(RE) CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM1: sobre a fundamentação histórica e filosófica Prof. Ms. Luiza de Fátima Amorim Oliveira “O que você sabe sobre este caso?” perguntou o Rei a Alice. “Nada”, respondeu Alice. “Absolutamente nada?” insistiu o Rei. “Absolutamente nada”, confirmou Alice. “Isto é muito importante”, disse o Rei, voltando-se para os jurados. [...] O coelho branco pôs os óculos. “ Por onde devo começar, por favor, majestade?” Perguntou. “Comece pelo começo,” disse o Rei gravemente, “e prossiga até chegar ao fim; então pare.” Lewis Carroll A intenção da autora é analisar o início da formação histórica dos direitos fundamentais do homem, entenda-se que nesta perspectiva esses direitos são construídos, assim coube nesse objetivo o trocadilho: re-construção, ao elucidar o movimento dialético no processo de positivação dos direitos do homem. Urge ressaltar que um dos livros aplicados nesta tarefa é intitulado: A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com Hannah Arendt , que assume outro teor teórico e político na análise dos direitos humanos, mas que é imprescindível nesta fala. Ademais, “o ato de conhecer é necessariamente um ato de reconstruir, de aprimorar os conhecimentos anteriores. O conhecimento como um processo de retificações de verdades estabelecidas, tornando 1 Artigo escrito pela Professora e Mestra Luiza de Fátima A. Oliveira, Mestra em Ordem Jurídica Constitucional pela Universidade Federal do Ceará, Professora em Direito Constitucional e Direitos Humanos e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade São Luís. Este artigo é uma adaptação (que também pode ser entendido como um corte teórico) do primeiro capítulo da dissertação defendida para a obtenção do título de Mestre em Ordem Jurídica Constitucional sob a orientação do Prof. Dr. Willis Santiago Guerra Filho na Universidade Federal do Ceará (UFC), cujo tema é A (não) aplicabilidade dos direitos fundamentais do homem: os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente como possibilidade técnico – jurídica de concretização dos direitos fundamentais da criança e do adolescente. menor o erro anterior, é um dos pontos centrais da epistemologia contemporânea” (MARQUES NETO, 2001, p.14). Assim, o processo de reconstrução é inerente ao ato cognitivo: o sujeito não vai em branco observar o objeto. Quem não sabe não pesquisa. Ele leva consigo todo o conhecimento já acumulado historicamente e tenta superá-lo para construir novos conhecimentos. [...] É por isso que os epistemólogos dialéticos costumam dizer que “o dado não é dado: é construído” (MARQUES NETO, 2001, p.14-15, grifo nosso). Aqui, a abordagem é dialética, logo a criatividade e a poética estão imbricadas na construção teórica, enquanto um traço de imaginação (científica). Por onde começar? Se a história nos reserva os mistérios daqueles acontecimentos que não se deixaram contar? A proposta desse artigo delimita-se no primeiro instante da história dos direitos humanos, como ponto de partida do pensamento que se pretende aqui refletir. O objetivo então é discutir sobre a problemática que ronda os direitos do homem, e tem suas raízes fincadas na história, a sua não efetivação. Por que não re-me-xer no solo da história, movimentando-a no tempo? Qual é esse sentido histórico, senão aquele gestado pelos homens, seres pensantes? A história que é tão mutável quanto à própria humanidade2. 2 A história ‘acontecimental’ sugere Furet, não se deduz da especificidade de seu objeto. Ao ocupar-se com uma reconstituição dos encadeamentos dos fatos que esteja fundamentada na observação exata, é uma história ingênua e dogmática que presume estar o sentido inscrito no painel e dissimula a operação da perspectiva. Em razão de seus preconceitos é que se deve distingui-la de uma história das estruturas dos modos de produção, das técnicas, das mentalidades ou dos costumes, de uma história das estruturas ou da longa duração – supondo que estas, por sua vez, não caiam na cilada do objetivismo e de modo algum porque lida com o acontecimento. Ao contrário de uma opinião difundida (e curiosamente compartilhada por defensores de escolas diferentes), não há uma oposição entre dois modos do conhecimento histórico que procedem da natureza do objeto: unicamente se opõem duas maneiras de conceber a relação com o objeto, ou porque nele o conhecer se ignora, ou porque o conhecer sabe o quanto está comprometido com suas operações e se deixa submeter às provações de sua resistência. Sem dúvida, o acontecimento parece rebelde à conceituação. Porém, o único motivo que faz com que o historiador apreenda-o como algo já nomeado, já comprometido com o sentido dado por quem foi ator ou testemunha, é que torna o