A morte e seus vértices

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A MORTE E SEUS
VÉRTICES HISTÓRICO,
SOCIOLÓGICO E MÉDICO
A MORTE
Advertência de uma verdade infalível
Fato que alguns atemoriza e a outros consola
Somos passageiros marcados
Por efêmera trajetória inevitável
Que no final a todos os homens iguala.
Ovídio Junqueira da Silva16
A MORTE E A VIDA
Quando Ela aparece,
sorrateiramente,pela manhã
Começa a me possuir
Todos os caminhos me levam a Ela
Sinto-me monopolizado
Desligado do mundo exterior
Um terrível vazio apossa-se dentro de
mim
Não me possuo
Sou possuído
A VIDA parece esvair-se
Um fio tênue me liga a VIDA
Através dele procuro a libertação
Através dele sair da sufocante prisão
mortal
Quando estou possuído pela VIDA
A MORTE como que não existe
Quando estou possuído pela MORTE
A VIDA como que não existe
Quando estou com UMA
Parece que a OUTRA não existe
Quando estou com a VIDA
O mundo sorri e fica claro
O tempo flui rápido e agradável
Quando estou com a MORTE
O mundo fica escuro e lento
O tempo flui lento e desagradável
Quando estou com as duas
O mundo fica com diferentes
tonalidades
O tempo flui com a consciência da
alteridade
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
A reflexão sobre a morte deveria fazer parte dos programas
educacionais administrados aos profissionais da saúde, que
muitas vezes encontram-se completamente despreparados para
o acompanhamento de pessoas nas fases terminais da
existência.
O estudante de medicina, ao entrar em contato pela primeira
vez, durante as necropsias, com a nudez do cadáver, a abertura
do corpo e suas cavidades e o odor das vísceras, precisa
encarar a realidade da morte.
As reações costumam ser as mais diversas: desde um silêncio
respeitoso, uma angústia sem fim, com mal-estar e náuseas, até
um olhar indiferente ou uma atitude piadista (jocosa), para
encobrir a angústia.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
O contato com a morte provoca diferentes emoções, que
estimulam certa dose de negação desse fato da vida. A
atividade do profissional de saúde implica uma inevitável
necessidade de aprender a lidar com a morte.
Epicuro (filósofo grego – 341 a. C. a 270 a. C.) escreveu que,
quando o homem está vivo, a morte parece não existir e,
quando ocorre, não se é mais; logo, a morte não existe.
A morte foi representada na arte, na literatura (tragédias
gregas e de Shakespeare), na poesia, etc. e pode ser narrada
por meio da história.
Leon Tolstói, em seu livro sobre a angústia de um enfermo
perante o futuro demolidor, descreveu aspectos humanos frente
à morte ao narrar a morte de Ivan Ilitch. Uma súmula da novela
deste grande escritor foi publicada em 1986 na Revista do Incor,
em artigo do Prof. Luiz V. Decourt.
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A vida de Ivan é descrita como uma vida insípida, superficial e
vulgar, voltada para aspectos da hipocrisia de um ambiente
egoísta e imediatista, desprovido de sentimentos de
solidariedade. Com o desmoronamento corpóreo e psíquico
causado pela doença, Ivan conheceu a indiferença das pessoas
sadias e até mesmo o tédio que provocava nelas. Tolstói descreve
a reavaliação do sentido da vida que Ivan vivenciou nesta
passagem. Ele percebeu que, em sua condição de paciente
terminal, estava atormentando seus familiares; embora eles
lamentassem a sua morte, sentiriam alívio com ela. Tolstói tenta
demonstrar, nesse romance, que na passagem da vida para a
morte, Ivan tomou contato com o sentido de sua vida.
Os gregos antigos consideravam que a morte era uma
necessidade da natureza (Ananké). Atualmente, não se aceita a
morte com esta passividade, e surge a necessidade de adiá-la a
todo custo.
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Toda a nossa existência individual é apenas um instante fugaz,
que transcorre entre a nossa primeira inalação de ar e o nosso
suspiro final.
O que faremos, no espaço de tempo de vida que nos resta, para
encontrar um sentido de vida mais abrangente, antes que a morte
venha nos buscar?
Sabemos que há uma resistência óbvia das pessoas a pensar
sobre a morte e o sentido da vida. A reflexão sobre a morte, que é
a outra face da vida, deveria fazer parte de nossos programas
educacionais.
Acompanhar uma pessoa amiga às portas da morte e ajudá-la
nessa passagem é uma tarefa que concerne a todos nós, e tratase de uma questão de solidariedade. Infelizmente, sete em cada
dez pessoas morrem em hospitais e nem sempre estão
acompanhadas por seus entes queridos na hora da passagem.
Nos hospitais, raramente são abordadas as questões essenciais;
não se fala sobre a morte e o sentido da vida.
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No limiar da morte, o paciente tem medo da dor física e da dor
mental (solidão, abandono e vivências de perdas). Esses fatores
são importantes, pois geram dificuldade de aproveitar o tempo que
lhe resta para abrir-se para a transcendência.
As vivências de perda ocorrem devido ao estancamento das
trocas na relação interpessoal; à degradação física e às vezes
mental; à perda da imagem com a qual estava condicionado a
identificar-se; à perda do controle das coisas e, sobretudo, da
autonomia.
Atualmente, o mundo que nos rodeia não nos ensina a arte de
morrer. Tudo é feito para esconder a morte e viver sem pensar
nela como um projeto, como se o nosso único projeto fosse
constituído de eficiência no fazer e ter, em busca de uma
felicidade material que com o tempo percebemos não ser
suficiente. Observam-se com freqüência moribundos amargurados
em seu derradeiro momento, queixando-se do tempo perdido em
sua vida e de ter passado ao lado daquilo que poderia ter sido o
essencial, que sentem em seu âmago, porém não conseguem
decodificá-lo em palavras.
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Como os profissionais da saúde podem acompanhar
adequadamente moribundos que apresentam estruturas de
personalidade tão diversificadas?
