desafios estratégicos para a agricultura familiar no brasil

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DESAFIOS ESTRATÉGICOS PARA A AGRICULTURA FAMILIAR NO
BRASIL
Subsídios do Deser para a elaboração da Tese do II Congresso da Fetraf-Sul/CUT
Este texto pretende apresentar uma contribuição para os debates preparatórios ao II Congresso
da Fetraf-Sul/CUT, em particular para o tema relacionado aos desafios estratégicos que a
agricultura familiar precisa enfrentar e responder no médio prazo (10 anos), de modo que
oriente o caminho para a construção de um projeto democrático e sustentável de
desenvolvimento nacional. Num primeiro momento, serão levantados alguns pontos
referentes à situação da agricultura tanto no plano internacional quanto no plano nacional,
abordando, inclusive, as tendências do processo de desenvolvimento rural. Em seguida, esse
documento expõe um conjunto de referências, construídas coletivamente ao longo das últimas
décadas, que podem vir a fundamentar um papel estratégico da agricultura familiar no
contexto de um novo projeto de sociedade e de desenvolvimento. Por fim, este texto aponta os
desafios estratégicos que conduzam a um novo posicionamento sócio-político e econômico da
agricultura familiar na formação social brasileira.
I. SITUAÇÃO DA AGRICULTURA NO PLANO INTERNACIONAL
1. O sistema capitalista internacional, a despeito de uma retomada do crescimento do mercado
mundial nos três últimos anos, puxado principalmente pela China, está em crise, pelo menos
desde a década de 1970. Esta crise pode ser caracterizada: (i) pela dificuldade do capital
continuar aumentando sua taxa de acumulação e (ii) pelo avanço da grande crise ambiental,
cujos efeitos são cada vez mais iminentes. Estes fatores colocam seriamente, pela primeira
vez, para o capitalismo a possibilidade de sua inviabilidade histórica.
2. Do ponto de vista da gestão dessa crise do sistema, o capital se move tendo por base um
duplo conjunto de medidas. Do lado político, adota a versão do Estado neoliberal, constituído
fundamentalmente para financiar diretamente a acumulação de capital. Do lado da economia,
busca-se a todo custo, por meio do desenvolvimento de pesquisas tecnológicas de ponta, a
utilização de tecnologias poupadoras de mão-de-obra e redutoras do tempo de durabilidade
2
das mercadorias. Nesse contexto, o crescimento da indústria bélica, ao fornecer os
equipamentos necessários à manutenção das guerras e conflitos armados em diferentes regiões
do planeta, torna-se um mecanismo de fundamental relevância para a valorização do capital
no atual estágio de desenvolvimento, uma vez que incentiva a demanda em vários setores
industriais.
3. No capitalismo, a função básica da agricultura é a de fornecedora de matérias-primas
(alimentos, fibras, madeira etc.) a preços cada vez mais baixos para que o setor industrial
produza com o menor custo possível. Movido por sua própria lógica interna, o capital busca
dominar os processos de produção, processamento e comercialização dos produtos de todos
os setores econômicos, entre eles a agricultura. Neste sentido, há uma intensa
“mundialização” das cadeias produtivas da agricultura, em escala planetária. E, obviamente,
desse processo o Brasil não escapa. A novidade no atual momento do desenvolvimento
capitalista mundial é a tentativa de se atribuir aos países periféricos a responsabilidade pelo
suprimento de novas formas de energia, em função da crise ambiental e do esgotamento das
reservas de combustível fóssil (carvão e petróleo). Isto, entretanto, em praticamente nada
muda a situação destes países, uma vez que a origem do capital que vem explorando as
possibilidades do combustível “ecológico” não é nacional. Além disso, o fornecimento dos
chamados “serviços ambientais”, transformando as atuais áreas agrícolas em imensos
“desertos verdes”, pode se constituir numa nova alternativa à valorização do capital em outros
países do globo.
