A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A MORTE Advertência de uma verdade infalível Fato que alguns atemoriza e a outros consola Somos passageiros marcados Por efêmera trajetória inevitável Que no final a todos os homens iguala. Ovídio Junqueira da Silva16 A MORTE E A VIDA Quando Ela aparece, sorrateiramente,pela manhã Começa a me possuir Todos os caminhos me levam a Ela Sinto-me monopolizado Desligado do mundo exterior Um terrível vazio apossa-se dentro de mim Não me possuo Sou possuído A VIDA parece esvair-se Um fio tênue me liga a VIDA Através dele procuro a libertação Através dele sair da sufocante prisão mortal Quando estou possuído pela VIDA A MORTE como que não existe Quando estou possuído pela MORTE A VIDA como que não existe Quando estou com UMA Parece que a OUTRA não existe Quando estou com a VIDA O mundo sorri e fica claro O tempo flui rápido e agradável Quando estou com a MORTE O mundo fica escuro e lento O tempo flui lento e desagradável Quando estou com as duas O mundo fica com diferentes tonalidades O tempo flui com a consciência da alteridade A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A reflexão sobre a morte deveria fazer parte dos programas educacionais administrados aos profissionais da saúde, que muitas vezes encontram-se completamente despreparados para o acompanhamento de pessoas nas fases terminais da existência. O estudante de medicina, ao entrar em contato pela primeira vez, durante as necropsias, com a nudez do cadáver, a abertura do corpo e suas cavidades e o odor das vísceras, precisa encarar a realidade da morte. As reações costumam ser as mais diversas: desde um silêncio respeitoso, uma angústia sem fim, com mal-estar e náuseas, até um olhar indiferente ou uma atitude piadista (jocosa), para encobrir a angústia. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO O contato com a morte provoca diferentes emoções, que estimulam certa dose de negação desse fato da vida. A atividade do profissional de saúde implica uma inevitável necessidade de aprender a lidar com a morte. Epicuro (filósofo grego – 341 a. C. a 270 a. C.) escreveu que, quando o homem está vivo, a morte parece não existir e, quando ocorre, não se é mais; logo, a morte não existe. A morte foi representada na arte, na literatura (tragédias gregas e de Shakespeare), na poesia, etc. e pode ser narrada por meio da história. Leon Tolstói, em seu livro sobre a angústia de um enfermo perante o futuro demolidor, descreveu aspectos humanos frente à morte ao narrar a morte de Ivan Ilitch. Uma súmula da novela deste grande escritor foi publicada em 1986 na Revista do Incor, em artigo do Prof. Luiz V. Decourt. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A vida de Ivan é descrita como uma vida insípida, superficial e vulgar, voltada para aspectos da hipocrisia de um ambiente egoísta e imediatista, desprovido de sentimentos de solidariedade. Com o desmoronamento corpóreo e psíquico causado pela doença, Ivan conheceu a indiferença das pessoas sadias e até mesmo o tédio que provocava nelas. Tolstói descreve a reavaliação do sentido da vida que Ivan vivenciou nesta passagem. Ele percebeu que, em sua condição de paciente terminal, estava atormentando seus familiares; embora eles lamentassem a sua morte, sentiriam alívio com ela. Tolstói tenta demonstrar, nesse romance, que na passagem da vida para a morte, Ivan tomou contato com o sentido de sua vida. Os gregos antigos consideravam que a morte era uma necessidade da natureza (Ananké). Atualmente, não se aceita a morte com esta passividade, e surge a necessidade de adiá-la a todo custo. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Toda a nossa existência individual é apenas um instante fugaz, que transcorre entre a nossa primeira inalação de ar e o nosso suspiro final. O que faremos, no espaço de tempo de vida que nos resta, para encontrar um sentido de vida mais abrangente, antes que a morte venha nos buscar? Sabemos que há uma resistência óbvia das pessoas a pensar sobre a morte e o sentido da vida. A reflexão sobre a morte, que é a outra face da vida, deveria fazer parte de nossos programas educacionais. Acompanhar uma pessoa amiga às portas da morte e ajudá-la nessa passagem é uma tarefa que concerne a todos nós, e tratase de uma questão de solidariedade. Infelizmente, sete em cada dez pessoas morrem em hospitais e nem sempre estão acompanhadas por seus entes queridos na hora da passagem. Nos hospitais, raramente são abordadas as questões essenciais; não se fala sobre a morte e o sentido da vida. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO No limiar da morte, o paciente tem medo da dor física e da dor mental (solidão, abandono e vivências de perdas). Esses fatores são importantes, pois geram dificuldade de aproveitar o tempo que lhe resta para abrir-se para a transcendência. As vivências de perda ocorrem devido ao estancamento das trocas na relação interpessoal; à degradação física e às vezes mental; à perda da imagem com a qual estava condicionado a identificar-se; à perda do controle das coisas e, sobretudo, da autonomia. Atualmente, o mundo que nos rodeia não nos ensina a arte de morrer. Tudo é feito para esconder a morte e viver sem pensar nela como um projeto, como se o nosso único projeto fosse constituído de eficiência no fazer e ter, em busca de uma felicidade material que com o tempo percebemos não ser suficiente. Observam-se com freqüência moribundos amargurados em seu derradeiro momento, queixando-se do tempo perdido em sua vida e de ter passado ao lado daquilo que poderia ter sido o essencial, que sentem em seu âmago, porém não conseguem decodificá-lo em palavras. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Como os profissionais da saúde podem acompanhar adequadamente moribundos que apresentam estruturas de personalidade tão diversificadas? Diante da morte, o homem é levado a formular questões de ordem espiritual, sobre o sentido da vida. Existem indivíduos para os quais os dogmas e a crença em uma outra forma de vida não são aceitos. Para eles, não há nenhuma forma de continuidade, somente o nunca mais. É importante salientar que aderir a uma crença religiosa pode facilitar o trabalho com esta passagem; sabemos também que é possível viver a espiritualidade sem ter uma religião definida. A espiritualidade é vivida por todo ser que se questiona diante do simples fato de existir, e tem relação com as idéias de valores e transcendência. Somente por meio da espiritualidade (com ou sem religião) podemos entrar em contato com o núcleo mais profundo do moribundo. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Acompanhar a dimensão espiritual do sofrimento do moribundo é uma tarefa obrigatória do profissional da saúde. Atualmente, já existe uma especialidade denominada tratamento paliativo para moribundos.13 É evidente que não se trata, por parte do profissional da saúde, de pregar doutrinas ou dogmas, mas sim de uma atitude de observação e escuta, de acompanhamento solidário, estando com o moribundo nas diferentes fases do luto pelo ego e pela sua relação com a vida, para ajudá-lo a penetrar no âmago de seus valores e encontrar sua própria resposta íntima. Estando preparado por meio do conhecimento das grandes concepções filosóficas, religiosas, míticas, sociológicas e psicológicas, o profissional da saúde irá sentir-se mais bem aparelhado no sentido de ter uma visão mais abrangente sobre a morte e o morrer.3; 13 Além desses conhecimentos, o profissional da saúde deve estar habilitado a ser continente de suas próprias emoções frente à morte. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A falta de referenciais do profissional, bem como sua dificuldade de entrar em contato com a morte e o luto impedirão que possa ajudar o moribundo. Quando a morte não é súbita, dispõe-se de um espaço entre a vida e a morte. Nesse caso, o profissional da saúde, como um verdadeiro parteiro, poderá ajudar o moribundo a parir novas visões de sua vida e do mundo. Desse modo, o tempo outrora ocupado totalmente pelos sintomas passará a ser ocupado pelas reformulações, proporcionando a vivência de continuidade da transcendência para aquele ser. No momento de nosso nascimento, nosso organismo enfrentou o tempo de passagem do útero para o mundo exterior. Neste parto, fomos acolhidos por um parteiro e por outras pessoas. Na passagem da vida para a morte, necessitamos também de bons parteiros ao nosso redor. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A função de omnipotência existe em todo ser humano. Esta função nos leva a buscar o infinito, o interminável, o perfeito, etc. Ela estimula a crença e a necessidade da permanência da vida, sine die. Esta função precisará ser trabalhada na passagem, durante o luto. Nós, ocidentais, não somos preparados para aceitar a impermanência da vida, como acontece na cultura tibetana, que prevê e elabora esta impermanência. É importante alertar que nossa atitude diante da morte é condicionada por pressupostos sociológicos, na maioria das vezes inconscientes, independentes de religião, o que nos leva a crer que o homem comum corresponde a tal representação. Esses condicionamentos nos aprisionam, pois impedem uma visão mais abrangente e diferente daquela que nos habituamos a conceber. Portanto, o alerta deve ser acentuado, pois nossos pressupostos podem nos influenciar no acompanhamento do moribundo. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Se, de um lado, o homem resiste à impermanência da vida, de outro há homens que querem acelerar o processo de morte, pondo fim à sua vida por meio de suicídio. O suicídio é a antecipação consciente ou inconsciente do momento da morte. O que os pesquisadores falam sobre o suicídio? Existem centenas de artigos e livros sobre a antecipação da morte por meio do suicídio. No Brasil, há várias contribuições sobre o tema. Em 1981, Cassorla4 defendeu uma tese sobre jovens que tentam o suicídio. Em 1995, Marcelo Feijó de Mello defendeu uma tese de doutorado sobre a tentativa de suicídio e o significado da morte para os pacientes.11 É evidente que a visão da morte é influenciada pela cultura. Todo homem morrerá, mas a sua visão da morte dependerá da cultura, da raça e da religião. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Cassorla3 acredita que a necessidade de negação da morte é a mesma que faz com que fiquemos indiferentes a torturas, no esquadrão da morte, e às condições de miserabilidade de uma comunidade, que podem levar à morte. Ele aponta que, com isso, perdemos a capacidade de estar atentos para combater as causas da morte (física e social). O suicídio é um tema que encontra em Durkheim5 um texto clássico, que define a morte por suicídio como toda a morte que resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo, realizado pela própria vítima. Tentativa de suicídio é o ato assim definido, mas interrompido antes que resulte em morte. Nessas condições, para Durkheim, o suicídio resulta em morte, enquanto a tentativa não a atinge. Os autores atuais preferem classificar o suicídio pela intencionalidade do ato, e não pela ocorrência de morte. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Marcelo F. de Mello11 cita Shneidman, que fez uma síntese de suas pesquisas durante quarenta anos como suicidologista. Este autor acredita que não deveríamos basear os estudos de prevenção do suicídio pela classificação de doenças mentais, mas sim em termos de dor psicológica. Para ele, os suicidas sofrem de dor psicológica, e a intervenção do profissional da saúde deve ser feita com uma visão que não se limite a rótulos psiquiátricos. Para ele, livrar-se do sofrimento, mesmo que seja por meio do suicídio, pode não constituir necessariamente um ato doentio. O estudo do suicídio precisa considerar as variáveis sociológica, psicológica, filosófica e biológica-clínica. A Organização Mundial da Saúde considera a morte por suicídio como um problema de saúde pública. Encontra-se entre as dez principais causas de morte de indivíduos de todas as idades, e entre as duas ou três maiores causas entre 15 e 34 anos de idade. Quando se pesquisam as categorias diagnósticas dos suicidas, há grande discrepância entre os vários autores, no que se refere às proporções desta ou daquela entidade nosológica. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Alguns autores, como, por exemplo, Torres e colaboradores (citados em 10), afirmam que a religiosidade é um fator de inibição do suicídio. No entanto, estamos vendo na atualidade que dezenas de terroristas suicidas são motivados pela sua religiosidade. Como explicar esta discrepância? Francisco Lotufo Neto10, em sua tese “Psiquiatria e Religião – a prevalência de transtornos mentais entre ministros religiosos”, apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo para obtenção do título de livre-docente junto ao Departamento de Psiquiatria, elaborou uma extensa revisão da literatura sobre o uso da religião, com os seus benefícios e malefícios. Ele cita, entre outros, os artigos de Allport e Ross, que classificaram a experiência religiosa como extrínseca e intrínseca, sendo a primeira apenas um meio para se atingir determinado fim, e a segunda, uma estrutura que realmente atribui um significado à vida de uma pessoa. A pessoa motivada extrinsecamente usa a sua religião, enquanto a que é motivada intrinsecamente vive-a. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Outros autores, como Batson e Ventis (citados em 10), criticam a classificação como intrínseca e extrínseca, que deixaria de lado aspectos importantes da experiência religiosa. Propuseram classificar a religião como meio, fim e busca. A religião como meio seria aquela utilizada para obter segurança nas necessidades pessoais do indivíduo, como obter bons negócios ou mesmo a segurança de um status social. Os judeus convertidos à força durante a Inquisição espanhola ou a conversão religiosa para casar-se com alguém de outra fé são exemplos desse tipo de uso. A religião como fim envolve a verdadeira crença, e a religião é vista realmente como uma resposta final para o ser humano. A religião como busca leva o homem a enfrentar as questões existenciais em toda a sua complexidade, resistindo às respostas simples e concretas. Segundo esses autores, esta seria a abordagem mais madura da religião, cética em relação às crenças ortodoxas tradicionais e suas respostas, e aberta à sensação de incompletude e a novas tentativas. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Podemos explicar a discrepância das observações dos diferentes autores sobre os benefícios e os malefícios da religião, porque eles não controlaram variáveis como o uso que um indivíduo faz de sua religião. Os psiquiatras usam as classificações DSM-IV e CID-10 para rotular transtornos mentais. O que estiver fora desta classificação é rotulado como normal. Os psicanalistas têm um conceito diferente de transtorno mental: todos nós, aparentemente normais, temos núcleos psicóticos, que fazem parte da nossa personalidade, podendo irromper em estados regressivos. Portanto, fatores e variáveis relacionados a esses núcleos devem ser pesquisados na abordagem da morte por suicídio. Os fatores biológicos são mais facilmente demonstráveis; vários estudos demonstraram que as monoaminas, especialmente a serotonina, desempenham uma função no comportamento suicida. Marcelo F. de Mello11 pesquisou em sua tese se o suicídio seria sempre conseqüência de uma doença mental ou se nem todas as tentativas de suicídio ocorreriam devido a um transtorno mental. O referencial que ele usou foi o psiquiátrico, em que o conceito de patológico está atrelado às classificações psiquiátricas. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Se pesquisarmos outros autores, encontraremos explicações médicas, sociológicas, culturais, religiosas e até místicas para a morte por suicídio, e observaremos divergências e discrepâncias nos resultados das observações. Muitos artigos feitos por meio da “autópsia psicológica” e ancorados nas classificações psiquiátricas não conseguem controlar diversas variáveis. Em sua tese, Marcelo F. de Mello admitiu não poder concluir que todas as tentativas de suicídio são expressão de uma doença mental. Ao longo do tempo, vários textos já foram escritos sobre a morte e a arte de morrer. Dois deles são tradicionais: o Bardo Thodol e o Ars Moriendi. Ambos fornecem as etapas e a condução do moribundo no caminho da morte. Entre os autores atuais, Kubler-Ross7 escreveu vários livros sobre a morte e a arte de morrer. No Bardo Thodol17, o acompanhante do moribundo, neste caso o Lama, o coloca em condições favoráveis, para que possa abrir-se para o que a tradição chama de “A Clara Luz”. O Lama convida o moribundo não só a evitar confinar-se em seus remorsos, rancores e sintomas, mas também a ir ao encontro de si mesmo. É como se a morte fosse o momento de despertar o que há de mais profundo no ser. O processo do Bardo Thodol é um convite à expansão criativa da espiritualidade do ser humano. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO O texto do Ars Moriendi2 assinala várias provas que têm de ser cumpridas no processo de morte. Ele é útil na preparação para a morte, bem como no acompanhamento de um moribundo. Cita diferentes provações: 1.Dúvida – Aqui são colocadas questões sobre a nossa existência e o sentido da vida. Não há mais nada... E agora, o que haverá do outro lado? 2.Desespero – Além da dúvida, surge o desespero. O indivíduo sente-se abandonado, perdido, etc. 3.Apego – Aqui debate-se a alternância entre o ser e o ter. Sentir a perda da posse da vida – o TER –, e o fato de deixar de existir – NÃO SER. 4.Impaciência e Cólera – O moribundo pede para morrer, pede que desliguem os aparelhos, etc. 5.Orgulho – É quando o indivíduo se coloca numa posição de não precisar de mais ninguém, quando parece aceitar a morte. Embora esta atitude estóica pareça ser nobre, o Ars Moriendi alerta que se trata de um narcisismo defensivo ou um orgulho, e que no lugar do orgulho deve-se colocar a humildade. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO O Ars Moriendi aponta que, com a neutralização da dúvida pela fé; do desespero pela confiança; do apego (avareza) pela generosidade; da cólera pela paciência; do orgulho pela humildade, somos conduzidos ao estado de abandono, de paz. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Elizabeth Kubler-Ross7, 8, usando critérios clínicos de observação de moribundos, propõe as seguintes fases no espaço de tempo entre a vida e o momento da morte: 1.Dúvida – Dificuldade de acreditar no que está acontecendo e necessidade de negar a realidade. Esperança de um milagre ou erro diagnóstico. 