Diante da morte, o homem é levado a formular questões de
ordem espiritual, sobre o sentido da vida. Existem indivíduos para
os quais os dogmas e a crença em uma outra forma de vida não
são aceitos. Para eles, não há nenhuma forma de continuidade,
somente o nunca mais. É importante salientar que aderir a uma
crença religiosa pode facilitar o trabalho com esta passagem;
sabemos também que é possível viver a espiritualidade sem ter
uma religião definida.
A espiritualidade é vivida por todo ser que se questiona diante do
simples fato de existir, e tem relação com as idéias de valores e
transcendência. Somente por meio da espiritualidade (com ou sem
religião) podemos entrar em contato com o núcleo mais profundo
do moribundo.
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Acompanhar a dimensão espiritual do sofrimento do moribundo é
uma tarefa obrigatória do profissional da saúde. Atualmente, já
existe uma especialidade denominada tratamento paliativo para
moribundos.13
É evidente que não se trata, por parte do profissional da saúde,
de pregar doutrinas ou dogmas, mas sim de uma atitude de
observação e escuta, de acompanhamento solidário, estando com
o moribundo nas diferentes fases do luto pelo ego e pela sua
relação com a vida, para ajudá-lo a penetrar no âmago de seus
valores e encontrar sua própria resposta íntima.
Estando preparado por meio do conhecimento das grandes
concepções filosóficas, religiosas, míticas, sociológicas e
psicológicas, o profissional da saúde irá sentir-se mais bem
aparelhado no sentido de ter uma visão mais abrangente sobre a
morte e o morrer.3; 13 Além desses conhecimentos, o profissional
da saúde deve estar habilitado a ser continente de suas próprias
emoções frente à morte.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
A falta de referenciais do profissional, bem como sua dificuldade
de entrar em contato com a morte e o luto impedirão que possa
ajudar o moribundo.
Quando a morte não é súbita, dispõe-se de um espaço entre a
vida e a morte. Nesse caso, o profissional da saúde, como um
verdadeiro parteiro, poderá ajudar o moribundo a parir novas
visões de sua vida e do mundo. Desse modo, o tempo outrora
ocupado totalmente pelos sintomas passará a ser ocupado pelas
reformulações, proporcionando a vivência de continuidade da
transcendência para aquele ser.
No momento de nosso nascimento, nosso organismo enfrentou o
tempo de passagem do útero para o mundo exterior. Neste parto,
fomos acolhidos por um parteiro e por outras pessoas. Na
passagem da vida para a morte, necessitamos também de bons
parteiros ao nosso redor.
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A função de omnipotência existe em todo ser humano. Esta
função nos leva a buscar o infinito, o interminável, o perfeito, etc.
Ela estimula a crença e a necessidade da permanência da vida,
sine die. Esta função precisará ser trabalhada na passagem,
durante o luto.
Nós, ocidentais, não somos preparados para aceitar a
impermanência da vida, como acontece na cultura tibetana, que
prevê e elabora esta impermanência. É importante alertar que
nossa atitude diante da morte é condicionada por pressupostos
sociológicos, na maioria das vezes inconscientes, independentes
de religião, o que nos leva a crer que o homem comum
corresponde a tal representação. Esses condicionamentos nos
aprisionam, pois impedem uma visão mais abrangente e diferente
daquela que nos habituamos a conceber. Portanto, o alerta deve
ser acentuado, pois nossos pressupostos podem nos influenciar
no acompanhamento do moribundo.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Se, de um lado, o homem resiste à impermanência da vida, de
outro há homens que querem acelerar o processo de morte,
pondo fim à sua vida por meio de suicídio. O suicídio é a
antecipação consciente ou inconsciente do momento da morte.
O que os pesquisadores falam sobre o suicídio? Existem
centenas de artigos e livros sobre a antecipação da morte por
meio do suicídio. No Brasil, há várias contribuições sobre o tema.
Em 1981, Cassorla4 defendeu uma tese sobre jovens que tentam
o suicídio. Em 1995, Marcelo Feijó de Mello defendeu uma tese de
doutorado sobre a tentativa de suicídio e o significado da morte
para os pacientes.11
É evidente que a visão da morte é influenciada pela cultura. Todo
homem morrerá, mas a sua visão da morte dependerá da cultura,
da raça e da religião.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Cassorla3 acredita que a necessidade de negação da morte é a
mesma que faz com que fiquemos indiferentes a torturas, no
esquadrão da morte, e às condições de miserabilidade de uma
comunidade, que podem levar à morte. Ele aponta que, com isso,
perdemos a capacidade de estar atentos para combater as causas
da morte (física e social).
O suicídio é um tema que encontra em Durkheim5 um texto
clássico, que define a morte por suicídio como toda a morte que
resulta mediata ou imediatamente de um ato positivo ou negativo,
realizado pela própria vítima. Tentativa de suicídio é o ato assim
definido, mas interrompido antes que resulte em morte. Nessas
condições, para Durkheim, o suicídio resulta em morte, enquanto
a tentativa não a atinge. Os autores atuais preferem classificar o
suicídio pela intencionalidade do ato, e não pela ocorrência de
morte.
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Marcelo F. de Mello11 cita Shneidman, que fez uma síntese de
suas pesquisas durante quarenta anos como suicidologista. Este
autor acredita que não deveríamos basear os estudos de
prevenção do suicídio pela classificação de doenças mentais, mas
sim em termos de dor psicológica. Para ele, os suicidas sofrem de
dor psicológica, e a intervenção do profissional da saúde deve ser
feita com uma visão que não se limite a rótulos psiquiátricos. Para
ele, livrar-se do sofrimento, mesmo que seja por meio do suicídio,
pode não constituir necessariamente um ato doentio.
O estudo do suicídio precisa considerar as variáveis sociológica,
psicológica, filosófica e biológica-clínica.