4. A situação da agricultura, no plano internacional, tende, no próximo período, a enfrentar
grandes transformações, em função basicamente das mudanças que vêem se verificando na
base tecnológica da produção, particularmente, de um lado, com a expansão da biotecnologia
e, em breve, da nanotecnologia e, de outro, com a tendência de se acelerar os passos para a
transição da matriz energética no mundo. Do ponto de vista do capital, esse processo tende a
promover, dentre outras dinâmicas:

o crescimento do setor industrial voltado para a produção agrícola, desde a produção
de máquinas, equipamentos e insumos, passando pela agroindustrialização e
comercialização desses produtos em escala mundial;
3

o aprofundamento da concentração das grandes empresas transnacionais, detentoras
das patentes tecnológicas, agravando o ciclo de dependência, reduzindo ainda mais a
capacidade de autonomia dos agricultores e submetendo-os a uma acentuada elevação
dos custos de produção;

a ampliação da participação de empresas estrangeiras nas exportações dos países que
possuem um Produto Interno Bruto dependente do setor agrícola;

o aumento da competitividade entre os países produtores e exportadores de produtos
agropecuários;

a elevação das escalas de produção e da produtividade, com a conseqüente redução
estrutural dos preços recebidos pelos produtores;

a valorização econômica de produtos destinados à monocultura e à exportação;

o aumento da importância dos produtos agrícolas na pauta de exportação dos países
dependentes.
5. No entanto, essas transformações econômicas (que já estão em curso) no padrão de
desenvolvimento rural e agrícola, em escala mundial – com seus ritmos e processos
diferenciados em cada país –, tendem a agravar cada vez mais as desigualdades sociais,
lançando uma parcela significativa dos agricultores na miséria e na fome e comprometendo,
assim, o direito básico à vida. De outro lado, tais mudanças tendem a acelerar também os
processos de destruição dos ecossistemas e da biodiversidade neles presentes, podendo ainda
gerar graves conseqüências para a saúde humana e as diferentes formas de vida no planeta,
caso suspeitas levantadas por diversos pesquisadores venham a se confirmar.
6. De acordo com a perspectiva hegemônica do desenvolvimento capitalista globalizado, no
cenário futuro da economia internacional, as atividades agrícolas continuarão cumprindo um
papel secundário nos processos econômicos de composição do PIB. A agricultura, por mais
“avançada” que seja o seu modelo tecnológico, tende a permanecer como (i) fonte geradora de
divisas capazes de dar sustentação ao endividamento externo, sendo responsável por uma
parcela expressiva do superávit na balança comercial; (ii) fornecedora de commodities e
alimentos baratos para abastecer o crescimento demográfico; (iii) fornecedora de mão-de-obra
desqualificada para atender às necessidades de expansão do setor urbano-industrial; (iv)
consumidora da produção industrial de máquinas, equipamentos e insumos agrícolas.
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7. É preciso considerar ainda que existe uma série de acordos internacionais, seja em fase de
negociação ou em fase de implementação pelos diferentes países do planeta (Objetivos do III
Milênio, Protocolo de Kioto e Rodada de Doha). Esses espaços de discussão e de decisão
política entre os Estados nacionais têm abordado temas fundamentais para a sustentabilidade
da vida no planeta, tais como a redução do número de pessoas que passam fome, o acesso
universal ao ensino fundamental, a redução da emissão de gases responsáveis pelo
aquecimento global, a adoção de estratégias efetivas de conservação ambiental, o fim dos
subsídios agrícolas por parte dos países capitalistas hegemônicos, em especial os Estados
Unidos e países europeus, como a França, a Alemanha, a Suíça, a Inglaterra e a Holanda.
Estes fóruns, entretanto, constituem-se também em espaços de pressão do capital
agroindustrial que pretende a todo o momento reduzir impostos e aumentar as barreiras às
exportações de produtos nacionais, tais como açúcar e álcool, leite, carnes, soja, milho,
madeira, café etc.
