direito às crenças que temos. De modo mais genérico,
começamos com o que poderíamos chamar «posturas cognitivas», indagando se agimos bem ao
manter estas posturas. As posturas cognitivas incluem tanto a crença quanto o (que pensamos
ser) conhecimento; e, noutra dimensão, incluem igualmente nossas atitudes em relação às
várias estratégias e métodos que usamos para adquirir novas crenças e abandonar as antigas, e
os produtos destas estratégias e métodos. A epistemologia, assim apresentada, é explicitamente
normativa; trata de saber se agimos bem ou não (de forma responsável ou irresponsável) ao
formar as crenças que temos.
Ao investigar nesta área, obviamente que não questionamos apenas as crenças e estratégias em
que nos encontramos inicialmente. Também questionamos se não há outras que seria
conveniente ter, e se não há outras ainda que devemos ter, dado que temos as que temos. A
esperança é alcançar uma imagem completa do modo como um agente cognitivo responsável
se deve comportar, tendo alguma garantia de não termos ficado aquém desse ideal.
Justificação
Podemos distinguir dois tipos de crenças: a mediata e a não mediata. Crenças mediatas são
aquelas que adquirimos por intermédio de alguma estratégia que começa nas crenças que já
possuímos. A inferência é uma estratégia (se bem que não a única); nós inferimos que vai
chover a partir das crenças de que estamos a meio da manhã e que o céu está a escurecer. As
crenças mediatas levantam a questão de saber se temos direito à estratégia que adoptámos —
se é uma estratégia que fazemos bem em usar. As crenças não mediatas são as que adoptamos
sem que, para as termos, seja necessário partirmos de outras crenças que já temos; e suscitam
problemas diferentes, que dizem respeito à fonte do nosso direito em acreditar. Eu abro os
olhos e, em razão do que vejo, acredito imediatamente que há um livro à minha frente. Se
estou a agir bem ao adoptar esta crença, ela justifica-se (ou tenho uma justificação para a
adoptar). Esta atenção dada à justificação é um modo de expressar a ideia de que a
epistemologia é normativa. Então o que faz, neste caso, uma crença ser justificada?
Há várias respostas. Uma é a resposta fiabilista: a crença justifica-se porque é o resultado de
um processo fiável. Outra é a resposta coerentista: a crença justifica-se porque o meu mundo é
mais coerente com ela do que seria sem ela. Uma terceira é a alegação fundacionalista clássica,
que entende que a crença não é de fato não-mediata, mas inferida de uma crença sobre como
as coisas me aparecem neste preciso momento. Se esta última for verdadeira, somos lançados
de novo em duas questões. A primeira consiste em saber se e como a crença sobre como as
coisas me parecem neste preciso momento se justifica. A segunda questão reside em saber se a
inferência extraída da primeira crença se justifica. Nós poderíamos perguntar, então, que
princípio de inferência está a ser usado. Suponha-se que é este: se as coisas me aparecem de
1
Texto extraído de Ted Honderich (ed.), Oxford Companion to Philosophy, (Oxford : Oxford University
Press, 1995), pp. 809-812. A presente tradução está disponível no site www.criticanarede.com.
determinada maneira, são provavelmente dessa maneira. O que torna isto suficiente para nos
levar a supor que agimos bem ao usar este princípio?
A Estrutura da Justificação
Isto nos leva a um questionamento específico sobre a justificação, que tem recebido muita
atenção. Suponha-se que a justificação que atribuímos a uma crença A mediata recorre à sua
relação com uma crença B. Esta crença, B, justificaria a outra, A: a crença de que hoje é
Domingo justifica a crença de que o carteiro não virá hoje. Há uma intuição muito forte de que
B só pode conferir justificação a A se ela própria estiver justificada. Assim, a questão de saber
se A está justificada ainda não foi respondida, ao apelar a B; foi apenas arquivada. Se, para estar
justificada, depende do que é B, então o que justifica B? Nós poderíamos apelar a outra crença
C, mas então o problema apenas se tornaria recorrente. Temos o início de uma regressão
infinita. A primeira crença na série não se justifica, a menos que a última se justifique. Mas
poderá mesmo haver uma última crença na série?