A Organização Mundial da Saúde considera a morte por suicídio
como um problema de saúde pública. Encontra-se entre as dez
principais causas de morte de indivíduos de todas as idades, e
entre as duas ou três maiores causas entre 15 e 34 anos de idade.
Quando se pesquisam as categorias diagnósticas dos suicidas,
há grande discrepância entre os vários autores, no que se refere
às proporções desta ou daquela entidade nosológica.
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Alguns autores, como, por exemplo, Torres e colaboradores
(citados em 10), afirmam que a religiosidade é um fator de inibição
do suicídio. No entanto, estamos vendo na atualidade que
dezenas de terroristas suicidas são motivados pela sua
religiosidade. Como explicar esta discrepância?
Francisco Lotufo Neto10, em sua tese “Psiquiatria e Religião – a
prevalência de transtornos mentais entre ministros religiosos”,
apresentada na Faculdade de Medicina da Universidade de São
Paulo para obtenção do título de livre-docente junto ao
Departamento de Psiquiatria, elaborou uma extensa revisão da
literatura sobre o uso da religião, com os seus benefícios e
malefícios. Ele cita, entre outros, os artigos de Allport e Ross, que
classificaram a experiência religiosa como extrínseca e intrínseca,
sendo a primeira apenas um meio para se atingir determinado fim,
e a segunda, uma estrutura que realmente atribui um significado à
vida de uma pessoa. A pessoa motivada extrinsecamente usa a
sua religião, enquanto a que é motivada intrinsecamente vive-a.
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Outros autores, como Batson e Ventis (citados em 10), criticam a
classificação como intrínseca e extrínseca, que deixaria de lado
aspectos importantes da experiência religiosa. Propuseram
classificar a religião como meio, fim e busca. A religião como meio
seria aquela utilizada para obter segurança nas necessidades
pessoais do indivíduo, como obter bons negócios ou mesmo a
segurança de um status social. Os judeus convertidos à força
durante a Inquisição espanhola ou a conversão religiosa para
casar-se com alguém de outra fé são exemplos desse tipo de uso.
A religião como fim envolve a verdadeira crença, e a religião é
vista realmente como uma resposta final para o ser humano. A
religião como busca leva o homem a enfrentar as questões
existenciais em toda a sua complexidade, resistindo às respostas
simples e concretas. Segundo esses autores, esta seria a
abordagem mais madura da religião, cética em relação às crenças
ortodoxas tradicionais e suas respostas, e aberta à sensação de
incompletude e a novas tentativas.
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Podemos explicar a discrepância das observações dos diferentes
autores sobre os benefícios e os malefícios da religião, porque eles
não controlaram variáveis como o uso que um indivíduo faz de sua
religião.
Os psiquiatras usam as classificações DSM-IV e CID-10 para rotular
transtornos mentais. O que estiver fora desta classificação é rotulado
como normal. Os psicanalistas têm um conceito diferente de
transtorno mental: todos nós, aparentemente normais, temos núcleos
psicóticos, que fazem parte da nossa personalidade, podendo
irromper em estados regressivos. Portanto, fatores e variáveis
relacionados a esses núcleos devem ser pesquisados na abordagem
da morte por suicídio. Os fatores biológicos são mais facilmente
demonstráveis; vários estudos demonstraram que as monoaminas,
especialmente a serotonina, desempenham uma função no
comportamento suicida.
Marcelo F. de Mello11 pesquisou em sua tese se o suicídio seria
sempre conseqüência de uma doença mental ou se nem todas as
tentativas de suicídio ocorreriam devido a um transtorno mental. O
referencial que ele usou foi o psiquiátrico, em que o conceito de
patológico está atrelado às classificações psiquiátricas.
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Se pesquisarmos outros autores, encontraremos explicações médicas,
sociológicas, culturais, religiosas e até místicas para a morte por suicídio,
e observaremos divergências e discrepâncias nos resultados das
observações. Muitos artigos feitos por meio da “autópsia psicológica” e
ancorados nas classificações psiquiátricas não conseguem controlar
diversas variáveis.
Em sua tese, Marcelo F. de Mello admitiu não poder concluir que todas
as tentativas de suicídio são expressão de uma doença mental.
Ao longo do tempo, vários textos já foram escritos sobre a morte e a
arte de morrer. Dois deles são tradicionais: o Bardo Thodol e o Ars
Moriendi. Ambos fornecem as etapas e a condução do moribundo no
caminho da morte. Entre os autores atuais, Kubler-Ross7 escreveu vários
livros sobre a morte e a arte de morrer.
No Bardo Thodol17, o acompanhante do moribundo, neste caso o
Lama, o coloca em condições favoráveis, para que possa abrir-se para o
que a tradição chama de “A Clara Luz”. O Lama convida o moribundo não
só a evitar confinar-se em seus remorsos, rancores e sintomas, mas
também a ir ao encontro de si mesmo. É como se a morte fosse o
momento de despertar o que há de mais profundo no ser. O processo do
Bardo Thodol é um convite à expansão criativa da espiritualidade do ser
humano.
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O texto do Ars Moriendi2 assinala várias provas que têm de ser
cumpridas no processo de morte. Ele é útil na preparação para a
morte, bem como no acompanhamento de um moribundo. Cita
diferentes provações:
1.Dúvida – Aqui são colocadas questões sobre a nossa existência e o
sentido da vida. Não há mais nada... E agora, o que haverá do outro
lado?
2.Desespero – Além da dúvida, surge o desespero. O indivíduo sente-se
abandonado, perdido, etc.
3.Apego – Aqui debate-se a alternância entre o ser e o ter. Sentir a perda
da posse da vida – o TER –, e o fato de deixar de existir – NÃO SER.
4.Impaciência e Cólera – O moribundo pede para morrer, pede que
desliguem os aparelhos, etc.
