Mecanismos bioquímicos da influência da dieta na cárie dentária

Propaganda
DISSERTAÇÃO DE INVESTIGAÇÃO
ARTIGO DE REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
“MECANISMOS BIOQUÍMICOS DA INFLUÊNCIA
DA DIETA NA CÁRIE DENTÁRIA”
Autor
Fábio André Carvalho Monteiro
Aluno do 5.º ano do Mestrado Integrado em Medicina Dentária
Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto
[email protected]
969989151
Orientador
Professor Doutor João Miguel Silva e Costa Rodrigues
Professor Auxiliar Convidado
Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto
Porto, 2014
II
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Agradecimentos
Ao Professor Doutor João Miguel Silva e Costa Rodrigues, meu orientador, pela
sua disponibilidade, apoio e tutela, sem os quais não teria sido possível a realização
desta monografia.
Aos meus pais e irmãos, eternos companheiros e amigos, agradeço por
acreditarem em mim e estarem sempre ao meu lado, prontos para me ajudar com o que
precisar.
Aos meus colegas da FMDUP, em especial à Cristina e à Carolina, pelo seu apoio
incondicional e por terem sido a minha família longe de casa.
Ao Daniel, por me encorajar e motivar, mesmo quando estava mais desanimado.
A todos os professores e funcionários que contribuíram para a minha formação ao
longo destes 5 anos, deixo também o meu humilde agradecimento.
III
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Índice
Abstract
1
Resumo
2
Introdução
3
Material e Métodos
7
Desenvolvimento
8
Fisiopatologia da Cárie Dentária
8
Colonização bacteriana e Biofilme
8
O Papel da Saliva
10
Desmineralização do Esmalte
11
Solubilidade da hidroxiapatite em meio ácido
14
Carbohidratos
15
Açúcares
15
Carbohidratos Complexos - Amido
19
Proteínas
21
Fosfoproteínas
21
Caseína e CPP-ACP
21
Lípidos
24
Ácidos Gordos Omega-6, -7 e -9
24
Mecanismos de ação
25
Elementos da Dieta com Efeito Protetor
26
Conclusão
29
Referências
30
Anexos
37
IV
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Abstract
Introduction | Dental caries is an infectious oral disease with a significant prevalence,
which has several implications on an individual’s health as it not only causes pain and
discomfort chewing but it also has psychosocial repercussions. This pathology results
from the demineralization of the dental tissues due to the activity of cariogenic bacteria
capable of producing organic acids, but it is also affected by the host susceptibility and
diet.
Objectives | The objective of this paper is to better understand the relationship between
the several elements present in modern-day diets and dental caries by studying the
biochemical mechanisms associated.
Materials and Methods | A research was made on the databases PUBMED, B-ON and
ScienceDirect with the purpose of selecting recent and fully avaliable papers published
on this subject, written in English or Portuguese.
Discussion | Carbohydrates are the most important factor in the development of dental
caries. Sucrose is used in the production of insoluble polysaccharides, which are a part
of the matrix of the dental plaque, by Streptococci of the mutans group and it is divided in
fructose and glucose by the enzyme glycosyltransferase. These carbohydrates are later
fermented by the cariogenic bacteria for the production of lactic acid. Milk and dairy
products have an important protective effect, specially the protein casein and its
derivatives.
Conclusion | Diet plays a major role in this pathology, as it contributes to pH changes in
the oral cavity, promotes the survival and proliferation of certain microorganisms and
allows the production of organic acids by these same microorganisms.
Keywords | The following keywords were used: cariogenic diet”, “dental caries”,
“cariogenic bacteria”, “carbohydrates and dental caries”, “proteins and dental caries” and
“fat and dental caries”.
1
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Resumo
Introdução | A cárie dentária é uma doença infecciosa oral com uma prevalência
muito significativa que tem várias implicações para o indivíduo, não só em termos de dor
e dificuldade em mastigar, mas também a nível psicossocial. Resulta da
desmineralização dos tecidos dentários devido à ação de ácidos orgânicos produzidos
por bactérias ditas cariogénicas, sendo que para tal também contribuem a suscetibilidade
do hospedeiro e a dieta.
Objetivos | Compreender melhor a relação entre os diversos elementos presentes
na alimentação das sociedades atuais e as cáries dentárias, estudando para isso os
mecanismos bioquímicos que contribuem para esta interação.