8. Finalmente, cabe ressaltar que o capital que vende insumos, processa, comercializa e
financia as atividades agrícolas, enfim, que define o rumo e o ritmo das atividades de
praticamente todo o setor agroalimentar do Brasil é o capital mundial. No setor lácteo, a suíça
Nestlé ou a francesa Danone; na cadeia de grãos, as norte-americanas Cargill, Bunge e ADM,
e a francesa Louis Dreyfus; em relação ao café, a suíça Nestlé, a norte-americana Sara Lee e a
israelense/norte-americana Ellite Strauss; no setor de carnes, a francesa Doux e a norteamericana Cargill; no de fumo, a inglesa British American Tobacco e a norte-americana
Philip Morris. Esta lista é suficiente para evidenciar que as decisões sobre como e o que
plantar, como processar e comercializar, bem como diretamente a definição de preços e
indiretamente da renda dos agricultores no Brasil, são tomadas a partir das fortes pressões
exercidas pelos interesses dessas empresas transnacionais. Com isto, as condições da
sociedade brasileira definir o que pretende para o setor agropecuário nacional apresentam-se
cada vez mais limitadas, em função dessas circunstâncias do mercado internacional.
II. SITUAÇÃO DA AGRICULTURA NO CONTEXTO NACIONAL
9. Como o Brasil se constitui num país historicamente marcado pela importância da atividade
agrícola nas exportações, as transformações e as perspectivas acima destacadas incidem
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diretamente sobre a base produtiva da agricultura e sobre as relações sociais que se
estabelecem a partir dela. Mesmo com a intensificação do processo de industrialização e, mais
recentemente, de financeirização da economia nacional, os produtos de origem agropecuária
continuam ocupando um lugar de destaque nas receitas econômicas do País.
10. O cenário social do Brasil rural é, atualmente, hegemonizado pela ideologia do
agronegócio, que se afirma no imaginário coletivo como “o Brasil que dá certo”, em
contraposição a outros setores considerados “ineficientes” da economia brasileira. Os
compromissos históricos assumidos pelo capital financeiro-industrial com o latifúndio e as
grandes empresas agroindustriais, e sedimentados por meio de políticas governamentais e de
incentivos internacionais que favoreceram esses interesses sociais, estabelecem as condições
para a hegemonia do atual modelo de desenvolvimento rural no Brasil.
11. Dentre as características mais marcantes desse modelo, pode-se ressaltar a padronização e
uniformização dos sistemas produtivos; a verticalização e centralização das cadeias
agroindustriais; a monocultura voltada para a exportação; a especialização das atividades
produtivas de bens primários; a eliminação da mão-de-obra não-qualificada; a intensificação
do processo de dependência aos setores industriais produtores de insumos e máquinas; a
destruição das relações comunitárias; a desarticulação dos espaços organizativos; a adoção de
um padrão tecnológico que provoca (i) uma violenta artificialização e desnaturalização do
espaço rural, (ii) uma acelerada degradação dos recursos naturais renováveis, (iii) uma
seletividade cada vez mais acentuada dos produtores rurais e (iv) um aumento da dependência
nacional em função da vulnerabilidade do mercado internacional, centrado em commodities; e
a padronização de um modo de vida individualista e consumista.
12. Entretanto, o espaço rural brasileiro não é homogêneo nem uniforme. Pelo contrário, ele é
heterogêneo, plural e diverso, tanto em termos dos agroecossistemas, da diversidade sóciocultural, dos processos de organização política, das formas de organização econômica e dos
sistemas de produção, das relações com o mercado, do acesso às políticas públicas etc. Por
outro lado, essas realidades não devem ser percebidas como separadas e independentes. Em
determinadas circunstâncias, elas se interpenetram e produzem, inclusive, relações
interdependentes, exigindo uma leitura mais complexa dessas situações. O movimento
ambivalente do capital envolve diretamente o setor capitalizado da agricultura familiar no
processo de expansão das atividades agrícolas ligadas ao chamado “agronegócio”, tais como
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na produção de grãos –soja, milho e trigo–, algodão, café, aves, suínos, cana-de-açúcar, leite,
fumo, pinus, eucalipto etc. Mas isso não significa que setores menos capitalizados não
estejam envolvidos nesse processo, particularmente por intermédio das relações com o
mercado de bens de capital (máquinas e implementos), com o mercado de produtos agrícolas
ou mesmo com o mercado de trabalho (urbano ou rural, formal ou informal).