5.Orgulho – É quando o indivíduo se coloca numa posição de não
precisar de mais ninguém, quando parece aceitar a morte. Embora esta
atitude estóica pareça ser nobre, o Ars Moriendi alerta que se trata de um
narcisismo defensivo ou um orgulho, e que no lugar do orgulho deve-se
colocar a humildade.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
O Ars Moriendi aponta que, com a neutralização da dúvida pela
fé; do desespero pela confiança; do apego (avareza) pela
generosidade; da cólera pela paciência; do orgulho pela
humildade, somos conduzidos ao estado de abandono, de paz.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Elizabeth Kubler-Ross7, 8, usando critérios clínicos de
observação de moribundos, propõe as seguintes fases no espaço
de tempo entre a vida e o momento da morte:
1.Dúvida – Dificuldade de acreditar no que está acontecendo e
necessidade de negar a realidade. Esperança de um milagre ou erro
diagnóstico.
2.Revolta ou Cólera – Volta-se contra todos: a humanidade, os médicos,
etc. Esta fase deve ser descarregada para que seja possível passar para
a seguinte.
3.Fase da barganha – Compreendendo o aspecto inevitável da morte, o
indivíduo procura, por meio de orações, fazer uma barganha com Deus,
para manter a permanência da vida. Dê-me a permanência da vida e eu
lhe darei isto ou aquilo.
4.Período de tristeza – O paciente fica mais ensimesmado,
interiorizando-se e estabelecendo menos comunicação interpessoal. Há
um certo esgotamento emocional. Ao interiorizar-se, procura refletir.
5.Fase de aceitação e resignação.
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Essas etapas descritas por Kubler-Ross são apenas referenciais
de reações, e não significam que todo paciente percorra todas
essas fases e nessa ordem. Alguns começam pela cólera, outros
pela tristeza; alguns permanecem até o fim em um estado de
negação.
Não podemos impedir a realidade da morte de um moribundo
nem o sofrimento afetivo e espiritual que faz parte do morrer, mas
podemos impedir que este sofrimento seja vivido na solidão e no
abandono.
A sociedade ocidental está condicionada a olhar sempre para o
mundo exterior. A morte nos convida a olhar para o mundo interior.
O profissional da saúde deve evitar o uso de autoridade para
com a família; em vez disso, deve aprimorar a escuta e a
disponibilidade.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
É comum que moribundos, a família e até mesmo os
profissionais da saúde assumam uma atitude de que não há mais
nada a fazer e, nessas condições, levantam a hipótese de abreviar
a vida. Desconsideram assim o espaço de tempo entre a vida e a
morte, em que se pode trabalhar a mente do moribundo, enquanto
está operando.
Modernamente, em vários lugares do exterior e do Brasil,
existem equipes especializadas no tratamento paliativo13.
A experiência da dor física e mental pode ser mais temível que a
morte em si.
A eliminação ou atenuação da dor física e mental é um fator
fundamental para que o moribundo consiga manter um contato
razoável com o profissional da saúde e não fique monopolizado
pelos seus sintomas.
Atualmente, o ideal de morte pressupõe que seja súbita e sem
sofrimento, para que não se tenha noção da passagem da vida
para a morte.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Ao estudar os costumes de diversos povos em épocas distintas,
observam-se quatro maneiras de lidar com o corpo do mortos:
1.solidificação, por meio do embalsamamento;
2.supressão, por meio da cremação;
3.exposição, por meio do afastamento (em rios, torres, etc.);
4.ocultamento, por meio da inumação.
No Egito Antigo, os faraós eram embalsamados e
acompanhados de esposas, servidores, riqueza e tudo o que
fosse necessário para o seu deleite em sua segunda vida. Cada
cultura apresenta um modo particular de praticar ritos para lidar
com a morte.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Philippe Ariès1, em sua obra O homem diante da morte,
pesquisou a imagem da morte na Idade Média, através do estudo
da literatura daquela época. As fontes de investigação constituíam
narrativas de romances e poemas, como, por exemplo, o da
Távola Redonda; textos literários, como os de La Fontaine, a
Odisséia, de Homero, e muitos outros; documentos históricos; as
Sagradas Escrituras; textos de diferentes autores; documentos
judiciários; relatos de concílios, como o Concílio de Braga, do ano
563; códigos, como o Código de Teodoro; inúmeros relatos de
autores medievais; textos de autores eclesiásticos e historiadores
funerários da Idade Média; testamentos; registros paroquiais;
iconografias nas telas dos portais decorados com cenas sagradas;
pinturas de diferentes artistas; registros de cemitérios; e inscrições
em túmulos, dentre outras.
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Em todas essas fontes, o autor procurou observar a atitude do
homem diante da morte, sob o ponto de vista histórico e
sociológico. Encontrou uma grande variação de comportamentos,
conforme a época e o meio social em que viviam os povos
estudados. Suas pesquisas limitaram-se aos povos ocidentais,
procurando uma explicação para o comportamento do homem
diante da morte na sociedade cristã ocidental, desde a Idade
Média até os nossos dias.
Philippe Ariès apontou várias transformações da conduta do
homem diante da morte: a morte excluída; a morte aceita e
previsível; a morte macabra, etc.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
O autor lembra que os povos antigos temiam a vizinhança dos mortos
e os mantinham a distância. Veneravam as sepulturas, porém com
cautela, pois temiam a volta dos mortos. A Lei das Doze Tábuas
prescrevia que nenhum morto fosse inumado ou incinerado dentro da
cidade. O Código de Teodoro determinava que todos os despojos
funerários fossem transportados para fora de Constantinopla. Por esse
motivo, os cemitérios da Antigüidade estavam localizados sempre fora
da cidade, ao longo das estradas, como a Via Ápia, em Roma.
Com o tempo, essa repugnância à proximidade dos mortos foi
deixando de ser tão intensa entre os cristãos antigos. Assim, os mortos
deixaram de amedrontar os vivos. Ariès levanta como hipótese que a fé
na ressurreição dos corpos, admitida pelos cristãos e associada ao
culto de antigos mártires, favoreceu a familiaridade com os mortos.