historiador mais estreitamente preso à ilusão segundo a qual o que aparece se confunde com o que é, sendo forçado, para construir o objeto, a começar por ‘desconstruí-lo’ a partir do lugar em que está situado. (LEFORT,1991, p. 114) Ao admitir-se que a história é fundamental para se fazer uma (re) construção dos direitos humanos, não se poderia falar de direitos humanos sem deixar de localizá-los historicamente em uma tentativa de “reabrir na história um caminho do qual ela, no seu conjunto, se afastou: o caminho que a liga à reflexão política” (LEFORT, 1991, p.115). Ora, falar de direitos humanos é falar de símbolos e rupturas históricas, que se deram através de lutas políticas travadas entre os homens, em busca de melhores condições de vida dentro do sistema comunitário3, no qual ele (o homem) se dispôs livremente a viver, organizado politicamente em sociedade. É assim que se entende ser os direitos do homem também um símbolo, que representa tanto o nascimento de uma nova Era histórica, a Modernidade, quanto possibilita a abertura política do sistema (moderno) através da racionalização da nova idéia de direitos do homem, é este homem livre e individualizado que agora é emancipado a sujeito de direitos4, apto a exercê-los e reivindicá-los, bem Falar o que é sistema/comunitário, estrutura que “compartimentiza” o homem e o orienta pelas leis, pelo Direito e que tem uma idéia dominante, pois exerce uma representatividade perante a sociedade, bem como faz o seu alinhamento cronológico e linear dos paradigmas: cosmológico, teocêntrico e antropológico. 4 Insere-se aqui uma crítica sobre a terminologia sujeito de direito. Antes de tudo, em uma linha psicanalítica entende-se “sujeito de” como aquele que se “submete a”, “se as-sujeita a”; pois bem, a criação do sujeito de direito é a instauração contratual (teoria contratualista) de que o homem livre cria a lei para viver bem uns com os outros em sociedade (indivíduo x indivíduo). Logo, sendo os homens os criadores da lei, obedeceriam legitimamente a si mesmos. A obediência moderna é a obediência legítima: o homem não obedece porque é natural obedecer ou porque obedece a Deus, mas obedece, porque obedece a si mesmo. É uma das grandes perguntas da filosofia política: porque os homens obedecem? Como um dogma de fé, o Contrato Social – matriz teórica da modernidade – institui a obediência legítima, uma vez que todos livremente criam a Lei para o bem de todos. Então, os homens modernos submetem-se à Lei?! Segundo os escritos de Etienne de La Boétie no “Discurso da Servidão Voluntária”, os homens obedecem porque querem obedecer, o que fica expresso logo no título do seu texto: a tese da obediência humana voluntária (LA BOÉTIE, passim). Claude Lefort em seu livro “Pensando o político”, ao citar Tocqueville, diz que existe uma “servidão mansa” dos homens impedindo-os de lutar pela garantia dos seus direitos, impedindo-os de agir politicamente (Cf.LEFORT, 1991, p.42, grifo nosso). Mais adiante, falar-se-á, novamente, sobre o vínculo obrigacional do homem com o seu governo. 3 como conquistar o reconhecimento de novos direitos, segundo as suas necessidades e os seus anseios5. A partir do ideário liberalista dos direitos humanos decorreram várias mudanças, dentre elas a nova delimitação dos espaços institucionais no cenário moderno: o público e o privado; que já era visualizado na Antiguidade Clássica, dissolvendo-se na Idade Média. Isto, a oscilação simbólica entre o lugar do privado e o lugar do público na estruturação moderna das sociedades, revela-se como sendo um dos fatores da mudança de fundamento acerca das razões modernas que explicam a coexistência humana que deve ser pacífica sob o controle da Lei, um esteio teórico, e racional. Com as rupturas de paradigmas observa-se a variação nos campos de incidência dos poderes, políticos, econômicos e jurídicos; instaurando-se uma dinâmica na governabilidade, ou seja, ao poder de comandar e a irredutibilidade de obedecer dá-se fundamentos para os devidos fins do governo. Na Modernidade de origem liberal, esse “diálogo” vincula-se através da legitimidade entre o Estado de Direito e a Sociedade civil com o objetivo de proteger os direitos naturais do homem uma vez que esses direitos do homem ocidental também nascem historicamente atrelados a uma fundamentação antropológica e universalizante6. Segue-se então que o desafio em se debruçar sobre a problemática dos direitos humanos A idéia de que os direitos humanos são uma categoria histórica é analisada por Bobbio – os homens criam os seus direitos, ampliando-os, segundo a sua história, em contraposição à idéia naturalista e absoluta dos direitos humanos, criados junto com o paradigma moderno do direito natural (Cf. BOBBIO, 1992). Adentra-se-á nesta análise neste trabalho. 