Imagens Shutterstock T ente imaginar a dificuldade que alguém tem para dizer não, quando o corpo e a mente dizem sim. Esse é um dos desafios diários de quem luta contra o alcoolismo. Para pessoas como o cearense Antônio Tomé, de 62 anos, que já experimentaram as piores consequências da dependência do álcool, recusar um copo de cerveja ou uma taça de vinho pode ser a chance de reconstruírem suas vidas. «Eu era agressivo, me envolvi em acidentes de carro e passava a maior parte do tempo em bares. Fui um pai ausente e perdi o controle da minha vida», lembra ele, que largou o vício há 15 anos e, hoje, ajuda outros dependentes a superá-lo. O alcoolismo é uma doença crônica, que não tem cura, mas pode ser controlada com abstinência. O primeiro passo para superar o vício é reconhecer o problema e aceitar ajuda, especialmente da família. Estima-se que até 15% da população mundial seja dependente do álcool, um problema que pode trazer consequências para a saúde tão sérias quanto a maconha e a cocaína. Para você ter uma ideia, a cada internação provocada por essas drogas acontecem 20 por alcoolismo. Não existe uma causa específica, seja biológica, psicológica ou social, para alcoolismo compulsão que pode destruir Milhões de pessoas tentam vencer a dependência do álcool, tão perigosa quanto o vício em maconha ou cocaína. Reconhecer o problema e aceitar o apoio da família são fundamentais para o controle da doença. 18 proteste saúde 53 • junho 2016 Álcool na gravidez BEBÊ PODE TER ANOMALIAS o alcoolismo. Parte dos especialistas aponta uma origem genética, já que a incidência de dependentes que são filhos, netos e sobrinhos de alcoólatras é maior, se comparados ao resto da população. Ambientes familiares tensos também podem estimular o vício. Existem ainda traços de personalidade que predispõem à dependência, como timidez, agressividade e imaturidade sexual. Mas ninguém vira alcoólatra do dia para a noite. Tudo começa, geralmente, como um hábito esporádico, que vai ficando frequente. O álcool acaba com os problemas do cotidiano, nem que seja por algumas horas. “Eu era inibido e o álcool tirava a minha timidez. Ficava mais falante e tinha mais sucesso com as garotas”, revela Antônio. Dose precisa ser cada vez maior Com o tempo, porém, o organismo vai ficando tolerante, ou seja, o cérebro precisa de uma dose cada vez maior para alcançar os mesmos efeitos. Nessa etapa, algumas pessoas percebem o descontrole perante a bebida e conseguem frear o consumo excessivo. Para outras, o álcool se torna uma prioridade, uma compulsão. Os reflexos disso podem levar tempo para aparecer e ser percebidos, contudo são avassaladores: abandono da rotina, afastamento do trabalho, dívidas por causa da bebida e mudanças radicais de comportamento. Este foi o caso de Antônio, que chegou a ficar uma semana longe de casa, bebendo de bar em bar: “Não queria mais trabalhar e minha esposa passou a ter vergonha de mim, pois eu me comportava de modo inadequado na frente das pessoas”. Familiares e amigos sofrem e lutam em vão para fazer o dependente parar de beber, o que torna a convivência com ele, muitas vezes, insuportável. Muitos não vencem abstinência A longo prazo, o álcool intoxica o organismo e causa problemas digestivos, inflamação da mucosa gástrica e cirrose. O alcoólatra pode ficar anêmico e com baixo número de glóbulos brancos, sem falar na diminuição da libido, impotência e até mesmo esterilidade. Com tantas consequências ruins, a maioria dos dependentes tenta abandonar o vício, mas não consegue superar as crises de abstinência. > Abuso ou vício? Estabelecer uma diferença entre o consumo excessivo de álcool, como hábito social, e o vício (alcoolismo) nem sempre é tarefa fácil. Algumas atitudes, contudo, ajudam os especialistas a distingui-los. Abuso Filhos, netos e sobrinhos de alcoólatras seriam mais propensos à dependência Não existem estudos que indiquem uma quantidade segura para ser ingerida sem afetar o bebê. Desse modo, é melhor evitar o consumo na gestação. - A pessoa consome grande quantidade de bebida alcoólica porque quer. - Chega frequentemente ao estado de embriaguez. - Dirige alcoolizada. - Esquece tarefas de trabalho, estudos e outras responsabilidades por causa do álcool. Alcoolismo - A pessoa não controla o ato de beber. - Tem necessidade de consumir cada vez mais. - Apresenta sintomas desagradáveis quando interrompe o consumo. - Troca a rotina e a família pelo vício. - Insiste no uso do álcool apesar dos prejuízos emocionais, físicos e financeiros. > junho 2016 • 53 proteste saúde 19 entrevista “Não há cura, mas controle.” Segundo nosso entrevistado, o preconceito da sociedade e a negação da família dificultam a recuperação do dependente. Qual é o perfil do dependente do álcool? O dependente aumenta, com frequência, a dose de álcool que consome “para relaxar”. Com o tempo, tende a abandonar atividades profissionais e acadêmicas para beber. O alcoolismo é uma doença crônica, sem cura, mas tem controle. Quais mudanças de comportamento a família pode observar? Alimentação, sono e hábitos de higiene mudam, assim como a capacidade de estudo e trabalho. O dependente apresenta mudanças em suas atitudes. Se estiver desconfiada, a família deve procurar um especialista. Quais fatores dificultam a recuperação do dependente? O preconceito da sociedade é o maior deles. A chance de ter um familiar com problemas de ordem mental aterroriza as pessoas e isso leva à negação da dependência. O alcoolismo pode conduzir a atos insanos, mas o alcoólatra não é um mau caráter. Como pais e escolas podem ajudar a reduzir o consumo de álcool por jovens? É preciso despertar maior interesse para atividades acadêmicas, culturais e esportivas. Precisamos alertar as crianças, antes da idade escolar, sobre os riscos do uso de substâncias tóxicas. 