Esta é a regressão infinita da justificação. O fundacionalismo leva a sério esta regressão e
esforça-se para encontrar «crenças básicas» que seriam capazes de detê-la. Os caminhos
promissores neste sentido incluem a ideia de que as crenças básicas são justificadas pela sua
fonte originária (são o produto imediato dos sentidos, talvez), ou pelo seu objecto (dizem
respeito à natureza dos estados sensoriais actuais de quem acredita). O empirismo, nesta
conexão, quer de alguma forma situar crenças básicas na experiência. O próprio
fundacionalismo relaciona-se com a estrutura deste programa empirista. Assim, a preocupação
com a regressão da justificação é uma preocupação com a estrutura da justificação. O
coerentismo procura demonstrar que um conjunto de crenças justificadas não precisa ter a
forma de uma superstrutura de base; a ideia é que o programa fundacionalista está destinado a
fracassar, posto que a «base» não é firme, uma vez que não se apoia em coisa alguma. Se este
fosse o resultado, e se os fundacionalistas tivessem razão quanto à estrutura de um conjunto de
crenças justificadas, a única conclusão possível seria a céptica — ou seja, que nenhuma das
nossas crenças estão de facto justificadas.
Os coerentistas rejeitam a distinção entre superstrutura e base; não há crenças que estejam
intrinsecamente fundamentadas, e nenhuma que seja intrinsecamente uma superstrutura. As
crenças sobre a experiência podem apoiar-se no apelo à teoria (o que seria no sentido
ascendente, em termos do modelo fundacionalista), e vice-versa (as teorias precisam do apoio
da experiência). A coisa é bastante desordenada, e não pode ser claramente dividida em
camadas.
Conhecimento
A epistemologia, como explicámos, concentra-se no problema da justificação. Mas há um
segundo centro de interesse no conhecimento. Está bem quem possui uma crença justificada.
Contudo, a justificação dá-se em graus, assim como nosso estatuto epistémico (determinado
por quão bem nos estamos a sair). O estatuto principal é o conhecimento. Quem sabe que p
não poderia estar a sair-se melhor (pelo menos em relação a p). Há um interesse natural neste
estatuto principal. E levantam-se duas questões fundamentais: qual é o máximo que podemos
almejar, e em que áreas o obtemos? As tentativas tradicionais de definir o conhecimento
concentram-se no primeiro caso, e dividem-se em duas famílias principais. A primeira tenta ver
o conhecimento como uma forma mais inteligente de crença; a forma mais conhecida desta
perspectiva é a «definição tripartida», que entende o conhecimento como 1) crença
simultaneamente 2) justificada e 3) verdadeira. A segunda família desta perspectiva entende que
o conhecimento começa onde se abandona a crença. A versão de Platão desta perspectiva
supunha que a crença está voltada para a mudança (especialmente o mundo material), e o
conhecimento, para o imutável (por exemplo, a matemática). Outras versões poderiam sugerir
que temos capacidade para obter conhecimento a partir do que nos cerca, mas somente
quando algo físico se apresenta directamente à mente. Assim, o conhecimento é uma relação
directa, enquanto a crença é concebida como uma relação indirecta com algo em que se
acredita.
A segunda questão sobre o conhecimento, a saber, em que áreas o podemos obter, conduz à
distinção entre global e local. Em algumas áreas, por assim dizer, o conhecimento é acessível, e
noutras não — ou ao menos não é tão livremente acessível. É comum ouvir as pessoas
dizerem que não temos nenhum conhecimento do futuro, de Deus, ou do bem e do mal, ao
mesmo tempo que se permite que haja ao menos algum conhecimento científico e algum
conhecimento do passado (na memória). Similarmente, discutindo a justificação da crença,
podemos dizer que as nossas crenças sobre o que se encontra agora à nossa volta estão em
solo firme, tão firme quanto aquele que apoia as nossas convicções teóricas centrais (ainda que
razoavelmente distintas) no domínio da ciência, enquanto nossas crenças sobre Deus e sobre o
futuro são intrinsecamente bem menos fundamentadas.
Cepticismo
O cepticismo, no tocante ao conhecimento, origina-se tanto de formas globais quanto locais.
O céptico quanto ao conhecimento sustenta que não podemos obter conhecimento, e esta
afirmação poderia ser feita de modo genérico (tipo global) ou apenas em áreas específicas, tais
como as mencionadas acima (forma local). O cepticismo quanto à crença é geralmente
defendido como o mais interessante. O céptico em relação à crença, na forma global, afirma
que não temos direito a quaisquer das nossas crenças; nenhuma é melhor que as demais, e
nenhuma é suficientemente boa para ser tida como justificada. Mais localmente, um céptico
pode afirmar que, apesar de nos sairmos bem relativamente a crenças sobre coisas
presentemente ocultas (por exemplo, no guarda-louças), não temos direito a quaisquer crenças
sobre o bem e o mal. Quem afirma algo assim defende o cepticismo moral, e a dificuldade
desta posição é que não se pode ter certeza de que as razões que jazem sob esse cepticismo
moral não vão derivar para outras áreas. Se, por exemplo, a objecção a crenças no domínio das
questões morais reside em algo que esteja para lá do alcance da observação, poder-se-ia fazer a
mesma objecção a crenças científicas sobre matérias pequenas demais para serem observadas.