Material e Métodos | Pesquisa bibliográfica feita nas bases de dados PUBMED,
B-On e ScienceDirect, tendo por base artigos científicos recentes, escritos em Inglês ou
Português e integralmente disponíveis.
Desenvolvimento | Os carbohidratos são o componente da dieta com maior peso
no desenvolvimento das lesões de cárie. A sacarose permite a síntese de
polissacarídeos insolúveis por Streptococci do grupo mutans que vão constituir a matriz
da placa bacteriana e pode ainda ser dividida em glucose e frutose pela enzima
glucosiltransferase, as quais são posteriormente fermentadas pelas bactérias
cariogénicas para a produção de ácido láctico. O leite e os laticínios têm um importante
efeito protetor, destando-se a proteína caseína e derivados.
Conclusão | A dieta tem um lugar de destaque nos fatores que contribuem para
esta patologia, uma vez que pode contribuir para modificaçoes de pH na cavidade oral e
pode promover a sobrevivência e proliferação de determinados microrganismos, bem
como levar à produção de ácidos orgânicos por parte dos mesmos.
Palavras-chave | As palavras-chave utilizadas foram: “cariogenic diet”, “dental
caries”, “cariogenic bacteria”, “carbohydrates and dental caries”, “proteins and dental
caries” e “fat and dental caries”.
2
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Introdução
A cárie dentária é uma patologia oral infeciosa com uma etiologia multifatorial, que
se baseia na interação de três fatores essenciais: os tecidos do hospedeiro, os
constituintes da dieta e os microrganismos da placa bacteriana (1). Atualmente, também
é valorizada a importância de alguns fatores adicionais, muitos deles genéticos,
ambientais e socioeconómicos (2). Embora a sua prevalência a nível global seja muito
significativa, nas últimas décadas tem-se verificado uma diminuição do número de casos,
principalmente em dentes permanentes (1). Ainda assim, continua a afetar a sociedade
de forma transversal, independentemente da idade e do género, pelo que pode ser
considerada um problema não só de saúde oral, mas também de saúde pública (3).
Figura 1 – Ilustração dos fatores envolvidos no desenvolvimento da cárie dentária: no centro, os fatores
diretamente envolvidos; a laranja, fatores do ambiente oral e a azul fatores pessoais. Adaptado de Selwitz
et al., 2007.
3
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Apesar de englobar um grande número de indivíduos, verifica-se que esta
patologia tem uma distribuição diferente conforme os dentes em questão e o tipo de
dentição (4). Nos adultos, o declínio da cárie dentária tem sido maior nas superfícies
lisas e interproximais, ocorrendo ainda uma grande afeção das faces oclusais (5). Nos
dentes permanentes das crianças, as cáries coronais afetam principalmente os sulcos e
fissuras (1). Na dentição decídua, as faces mais afetadas são as faces lisas (6).
Atualmente, ainda se verifica que a cárie dentária é a doença crónica mais comum da
infância, tendo uma prevalência cinco vezes superior à da asma, e a sua frequência tem
vindo a aumentar na terceira idade, à medida que cada vez mais indíviduos conservam
os dentes em idades avançadas (5). Para além dos idosos e das crianças, indivíduos
com baixo estatuto socioeconómico, minorias étnicas, indivíduos com atrasos de
desenvolvimento, imigrantes e indivíduos com HIV constituem alguns dos grupos de risco
para o desenvolvimento da patologia (4).
A dieta tem uma influência direta na manutenção de uma adequada saúde oral,
sendo que os alimentos ingeridos podem atuar de várias formas na patogénese da cárie
(7). Podem, por si só, conduzir a alterações de pH na cavidade oral, podem promover a
sobrevivência e proliferação de determinados microrganismos e podem levar à produção
de ácidos metabólicos por parte dos microrganismos presentes na cavidade oral (8).
