RELATO DE CASO Alteração na função renal e pancreatite: efeitos adversos do tratamento da leishmaniose visceral Change in renal function and pancreatitis: adverse effects of the treatment of visceral leishmaniasis Rosângela S. Rigo1; Leonardo Rigo2; Michael R. Honer3 1 Universidade Federal do Mato Grosso do Sul – MS; 2Secretaria Municipal de Saúde de Campo Grande – MS; 3Universidade Católica Dom Bosco - MS Resumo Introdução: Estudos têm demonstrado que a Leishmania sp. causa glomerulonefrites mesangial, membranoproliferativa focal e difusa, e nefrite intersticial. Estas alterações podem levar à ocorrência de proteinúria, alterações do sedimento urinário e perda da função renal. Como medicação de primeira escolha para o tratamento de LVA é recomendado o antimonial pentavalente, que possui boa eficácia, mas apresenta riscos de cardiotoxicidade, nefrotoxicidade e hepatotoxicidade. A Anfotecina B é utilizada como segunda escolha, mas esta droga também é nefrotóxica. O objetivo do presente trabalho é relatar o comprometimento da função renal em um paciente com diagnóstico de LVA, e que desenvolveu pancreatite após o tratamento com glucantime e apresentou melhoras nesse quadro após uso de anfotericina B, apresentando, porém, um quadro de nefrotoxicidade devido ao uso da segunda droga. Materiais e metodologia: Estudo retrospectivo de prontuário do caso de um paciente do sexo masculino, 64 anos, com diagnóstico de leishmaniose visceral. Na admissão apresentava creatinina sérica de 1,2mg/dL, uréia de 30 mg/dL, potássio de 4,6 mEq/L, proteinúria de 3+ e hematúria com 10 hemácias/campo. Após o tratamento com glucantime houve redução dos níveis de creatinina e desaparecimento da proteinúria. Porém, houve o aparecimento de pancreatite, com amilase 351 mg/dL e lipase 1421 mg/dL. Devido a este efeito adverso, desencadeado pelo antimonial, foi utilizada a anfotericina B, que provocou uma piora da função renal, com creatinina 1,8 mg/dL. Após ajuste do intervalo entre as doses de anfotericina B houve normalização da função renal. Este caso ilustra os efeitos adversos relacionados ao tratamento da LVA. Conclusão: É necessário instituir um monitoramento laboratorial sistematizado da função renal e dos níveis séricos da amilase/lipase em pacientes que estejam sob tratamento de leishmaniose com antimonial pentavalente ou anfotericina B. Palavras-chave Rim/efeitos de drogas; Pancreatite/induzido quimicamente; Leishmaniose Visceral/quimioterapia; Antimônio/ efeitos adversos; Anfotericina B/efeitos adversos. Abstract Introdution: Studies have shown that Leishmania sp causes glomurelonephritis characterized by mesangial cell proliferation, focal and diffuse membranoproliferative glomerulonephrittis and interstitial nephritis. These alterations may lead to the occurrence of proteinurea, alterations in urinary sedimentation and loss of renal function. Pentavalent antimoniate is recommended as a first choice in the treatment of AVL; this drug is efficient, but it presents the risk of cardiotoxicity, nephrotoxicity and hepatotoxicity. Amphotericin B is used as a second choice drug, but it is also nephrotoxic and may cause reactions. The objective of the present report is to demonstrate the impairment of renal function in a patient with visceral leishmaniasis who developed pancreatitis after treatment with glucantime and improved after treatment with amphotericin B, presenting, however, a case of nephrotoxicity due to the use of this second drug. Materials and methods: We report a case of a 64 year-old male patient, diagnosed with visceral leishmaniasis. On admission the patient presented creatinine 1.2mg/dL, urea 30 mg/dL, potassium 4.6 mEq/L, proteinurea 3+ and hematuria 10/field. After treatment with antimoniate a decrease in creatinine levels and the disappearance of proteinurea were observed; however, the patient developed pancreatitis, and an increase in the levels of amylase 351 mg/dL and lipase 1421 mg/dL was verified. Due to this adverse effect triggered by the antimonial, amphotericin B was used, which provoked a worsening of the renal function, with creatinine 1.8mg/dL. After adjusting the interval between doses of amphotericin B, renal