Portanto, há uma distinção entre cepticismo local e global, tanto na teoria da crença justificada
quanto na do conhecimento. Estes dois tipos de cepticismo precisam de ser apoiados por
argumentos, e um problema principal da epistemologia é a tentativa de avaliar e refutar estes
argumentos à medida que surgem. Esta é uma via importante, pela qual podemos trabalhar
para determinar o nosso direito às nossas crenças.
Na história da epistemologia há duas ramificações clássicas do argumento céptico: a pirronista
e a cartesiana. O pirronismo (nome dado a partir de seu líder, Pirro de Élis (c.365-270 BC))
mantém a atenção dada à justificação da crença, ao passo que o cepticismo que herdámos de
Descartes começa como conhecimento e tenta alargar-se para a crença a partir deste ponto.
Descartes argumentava que não podemos conhecer algo se formos incapazes de distinguir
entre o caso verdadeiro e o caso em que, apesar de falso, parece verdadeiro. Se não é possível a
distinção, então, apesar de poder ser verdadeiro, tanto quanto sabemos não é. Este caso
poderia ser, tanto quanto podemos dizer, aquele em que as aparências nos enganam, e
dificilmente poderíamos afirmar saber que não nos enganam. Embora este argumento seja
suficientemente persuasivo como argumento céptico em relação ao conhecimento, esta
abordagem não pode ser alargada para apoiar a um cepticismo quanto à crença. O facto de eu
não poder dizer quando as aparências me enganam pouco contribui para demonstrar que não
tenho razão (ou que minhas razões sejam insuficientes) ao manter minhas crenças. Na tradição
pirronista as coisas são diferentes. Neste tipo de cepticismo procura-se explicitamente mostrar
que as razões de uma perspectiva nunca são melhores que as de outra. Neste sentido, seríamos
então forçados a conceder que não há uma crença favorecida pelo equilíbrio das razões, e
assim admitir que não podemos defender o nosso direito às crenças da única maneira possível,
a saber, demonstrando que evidências as apoiam. O pirronismo concentra-se nos critérios
pelos quais distinguimos entre o verdadeiro e o falso e argumenta, de várias formas, que não
temos direito a estes critérios, ou seja, que eles não podem ser racionalmente defendidos.
Adoptando uma estratégia clássica, pode-se perguntar qual é o critério que podemos usar para
avaliar o critério; se vamos recorrer aos vários critérios que estão sob consideração, caímos
numa petição de princípio e não temos mais critérios a que recorrer. O pirronismo ataca as
nossas estratégias cognitivas, argumentando que nenhuma delas pode ser defendida. O ataque
de Hume à racionalidade da indução é o exemplo clássico.
Naturalismo em epistemologia
Sendo normativa, a epistemologia ocupa-se da avaliação — a avaliação de estratégias e de seus
produtos (as crenças). Entre as estratégias que avalia encontram-se as da ciência. Assim
concebida, a epistemologia coloca-se na posição de julgar todas as outras áreas da investigação
humana; é tida como Filosofia Primeira. (O questionamento céptico apresentado acima indaga
como a epistemologia poderia ser bem sucedida ao avaliar-se a si mesma.) Quine esforçou-se
para reverter esta posição e para compreender a epistemologia como parte integrante da
ciência, primeiramente observando os resultados da ciência para então responder às questões
da epistemologia. Este projecto, chamado «epistemologia naturalizada», não é impossível. A
ciência foi às vezes bem sucedida a avaliar as suas próprias estratégias, da mesma forma que
avalia os seus próprios instrumentos. Assim, a ciência é às vezes normativa; é capaz não
somente de examinar nossos processos perceptivos, mas também de se pronunciar sobre sua
fiabilidade. Mas algumas das questões da epistemologia parecem resistir à naturalização; por
exemplo, as questões em que a razão interessa mais que a observação.
Áreas especiais
Há tradicionalmente quatro fontes de conhecimento (ou de crença justificada): a sensação, a
memória, a introspecção e a razão. Cada um tem a sua epistemologia. O estudo do
conhecimento perceptivo quer saber como a percepção consegue gerar conhecimento a partir
do material à nossa volta. Para responder a esta questão é preciso obviamente conhecer em
certa medida como os sentidos realmente funcionam. Mas este conhecimento parece não ser
suficiente (assim, talvez a epistemologia dos sentidos também não possa ser naturalizada). Há
dificuldades a ser encaradas aqui que não podem ser resolvidas com alguma informação mais
específica. A primeira dificuldade é a céptica, que às vezes se chama «véu perceptivo». Se
nossos sentidos somente revelam o conhecimento sobre a aparência das coisas, como
podemos esperar usá-los para descobrir o que as coisas realmente são? As aparências, neste
mostrar, constituem-se mais como obstáculos do que em ajuda para as nossas tentativas de
discernir a natureza da realidade; a percepção lança um véu sobre o mundo, muito mais do que
nos revela o mundo. A segunda dificuldade céptica deriva do argumento da ilusão.