6 Falar en passant que a proposta é pensar os direitos humanos com criticidade, numa tentativa constante e interminável de desvelamento das idéias que encapam os direitos humanos de uma verdade cristalizada de universalismo e naturalidade, inviolabilidade, imprescritibilidade e sacralidade. Então, se está trabalhando com um signo linguístico e ideológico, pelo conjunto de significados que ele carrega perante a sociedade moderna. É ideológico, pois se nutre uma imagem idealizada de emancipação humana e progresso sóciopolítico e econômico. Não é simplesmente encarar a ideologia no viés marxista enquanto mascaramento da verdadeira realidade (qual é a verdadeira realidade?), mas em uma análise, até certo ponto simples, um conjunto sistemático de idéias que institui algo, tornando-o possível de concretização e com forte carga subjetiva. 5 no tocante a sua inviolabilidade e consequentemente a sua (não) aplicabilidade, centra-se no processo histórico de banalização e esvaziamento axiológico desses direitos, o que dentre outras razões, tornou essa categoria meramente simbólica (devido à representatividade) e assistencialista, restringindo o seu alcance e minimizando o seu significado histórico, na(s) crise(s) institucional(is) e política(s) que geram óbices a aplicabilidade deles. Daí a exposição teórica reclamar uma reflexão sobre o poder institucionalizado, o poder governamental, o macropoder, o poder estatal, o paradigma moderno do Estado de Direito, enfim a pergunta recai sobre o fundamento legítimo e os limites desse fundamento criado para solucionar, pelo menos a nível teórico e político, a tragédia que assola a modernidade, a quebra dos pactos entre os homens: vida, paz e segurança. O desafio centra-se concomitantemente numa reflexão que atravessa a Ordem Jurídica Constitucional como lugar jurídico autorizado a proteger os direitos do homem. Mas bastaria a constitucionalização formal deles? Qual é o fundamento legítimo do Estado Constitucional? Qual é a força normativa da Constituição? E por outro lado, qual é a tarefa da sociedade civil? – como a sociedade constrói os seus direitos e mais, como ela luta para efetivá-los? Se a crise dos direitos humanos perpassa esses âmbitos ideologizados é imprescindível uma visita reflexiva nestes lugares teóricos onde reinventa-se a realidade, primeiramente, pela mudança e deslocamento no seu ponto de vista, na sua interpretação sobre esses lugares. Talvez, principalmente, devido a uma postura do homem historicamente acrítica e de não consciência dos seus direitos, ou devido a uma falta de desejo, tem-se vivido o descrédito funcional e transformador quando isto tem implicado na inefetivação dos direitos humanos. É pela via do discurso científico, técnico e acadêmico, que se pretende legitimar a interlocução política do saber que instiga a transformação e a criação do novo dentro de uma perspectiva concretizante do pensamento. Como é possível imaginar o novo? Esta é a grande questão que precisamos formular se quisermos que nossas vidas sejam articuladas por uma mentalidade democrática. Devemos, portanto, ir à procura da imaginação democrática. Temos, assim, uma relação estreita entre o sonho, a imaginação e autonomia. Esta última, definiria como o direito de imaginar e de inventar nossos próprios desejos (WARAT, 1988, p.18, grifo nosso). Então, o escafandrismo histórico na descoberta verdadeira acerca dos direitos humanos não só instiga os diálogos atravessados na racionalização deles, ao se reconstruir e ao se re-avaliar as suas origens, mais se faz indispensável para recuperar o sentido concreto desses direitos, pois sem o seu viés transformador, esvaia-se a densidade filosófica, histórica, política e ética e torna-se infértil seu terreno de aplicabilidade. Esta cruzada estende-se entre fábulas e realidades, entre poesias e leis. À luz da modernidade: a era dos direitos7 “Nesses pontos limiares da história exibem-se – justapostos quando não emaranhados um no outro – uma espécie de tempo tropical de rivalidade e desenvolvimento, magnífico, multiforme, crescendo e lutando como uma floresta selvagem, e, de outro lado, um poderoso impulso de destruição e autodestruição, resultante de egoísmos violentamente opostos, que explodem e batalham por sol e luz, incapazes de encontrar qualquer limitação, qualquer empecilho, qualquer consideração dentro da moralidade seu dispor.