13. Portanto, o Brasil rural não é só o “agronegócio”, que aparece na grande mídia com suas
grandes máquinas colheitadeiras de grãos, à imagem e semelhança de cenários americanos, e
valorizado efusivamente pelos planejadores governamentais que só enxergam as cifras da
balança de pagamentos, sem computar os custos sociais e ambientais embutidos nessa via de
crescimento econômico. Nem é apenas o dos “latifúndios improdutivos”, contrários às
iniciativas de democratização da propriedade fundiária, às políticas de conservação ambiental
e de combate ao trabalho escravo.
14. Ainda que essas facetas determinem o projeto hegemônico implementado no País, essas
dimensões do Brasil rural não expressam a totalidade e a complexidade desse espaço social.
Representam, sem dúvida, uma parcela que possui uma grande responsabilidade no que diz
respeito às exportações de produtos primários (grãos e carnes, por exemplo), mas também em
relação à extração ilegal de madeira e de minérios preciosos, à devastação de grandes
extensões de terras, por meio das queimadas, à degradação da biodiversidade, à eliminação da
diversidade sociocultural existente nesses ambientes etc.
15. Porém, é preciso reconhecer que o Brasil rural é também o da agricultura familiar, dos
assentados da Reforma Agrária, dos reassentados por obras públicas de infra-estrutura, dos
artesãos, das populações tradicionais, enfim, de uma infinidade de identidades coletivas que
se (re)criam e buscam afirmar sua especificidade cultural e histórica. Esses segmentos sociais
– responsáveis pela maioria absoluta dos estabelecimentos rurais do País, por sua contribuição
significativa para a dinamização das economias locais e também para a garantia de grande
parte da produção agrícola nacional – encontram-se sufocados pelas ações desencadeadas
pelas elites protagonizadoras do modelo hegemônico.
16. Existem, portanto, dois projetos objetivamente em disputa, em que um deles é
amplamente hegemônico e o outro vem se constituindo com uma alternativa real, diante da
insustentabilidade do modelo vigente. Os caminhos futuros a serem trilhados pelo rural
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brasileiro, e que definirão o papel da agricultura nesse processo, dependem da confrontação
entre esses projetos e das lutas políticas travadas junto à sociedade, na medida em que esses
caminhos não estão definidos a priori, podendo, ser modificados, de acordo com a correlação
de forças que resulte desses enfrentamentos.
III.
PAPEL
DA
AGRICULTURA
FAMILIAR
NO
DESENVOLVIMENTO
DEMOCRÁTICO E SUSTENTÁVEL
17. O espaço rural brasileiro é constituído por uma heterogeneidade de contextos geográficos,
sócio-ambientais, econômicos e culturais, cada qual apresentando possibilidades e limites
específicos para a realização de atividades agrícolas, pecuárias, extrativistas e também para
um conjunto diversificado de ocupações rurais não-agrícolas (turismo ecológico e cultural,
artesanato, agroindústria etc.). Essa concepção enfoca o rural levando em consideração a sua
multidimensionalidade, isto é, valorizando de forma integrada não só os aspectos agrícolas ou
econômicos, mas também todas as suas demais dimensões inerentes ao meio rural, geralmente
não ressaltadas na maioria das análises e estudos acerca desse tema.
18. O Brasil rural, nessa perspectiva, não se limita à produção agropecuária nem mesmo às
áreas reconhecidas pelo senso comum como “campo”. De acordo com essa abordagem, o
Brasil rural abarca cerca de 80% dos municípios nacionais que dependem fortemente do
desempenho das atividades agrícolas desenvolvidas em seu interior. Desse mesmo espaço
emergem um patrimônio cultural e uma rica biodiversidade que contribuem para moldar
identidades coletivas, saberes e conhecimentos tradicionais, formas particulares de
manifestação cultural e artística, modelos de manejo dos recursos naturais, espaços de
conservação ambiental. Emergem também formas de organização sócio-política associadas à
trajetória histórica de ocupação territorial. O espaço rural revela-se, assim, numa pluralidade
de caminhos e oportunidades que superam a visão tradicional de locus para a produção de
alimentos.