Desse modo, o espaço que separava a terra dos mortos da cidade
onde moravam os vivos foi-se tornando indistinto. Em torno dos
cemitérios instalavam-se bairros residenciais. A penetração dos mortos
no coração da cidade significava o abandono da antiga exclusão dos
mortos e a sua substituição por uma atitude nova, de indiferença ou
familiaridade.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
No decorrer do tempo, a familiaridade com os mortos no cemitério
foi permitindo que o povo o usasse como praça pública,
freqüentada como um passeio público, e foro, onde se dabatiam os
assuntos espirituais e temporais. Além disso, o cemitério era usado
para diversões e amores. Segundo alguns autores, o cemitério era
um local barulhento e agitado, chegando até a abrigar feiras para a
venda de objetos e comida.
Alguns sínodos, como o de Rouen (1231), proibiram danças e
algazarras no cemitério, sob pena de excomunhão.
Através de seus relatos, Ariès aponta as mudanças de conduta do
homem diante da morte ao longo do tempo. Assim, no estudo da
imagem da morte na Idade Média Alta, ele usa como modelo a
descrição da morte de Rolando, além de outros relatos da literatura
daquela época, em que as pessoas não morriam de qualquer
maneira. A morte era regulamentada por um ritual costumeiro. Ela
não vinha de forma traiçoeira e súbita, pois o moribundo recebia
sinais que a prediziam. Sonhos, mudança de clima e sintomas eram
considerados como pressentimentos.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Naquela época, a morte repentina era considerada feia, pois
acontecia ao acaso, sem espectadores, e não se podia cumprir
todo o ritual culturalmente valorizado. A morte era física, porém
acreditavam no acesso da alma à vida eterna. Desse modo, podia
ser considerada como um renascimento. Para ilustrar a morte
dessa época, Ariès serviu-se da imagem de Galahad (personagem
da Távola Redonda), que, no leito de morte, se entregou a Deus em
júbilo, por acreditar que estava sendo levado para o paraíso.
Naquela época, morrer era um ato público: as pessoas,
pressentindo a chegada da morte, preparavam-se, chamavam os
amigos e criados e despediam-se. Morria-se em público. Ariès
denominou este tipo de morte de morte domada.
No Século das Luzes, a morte começou a ser colorida com
aspectos românticos, e, a partir do século XX, tornou-se camuflada,
escondida, foi banida do espaço familiar para as instituições
hospitalares.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
A medicalização intensa transformou a morte em um fato
inconveniente. O isolamento do agonizante nas décadas de 1920 e
1930, ainda timidamente efetuado, tornou-se institucionalizado e
generalizado a partir da década de 1950. A morte perdeu o caráter
público. Até mesmo a família ficou privada do acompanhamento na
morte de um ente querido. A morte passou a ser interdita. O luto
não podia ser manifestado em público e a crise de lágrimas passou
a ser considerada como crise de nervos e o luto, como doença. A
medicalização triunfava e as pessoas não morriam mais em casa.
Pesquisadores da relação médico-paciente em cancerologia
detectam a negação da morte no contexto hospitalar. Mesmo nos
hospitais, onde a morte acontece, a palavra morte é pouco
pronunciada, como se significasse o fracasso da instituição e do
profissional. Por meio de entrevistas feitas com médicos
cancerologistas,
estudos
apontaram
dificuldades
desses
profissionais em lidar com pacientes terminais. Alguns tendem a
manter a esperança de recuperação sempre acesa, apesar da
gravidade dos casos.
A MORTE E SEUS VÉRTICES HISTÓRICO, SOCIOLÓGICO E MÉDICO
Perceber o profissional da saúde como um ser humano, com seus medos,
omnipotência, impotência, negações, acertos e sofrimentos, é fundamental
para a compreensão e possível intervenção na relação desse profissional com
o paciente terminal.
A negação da morte, que faz com que ela seja escondida e não
compreendida, caracteriza a sociedade ocidental contemporânea.
Desde a mais remota Antigüidade, o tema da morte, este inquietante destino
fatal do homem, tem suscitado indagações e respostas. O núcleo do problema
reside na oposição de crenças: continuidade e imortalidade (mesmo que sob
outros aspectos ou estados) versus interrupção total da continuidade, o nada,
o nunca mais.
A morte é geradora de diferentes sentimentos: saudade, tristeza, solidão,
culpa e até mesmo contentamento. Em diferentes culturas e épocas, a morte é
vivenciada de maneiras diversas.
Os fatores culturais e religiosos são, sem dúvida, os agentes que plasmam a
forma como o homem expressa o seu contato com a existência da morte.
Sendo assim, o profissional da saúde que se propõe a se relacionar com um
paciente e estudar o seu caso não pode alienar-se dos conhecimentos
históricos e sociológicos da forma de expressão daquele paciente em seu
contato com a existência da morte.
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A administração de medicamentos para a angústia depressiva ou
persecutória frente a este contato com a morte é, além de
insuficiente, um tratamento parcial.
Eliane Moura Silva15, uma autora brasileira, reuniu, em sua tese
de doutoramento (“Vida e morte: o homem no labirinto da
eternidade”), textos que relatam este contato do homem com a
morte desde a mais remota Antigüidade até os nossos dias e sua
correlação com a religiosidade. Constatou que o homem quase
sempre procurou admitir algum tipo de sobrevivência espiritual e
imaterial após a morte, negando, portanto, o Nada, o Nunca Mais.
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A história nos mostra que nas sociedades tribais xamânicas havia a
crença numa “terra dos mortos”, habitada pelos espíritos das pessoas que
se foram. Os gregos, nos tempos homéricos, iam para o Hades após a
morte; os hebreus, para o Sheol. A tradição das seitas filosófico-religiosas
órficas e pitagóricas, assim como o Vedismo, admitiam também esta
continuidade por meio de uma essência imortal divina. Toda filosofia e
religião hinduísta circulava em torno da idéia de morte, renascimento e
libertação, portanto, de continuidade e caminho para conquistar a
imortalidade original. Nessas condições, a moral, os costumes e até as leis
giravam em torno dessas idéias. No antigo império egípcio, acreditava-se
que o morto viveria algum tempo sob a terra (como se estivesse
adormecido) e, após o julgamento, poderia ser sentenciado à consumição
ou alcançar o Reino da Eternidade, ao lado dos deuses. A ressurreição foi
um dos simbolismos religiosos mais importantes das crenças funerárias
egípcias, ligada à arte da mumificação.