[...].Nada a não ser novos porquês, nenhuma fórmula comunitária; um novo conluio de incompreensão e desrespeito mútuo;decadência, vício, e os mais superiores desejos atracados uns aos outros, de forma horrenda, o gênio da raça jorrando solto sobre a cornucópia de bem e mal; uma fatídica simultaneidade de primavera e outono. [...] Outra vez o perigo se mostra, mãe da moralidade – grande perigo – mas desta vez deslocado sobre o indivíduo, sobre o mais próximo e mais querido, sobre a rua, sobre o filho, de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e secreto recesso do desejo e da vontade de alguém”. Nietzsche 7 A expressão A Era dos Direitos é o título do livro do Prof.º Norberto Bobbio, mas aqui a utilização dessa expressão além de homenageá-lo, faz-se através da licença acadêmica observada na fundamentação teórica que por ora se quer instigar no leitor; esse é um dos livros mais referenciados neste trabalho, fora outros é claro. Especialmente neste capítulo tentar-se-á desenrolar a era dos direitos no contexto histórico e político da modernidade ocidental. A pertinência dessa expressão nos revela uma “era” simbolizada por saltos (para frente e para trás) entre promessas ilusórias e reais, mais, sobretudo, vista sob o êxito do processo positivo de construção dos direitos fundamentais humanos. Ao despertar da modernidade, o homem moderno acorda em sua velha e nova vida. E o que há de tão diferente na história a ponto de simbolizar o novo? É ilusório se pensar a história através de linearidades cronológicas e cartesianas, mas é inevitável discorrer sobre a evolução humana8 sem aportar na análise das rupturas simbólicas que significam as quebras de fundamentos da vida social e política do homem, pois mesmo que essas mudanças limitem-se à formalização estrutural de um novo modo de conviviabilidade humana é sobre a significação do novo valor, do novo conteúdo, do novo ar que invade o homem moderno, da nova consciência humana que se torna possível às transformações. “As classificações, os lugares atribuídos pela ciência para o mundo e os desejos são também tentativas de conserto, um enclausuramento a tudo o que por natureza não admite gaiolas” (WARAT, 1988, p.14, grifo nosso). Não é à toa que o sustentáculo teórico/paradigmático decai para imediatamente ser substituído por outro, o que representa uma superação de crise(s) por meio da qual se institui nova fundamentação, novo paradigma, entremeados por novas descobertas, como sinal linear de progresso e emancipação humana (e política). Mas afinal o que seria concretamente o progresso e a emancipação humana com a chegada da modernidade? A descoberta racional do Homem de si mesmo, a descoberta da Razão! “Vamos imaginar”: Como se vivia no mundo de ali... Quais as novas forças criadoras...A importância do capital 8 O processo de elaboração do conhecimento científico é feito por retificações, superações e aperfeiçoamentos, segundo as epistemologias dialéticas, como as de Gaston Bachelard, que discute acerca do “erro” no processo do conhecimento, inclusive o científico; Jean Piaget, que fala da integração do meioambiente no processo do conhecimento, os aspectos psicológicos e sociológicos, Hilton Japiassu, o próprio Karl Marx, quando dão ênfase a história na elaboração da ciência. Ainda que se fale em evolução do Homem ou do ato do conhecimento científico nas suas descobertas. A trajetória do conhecimento científico ocorre através de cortes, saltos, rupturas; aparentemente ela é contínua, mas efetivamente realiza-se com descontinuidades, ou seja, acumulação por descontinuidade. (MARQUES NETO, 2001, passim). A História é um dos fenômenos constitutivos da elaboração do conhecimento científico e fundamental. “Se a História fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina” (KUHN, 2000, p.19). instituído pela nova classe burguesa...Quem eram esses burgueses...Infinitos são os questionamentos (e as fantasias ou fantasmas) que rondam esse momento histórico de transição para o novo mundo. Quem é o homem moderno? [...] que a razão é a essência do homem, já é dividi-lo em dois, coisa que a tradição clássica nunca deixou de fazer. Esta acrescenta, distinguiu no homem o que é a razão, e que, por isso mesmo, é verdadeiramente humano, e o que não é razão, e que, por este fato, parece indigno do homem: instintos, sentimentos e desejo (WARAT, 1988, p.14). A modernidade surge cheia de contradições numa climatização letárgica e eufórica de acontecimentos, aonde há movimento e inércia, explosões e calmarias, nebulosidades e clareiras, luzes e sombras, que ofuscam a visão límpida da realidade (se é que é possível a apreensão do real, sem impregná-lo de desejos, se é que o real exista absolutamente em seu estado puro) que deixa o homem à deriva, perdido e aficcionado por verdades criadas; como atuar no papel de protagonista da “aventura moderna”, qual é o roteiro dessa história? Existe um tipo de experiência vital experiência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres em todo o mundo, hoje. Designarei esse conjunto de experiências como ‘modernidade’. Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor, mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos e tudo o que sabemos, tudo o que somos. A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, podese dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, luta e contradição, de ambiguidades e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual, como disse Marx: ‘tudo que é sólido desmancha no ar’ (BERMAN, 2000, p.15) Não existe uma data específica da entrada pelas portas da modernidade ocidental, a era moderna inicia-se simbolicamente com a Tomada de Constantinopla pelos Turcos, mas é certo que os turbilhões de acontecimentos impulsionaram essa passagem - novas descobertas nas ciências físicas e as novas incursões filosóficas, a decadência do feudalismo e do Antigo Regime, o ressurgimento das cidades, com os burgos; a dissolução do poder monárquico e a instauração de um novo poder político, um poder democrático, a criação centralizadora e autoritária do Estado burguês moderno, ou seja, Estado Liberal Clássico e de uma nova sociedade civil, o desenvolvimento do comércio: o mercantilismo e a industrialização propulsionados pela expansão marítima através das grandes navegações, as inovações tecnológicas com as máquinas, a explosão demográfica e a divisão do trabalho, a formação de classes, as Reformas protestantes, a queda da Igreja e da Inquisição, numa corrida desenfreada do homem por um lugar sob o sol. Rapidamente, a sociedade ganha novas estruturas de funcionamento e nova ideologia. A diferença fundamental entre o religioso e o revolucionário é que o primeiro visa à renovação da sociedade através da renovação do homem, o segundo à renovação do homem através da renovação da sociedade. São dois modos distintos de conceber a “transformação”. Ambos partem da mesma exigência de uma transformação radical e por isso são comparáveis. (Não faria sentido estabelecer uma comparação entre uma concepção religiosa da história e uma concepção pragmática, ou entre uma concepção revolucionária e uma cética ou fatalista, porque seriam incomensuráveis.) São comparáveis, o religioso e o revolucionário, porque ambos experimentam uma profunda insatisfação com o mundo e crêem firmemente que possa existir, perto ou longe, próximo ou futuro, aqui ou em outro lugar, um mundo diferente, no qual os homens viverão como irmãos, livres e iguais. ‘Liberte, égalité, fraternité’ é um ideal a um só tempo religioso e revolucionário (BOBBIO, 2000, p. 342-343). Não se sabe definir se os acontecimentos são engendrados primeiramente pelos novos movimentos de idéias renascentistas, iluministas e liberais, desse Século das Luzes, ou se pela necessidade do homem medievo em romper com a opressão religiosa e miséria humana vivenciadas pelas antigas estruturas econômicas feudalistas, ou seja, em romper com o Ancien Régime, se é uma ruptura provocada pelo econômico ou pelo social, pelo todo ou em parte, com consciência ou não (se é que é possível tais separações); definir quais as reais razões das mudanças ou quem fundou as razões da modernidade, quem pensou a modernidade. A arte dialética desses aglomerados fenômenos sociais, políticos, econômicos, religiosos, e por que não dizer morais (os valores do homem medieval são aos poucos superados pelos valores do moderno pensamento ocidental), desenha a estética moderna. No mundo, presenciava-se o reflexo transformador dos acontecimentos gerados na Europa, eclode as Revoluções Americanas (1776) e Francesa (1789). Surgem assim as primeiras Declarações de Direitos do Homem e com elas as primeiras Constituições. Fica convencionado por Lei: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos” (BRANDÃO, 2001, p.43, grifo nosso). A partir daí, todos os homens são instituídos sujeitos de direitos (Cf. nota 09). É significativo que os dois principais centros dessa ideologia fossem também os da dupla revolução, a França e a Inglaterra; embora de fato as idéias iluministas ganhassem uma voz corrente internacional mais ampla em suas formulações francesas (até mesmo quando fossem simplesmente versões galicistas de formulações britânicas). Um individualismo secular, racionalista e progressista dominava o pensamento ‘esclarecido’. Libertar o indivíduo das algemas que o agrilhoavam era o principal objetivo: o tradicionalismo ignorante da Idade Média, que ainda lançava sua sombra pelo mundo, da superstição das igrejas (distintas da religião ‘racional’ ou ‘natural’), da irracionalidade que dividia os homens em uma hierarquia de patentes mais baixas e mais altas de acordo com o nascimento ou algum outro critério irrelevante. A liberdade, a igualdade e, em seguida, a fraternidade de todos os homens era slogans. No devido tempo se tornaram os slogans da Revolução Francesa. O reinado da liberdade individual não poderia deixar de ter as consequências mais benéficas. Os mais extraordinários resultados podiam ser esperados – podiam de fato ser observados como provenientes – de um exercício irrestrito do talento individual num mundo da razão.