20 proteste saúde 53 • junho 2016 Jorge Jaber Psiquiatra, especialista em dependência química O álcool intoxica o corpo e causa vários males, como anemia, cirrose e perda da libido > Entre 12 e 24 horas após a última dose, podem surgir tremores, fraqueza dos membros, sudorese e náuseas. Algumas pessoas sofrem convulsões e alucinações. O maior perigo é o dependente chegar ao delirium tremens, quando acontecem insônia, pesadelos, desorientação e tremores nas mãos, que se estendem à cabeça e ao resto do corpo. Os sintomas de abstinência são tão desagradáveis que as recaídas tornam-se comuns. Tratamento é multidisciplinar É por isso que o tratamento multidisciplinar, liderado por um especialista em dependência química, é tão importante na fase inicial do tratamento. Dessa forma, os sintomas podem ser amenizados, evitando que o paciente volte a beber, e as consequências físicas, psicológicas e sociais do vício podem ser tratadas. A terapia com grupos de ajuda é um dos métodos mais eficazes no controle do alcoolismo e é indicada, inclusive, paralelamente ao tratamento médico. Em todo o mundo, os Alcoólicos Anônimos (AA) são referência no apoio a alcoólatras há décadas. Na entidade, voluntários (em geral, dependentes em recuperação) dão apoio emocional e ajudam o paciente a aceitar sua limitação, sem qualquer custo. Assim, ele ganha autoconfiança para continuar o tratamento. A psicoterapia individual também atua como uma ferramenta importante, em que o dependente revela suas angústias e lida com seus medos. O psicoterapeuta pode identificar fatores de risco e criar estratégias de comportamento que ajudem a evitar recaídas. Em geral, os médicos ainda prescrevem medicamentos que auxiliam o alcoólatra a reduzir o consumo, alcançar e manter a abstinência. A alternativa mais radical, embora eficaz em boa parte dos casos, é a internação em clínicas e hospitais psiquiátricos ou de reabilitação. A decisão deve partir de um especialista, com base em critérios claros, como sintomas de abstinência severos, presença de outra doença física Mais de 3 milhões de mortes ESTIMATIVA ANUAL DA OMS “Fui internado 19 vezes, mas valeu a pena insistir. Há 15 anos não bebo, nem uso drogas. Trabalho como conselheiro de uma clínica para dependentes. Faço pelas minhas netas o que não fiz pelos meus filhos por causa do vício.” Antônio Tomé, 62 anos O consumo excessivo de bebidas alcoólicas seria a causa desses óbitos, segundo a Organização Mundial da Saúde. ou psiquiátrica associada e tentativas anteriores de tratamento, sem sucesso. “Fui internado 19 vezes, mas valeu a pena insistir. Estou recuperado, me tornei um homem responsável e faço pelas minhas netas o que não fiz pelos meus filhos por causa do vício”, comemora Antônio. É consenso entre profissionais da saúde, no entanto, que nenhuma dessas ferramentas será eficaz se não houver a adesão e a motivação do paciente para alcançar e manter a abstinência, evitando o álcool para o resto de sua vida. Mudança de hábitos Família deve evitar superproteção DÍVIDAS – A família deve evitar cobrir cheques e dar dinheiro ao alcoólatra. Por mais doloroso que seja, é preciso deixá-lo sentir na pele as consequências dos próprios atos. ISCUSSÕES – Não adianta gritar e discutir com uma D pessoa embrigada. O ideal é esperar o efeito do álcool passar para tentar conversar. Pequenas mudanças na rotina fazem toda a diferença para um dependente em recuperação. O fundamental é afastar as chances de ter contato com o álcool, para evitar recaídas. Apoio Além de médicos e psicólogos, outros profissionais, como dentistas e terapeutas ocupacionais, ajudam na reconstrução da rotina do dependente. Dizer não Embora recaídas façam parte do tratamento, o dependente deve tentar excluir bebidas alcoólicas de sua vida para sempre. Cada dia sem álcool será uma vitória. RECAÍDAS – Elas estão previstas no tratamento do alcoolismo. Voltar a beber faz parte do processo e não significa que tudo está perdido. AUTOESTIMA – Os familiares devem cuidar da saúde e manter as atividades diárias. Afinal, só poderão ajudar o dependente se também estiverem bem. GRUPOS DE AJUDA – Entidades como Alcoólicos Anônimos (www.alcoolicosanonimos.org.br) e Al-Anon (www.al-anon.org.br) e grupos religiosos podem ajudar familiares e amigos de alcoólatras. TRATAMENTO NO SUS – O Sistema Único de Saúde (SUS) atende dependentes por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps). A família deve verificar se existe algum posto em sua cidade ou próximo de sua casa. Remédios Tempo livre Passear ao ar livre, dedicar-se a um hobby e fazer trabalho voluntário são boas ações para o dependente ocupar o tempo livre e evitar o álcool. Ansiolíticos e antidepressivos não devem ser tomados sem o aval do médico. As sensações de segurança e relaxamento que proporcionam devem ser conquistadas, aos poucos, sem eles. junho 2016 • 53 proteste saúde 21