2.Revolta ou Cólera – Volta-se contra todos: a humanidade, os médicos, etc. Esta fase deve ser descarregada para que seja possível passar para a seguinte. 3.Fase da barganha – Compreendendo o aspecto inevitável da morte, o indivíduo procura, por meio de orações, fazer uma barganha com Deus, para manter a permanência da vida. Dê-me a permanência da vida e eu lhe darei isto ou aquilo. 4.Período de tristeza – O paciente fica mais ensimesmado, interiorizando-se e estabelecendo menos comunicação interpessoal. Há um certo esgotamento emocional. Ao interiorizar-se, procura refletir. 5.Fase de aceitação e resignação. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Essas etapas descritas por Kubler-Ross são apenas referenciais de reações, e não significam que todo paciente percorra todas essas fases e nessa ordem. Alguns começam pela cólera, outros pela tristeza; alguns permanecem até o fim em um estado de negação. Não podemos impedir a realidade da morte de um moribundo nem o sofrimento afetivo e espiritual que faz parte do morrer, mas podemos impedir que este sofrimento seja vivido na solidão e no abandono. A sociedade ocidental está condicionada a olhar sempre para o mundo exterior. A morte nos convida a olhar para o mundo interior. O profissional da saúde deve evitar o uso de autoridade para com a família; em vez disso, deve aprimorar a escuta e a disponibilidade. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO É comum que moribundos, a família e até mesmo os profissionais da saúde assumam uma atitude de que não há mais nada a fazer e, nessas condições, levantam a hipótese de abreviar a vida. Desconsideram assim o espaço de tempo entre a vida e a morte, em que se pode trabalhar a mente do moribundo, enquanto está operando. Modernamente, em vários lugares do exterior e do Brasil, existem equipes especializadas no tratamento paliativo13. A experiência da dor física e mental pode ser mais temível que a morte em si. A eliminação ou atenuação da dor física e mental é um fator fundamental para que o moribundo consiga manter um contato razoável com o profissional da saúde e não fique monopolizado pelos seus sintomas. Atualmente, o ideal de morte pressupõe que seja súbita e sem sofrimento, para que não se tenha noção da passagem da vida para a morte. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Ao estudar os costumes de diversos povos em épocas distintas, observam-se quatro maneiras de lidar com o corpo do mortos: 1.solidificação, por meio do embalsamamento; 2.supressão, por meio da cremação; 3.exposição, por meio do afastamento (em rios, torres, etc.); 4.ocultamento, por meio da inumação. No Egito Antigo, os faraós eram embalsamados e acompanhados de esposas, servidores, riqueza e tudo o que fosse necessário para o seu deleite em sua segunda vida. Cada cultura apresenta um modo particular de praticar ritos para lidar com a morte. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Philippe Ariès1, em sua obra O homem diante da morte, pesquisou a imagem da morte na Idade Média, através do estudo da literatura daquela época. As fontes de investigação constituíam narrativas de romances e poemas, como, por exemplo, o da Távola Redonda; textos literários, como os de La Fontaine, a Odisséia, de Homero, e muitos outros; documentos históricos; as Sagradas Escrituras; textos de diferentes autores; documentos judiciários; relatos de concílios, como o Concílio de Braga, do ano 563; códigos, como o Código de Teodoro; inúmeros relatos de autores medievais; textos de autores eclesiásticos e historiadores funerários da Idade Média; testamentos; registros paroquiais; iconografias nas telas dos portais decorados com cenas sagradas; pinturas de diferentes artistas; registros de cemitérios; e inscrições em túmulos, dentre outras. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Em todas essas fontes, o autor procurou observar a atitude do homem diante da morte, sob o ponto de vista histórico e sociológico. Encontrou uma grande variação de comportamentos, conforme a época e o meio social em que viviam os povos estudados. Suas pesquisas limitaram-se aos povos ocidentais, procurando uma explicação para o comportamento do homem diante da morte na sociedade cristã ocidental, desde a Idade Média até os nossos dias. Philippe Ariès apontou várias transformações da conduta do homem diante da morte: a morte excluída; a morte aceita e previsível; a morte macabra, etc. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO O autor lembra que os povos antigos temiam a vizinhança dos mortos e os mantinham a distância. Veneravam as sepulturas, porém com cautela, pois temiam a volta dos mortos. A Lei das Doze Tábuas prescrevia que nenhum morto fosse inumado ou incinerado dentro da cidade. O Código de Teodoro determinava que todos os despojos funerários fossem transportados para fora de Constantinopla. Por esse motivo, os cemitérios da Antigüidade estavam localizados sempre fora da cidade, ao longo das estradas, como a Via Ápia, em Roma. Com o tempo, essa repugnância à proximidade dos mortos foi deixando de ser tão intensa entre os cristãos antigos. Assim, os mortos deixaram de amedrontar os vivos. Ariès levanta como hipótese que a fé na ressurreição dos corpos, admitida pelos cristãos e associada ao culto de antigos mártires, favoreceu a familiaridade com os mortos. Desse modo, o espaço que separava a terra dos mortos da cidade onde moravam os vivos foi-se tornando indistinto. Em torno dos cemitérios instalavam-se bairros residenciais. A penetração dos mortos no coração da cidade significava o abandono da antiga exclusão dos mortos e a sua substituição por uma atitude nova, de indiferença ou familiaridade. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO No decorrer do tempo, a familiaridade com os mortos no cemitério foi permitindo que o povo o usasse como praça pública, freqüentada como um passeio público, e foro, onde se dabatiam os assuntos espirituais e temporais. Além disso, o cemitério era usado para diversões e amores. Segundo alguns autores, o cemitério era um local barulhento e agitado, chegando até a abrigar feiras para a venda de objetos e comida. Alguns sínodos, como o de Rouen (1231), proibiram danças e algazarras no cemitério, sob pena de excomunhão. Através de seus relatos, Ariès aponta as mudanças de conduta do homem diante da morte ao longo do tempo. Assim, no estudo da imagem da morte na Idade Média Alta, ele usa como modelo a descrição da morte de Rolando, além de outros relatos da literatura daquela época, em que as pessoas não morriam de qualquer maneira. A morte era regulamentada por um ritual costumeiro. Ela não vinha de forma traiçoeira e súbita, pois o moribundo recebia sinais que a prediziam. Sonhos, mudança de clima e sintomas eram considerados como pressentimentos. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Naquela época, a morte repentina era considerada feia, pois acontecia ao acaso, sem espectadores, e não se podia cumprir todo o ritual culturalmente valorizado. A morte era física, porém acreditavam no acesso da alma à vida eterna. Desse modo, podia ser considerada como um renascimento. Para ilustrar a morte dessa época, Ariès serviu-se da imagem de Galahad (personagem da Távola Redonda), que, no leito de morte, se entregou a Deus em júbilo, por acreditar que estava sendo levado para o paraíso. Naquela época, morrer era um ato público: as pessoas, pressentindo a chegada da morte, preparavam-se, chamavam os amigos e criados e despediam-se. Morria-se em público. Ariès denominou este tipo de morte de morte domada. No Século das Luzes, a morte começou a ser colorida com aspectos românticos, e, a partir do século XX, tornou-se camuflada, escondida, foi banida do espaço familiar para as instituições hospitalares. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A medicalização intensa transformou a morte em um fato inconveniente. O isolamento do agonizante nas décadas de 1920 e 1930, ainda timidamente efetuado, tornou-se institucionalizado e generalizado a partir da década de 1950. A morte perdeu o caráter público. Até mesmo a família ficou privada do acompanhamento na morte de um ente querido. A morte passou a ser interdita. O luto não podia ser manifestado em público e a crise de lágrimas passou a ser considerada como crise de nervos e o luto, como doença. A medicalização triunfava e as pessoas não morriam mais em casa. Pesquisadores da relação médico-paciente em cancerologia detectam a negação da morte no contexto hospitalar. Mesmo nos hospitais, onde a morte acontece, a palavra morte é pouco pronunciada, como se significasse o fracasso da instituição e do profissional. Por meio de entrevistas feitas com médicos cancerologistas, estudos apontaram dificuldades desses profissionais em lidar com pacientes terminais. Alguns tendem a manter a esperança de recuperação sempre acesa, apesar da gravidade dos casos. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Perceber o profissional da saúde como um ser humano, com seus medos, omnipotência, impotência, negações, acertos e sofrimentos, é fundamental para a compreensão e possível intervenção na relação desse profissional com o paciente terminal. A negação da morte, que faz com que ela seja escondida e não compreendida, caracteriza a sociedade ocidental contemporânea. Desde a mais remota Antigüidade, o tema da morte, este inquietante destino fatal do homem, tem suscitado indagações e respostas. O núcleo do problema reside na oposição de crenças: continuidade e imortalidade (mesmo que sob outros aspectos ou estados) versus interrupção total da continuidade, o nada, o nunca mais. A morte é geradora de diferentes sentimentos: saudade, tristeza, solidão, culpa e até mesmo contentamento. Em diferentes culturas e épocas, a morte é vivenciada de maneiras diversas. Os fatores culturais e religiosos são, sem dúvida, os agentes que plasmam a forma como o homem expressa o seu contato com a existência da morte. Sendo assim, o profissional da saúde que se propõe a se relacionar com um paciente e estudar o seu caso não pode alienar-se dos conhecimentos históricos e sociológicos da forma de expressão daquele paciente em seu contato com a existência da morte. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A administração de medicamentos para a angústia depressiva ou persecutória frente a este contato com a morte é, além de insuficiente, um tratamento parcial. Eliane Moura Silva15, uma autora brasileira, reuniu, em sua tese de doutoramento (“Vida e morte: o homem no labirinto da eternidade”), textos que relatam este contato do homem com a morte desde a mais remota Antigüidade até os nossos dias e sua correlação com a religiosidade. Constatou que o homem quase sempre procurou admitir algum tipo de sobrevivência espiritual e imaterial após a morte, negando, portanto, o Nada, o Nunca Mais. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A história nos mostra que nas sociedades tribais xamânicas havia a crença numa “terra dos mortos”, habitada pelos espíritos das pessoas que se foram. Os gregos, nos tempos homéricos, iam para o Hades após a morte; os hebreus, para o Sheol. A tradição das seitas filosófico-religiosas órficas e pitagóricas, assim como o Vedismo, admitiam também esta continuidade por meio de uma essência imortal divina. Toda filosofia e religião hinduísta circulava em torno da idéia de morte, renascimento e libertação, portanto, de continuidade e caminho para conquistar a imortalidade original. Nessas condições, a moral, os costumes e até as leis giravam em torno dessas idéias. No antigo império egípcio, acreditava-se que o morto viveria algum tempo sob a terra (como se estivesse adormecido) e, após o julgamento, poderia ser sentenciado à consumição ou alcançar o Reino da Eternidade, ao lado dos deuses. A ressurreição foi um dos simbolismos religiosos mais importantes das crenças funerárias egípcias, ligada à arte da mumificação. Diferentes concepções religiosas antigas admitem, todas elas, a continuidade de alguma forma de existência. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO As concepções religiosas atuais, como o cristianismo, o judaísmo, o islamismo, o espiritismo, etc., novamente apontam para a crença na continuidade de alguma forma de existência após a morte. Há um grande esforço da ciência para demonstrar que a morte constitui o término total, o nada, o nunca mais, ou seja, a descontinuidade. Fenômenos anteriormente considerados como sobrenaturais foram analisados e classificados como naturais. Assim, por exemplo, os fenômenos de telecinesia, xenoglossia, percepção extra-sensorial, telepatia, etc. são objetos de estudo da ciência, que, por meio da parapsicologia, encontram explicações naturais. Apesar do avanço da dessacralização, segundo a qual o que era visto como sobrenatural passou a ser natural, a sacralização e o sagrado (hierofania) ainda são funções encontradas na relação do homem com o mundo que o cerca. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Como diria o filósofo Husserl: “colocamos entre parênteses a essência do fato e investigamos o uso do mesmo”. Assim, o uso que o homem faz dessas concepções revela a sua intencionalidade e sua estrutura psicológica, e é aí, no entendimento dessa psicodinâmica, que o profissional da saúde poderá obter elementos para conhecer um paciente diante da morte e utilizar a melhor forma de ajudá-lo, de acordo com suas próprias concepções. O homem diante da morte, em qualquer cultura ou época, sofre dores físicas e mentais. A dor física surge devido ao estrago que a doença ou o ferimento faz em seu corpo. A dor mental surge se ele tiver tempo de encarar a passagem da vida para a morte, entrando em contato com emoções como: solidão, abandono e vivências de perda. As vivências de perda ocorrem pelo estancamento das permutas relacionais, pela degradação física e às vezes mental, pela perda da imagem com a qual sempre esteve identificado, pela perda do controle das coisas e, principalmente, de sua autonomia. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A experiência dessas perdas pode ser mais temível do que a morte em si. O profissional da saúde deve informar-se adequadamente para compreender a complexidade da experiência de morte e poder preparar o paciente para a sua própria morte e os familiares para a perda do ente querido. É evidente que o profissional da saúde deverá refletir sobre os pressupostos antropológicos do paciente e dos familiares durante o acompanhamento, isto é, conhecer a visão e o valor que eles atribuem a esse momento da vida. Como podemos pretender escutar o sofrimento espiritual de um moribundo se não começamos por escutar o nosso próprio sofrimento interior? Como é que uma equipe hospitalar pode assumir essa dimensão espiritual do acompanhamento se não está em condições de refletir sobre a sua própria concepção da morte? A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO No hospital, antes de tudo, o que se faz é cuidar dos corpos doentes. Pouca atenção é dada à vida subjetiva dos pacientes. Com a ajuda de tranqüilizantes e antidepressivos, tentam calar a angústia e o sofrimento psíquico do paciente, sem mesmo questionar se tal sofrimento não seria um sinal de uma separação profunda das raízes e origens de cada um. A exclusão da morte e do sofrimento subjetivos no hospital não conseguem evitar o questionamento espiritual que reside nas profundezas de todos os seres humanos, pronto a emergir em ocasiões de crise e luto. A espiritualidade estimula o indivíduo a questionar fatos de sua existência. Diz respeito à sua relação com os valores que o transcendem, sejam quais forem os nomes que lhes atribua. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Os profissionais da saúde apresentam, muitas vezes, confusão e solidão ao lidar com os paciente terminais. Na maioria dos casos, faltam-lhes referenciais para responder às suas próprias interrogações. Demonstram dificuldade de falar do assunto com os colegas, por medo de serem julgados e não serem compreendidos, e nessas condições há um impedimento para que a equipe, no quadro institucional, aborde e elabore vivências que sejam demasiadamente íntimas. Os profissionais da saúde que trabalham em clínicas médicas, hospitais do coração, pronto-socorros, UTIs, etc. são forçados a entrar em contato com a morte e a experiência de passagem da vida para a morte, com as conseqüentes manifestações emocionais dos pacientes, familiares e as suas próprias. Ao receber a notícia da existência de uma doença fatal, o paciente sente como se houvesse uma “espada sobre a sua cabeça”. O ser humano, em geral, se aliena de sua morte e não está preparado para ela. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Com a notícia da doença, o indivíduo entra em contato com o fim, o nunca mais, ou seja, a morte. No início, alguns pacientes podem apresentar uma reação catastrófica, de acordo com a estrutura emocional constituída até esse momento. Terão de se adaptar à nova realidade, muitas vezes submetendo-se a tratamentos de longa duração, cirurgias, radioterapias, assumindo gastos com remédios e médicos e constatando que seu tempo para outras atividades diminuirá consideravelmente e será ocupado pela doença. Pacientes terminais, com diagnóstico fechado no sentido de êxito letal e dores insuportáveis, sejam elas físicas ou mentais, suscitam a tradicional polêmica da eutanásia. Há um movimento a favor dessa prática e um movimento contrário a ela. No Reino Unido, o médico britânico Harold Shipman, conhecido como “Doutor Morte”, foi acusado do assassinato de pelo menos 250 pacientes, em quase 25 anos de exercício profissional. Foi condenado à prisão perpétua. Shipman matava suas vítimas com uma overdose de heroína. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A eutanásia, assim como a pena de morte, são problemas que necessitam ser cuidadosamente estudados, não só sob o ponto de vista da bioética, mas também dos fundamentos científicos dos mecanismos que levam a considerar a hipótese dessas práticas. A bioética é constituída de três princípios básicos: o da autonomia, o da beneficência (e da não-maleficência) e o da justiça. De acordo com o primeiro, o paciente tem o direito de escolher o que mais lhe convém; pelo segundo, o profissional da saúde busca o que é melhor para o paciente; o terceiro determina o que deve ser feito de acordo com as leis e a jurisprudência do país. É preciso sempre considerar qual é a ideologia subjacente que determina a validade desses princípios. Por exemplo:no uso do princípio da beneficência, os nazistas cometeram maleficências e atrocidades. A bioética deve colocar a universalidade do bem comum e da conduta perfeita como um objetivo virtual, que determinará o caminho a ser percorrido para o aperfeiçoamento desses três princípios. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO A professora Maria Celeste Cordeiro dos Santos14, professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em seu livro O equilíbrio do pêndulo – A bioética e a lei: implicações médico-legais, fornece aos leitores preciosas explicações sobre a dinâmica desses três princípios. Na oportunidade de ministrar junto com a professora Celeste um curso de pósgraduação na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pudemos aquilatar a grande erudição desta professora no assunto. O tema “Bioética e paciente terminal” já foi debatido em muitos simpósios e fóruns no Brasil. Recentemente, em maio de 2001, houve um fórum sobre “O que fazer com o paciente terminal?”, promovido pelo Cremesp. Reuniu mais de cem pessoas, coordenadas por Marco Segre, professor doutor de Medicina Legal. Os resultados apontaram um avanço na humanização do atendimento e respeito à autonomia do paciente. Segre lembrou que há quinze anos ainda era discutível se o médico poderia ou não desligar os aparelhos em caso de morte cerebral, um procedimento hoje aceitável. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Em seu leito de morte, o governador Mário Covas utilizou-se da lei 10241 ao optar por não ir para a UTI. A lei estadual 10241 ou Lei Covas, de 1999, dispõe sobre o direito dos usuários dos serviços de saúde, assistência médica e cuidados paliativos em locais apropriados ou em domicílio. De acordo com essa lei, os pacientes podem recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários que visam prolongar a vida e também optar pelo local de sua morte. Entende-se por eutanásia ativa o movimento de intervenção ativa do médico, por meio de medicamentos, para provocar a interrupção da vida. Entende-se por eutanásia passiva a abstenção do médico em prolongar a vida do paciente, optando por não intervir ou ligar aparelhos para mantê-lo vivo. Nesse caso, se um paciente terminal subitamente tivesse uma parada cardiorrespiratória momentânea, não receberia a aplicação de injeções terapêuticas nem seria utilizada nenhuma aparelhagem, a fim de deixá-lo morrer naturalmente. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO O vértice religioso considera a vida como algo sagrado e, portanto, sob este ponto de vista, o homem não teria o direito de interrompê-la sob qualquer circunstância. É o caso, por exemplo, da ideologia judaico-cristã. Um vértice não-religioso considera a vida como uma forma de existência válida, de acordo com a qualidade de vida, e não como algo sagrado. O padre Leo Pessini, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, elaborou uma tese de doutorado em teologia moral, sobre o tema “Distanásia: até quando prolongar a vida?”12, em que tece considerações sobre os limites da vida. Distanásia é antônimo de eutanásia. Padre Leo defende a ortotanásia, que é a morte no “tempo certo”, sem abreviar ou prolongar artificialmente a vida. Ele condena a distanásia praticada em muitas UTIs. Segundo a filosofia do padre Leo, “É possível curar às vezes, aliviar muito freqüentemente e confortar sempre”. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO O parâmetro “qualidade de vida” é relativo, pois a determinação de seus limites é perigosa, admitindo-se que o indivíduo e a sociedade tenham o direito de exercer o livre-arbítrio, escolhendo o limite do que seria considerado qualidade de vida. Algumas perguntas fundamentais devem ser feitas pelos profissionais da saúde: “Por que o indivíduo pede para morrer? Quais as causas que o levaram a isso? Será que o número de pacientes que pedem para morrer diminuiria se melhorássemos os efeitos destas causas negativas?” Se observarmos, por exemplo, os trabalhos publicados a respeito de pacientes com câncer em estado grave, verificaremos que, em quase todos os casos, existem sintomas que ocorrem em proporções elevadas, como dor física, 84%; dispnéia, 47%; insônia, 51%; anorexia, 71%; etc., sem considerar a dor mental, que não foi estatisticamente estudada. Devido à intensidade da dor causada por esses sintomas físicos e mentais, muitos pacientes pedem a morte. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO No Oregon, Estados Unidos, há permissão para a prática da eutanásia em pacientes terminais. Se, após quinze dias de dois pedidos verbais e um por escrito, na ausência de depressão e ciente das possibilidades de evolução do quadro, o paciente ainda desejar a morte, terá permissão de suicidar-se tomando comprimidos fornecidos pelo hospital e administrados pelo próprio paciente. O hospital fornece os comprimidos que o levarão ao chamado “suicídio assistido”. Na Holanda, esse tipo de prática também é permitida. Alguns artigos tentaram investigar o suicídio assistido considerando seus aspectos epidemiológicos. Um artigo vindo do estado do Oregon, de 1999, demonstrou que, de 23 casos de suicídio assistido, a maioria era de pessoas solteiras que possivelmente não estavam suportando a perda da autonomia e das funções corpóreas, que as impediam de ser autosuficientes. Os autores levantaram a hipótese de esta variável “perda de autonomia” ser um dos fatores desencadeantes do pedido de suicídio assistido. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Outros fatores, como dor física e mental, diminuição de autonomia e necessidade de uso constante de narcóticos, também podem induzir o indivíduo a pedir o suicídio assistido, com a cumplicidade da família. Quando um indivíduo pede a morte, trata-se de um grande pedido de socorro, de quem não agüenta mais. A insistência do pedido é um atestado da ignorância do profissional da saúde ao minimizar as causas que levaram o paciente a não suportar os fatores já citados, ou mesmo da incompetência em utilizar os recursos existentes para amenizar esses fatores. A ignorância do médico e da medicina são fatores que promovem, muitas vezes, o posicionamento a favor da eutanásia. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Em seu livro Euthanasia and assisted suicide6, Samuel I. Greenberg, psiquiatra e psicanalista, professor da Universidade da Flórida, nos Estados Unidos, faz um levantamento das diferentes variáveis do problema relacionado à eutanásia e ao suicídio assistido. Ele apresenta uma síntese da experiência em outros países; estuda os aspectos éticos e legais; investiga as opiniões de clínicos, estudiosos da bioética, advogados, teólogos, etc., obtendo significativas contribuições ao debate. O que nós, profissionais da saúde, podemos fazer para minimizar esses fatores que induzem ao pedido para morrer? Precisamos nos preparar técnica e emocionalmente para lidarmos com a nossa própria experiência de contato com a morte e o luto, em suas diferentes formas de manifestação. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Devemos estar aparelhados para combater tanto a dor física como a dor mental do paciente, para que sua vivência de solidão seja transformada em solidariedade; a sua experiência de abandono seja substituída pelo companheirismo afetivo; sua vivência de perdas, que provocam dor mental, como a perda da relações habituais de permuta, a perda, pela degradação física, da imagem com a qual sempre esteve identificado, a perda do controle das coisas e da sua autonomia, seja compensada, neste último espaço de tempo de sua vida, por estar acompanhado ao refletir sobre o sentido da vida e da morte. Esta reflexão fará com que a doença em si não ocupe todo o espaço de seu ser e ele possa, no tempo que lhe resta, sentir ainda um outro tipo de continuidade, que não é material, mas espiritual, proporcionada pelas reflexões. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Esta reflexão espiritual diz respeito aos seus próprios valores e sua tendência à transcendência. A transcendência é a continuidade do aperfeiçoamento de tudo que nos liberta do imanente. A imanência é tudo o que nos limita e aprisiona aos limites e funções permanentes de nossos aspectos animal e orgânico. O profissional da saúde irá acompanhar o moribundo para auxiliá-lo a dirigir suas reflexões para o centro espiritual de sua transcendência, evitando que ele fique aprisionado e confinado em seus sintomas, identificando-se com eles. Nessas condições, o profissional, com uma atitude de presença, escuta, observação da dinâmica e dos valores do moribundo, poderá favorecer o surgimento de tentativas de reestruturação do sentido espiritual da vida, e o paciente, sentindo continuidade no processo, poderá vivenciar a construção de algo novo, evitando ficar confinado em seus sintomas. O profissional da saúde deve acompanhar o paciente, demonstrando respeito e confiança, para que ele possa compreender que não está reduzido ao seu corpo em sofrimento, mas que existe “espaço” dentro dele para evolução e continuidade de seu Ser transcendental. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO No Brasil, já existem equipes especializadas em tratamento paliativo do paciente terminal em vários centros médicos. Essas equipes são constituídas por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e fisioterapeutas13. Apresentam uma postura mais abrangente no tratamento de pacientes terminais. O médico programa reuniões com a família, em que esclarece as dúvidas sobre o diagnóstico e o prognóstico, além do tratamento a ser efetuado. Procura também conversar com a família sobre os desejos do paciente e seu estado geral. O psicólogo ajuda os familiares e o paciente a lidar com as dificuldades da aproximação da morte e do luto. O enfermeiro orienta os familiares na prática de cuidados físicos especiais, como, por exemplo, limpeza, curativos, uso de analgésicos, etc. O assistente social auxilia nas transações administrativas, como, por exemplo, aposentadoria do paciente, seguro social, visitas, etc. O paciente é tratado de modo que o tempo de vida que lhe resta seja vivido com dignidade e a melhor qualidade de vida possível, proporcionando conforto físico, psicológico e espiritual. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Questiona-se se o profissional deve ou não dizer a verdade ao paciente. Na realidade, não se trata de escolher entre a mentira e a verdade, mas como dizer a verdade. A forma de comunicação verbal e extraverbal do profissional deve ser cuidadosamente escolhida, lembrando sempre que o tempo de vida que resta ao paciente pertence a ele e, sendo assim, ele é que deve determinar o seu uso. Quando as metas de melhorar a qualidade de vida e prolongá-la se tornam inatingíveis, mudam-se as prioridades e inicia-se a chamada “sedação”, como opção terapêutica final. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Um grupo de cerca de 400 pacientes do Hospital do Câncer, em São Paulo, já se beneficiou, nos últimos cinco anos, de uma nova terapia, capaz de aliviar a dor provocada pelo surgimento de metástases ósseas. Trata-se do samário 153, um material radioativo que, ao ser injetado na corrente sangüínea, reconhece e localiza os focos de metástase, concentrando-se neles e liberando radioatividade com efeitos neutralizadores da dor. Sendo assim, quando o tratamento não obtém resposta com as terapias clássicas, como os opiáceos, podemos hoje utilizar este novo medicamento. Pacientes com metástase verbalizaram que a dor não os deixava ou aliviava um segundo sequer, em qualquer posição que ficassem, sentados, deitados ou em pé, mas, com este novo medicamento, houve melhora substancial. A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO Referências bibliográficas 1. ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. 2. Ars Moriendi. Citado por Marie de Hennezel e Jean-Yves Leloup, in: A arte de morrer. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 101. 3. CASSORLA, Roosevelt M. S. Da morte – estudos brasileiros. Cidade: Papiros, 1998. 4. ___________. “Jovens que tentam o suicídio”. Tese de Doutoramento. Campinas: UNICAMP, 1981. 5. DURKHEIM, Émile. O suicídio – estudo sociológico. Lisboa: Presença, 1992. 5. ed. 6. GREENBERG, Samuel I. Euthanasia and assisted suicide. Illinois: Charles Thomas, 1997. 7. KÜBLER-ROSS, Elisabeth. A morte: um amanhecer. São Paulo: Pensamento, 1991. 8. _____________. Sobre a morte e o morrer. 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