19. Como todo campo político de disputa de forças sociais, esses caminhos envolvem uma
série de tensionamentos e contradições, fruto de um antagonismo de sujeitos sociais
portadores de visões de mundo e de projetos de sociedade que se diferenciam em relação às
perspectivas de desenvolvimento e de construção de sociedade que lhes são implícitas. Nesse
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sentido, o Brasil rural da atualidade convive com duas fortes tendências que expressam
perspectivas contrárias de desenvolvimento, diante das quais não há possibilidades de
complementaridade ou de integração das estratégias. De um lado, verifica-se a tendência
hegemônica dos capitais financeiro, agrário, industrial e comercial, expressa no chamado
“agronegócio”, e, de outro, a tendência que busca construir um movimento de contrahegemonia social, fundada nas formas familiares e comunitárias de reprodução da vida nas
áreas rurais. Além delas, é importante ressaltar que outras tendências co-existem nesse campo
de forças, tais como a dos grandes latifúndios ou mesmo as incipientes formas coletivizadas
de produção agrícola.
20. Entretanto, esses dois modelos mais abrangentes não devem ser vistos de forma estática e
linear, na medida em que há interposições que tornam a realidade ainda mais complexa: de
um lado, podem ser encontrados agricultores familiares que degradam recursos naturais ou
que desenvolvem atividades especializadas voltadas para a exportação e, de outro,
agricultores empresariais que desenvolvem técnicas de produção orgânica a partir de práticas
conservacionistas dos recursos naturais. Ambas as situações servem para revelar que a
realidade não se apresenta de forma “pura”.
21. O agronegócio traduz-se hoje na tendência hegemônica, pois consegue articular formas
“tradicionais” (como o latifúndio) e “modernas” (as grandes empresas agroindustriais
nacionais e transnacionais – Cargill, Monsanto, BAT, Sadia etc. – e o sistema financeiro),
estabelecendo novos elos de interesse comum para a reprodução do capital. Trata-se de uma
atualização do modelo de desenvolvimento capitalista diante do contexto da globalização e da
“abertura” do comércio internacional. Para viabilizar a consolidação desse modelo, o
agronegócio tem contado ainda com o papel predominante do Estado e das políticas públicas,
por meio principalmente do crédito, da pesquisa agropecuária, dos instrumentos de regulação
dos preços e dos mercados, das estruturas de armazenamento etc.
22. De um modo geral, as ações do agronegócio se pautam pela especialização produtiva, pela
monocultura voltada para a exportação, pela adoção de tecnologias de ponta e de produção em
larga escala, pela dependência das tecnologias “modernas” (transgênicos, nanotecnologia) e
numa visão predatória de “exploração” dos ecossistemas e dos recursos naturais. O projeto do
agronegócio, enquanto expressão da articulação e integração dos capitais financeiro,
agroindustrial, comercial e agrário, tem por objetivo central ampliar o processo de
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concentração de riquezas no meio rural, gerando divisas para elevar o superávit da balança
comercial. O imperativo do lucro imediato e das vantagens comparativas de competitividade
no mercado internacional estabelece uma lógica perversa que provoca uma série de impactos
negativos (degradação ambiental, expulsão das famílias de agricultores de seus territórios
tradicionais, artificialização da produção agrícola, instabilidades na soberania alimentar etc.).
A perversidade desse processo é tão acentuada que segmentos sociais ligados à agricultura
familiar participam desse processo, na medida em que se integram economicamente às
cadeias produtivas mais importantes do agronegócio (grãos –soja, milho, trigo etc.–, carnes –
aves e suínos, em especial–, leite, fumo, algodão, madeiras –pinus, eucalipto e bracatinga– e,
mais recentemente, as propostas de integração voltadas à produção de bioenergia).
23. Numa outra perspectiva de construção do desenvolvimento situam-se os segmentos
sociais ligados à produção familiar rural, expressando uma forma de organização social que
na história da formação agrária nacional tem ocupado um lugar secundário e subordinado.
Diferentemente do agronegócio, a agricultura familiar pode ser considerada mais do que um
espaço de produção agrícola e de dinamização das economias locais, mas fundamentalmente
um espaço social de reprodução da vida rural, de revitalização das relações comunitárias e dos
conhecimentos tradicionais, de preservação do patrimônio cultural, de conservação da
biodiversidade e dos recursos naturais, bem como de diversificação das estruturas sócioorganizativas de base.