(HOBSBAWM,1997,p.37). Note-se que a formalização jurídica da liberdade e da igualdade, bem como a própria racionalização do indivíduo e da Sociedade moderna em conjunto com a criação do Estado de Direito e todo o projeto da modernidade representa um “avanço” da humanidade. As concretizações reais desse projeto moderno estão submetidas à política, ao Direito e ao próprio Estado em face da realidade contemporânea: as promessas da modernidade foram (ou estão) realizadas? Tenho vindo a afirmar que nos encontramos numa fase de transição paradigmática, entre o paradigma da modernidade, cujos sinais de crise me parecem evidentes, e um novo paradigma com um perfil vagamente descortinável ainda sem nome e cuja ausência de nome se designa por pós- modernidade. Tenho mantido que essa transição é sobretudo evidente no domínio espistemológico: por de baixo de um brilho aparente, a ciência moderna, que o projecto da modernidade considerou ser a solução privilegiada para a progressiva e global racionalização da vida social e individual, tem-se vindo a converter, ela própria, num problema sem solução, gerador de recorrentes irracionalidades. Penso hoje que esta transição paradigmática, longe de se confinar ao domínio epistemológico, ocorre no plano societal global: o processo civilizatório instaurado com a conjunção da modernidade com o capitalismo e, portanto, com a redução das possibilidades da modernidade às possibilidades do capitalismo entrou, tudo leva a crer, num período final (SANTOS, 1999, p.34, grifo nosso). Entretanto, continuar-se-á na modernidade, se encara a transição dela devido às crises que decorrentes das insatisfações e instabilidades reais assolam o nosso tempo, isso porque as rupturas paradigmáticas são cada vez mais estimuladas pelos novos pensamentos iluministas e (neo)liberais, se fazendo necessário pensarmos nessa racionalização do projeto moderno que foi fortemente influenciado, senão criado através do campo filosófico, pelos teóricos contratualistas, destacadamente - Hobbes, Locke e Rousseau. Contudo, aqui não se tem o objetivo de adentrar nas idéias destes pensadores, mas ressaltar, e não poderia deixar de sê-lo, a ingerência fundamental dos seus pensamentos para a construção do arcabouço moderno de criação de direitos. Então, sem violar a perenidade desses oráculos da História do pensamento ocidental, reserva-se neste artigo a provocação reflexiva acerca dos fundamentos dos direitos do homem na modernidade chamando-se a atenção para a complexidade inicial no lócus de formação desses primeiros direitos intitulados direitos de liberdade, registrase que é imprescindível a interlocução com os contratualistas já citados, uma vez que são inelimináveis para a compreensão do nascimento dos direitos do homem. Sabe-se também que é uma perda irretratável a falta de outros diálogos teóricos, mas respeita-se assim o profícuo espaço de fala orientado para este artigo, detendo-se nesses pontos (apriorísticos) fundamentais, ainda que não os esgote aqui, o que também seria impossível dentro da infinitude de questões circunscritas ao momento destacado aqui. Assim, desde logo se esclarece ao leitor que a intenção essencial é abrir novos debates na arena teórica e política sobre os direitos fundamentais humanos, realizando um deslocamento de foco, se possível! Para que se possa sair de pontos já desgastados pelo senso comum por isso uma volta à fundamentação histórica e filosófica dos direitos humanos no início da modernidade. Do exposto, termina-se essa breve narrativa histórica do lugar de nascimento dos direitos humanos com a idéia central da modernidade para a explicação (legitimadora) racional e política de criação do Estado de direitos, o contrato social. A idéia moderna do direito natural do homem: o contrato social “Tu, então, que baixas o rosto para o chão, confirmas a autoria desse feito, ou negas? Fui eu autora; digo e nunca negaria. Já podes ir na direção que te aprouver, aliviado e livre de suspeita grave. Agora, dize rápida e concisamente: sabias que um edito proibia aquilo? Sabia. Como ignoraria? Era notório. E te atreveste a desobedecer às leis? Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram”. Sófocles Numa dança nostálgica e vital, as idéias da Ilustração fertilizam a história construindo um novo homem. Como se citou, Bobbio (2000, p.342): “A diferença fundamental entre o religioso e o revolucionário é que o primeiro visa à renovação da sociedade através da renovação do homem, o segundo à renovação do homem através da renovação da sociedade”. A modernidade ocidental desloca o homem para o centro do pensamento, o novo paradigma é o antropocentrismo. Com a descoberta da razão humana, também se descobre o direito natural do homem, ou seja, o direito é intrínseco a natureza do homem. O direito natural do homem é o direito próprio da condição social humana. É o direito individual do homem.9 “Los direchos subjetivos – o humanos -, [...], son um discurso organizador del estado moderno. Se trata de uma técnica, como dijo Kelsen, propia de cierto tipo de sociedad, la capitalista, em la que el control queda em manos del controlado”(CORREAS, 1993, p.13). A nova tese do direito natural representa um salto axiológico na história da humanidade. Não se quer dizer que não se falava em direito natural antes, mas os fundamentos eram outros: cosmológico e teocêntrico. No princípio da idade moderna, quando a natureza era vista como a ordem racional do universo, entendia-se por direito natural o conjunto das leis sobre a conduta humana, que ao lado das leis do universo estão inscritas naquela ordem universal, contribuindo mesmo para compô-la e que podem ser conhecidas por intermédio da razão. Uma vez mais, esse direito pode ser considerado natural, no sentido original da palavra, porque é um direito encontrado pelo homem, não formulado por ele. (BOBBIO, 1997, p. 31-32, grifo nosso) O homem ocidental moderno é individualizado através da criação liberalista da subjetividade jurídica, o direito natural é o direito subjetivo que se institui como direito individual através da concepção orgânica do indivíduo, diz-se daquele que não se divide; cria-se a liberdade individual: o homem é indivíduo e livre. Como bem afirma Berman (2000, p.21): “Em tempos como esses, ‘o indivíduo ousa individualizar-se.’ De outro lado, esse ousado indivíduo precisa desesperadamente ‘de um conjunto de leis 9 Para falar mais uma vez de Norberto Bobbio, o campo das definições do direito do homem é muito vago, quando se quer um conceito, o adequado é fundamentá-lo, e também não existe fundamento absoluto; Então, é tautológica essa definição aparente dos direitos ora explorada no texto, diz ele (BOBBIO, 1992, p.17). O sistema jurídico como racionalização do direito dá ponta pé inicial no jusnaturalismo, por isso os teóricos jurídicos que defendem a tese do direito natural não podem falar de direitos humanos sem falar dos fundamentos que eles encontram na natureza humana; que também se vai abordar quando logo mais se entrar nas teorias contratualistas, o que não esgota a questão. Para Correas (1993, p.10-11), a política delimita o território dos direitos humanos, “la concepción política la que estabelece las dimensiones y contornos de esa naturaleza humana”. Si las más disímiles y hasta opuestas actitudes políticas pueden presentar sus aspiraciones como derechos, el problema, entonces, se convierte em éste:? Por qué em nuestra cultura no hay outra manera de plantear el deseo de ver realizada cualquier aspiración, que hacerlo em términos de derechos? (CORREAS., 1993, p.11) próprias, precisa de habilidades e astúcias, necessárias à autopreservação, à autoimposição, à auto-afirmação, à autolibertação’”. Antes o homem medievo era qualificado segundo o seu lugar na estratificação social, o direito medieval era o direito divino e atribuído aos homens de status social, logo o direito subjetivo na Idade Medieval era um privilégio de poucos, aqueles que ocupavam “o poder” em nome de Deus, pois a legitimidade do exercício do poder e da obediência do poder adviria de Deus, caracterizando um dogma de fé. - Mas qual é o nascedouro ideológico que origina essas idéias? La explicación marxista de este fenómeno discursivo ha rondado em torno de dos ideas: la sepación moderna entre estado y sociedad, entre estado y individuo, y la individualización – que es la causa de la primera -, de los portadores de mercancías en entidades con la voluntad necesaria para condurcirlas al mercado, puesto que éstas no pueden ir solas. Lo cierto es que la ideología de los derechos humanos surgió solamente em los albores del mundo burguês. Son un discurso que constituye a los hombres en ciudadanos, es decir, en individuos de cara a su otro, que es el estado. El discurso ha desarmado las relaciones anteriores, ha atomizado a los elementos, los ha convertido en portadores de derechos que pueden enajenar, a los cuales pueden reununciar, a los que es necesario ‘proteger’(CORREAS, 1993, p.13). Essa parição das idéias liberalistas tem o seu lugar de criação ideológica no Contrato Social. Mas o que é o Contrato Social? Senão um signo?! É uma hipótese do pensamento para justificar a criação da Modernidade, é a matriz filosófica da modernidade ocidental. Através das teorias filosóficas contratualistas e mesmo dos acontecimentos históricos, dois fatores que a dialética moderna encarrega-se de associálos, inventa-se novas roupagens democráticas às categorias políticas: Estado, Nação, Povo, Sociedade, e direitos do homem, que simbolizam as pilastras formais da estrutura moderna, em cada uma delas tem-se um novo significado na compreensão do funcionamento social, político, jurídico, ético e econômico.