Diferentes concepções religiosas antigas admitem, todas elas, a
continuidade de alguma forma de existência.
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As concepções religiosas atuais, como o cristianismo, o judaísmo,
o islamismo, o espiritismo, etc., novamente apontam para a crença
na continuidade de alguma forma de existência após a morte.
Há um grande esforço da ciência para demonstrar que a morte
constitui o término total, o nada, o nunca mais, ou seja, a
descontinuidade. Fenômenos anteriormente considerados como
sobrenaturais foram analisados e classificados como naturais.
Assim, por exemplo, os fenômenos de telecinesia, xenoglossia,
percepção extra-sensorial, telepatia, etc. são objetos de estudo da
ciência, que, por meio da parapsicologia, encontram explicações
naturais.
Apesar do avanço da dessacralização, segundo a qual o que era
visto como sobrenatural passou a ser natural, a sacralização e o
sagrado (hierofania) ainda são funções encontradas na relação do
homem com o mundo que o cerca.
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Como diria o filósofo Husserl: “colocamos entre parênteses a
essência do fato e investigamos o uso do mesmo”. Assim, o uso que o
homem faz dessas concepções revela a sua intencionalidade e sua
estrutura psicológica, e é aí, no entendimento dessa psicodinâmica,
que o profissional da saúde poderá obter elementos para conhecer um
paciente diante da morte e utilizar a melhor forma de ajudá-lo, de
acordo com suas próprias concepções.
O homem diante da morte, em qualquer cultura ou época, sofre dores
físicas e mentais. A dor física surge devido ao estrago que a doença ou
o ferimento faz em seu corpo. A dor mental surge se ele tiver tempo de
encarar a passagem da vida para a morte, entrando em contato com
emoções como: solidão, abandono e vivências de perda.
As vivências de perda ocorrem pelo estancamento das permutas
relacionais, pela degradação física e às vezes mental, pela perda da
imagem com a qual sempre esteve identificado, pela perda do controle
das coisas e, principalmente, de sua autonomia.
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A experiência dessas perdas pode ser mais temível do que a
morte em si.
O profissional da saúde deve informar-se adequadamente para
compreender a complexidade da experiência de morte e poder
preparar o paciente para a sua própria morte e os familiares para a
perda do ente querido.
É evidente que o profissional da saúde deverá refletir sobre os
pressupostos antropológicos do paciente e dos familiares durante o
acompanhamento, isto é, conhecer a visão e o valor que eles atribuem
a esse momento da vida.
Como podemos pretender escutar o sofrimento espiritual de um
moribundo se não começamos por escutar o nosso próprio sofrimento
interior? Como é que uma equipe hospitalar pode assumir essa
dimensão espiritual do acompanhamento se não está em condições de
refletir sobre a sua própria concepção da morte?
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No hospital, antes de tudo, o que se faz é cuidar dos corpos
doentes. Pouca atenção é dada à vida subjetiva dos pacientes.
Com a ajuda de tranqüilizantes e antidepressivos, tentam calar a
angústia e o sofrimento psíquico do paciente, sem mesmo
questionar se tal sofrimento não seria um sinal de uma separação
profunda das raízes e origens de cada um.
A exclusão da morte e do sofrimento subjetivos no hospital não
conseguem evitar o questionamento espiritual que reside nas
profundezas de todos os seres humanos, pronto a emergir em
ocasiões de crise e luto.
A espiritualidade estimula o indivíduo a questionar fatos de sua
existência. Diz respeito à sua relação com os valores que o
transcendem, sejam quais forem os nomes que lhes atribua.
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Os profissionais da saúde apresentam, muitas vezes, confusão e solidão
ao lidar com os paciente terminais. Na maioria dos casos, faltam-lhes
referenciais para responder às suas próprias interrogações. Demonstram
dificuldade de falar do assunto com os colegas, por medo de serem
julgados e não serem compreendidos, e nessas condições há um
impedimento para que a equipe, no quadro institucional, aborde e elabore
vivências que sejam demasiadamente íntimas.
Os profissionais da saúde que trabalham em clínicas médicas, hospitais
do coração, pronto-socorros, UTIs, etc. são forçados a entrar em contato
com a morte e a experiência de passagem da vida para a morte, com as
conseqüentes manifestações emocionais dos pacientes, familiares e as
suas próprias.
Ao receber a notícia da existência de uma doença fatal, o paciente sente
como se houvesse uma “espada sobre a sua cabeça”. O ser humano, em
geral, se aliena de sua morte e não está preparado para ela.
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Com a notícia da doença, o indivíduo entra em contato com o fim, o
nunca mais, ou seja, a morte. No início, alguns pacientes podem
apresentar uma reação catastrófica, de acordo com a estrutura emocional
constituída até esse momento. Terão de se adaptar à nova realidade,
muitas vezes submetendo-se a tratamentos de longa duração, cirurgias,
radioterapias, assumindo gastos com remédios e médicos e constatando
que seu tempo para outras atividades diminuirá consideravelmente e será
ocupado pela doença.
Pacientes terminais, com diagnóstico fechado no sentido de êxito letal e
dores insuportáveis, sejam elas físicas ou mentais, suscitam a tradicional
polêmica da eutanásia. Há um movimento a favor dessa prática e um
movimento contrário a ela.
No Reino Unido, o médico britânico Harold Shipman, conhecido como
“Doutor Morte”, foi acusado do assassinato de pelo menos 250 pacientes,
em quase 25 anos de exercício profissional. Foi condenado à prisão
perpétua. Shipman matava suas vítimas com uma overdose de heroína.