24. O projeto que vem sendo construído, ao longo das últimas décadas, pela agricultura
familiar e suas organizações é responsável, dentre outros aspectos: (a) por grande parte da
produção de alimentos para viabilizar a segurança alimentar e nutricional do País; (b) pelo
maior número de estabelecimentos rurais e por uma quantidade de área inferior à ocupada
pelo agronegócio e o latifúndio; (c) por uma diversidade de sistemas de produção e pela
integração das atividades agrícolas com atividades não-agrícolas (rurais ou urbanas); (d) pela
implementação de experiências voltadas para a construção de uma nova matriz de
desenvolvimento tecnológico, passando pela geração de tecnologias adequadas, pela
agroecologia, pelo agroextrativismo e por diversas formas de manejo sustentável dos recursos
naturais; (e) pela valorização dos territórios rurais, incluindo a preservação das culturas e dos
saberes tradicionais e a criação de arranjos institucionais capazes de integrar os diferentes
setores econômicos (indústria, comércio, serviços e agricultura); (f) pela consolidação de
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redes sociais de cooperação e pelo fortalecimento das diversas formas de organização social;
(g) pela busca de integração dos processos de produção, agroindustrialização e
comercialização; (h) pela elaboração de uma nova educação do campo que responda aos
atuais desafios colocados pela realidade rural; (i) pela promoção da inclusão social e pela
geração de novas ocupações rurais.
25. Todas essas experiências e iniciativas desenvolvidas no âmbito da produção familiar nas
diversas regiões do País vêm sendo realizadas com um apoio muito restrito e pontual das
políticas públicas do Estado brasileiro e, ao mesmo tempo, sendo alvo de violentas pressões
por parte das forças do mercado e do capital. Isso tem dificultado o processo de disseminação
e amplificação dessas ações, de maneira que se rompam com a fragmentação e o isolamento
que as caracterizam até o momento. Porém, mesmo assim, é possível afirmar que nos espaços
da agricultura familiar, dos assentamentos de Reforma Agrária, dos reassentamentos em
função da construção de obras públicas, em particular as usinas hidroelétricas, e dos povos e
populações tradicionais existe um outro projeto de futuro com vitalidades e potencialidades
para se tornar uma alternativa sustentável para o desenvolvimento do Brasil rural.
26. O tema da sustentabilidade, entendido aqui nas suas múltiplas dimensões (social,
econômica, ambiental, espacial, política e cultural), no caso do desenvolvimento rural, tem
sido pautado principalmente pelos movimentos e organizações sociais, bem como pelas
instituições governamentais de apoio à agricultura familiar. O aprofundamento desse debate
no seio da sociedade brasileira é de amplo interesse das organizações da agricultura familiar,
visto que essa discussão, em última instância, coloca em xeque os princípios e as diretrizes da
estratégia hegemônica do capital globalizado. Portanto, cabe à agricultura familiar e aos
demais setores da sociedade civil interessados no enraizamento social e na politização
democrática dessa discussão, demonstrar a farsa da elite brasileira que pretende apresentar o
agronegócio como um segmento econômico “eficiente”, “moderno”, “racional” e
“competitivo”, em contraste aos setores considerados “atrasados” e “ineficientes”. Nesse
sentido, torna-se necessário e urgente evidenciar o papel estratégico que os segmentos ligados
à produção familiar no País podem vir a desempenhar no âmbito de um processo de
construção de um projeto de desenvolvimento democrático e sustentável.