Tem-se observado uma relação concreta entre o consumo de açúcares refinados
e a incidência de cáries, sendo que no ser humano a sacarose é particularmente nefasta,
não só por ser consumida em grandes quantidades mas também devido ao modo como
é metabolizada pelas bactérias orais (9). Os açúcares são usados pelas bactérias para
a produção de energia, o que devido às condições anaeróbicas que se costumam
observar na placa bacteriana resulta na formação de ácidos orgânicos (10). Por outro
lado, estes carbohidratos também servem de substrato para a síntese de polissacarídeos
intra e extracelulares do tipo dextrano e levano, os quais desempenham um papel
estrutural importante para o biofilme, que mais não é do que uma comunidade de
microrganismos aderida a uma superfície (9). A dieta humana também contém uma
grande proporção de elementos com amido, no entanto estes carbohidratos têm um
potencial cariogénico relativamente baixo (11). Ainda assim, alguns produtos da ação da
4
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
amilase sobre o amido, como nomeadamente a maltose, isomaltose e pequenas
quantidades de glucose, podem atuar como substratos para os microrganismos da placa
bacteriana (11).
Embora a saliva colhida diretamente dos ductos não possua qualquer atividade
proteolítica, as bactérias orais produzem um largo espectro de proteases e peptidases,
as quais se encontram não só na saliva mas também na placa bacteriana, onde são
responsáveis pela libertação de péptidos e aminoácidos a partir de proteínas
plaquetárias (12). Sob condições fisiológicas, estas enzimas têm uma atividade lenta e
dificilmente terão alguma ação sobre as proteínas ingeridas na dieta, a não ser que
ocorra a retenção de fibras de carne e/ou peixe a nível interproximal, por exemplo (13).
Para além de servirem diretamente enquanto substratos para o metabolismo bacteriano,
as proteínas presentes na dieta poderão contribuir para proteção contra a cárie dentária
(14). Estas proteínas têm tendência a depositarem-se sobre a superfície dos dentes,
contribuindo assim para reduzir a solubilidade do esmalte (14). A caseína em particular,
uma fosfoproteína presente no leite, tem uma elevada afinidade para o cálcio, formando
um complexo cálcio-proteína na superfície do esmalte (15).
A presença de lípidos na dieta aparenta contribuir para a redução da incidência
da cárie dentária (16). Embora ainda não se perceba exatamente a razão para que este
fenómeno ocorra, tem sido proposto que os lípidos têm propriedades antimicrobianas e
que ocorre a formação de uma camada hidrofóbica molecular sobre a superfície dos
dentes (17).
As vitaminas na dieta contribuem para suprir as necessidades da flora oral (12).
No entanto, muitas das bactérias são capazes de sintetizar vitaminas, desde que haja
disponibilidade suficiente de azoto e energia (12). As bactérias que não são capazes de
o fazer, vivem em simbiose com as anteriores (12). Embora a maioria das vitaminas não
tenha grande efeito na relação dente-saliva-bactérias, a vitamina B6 merece ser
mencionada, uma vez que desempenha um papel de proteção parcial contra a cárie
dentária (18).
5
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Existem outros elementos na dieta que devem também ser mencionados (19). A
administração sistémica de flúor favorece a formação de fluorapatite, a qual apresenta
uma menor solubilidade em meio ácido do que a hidroxiapatite, e desempenha um papel
importante na maturação do esmalte (13). Mesmo após a maturação completa dos
dentes, a presenção de flúor no meio oral é benéfica porque os iões de flúor são captados
pela superfície do esmalte e o flúor tem um efeito adverso sobre o metabolismo
energético bacteriano (7). O leite, uma mistura coloidal de lípidos, proteínas lactose,
minerais e muitos outros componentes, bem como os produtos de si derivados,
apresentam diversas propriedades protetoras contra a patologia em questão (20).
Portanto, sendo a dieta um dos principais elementos relacionados com o
aparecimento e desenvolvimento das lesões de cárie, o objetivo desta revisão
bibliográfica é compreender melhor a relação entre os diversos elementos presentes na
alimentação das sociedades atuais e a cárie dentária, estudando para isso os
mecanismos bioquímicos que contribuem para esta interação.
6
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Material e Métodos
A pesquisa bibliográfica foi feitas nas bases de dados PUBMED, ScienceDirect e
B-ON, tendo por base artigos científicos recentes, mas ressalvando a informação base
presente em artigos científicos mais antigos relacionados com o tema.
As palavras-chave adotadas para a realização da pesquisa foram: “cariogenic
diet”, “dental caries”, “cariogenic bacteria”, “carbohydrates and dental caries”, “proteins
and dental caries” e “fat and dental caries”.
Os critérios de inclusão para a leitura dos artigos foram a disponibilidade dos
mesmos de forma integral, a referência no título ou no resumo das palavras-chave e a
língua em que foram escritos, nomeadamente em Inglês ou Português.