function returned to normality. This case illustrates the adverse effects related to the treatment of AVL. Conclusion: There must be a laboratorial follow up of the renal function and sera levels of amylase and lipase in patients under treatment with pentavalente antimoniate or anfotericin B. Keywords Kidney/drug effects; Pancreatitis/chemically induced; Visceral Leishmaniasis/drug therapy; Antimony/ adverse effects; Amphotericin B/adverse effects. Recebido em 26.03.2008 Aceito em 05.07.2008 Arq Ciênc Saúde 2008 jul-set;15(3):139-41 Não há conflito de interesse 139 A Leishmaniose Visceral Americana (LVA) é uma zoonose causada pela Leishmania chagasi, que atualmente encontra-se entre as seis endemias consideradas prioritárias no mundo. Está ganhando grande importância, em especial com sua urbanização, assim como a sua letalidade, que apresentou um incremento de 85% de 1994 a 2003, e mantendo os níveis em torno de 6,9% nos últimos anos1,2. Para reverter este quadro é fundamental o diagnóstico precoce, evitando maiores complicações clínicas2. Estudos têm demonstrado que a Leishmania sp. causa glomerulonefrites do tipo mesangial e membranoproliferativa focal e difusa, assim como a nefrite intersticial, a qual se caracteriza pelo comprometimento predominante da zona cortical, que por sua vez é caracterizado pelo edema e infiltrado linfoplasmocitário peritubular3. Estas alterações podem levar à ocorrência de proteinúria, alterações do sedimento urinário e perda da função renal4,5,6. Achados freqüentes nestes pacientes são hipoalbuminemia e hipergamaglobulinemia 7. Como medicação de primeira escolha para o tratamento de LVA é recomendado o antimonial pentavalente, que possui boa eficácia, mas apresenta riscos de cardiotoxicidade, nefrotoxicidade e hepatotoxicidade. Este pode ainda causar artralgia, mialgia, anorexia, náuseas, vômitos e cefaléia1,8,9. A Anfotecina B é utilizada como segunda escolha, nos casos de reação ou não resposta ao antimonial1. Esta droga também é nefrotóxica, podendo também causar reações como: anafilaxia, trombocitopenia, mialgia, convulsões, calafrios, febre, flebite, anemia, anorexia e hipocalemia em um terço dos pacientes10. A anfotericina B liposomal apresenta menos efeitos colaterais, mas devido ao seu custo é utilizada somente em casos especiais, como em pacientes com insuficiência renal e imunossuprimidos11. O objetivo deste trabalho é relatar o comprometimento da função renal em um paciente com diagnóstico de LVA que desenvolveu pancreatite após o tratamento com glucantime e nefrotoxicidade após uso de anfotericina B. Relato do caso Foi admitido ao Hospital Universitário da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul um paciente do sexo masculino, 64 anos, com dor abdominal há duas semanas, tosse seca, hiporexia, emagrecimento (± 8 Kg) e febre diária. No exame clínico apresentou mucosas hipocoradas, icterícia, abdome doloroso a palpação. Na admissão o exame qualitativo de urina (EQU): densidade 1020 mmol, pH 5,0, mostrou proteína 3+, hemácias 10/campo, leucócitos 4/campo; creatinina sérica 1,2 mg/dL; hemograma com hematócrito 31%, hemoglobina 10,1 g%, leucócitos 3200 mm3, linfopenia 22%, plaquetopenia 62000 mm3; elevação de transaminases (AST 502mg/dL e ALT 240 mg/dL); lipase 343 mg/dL; amilase 62 mg/dL; albumina 1,8 mg/dL e globulina 6,0 mg/dL. Devido ao quadro clínico que o paciente apresentava, e por ser uma região endêmica para LVA, foi realizado um aspirado de medula óssea, o qual apresentou resultado positivo para formas amastigotas de Leishmania. Iniciou-se o tratamento com antimoniato de N-metil glucamina 20 mg de Sb+5/Kg/dia1. No 9º dia de tratamento o paciente apresentava níveis de amilase 351 140 mg/dL e lipase 1421 mg/dL, sugestivos de diagnóstico de pancreatite medicamentosa devido o uso do antimonial. No entanto, apresentou redução da creatinina sérica para 1,0 mg/ dL e desaparecimento da proteunúria no EQU, inferindo melhora da função renal. Devido ao acometimento pancreático secundário ao uso do antimonial iniciou-se uso de desoxicolato de anfotericina B, 25 mg/dia, para a continuidade do tratamento. Dez dias após a suspensão do antimoniato pentavalente houve