27. Assim, para se avançar na direção da sustentabilidade do desenvolvimento rural, é preciso
que as políticas macroeconômicas, industriais, financeiras, comerciais e agrícolas, incorporem
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princípios, objetivos e critérios que garantam essa direção, pois a viabilidade desse segmento
familiar está diretamente vinculada à estratégia de desenvolvimento do Brasil rural. Uma
agricultura familiar sustentável não se alcança por meio de ações fragmentadas, isoladas e
setorizadas, vindas de um determinado ator social ou mesmo de um segmento do poder
público, nem se viabiliza unicamente a partir de iniciativas que partam de si mesma, ou seja,
de seu interior e sem nenhum grau de articulação com as demais forças sociais, por mais
fortes e atuantes que sejam os sujeitos políticos que a impulsionam. A sustentabilidade desse
setor também não se garante pelo viés das políticas sociais compensatórias, isto é, a partir de
seu caráter meramente funcional para o desenvolvimento do capital. Deve ser percebida,
então, como parte estrutural de um novo projeto de desenvolvimento nacional e, por isso
mesmo, depende significativamente de uma mudança radical das estruturas institucionais
voltadas para a dinamização do desenvolvimento.
28. Por fim, cabe ressaltar que a implementação de uma nova estratégia de inserção da
agricultura familiar coloca importantes desafios para as organizações sociais, em particular
para a Fetraf-Sul/CUT, que têm se dedicado a construir uma visão multidimensional do
desenvolvimento rural. Sem pretender apresentar uma lista de enfrentamentos que esgote o
conjunto dos problemas existentes, os desafios apresentados abaixo conformam, acima de
tudo, uma visão multifacetada e indissociável da própria construção desse modelo sustentável
de desenvolvimento para o meio rural brasileiro.
IV. DESAFIOS ESTRATÉGICOS PARA A AGRICULTURA FAMILIAR
29. Os desafios estratégicos para a agricultura familiar devem levar em conta a
multidimensionalidade dos papéis por ela desempenhados em nossa sociedade, ou seja,
considerando-se sua dimensão política, econômica, tecnológica, social, territorial, ambiental e
cultural.
30. O primeiro grande desafio estratégico para a agricultura familiar, diante desse quadro das
correlações de forças, é o de se afirmar socialmente como um sujeito político capaz de se
fazer representar e de defender seus interesses coletivos no cenário das forças sociais que
disputam os rumos do projeto de desenvolvimento e de sociedade para o País. Esse desafio
pressupõe uma avaliação que o poder hegemônico do agronegócio tende a perdurar, pelo
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menos, no médio prazo, e que, nesse sentido, a agricultura familiar continuará “remando
contra a corrente”. Por isso, aponta-se na perspectiva de que a agricultura familiar deva se
constituir num sujeito político com capilaridade social, representatividade e legitimidade, de
maneira que, em conjunto com outros segmentos da população brasileira, tenha capacidade
para forjar as condições necessárias à adoção de uma nova estratégia de desenvolvimento, que
responda às demandas colocadas pela redução das desigualdades sociais, da pobreza e da
fome, pela conservação dos recursos naturais, pela garantia dos direitos sociais, econômicos e
culturais e pela participação democrática na vida política. Isso implica na formação e
consolidação de um campo político de forças sociais qualificadas para intervir na disputa de
projetos na sociedade, que seja capaz, de um lado, de promover mudanças profundas nas
estruturas e na cultura institucionais e, de outro, viabilizar a incorporação de diretrizes,
objetivos e critérios de sustentabilidade nas políticas estruturantes e nos programas
estratégicos dos governos.
31. Do ponto de vista econômico, o desafio central que precisa ser enfrentado pela agricultura
familiar brasileira é a constituição de arranjos produtivos que articulem de forma integrada os
processos
de
produção,
beneficiamento,
agroindustrialização,
armazenagem
e
comercialização de produtos, permitindo-lhe condições mais favoráveis de resistência e de
luta contra o processo de globalização atualmente em curso nas áreas rurais. Para tanto, a
diversificação das atividades econômicas e dos sistemas de produção, a ampliação da
produção de alimentos voltada para a garantia da segurança alimentar e nutricional, o
fortalecimento das interrelações e da sinergia entre a economia agrícola e a economia dos
setores industrial e de serviços, em especial nos municípios que dependem de resultados
positivos nas atividades agropecuárias, a distribuição mais eqüitativa da estrutura fundiária, o
acesso a políticas públicas que viabilizem as condições de permanência das famílias de
agricultores em seus territórios e, principalmente, a superação da fragmentação e do
isolamento das iniciativas econômicas tornam-se ações imprescindíveis para a construção de
um projeto de desenvolvimento democrático e sustentável.