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A eutanásia, assim como a pena de morte, são problemas que
necessitam ser cuidadosamente estudados, não só sob o ponto de vista
da bioética, mas também dos fundamentos científicos dos mecanismos
que levam a considerar a hipótese dessas práticas.
A bioética é constituída de três princípios básicos: o da autonomia, o da
beneficência (e da não-maleficência) e o da justiça.
De acordo com o primeiro, o paciente tem o direito de escolher o que
mais lhe convém; pelo segundo, o profissional da saúde busca o que é
melhor para o paciente; o terceiro determina o que deve ser feito de
acordo com as leis e a jurisprudência do país. É preciso sempre
considerar qual é a ideologia subjacente que determina a validade desses
princípios. Por exemplo:no uso do princípio da beneficência, os nazistas
cometeram maleficências e atrocidades.
A bioética deve colocar a universalidade do bem comum e da conduta
perfeita como um objetivo virtual, que determinará o caminho a ser
percorrido para o aperfeiçoamento desses três princípios.
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A professora Maria Celeste Cordeiro dos Santos14, professora associada da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em seu livro O equilíbrio
do pêndulo – A bioética e a lei: implicações médico-legais, fornece aos leitores
preciosas explicações sobre a dinâmica desses três princípios. Na
oportunidade de ministrar junto com a professora Celeste um curso de pósgraduação na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pudemos
aquilatar a grande erudição desta professora no assunto.
O tema “Bioética e paciente terminal” já foi debatido em muitos simpósios e
fóruns no Brasil.
Recentemente, em maio de 2001, houve um fórum sobre “O que fazer com o
paciente terminal?”, promovido pelo Cremesp. Reuniu mais de cem pessoas,
coordenadas por Marco Segre, professor doutor de Medicina Legal. Os
resultados apontaram um avanço na humanização do atendimento e respeito
à autonomia do paciente. Segre lembrou que há quinze anos ainda era
discutível se o médico poderia ou não desligar os aparelhos em caso de morte
cerebral, um procedimento hoje aceitável.
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Em seu leito de morte, o governador Mário Covas utilizou-se da lei
10241 ao optar por não ir para a UTI. A lei estadual 10241 ou Lei
Covas, de 1999, dispõe sobre o direito dos usuários dos serviços de
saúde, assistência médica e cuidados paliativos em locais apropriados
ou em domicílio. De acordo com essa lei, os pacientes podem recusar
tratamentos dolorosos ou extraordinários que visam prolongar a vida e
também optar pelo local de sua morte.
Entende-se por eutanásia ativa o movimento de intervenção ativa do
médico, por meio de medicamentos, para provocar a interrupção da
vida.
Entende-se por eutanásia passiva a abstenção do médico em
prolongar a vida do paciente, optando por não intervir ou ligar
aparelhos para mantê-lo vivo. Nesse caso, se um paciente terminal
subitamente tivesse uma parada cardiorrespiratória momentânea, não
receberia a aplicação de injeções terapêuticas nem seria utilizada
nenhuma aparelhagem, a fim de deixá-lo morrer naturalmente.
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O vértice religioso considera a vida como algo sagrado e, portanto, sob
este ponto de vista, o homem não teria o direito de interrompê-la sob
qualquer circunstância. É o caso, por exemplo, da ideologia judaico-cristã.
Um vértice não-religioso considera a vida como uma forma de existência
válida, de acordo com a qualidade de vida, e não como algo sagrado.
O padre Leo Pessini, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo, elaborou uma tese de doutorado em
teologia moral, sobre o tema “Distanásia: até quando prolongar a vida?”12,
em que tece considerações sobre os limites da vida.
Distanásia é antônimo de eutanásia. Padre Leo defende a ortotanásia,
que é a morte no “tempo certo”, sem abreviar ou prolongar artificialmente a
vida. Ele condena a distanásia praticada em muitas UTIs. Segundo a
filosofia do padre Leo, “É possível curar às vezes, aliviar muito
freqüentemente e confortar sempre”.
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O parâmetro “qualidade de vida” é relativo, pois a determinação de seus
limites é perigosa, admitindo-se que o indivíduo e a sociedade tenham o
direito de exercer o livre-arbítrio, escolhendo o limite do que seria
considerado qualidade de vida.
Algumas perguntas fundamentais devem ser feitas pelos profissionais da
saúde: “Por que o indivíduo pede para morrer? Quais as causas que o
levaram a isso? Será que o número de pacientes que pedem para morrer
diminuiria se melhorássemos os efeitos destas causas negativas?”
Se observarmos, por exemplo, os trabalhos publicados a respeito de
pacientes com câncer em estado grave, verificaremos que, em quase
todos os casos, existem sintomas que ocorrem em proporções elevadas,
como dor física, 84%; dispnéia, 47%; insônia, 51%; anorexia, 71%; etc.,
sem considerar a dor mental, que não foi estatisticamente estudada.
Devido à intensidade da dor causada por esses sintomas físicos e
mentais, muitos pacientes pedem a morte.
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No Oregon, Estados Unidos, há permissão para a prática da eutanásia
em pacientes terminais. Se, após quinze dias de dois pedidos verbais e
um por escrito, na ausência de depressão e ciente das possibilidades de
evolução do quadro, o paciente ainda desejar a morte, terá permissão de
suicidar-se tomando comprimidos fornecidos pelo hospital e administrados
pelo próprio paciente. O hospital fornece os comprimidos que o levarão ao
chamado “suicídio assistido”. Na Holanda, esse tipo de prática também é
permitida.
Alguns artigos tentaram investigar o suicídio assistido considerando seus
aspectos epidemiológicos. Um artigo vindo do estado do Oregon, de 1999,
demonstrou que, de 23 casos de suicídio assistido, a maioria era de
pessoas solteiras que possivelmente não estavam suportando a perda da
autonomia e das funções corpóreas, que as impediam de ser autosuficientes. Os autores levantaram a hipótese de esta variável “perda de
autonomia” ser um dos fatores desencadeantes do pedido de suicídio
assistido.