Noutro extremo, encontramos a epistemologia da razão. As actividades da razão são duas.
Primeiro, há a inferência, em que nos movemos do velho conhecimento para o novo. A sua
variante mais forte é a inferência dedutiva válida, que ocorre quando não é possível que as
premissas (de onde nos movemos) sejam verdadeiras se a conclusão (para a qual nos
movemos) for falsa. Uma pergunta que cabe aqui é a seguinte: Como poderia tal inferência
gerar novo conhecimento? Certamente que a conclusão deve estar de alguma forma já contida
nas premissas, se as premissas não podem ser verdadeiras quando a conclusão é falsa. A
segunda alegada actividade da razão é a descoberta directa de novas verdades. A verdade que
pode ser descoberta somente com a actividade da razão chama-se «verdade a priori», e o
conhecimento derivado dela é um conhecimento a priori. Uma das maiores questões da
epistemologia consiste em saber como é possível o conhecimento a priori, e que tipos de
verdades podem ser conhecidas desta forma. Algumas proposições são verdadeiras em virtude
apenas de seu significado, por exemplo, «Todos os solteiros são pessoas». Conhecemos esta
verdade, e não pelo apelo aos sentidos, à introspecção, ou à memória; conhecemo-la pela
razão. Mas proposições deste tipo (frequentemente chamadas «analíticas») são triviais. Não nos
dão qualquer conhecimento substancial. Poderá a razão dar-nos um conhecimento substancial
de algo, ou tudo se resume ao conhecimento a priori analítico e (consequentemente) trivial? Por
exemplo, se o conhecimento matemático é produto da razão, pode ser substancial? As
verdades matemáticas são meramente analíticas? Parece que nos dividimos entre afirmar que as
verdades matemáticas são importantes e dizer que as conhecemos unicamente através da
actividade da razão. Foi a tentativa de evitar esse dilema que levou Kant a escrever a primeira
Crítica.
O lugar da epistemologia
Qual é o lugar da epistemologia no mapa filosófico? Eu vejo-a como um capítulo no projecto
mais geral a que se chama «filosofia da mente»; é o lado avaliativo deste projecto. Na filosofia
da mente interrogamo-nos quanto à natureza dos estados mentais; em particular (para os
nossos propósitos), sobre a natureza da crença. As perspectivas que temos em epistemologia
são sensíveis às respostas àquela questão, da mesma forma que são sensíveis aos resultados
científicos sobre a natureza dos processos da percepção. Por exemplo, a importância que
dermos à relação entre o conhecimento e a crença dependerá crucialmente do modo pelo qual
concebemos a crença. Trata-se de um estado fechado, em que temos consciência das
representações das coisas mais que das próprias coisas (o véu da crença)? Se for assim, o
conhecimento passa a ser simplesmente a melhor forma de tal estado — o véu mais fino? Ou
o conhecimento deve ser concebido de outra forma?
A outra área filosófica em que a epistemologia está intimamente relacionada é a teoria do
significado. A questão de saber se somos capazes de conhecer proposições de determinado
tipo é sensível ao valor que damos ao significado dessas proposições. Por exemplo, se
pressupomos que os enunciados sobre o mundo material são distintos dos enunciados sobre a
experiência, e se pensamos que nosso conhecimento das experiências está para além do ataque
céptico, é possível esperar que possamos defender nossa habilidade de conhecer a natureza do
mundo material. Esta esperança é a esperança de que o fenomenismo resolva por nós alguns
dos problemas epistemológicos.
Bibliografia
1. R. M. Chisholm, Theory of Knowledge, 2nd edn. (Englewood Cliffs, NJ, 1977).
2. J. Dancy, Introduction to Contemporary Epistemology (Oxford, 1985).
3. A. Goldman, Epistemology and Cognition (Cambridge, Mass., 1986).
4. W. V. Quine, "Epistemology Naturalised", in Ontological Relativity (New York, 1969).
5. W. F. Sellars, "Empiricism and the Philosophy on Mind", in: Science, Perception and Reality
(London, 1963).
6. L. Wittgenstein, On Certainty (Oxford, 1969).
Download