32. A consolidação de uma nova matriz tecnológica capaz de responder às novas e crescentes
demandas sociais e ambientais apresenta-se como uma outra dimensão básica para uma
mudança de estratégia de desenvolvimento rural fundada na agricultura familiar. Portanto,
faz-se necessário revisar as agendas das instituições governamentais de pesquisa agropecuária
13
e intensificar o desenvolvimento de pesquisas tecnológicas que compatibilizem o aumento da
produtividade dos sistemas de produção típicos do setor familiar à garantia de fornecimento
de alimentos sadios e de qualidade, ao manejo sustentável dos recursos naturais, bem como
sua adequação às características sociais e às condições específicas de cada agroecossitema.
33. As soluções e inovações na área tecnológica deverão estar sintonizadas diretamente com a
perspectiva ambiental, visto que a intensificação e a massificação das estratégias de
conservação ambiental colocam-se como necessidades urgentes para minimizar as
transformações em curso e que, em muitos casos, são irreversíveis. Assim, cabe à agricultura
familiar lutar pela redução das causas geradoras das instabilidades que ameaçam o equilíbrio
dos agroecossistemas e a riqueza da biodiversidade, pela ampliação dos mecanismos
promotores de estratégias de conservação ambiental e pela eliminação do processo de erosão
do patrimônio genético acumulado pelas populações locais.
34. O desafio fundamental que condensa as ações na área social deve estar focado na
eliminação das desigualdades sociais (relacionadas à renda, gênero, etnia, idade etc.),
buscando-se estimular processos de inclusão social que promovam a redução da pobreza rural
e do processo de migração para os centros urbanos, e também a constituição de novas relações
sociais que eliminem as diversas concepções e práticas coletivas reprodutoras das
desigualdades, da discriminação e do preconceito social. Para isso, torna-se fundamental
ampliar o acesso da agricultura familiar a serviços públicos e infra-estrutura voltados para a
melhoria da qualidade de vida (educação, saúde, habitação, energia, saneamento,
comunicação, transporte, lazer etc.).
35. Romper com a visão setorial e avançar na implementação de diretrizes, políticas e ações
que fortaleçam dinâmicas estruturais e integradoras de desenvolvimento devem ser
considerados com um desafio central tanto para as organizações sociais da agricultura familiar
quanto para as instituições governamentais responsáveis pela formulação e implementação de
políticas públicas do País. Nesse sentido, a valorização da dimensão territorial ou espacial do
desenvolvimento é indispensável para a viabilização de mecanismos e instrumentos que
assegurem o direito de acesso da agricultura familiar e das populações tradicionais a seus
territórios e aos recursos naturais que dele fazem parte, o surgimento de articulações
territoriais que busquem estabelecer uma agenda local de desenvolvimento e integrar as
políticas públicas favoráveis ao fortalecimento dos espaços rurais, bem como para contribuir
14
com a redução das desigualdades territoriais advindas do próprio processo de
desenvolvimento. Ademais, reconhecer a importância dessa dimensão significa, inclusive,
buscar construir também uma visão positiva de valorização do rural no imaginário coletivo
das populações rurais e urbanas.
36. Por fim, mas não menos importante que as dimensões acima abordadas, é fundamental
que esse projeto de desenvolvimento seja construído a partir da diversidade cultural, artística
e simbólica das diversas identidades coletivas forjadas historicamente. Portanto, essa
dimensão cultural deve valorizar as diversas formas de manifestação e expressão das culturas
tradicionais de cada território ou grupo social, resgatando suas identidades culturais e
preservando, assim, a riqueza e a diversidade do patrimônio cultural.
37. Cabe ainda ressaltar um último desafio, relacionado à transversalidade das ações: a
articulação de ações que integrem, ainda que parcialmente, essas dimensões coloca-se hoje
como uma das grandes demandas das organizações sociais interessadas efetivamente na
transformação das relações sociais predominantes no meio rural brasileiro e, particularmente,
na definição de um novo papel para a agricultura familiar no âmbito de uma estratégia
sustentável e democrática de desenvolvimento para o País.
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