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Outros fatores, como dor física e mental, diminuição de autonomia
e necessidade de uso constante de narcóticos, também podem
induzir o indivíduo a pedir o suicídio assistido, com a cumplicidade
da família.
Quando um indivíduo pede a morte, trata-se de um grande pedido
de socorro, de quem não agüenta mais. A insistência do pedido é
um atestado da ignorância do profissional da saúde ao minimizar as
causas que levaram o paciente a não suportar os fatores já citados,
ou mesmo da incompetência em utilizar os recursos existentes para
amenizar esses fatores.
A ignorância do médico e da medicina são fatores que promovem,
muitas vezes, o posicionamento a favor da eutanásia.
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Em seu livro Euthanasia and assisted suicide6, Samuel I.
Greenberg, psiquiatra e psicanalista, professor da Universidade da
Flórida, nos Estados Unidos, faz um levantamento das diferentes
variáveis do problema relacionado à eutanásia e ao suicídio
assistido. Ele apresenta uma síntese da experiência em outros
países; estuda os aspectos éticos e legais; investiga as opiniões de
clínicos, estudiosos da bioética, advogados, teólogos, etc., obtendo
significativas contribuições ao debate.
O que nós, profissionais da saúde, podemos fazer para minimizar
esses fatores que induzem ao pedido para morrer?
Precisamos nos preparar técnica e emocionalmente para lidarmos
com a nossa própria experiência de contato com a morte e o luto,
em suas diferentes formas de manifestação.
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Devemos estar aparelhados para combater tanto a dor física
como a dor mental do paciente, para que sua vivência de solidão
seja transformada em solidariedade; a sua experiência de
abandono seja substituída pelo companheirismo afetivo; sua
vivência de perdas, que provocam dor mental, como a perda da
relações habituais de permuta, a perda, pela degradação física, da
imagem com a qual sempre esteve identificado, a perda do controle
das coisas e da sua autonomia, seja compensada, neste último
espaço de tempo de sua vida, por estar acompanhado ao refletir
sobre o sentido da vida e da morte.
Esta reflexão fará com que a doença em si não ocupe todo o
espaço de seu ser e ele possa, no tempo que lhe resta, sentir ainda
um outro tipo de continuidade, que não é material, mas espiritual,
proporcionada pelas reflexões.
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Esta reflexão espiritual diz respeito aos seus próprios valores e sua
tendência à transcendência. A transcendência é a continuidade do
aperfeiçoamento de tudo que nos liberta do imanente. A imanência é tudo o
que nos limita e aprisiona aos limites e funções permanentes de nossos
aspectos animal e orgânico.
O profissional da saúde irá acompanhar o moribundo para auxiliá-lo a dirigir
suas reflexões para o centro espiritual de sua transcendência, evitando que
ele fique aprisionado e confinado em seus sintomas, identificando-se com
eles.
Nessas condições, o profissional, com uma atitude de presença, escuta,
observação da dinâmica e dos valores do moribundo, poderá favorecer o
surgimento de tentativas de reestruturação do sentido espiritual da vida, e o
paciente, sentindo continuidade no processo, poderá vivenciar a construção
de algo novo, evitando ficar confinado em seus sintomas. O profissional da
saúde deve acompanhar o paciente, demonstrando respeito e confiança, para
que ele possa compreender que não está reduzido ao seu corpo em
sofrimento, mas que existe “espaço” dentro dele para evolução e continuidade
de seu Ser transcendental.
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No Brasil, já existem equipes especializadas em tratamento paliativo do
paciente terminal em vários centros médicos. Essas equipes são
constituídas por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e
fisioterapeutas13. Apresentam uma postura mais abrangente no
tratamento de pacientes terminais. O médico programa reuniões com a
família, em que esclarece as dúvidas sobre o diagnóstico e o prognóstico,
além do tratamento a ser efetuado. Procura também conversar com a
família sobre os desejos do paciente e seu estado geral. O psicólogo ajuda
os familiares e o paciente a lidar com as dificuldades da aproximação da
morte e do luto. O enfermeiro orienta os familiares na prática de cuidados
físicos especiais, como, por exemplo, limpeza, curativos, uso de
analgésicos, etc. O assistente social auxilia nas transações
administrativas, como, por exemplo, aposentadoria do paciente, seguro
social, visitas, etc. O paciente é tratado de modo que o tempo de vida que
lhe resta seja vivido com dignidade e a melhor qualidade de vida possível,
proporcionando conforto físico, psicológico e espiritual.
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Questiona-se se o profissional deve ou não dizer a verdade ao
paciente. Na realidade, não se trata de escolher entre a mentira e a
verdade, mas como dizer a verdade. A forma de comunicação
verbal e extraverbal do profissional deve ser cuidadosamente
escolhida, lembrando sempre que o tempo de vida que resta ao
paciente pertence a ele e, sendo assim, ele é que deve determinar
o seu uso.
Quando as metas de melhorar a qualidade de vida e prolongá-la
se tornam inatingíveis, mudam-se as prioridades e inicia-se a
chamada “sedação”, como opção terapêutica final.
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Um grupo de cerca de 400 pacientes do Hospital do Câncer, em
São Paulo, já se beneficiou, nos últimos cinco anos, de uma nova
terapia, capaz de aliviar a dor provocada pelo surgimento de
metástases ósseas. Trata-se do samário 153, um material
radioativo que, ao ser injetado na corrente sangüínea, reconhece e
localiza os focos de metástase, concentrando-se neles e liberando
radioatividade com efeitos neutralizadores da dor. Sendo assim,
quando o tratamento não obtém resposta com as terapias
clássicas, como os opiáceos, podemos hoje utilizar este novo
medicamento. Pacientes com metástase verbalizaram que a dor
não os deixava ou aliviava um segundo sequer, em qualquer
posição que ficassem, sentados, deitados ou em pé, mas, com este
novo medicamento, houve melhora substancial.
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