uma redução significativa dos níveis séricos de amilase e lipase, 145 mg/dL e 396 mg/dL, respectivamente. Após 36 dias de uso da anfotericina B, o paciente apresentou elevação do nível sérico de creatinina 1,8 mg/dL, sugestiva de nefrotoxicidade. A medicação foi então suspensa temporariamente. Após 15 dias o tratamento com anfotericina B foi reiniciado, com ajuste do intervalo entre as doses. Quarenta e cinco dias após o término do tratamento a creatinina sérica estava 1 mg/dL, uréia 28 mg/dL, potássio 4 mEq/L, amilase 60 mg/dL e lípase 154 mg/dL, e havia ausência de proteinúria e hematúria,. O paciente teve boa evolução clinica; uma vez que o critério de cura da LVA é clinico, a repetição do mielograma não se faz necessária nestes casos. O paciente foi acompanhado por doze meses sem apresentar a presença de sinais clínicos laboratoriais sugestivos de LVA1. Quanto à função renal avaliada laboratorialmente, esta permaneceu dentro da normalidade. Discussão As alterações laboratoriais séricas e do EQU encontradas na admissão do paciente com LVA são compatíveis com as encontradas em decorrência da ação de outros autores, sugerindo a ação do parasita no comprometimento renal5,12. Quanto à densidade e ao pH urinário, encontravam-se dentro dos limites da normalidade, contrariando um estudo recente que demonstrou que a maioria dos pacientes com LVA apresentava alterações da densidade e do pH urinários3. A infecção por Leishmania sp foi relatada em indivíduos imunocomprometidos e pacientes com HIV, e tem sido considerada uma infecção oportunista em pacientes imunossuprimidos, como os receptores de transplante renal. Envolve alterações renais na forma de hematúria, proteinúria ou alteração da função renal 13,14,15. Com a introdução do tratamento, controlando a infecção parasitária, houve normalização da creatinina sérica e negativação da proteinúria. Com o uso de antimonial, o comprometimento funcional renal, hepático e pancreático deve ser monitorado 2. Este caso demonstra a importância deste acompanhamento, uma vez que ao 9º dia de tratamento houve elevação dos níveis de amilase e lipase. Este efeito adverso do antimonial sobre o pâncreas foi descrito em outros estudos. Segundo observado nos mesmos, com a suspensão do uso do antimonial, houve normalização dos níveis laboratoriais de amilase e lipase16,17,18. O fato do comprometimento pancreático pelo antimonial ter seu mecanismo pouco esclarecido e não apresentar riqueza de sintomas, além de ser um fator de risco per se para o aumento da morbidade e mortalidade destes pacientes justifica a importância de seu diagnóstico e suspensão do antimonial. Arq Ciênc Saúde 2008 jul-set;15(3):139-41 A insuficiência renal aguda é comum em pacientes com uso prolongado de anfotericina B, uma vez que a droga causa azotemia pré-renal com aumento da creatinina e da uréia10,11,19. Esta medicação desencadeia uma queda imediata no ritmo de filtração glomerular pela indução de vasoconstrição renal (alteração da hemodinâmica renal). Porém a necrose tubular aguda desenvolve-se mais frequentemente quando as doses cumulativas alcançam 1g, provocando alterações como: hipomagnesemia, hipocalemia relativa e acidose metabólica hiperclorêmica com hiato aniônico normal. Raramente é grave e costuma ser reversível com a interrupção do tratamento20. Como medida preventiva deve-se realizar a suspensão temporária da anfotericina B e, ao retornar seu uso, ajustar o intervalo entre as doses. Esta recomendação fez com que houvesse normalização nos níveis séricos de creatinina 45 dias após esta conduta19. Sugere-se a realização do ajuste de doses dos antileishmanicidas de acordo com o clearance de creatinina estimado pela fórmula de Cockcroft-Gault – [(140 – idade) x peso em Kg / (72 – creatinina sérica)] – já na admissão hospitalar20. Tanto a Leishmania como seu tratamento podem promover lesão renal. Portanto, é de extrema importância o monitoramento laboratorial sistematizado da função renal destes pacientes, uma vez que a insuficiência renal aguda per se é um fator de risco para pior prognóstico e maior mortalidade, à parte da severidade da doença de base. Do mesmo modo, o monitoramento das enzimas pancreáticas deve ser sistematizado quando se fizer uso do antimonial no tratamento da LVA. Referências bibliogáficas 1. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Manual de vigilância e controle da leishmaniose visceral. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2003. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Leishmaniose visceral grave: normas e condutas. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2005. 3. Lima Verde FA, Lima Verde FA, Lima Verde IA, Silva Junior GB, Daher EF, Lima Verde EM. Evaluation of renal function in human visceral leishmaniasis (kala-azar): a prospective study on 50 patients from Brazil. J Nephrol 2007;20(4):430-6. 4. Martinelli R, Lorenço R, Rocha H. Absence of clinical abnormalities suggesting renal involvement during the longterm course of visceral leishmaniasis. Rev Soc Bras Med Trop 1986;19(4):209-12. 5. Weisinger JR, Pinto A, Velazquez GA, Bronstein I, Dessene JJ, Duque JF et al. Clinical and histological kidney involvement in human kala-azar. Am J Trop Med Hyg 1978;27(2 Pt 1):357-9. 6. Dutra M, Martinelli R, de Carvalho EM, Rodrigues LE, Brito E, Rocha H. Renal involvement in visceral leishmaniasis. Am J Kidney Dis 1985;6(1):22-7. 7. Badaró R, Duarte MIS. Leishmaniose visceral (calazar). In: Veronesi R, Focaccia R. Tratado de infectologia. São Paulo: Ateneu; 1999. v. 2, p.1234-59. 8. Amato VS, Oliveira LS, Silva AC, Machado FR, Amato JG, Nicodemo AC et al. Um caso de leishmaniose cutâneo-mucosa tratado com sucesso com baixa dose de antimonial pentavalente. Arq Ciênc Saúde 2008 jul-set;15(3):139-41 Rev Soc Bras Med Trop 1998;31(2):221-4. 9. Herwaldt BL. Leishmaniasis. Lancet 1999;354(9185):1191-9. 10. Sampaio SA, Castro RM, Dillon NL, Martins JE. Treatment of mucocutaneous (American) leishmaniasis with amphotericin B: report of 70 cases. Int J Dermatol 1991;10(3):179-81. 11. Sampaio RNR, Marsden PD. Tratamento da forma mucosa de Leishmaniose sem resposta a glucantime, com anfotericina B liposomal. Rev Soc Bras Med Trop 1997;30(2):125-8. 12. Salgado Filho N, Ferreira TMAF, Costa JML. Envolvimento da função renal em pacientes com leishmaniose visceral (calazar). Rev Soc Bras Med Trop 2003;36(2):217-21. 13. Rollino C, Bellis D, Beltrame G, Basolo B, Montemagno A, Bucolo S et al. Acute renal failure in leishmaniasis. Nephrol Dial Transplant 2003;18(9):1950-1. 14. Hueso M, Bover J, Serón D, Gil-Vernet S, Rufí G, Alsina J et al. The renal transplant patient with visceral leishmaniasis who could not tolerate megalumine antimoniate – cure with ketoconazole and allopurinol. Nephrol Dial Transplant 1999;14(12):2941-3. 15. Efstratiadis G, Boura E, Giamalis P, Mandala E, Leontsini M, Tsiaousis G et al. Renal involvement in a patient with visceral leishmaniasis. Nephrol Dial Transplant 2006;21(1):235-6. 16. Lambertucci JR. França BM, Queiroz EM. Acute pancreatitis caused by meglumine antimoniate given for the treatment of visceral leishmaniasis. Rev Soc Bras Med Trop 2004;37(1):74-5. 17. Gasser Jr RA, Magill AJ, Oster CN, Franke ED, Grögl M, Berman JD. Pancreatitis induced by pentavalent antimonial agents during treatment of leishmaniasis. Clin Infect Dis 1994;18(1):83-90. 18. Delgado J, Macías J, Pineda JA, Corzo JE, González-Moreno MP, de la Rosa L et al. High frequency of serious side effects from meglumine antimoniate given without an upper limit dose for the treatment of visceral leishmaniasis in human immunodeficiency virus type-1 infected patients. Am J Trop Med Hyg 1999;61(5):766-9. 19. Harbarth S, Pestotnik SL, Lloyd JF, Burke JP, Samore MH. The epidemiology of nephrotoxicity associated with conventional amphotericin B therapy. Am J Med 2001;111(7):528-34. 20. Pozuelos Estrada G, Molina Martinez L, Romero Perera JJ, Díaz Herrera N, Cânon Barroso L, Buitrago Ramirez F. Prevalencia de insuficiencia renal oculta estimada mediante fórmulas de cálculo del grado de función renal en hipertensos mayores de 60 años, remitidos para medición ambulatoria de la presión arterial. Aten Primaria 2007 May;39(5):247-53. Correspondência: Rosângela Silva Rigo Rua Ouro Negro, 1387 - Bairro Jockey Club 79080-270 - Campo Grande - MS Tel.: (67)3314-3341 email: [email protected] 141