(Cf. LEFORT, 1991, p.6269). O Direito Natural laicizado difundiu largamente, nos séculos XVII e XVIII, a tese do contrato social como explicação da origem do Estado, da Sociedade e do Direito. A explicação contratualista ajusta-se à passagem de um Direito baseado no status para o Direito baseado no indivíduo, numa sociedade na qual começa a surgir o mercado e a competição. Com efeito, no contratualismo a relação autoridade-liberdade fundamenta-se na auto-obrigação dos governados, resolvendo-se desta maneira um dos problemas básicos da Filosofia Jurídica individualista, que é o de explicar como é que o Direito, que deve servir aos indivíduos, pode também vinculá-los e obrigá-los. Esta vinculação provém de uma auto-obrigação no momento de celebração do contrato social, na passagem do estado de natureza para a vida organizada em sociedade. Afirma-se, desta maneira, que o Estado e o Direito não são prolongamento de uma sociedade natural originária e orgânica como a família, mas sim uma construção convencional dos indivíduos, ao saírem do estado de natureza. Por outro lado, o contratualismo oferece uma justificação do Estado e do Direito que não encontra o seu fundamento no poder irresistível do soberano ou no poder ainda mais incontrastável de Deus, mas sim na base da sociedade, através da vontade dos indivíduos. (LAFER, 2001, p.121-122, grifo nosso) A tese do contrato social supõe uma face pré-social do homem em que ele viveria em um estado de natureza. Tem-se aí um plano imaginário que antecederia a arquitetura da modernidade. É no estado de natureza que o homem encontra as dificuldades intransponíveis para a sua sobrevivência. Como bem viver? Acentuam-se, mais uma vez, as marcas gregas e cristãs do homem: a virtuosidade em si viver bem e a salvação, mas com ressalvas: a necessidade do homem individual, e não da cidade, que se iguala a todos que vivem naquele estado, no qual a natureza humana pulsa absoluta, plenamente livre, corolário dessa hipótese é a idéia da natureza do homem. Além da especulação criada acerca da ética humana; a salvação humana é a racionalização do seu projeto de vida, visando sobreviver aos seus próprios instintos, não propriamente a salvação d’alma. Faz-se necessário que se crie uma Lei impessoal e assim legitima para proteger o homem de si mesmo, uma vez que esta Lei disciplinaria a natureza do próprio homem, ao regular as suas ações em sociedade, protegendo os seus bens maiores, como a vida e o patrimônio; ordenando-os e controlando-os em sociedade. É sofrida a necessidade da sociabilização humana. Como conviver bem uns com os outros? Os indivíduos realizariam então o Contrato Social através dos pactos uns com os outros, convencionado a vida em Sociedade. Destarte, cada contratualista tece o seu fundamento do Contrato: por que fazer o Contrato; e cada fundamento estar pautado na hipótese do estado de natureza e o por que o homem não conseguir viver nesse estado de leis naturais plenas e absolutas. Siendo esto así, resulta que em el lenguaje mismo, en el discurso que nos constituye como ciudadanos, y que por tanto nos pone como sujetos en el orden social, están los derechos como la única idea que permite decir la reclamación de la satisfacción de los desejos insatisfechos. Mientras exista esta sociedad, es decir, mientras los hombres sean constituídos como sujetos por el mismo discurso, la reivindicación de ‘derechos’ seguirá siendo el único discurso posible para protestar contra la opresión aunque no se este aunte um tribunal. (LAFER, 2001, p.14) Eis aí a matriz de uma legitimação ficcional acerca da obediência política na modernidade ocidental, que tem vários desdobramentos fundamentais para a aplicabilidade dos direitos humanos ou direitos fundamentais do homem, sob o ponto vista político o Estado tem limites e freios no exercício de seu poder (antes absoluto) que de modo algum pode ser arbitrário e sob o ponto de vista social, o Estado deve cumprir com sua tarefa soberana de efetivação desses direitos, numa primeiríssima dimensão das liberdades humanas. O Estado deve garantí-las, garantindo assim os demais direitos fundamentais do homem, essa é ainda a tarefa desafiante da modernidade.