Foram interpretados artigos de revisão, estudos clínicos e estudos de casoscontrole. Os estudos efetuados em populações específicas ou com amostras pequenas
foram também incluídos, tendo sido feita especulação sobre os seus resultados.
Numa primeira fase, optou-se por investigar melhor a cárie dentária e os
processos pelos quais esta ocorre, tendo sido usadas as palavras-chave “dental caries”
e “cariogenic bacteria”. Posteriormente, pesquisaram-se as associações previamente
referidas de modo a compreender melhor a relação entre a patologia e alguns dos
componentes da dieta.
7
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Desenvolvimento
Fisiopatologia da Cárie Dentária
A cárie dentária é uma infeção endógena que provoca lesões dentárias (1).
Inicialmente, ocorre devido à ação de bactérias capazes de produzir a enzima
glicosiltransferase, através da qual sintetizam polissacarídeos bioadesivos e insolúveis,
sobretudo glucanos, que vão constituir a matriz extracelular da placa bacteriana (21).
Esta vai então mediar a acumulação de Streptococci do grupo mutans, permitindo que
estas bactérias adiram firmemente à superfície do dente e, consequentemente,
produzam
ácidos
orgânicos,
principalmente
ácido
láctico,
que
induzem
a
desmineralização do esmalte (22). Todo este processo facilita a invasão por parte de
agentes oportunistas, que ganham acesso aos tecidos mais duros do esmalte e
contribuem para a formação da cárie dentária (1). Os agentes etiológicos mais relevantes
no desenvolvimento desta patologia são o Streptococcus mutans e o Streptococcus
sobrinus, ainda que também não se possa desprezar a ação dos Lactobacillus e dos
Actinomyces (2). Todos estes microrganismos são Gram-positivos (2).
Colonização bacteriana e Biofilme
A boca é um ambiente único no corpo humano ao possuir superfícies não
descamativas, os dentes, que permitem colonização microbiana (23). A adesão
bacteriana ocorre tendo por base uma camada de conteúdo orgânico, a película
adquirida, a qual é o primeiro passo da bioadesão em superfícies sólidas expostas aos
fluídos orais (24). Esta película, que reveste a superfície dos dentes, resulta da adsorção
seletiva de proteínas, glicoproteínas, lípidos e outras macromoléculas dos fluídos orais
(24). O processo de formação inicial é determinado por interações iónicas entre a
superfície do esmalte e algumas proteínas salivares, como a estaterina, a histatina e
proteínas ricas em prolina, bem como por forças termodinâmicas, como nomeadamente
as forças de van der Waals, e ainda interações hidrofóbicas (23). Subsequentemente, a
8
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
composição desta camada torna-se mais complexa devido à adsorção de estruturas
heterotípicas e agregados proteicos (23).
A película de revestimento serve então como um lubrificante protetor e uma
barreira de difusão para o dente, sendo que a sua camada mais basal, bastante densa
em eletrões, é especialmente resistente contra ataques ácidos e é semipermeável,
permitindo a troca de iões de cálcio e fosfato na superfície do dente (25). Contudo, alguns
componentes da película de revestimento também servem como recetores e promovem
a formação do biofilme (25). Os microrganismos são transportados passivamente para a
superfície do dente pelo fluxo salivar onde ocorre uma atração, inicialmente reversível e
não específica, provocada por forças fisicoquímicas (23). No que toca à aderência
bacteriana, tem sido demonstrada a importância das interações hidrofóbicas e a
hidrofobicidade celular (24). Alguns autores verificaram que a extração de lípidos da
película de revestimento levava a um aumento do número de Streptococcus mutans e
em superfícies hidrofóbicas, como é o caso dos materais restauradores, ocorria uma
redução da formação do biofilme (26, 27). A adesão bacteriana torna-se irreversível se
as adesinas bacterianas, como por exemplo o ácido lipoteicóico ou lectinas, interagirem
com recetores da película, sendo alguns destes lipídicos (24). A adesão contínua de
microrganismos leva à formação de um biofilme sólido e organizado, que confere às
bactérias propriedades diferentes do que quando se encontravam suspensas nos fluídos
orais (23).
A cárie dentária ocorre em locais onde se verificam desequilíbrios no biofilme
devido ao aumento do número de patogéneos em relação à flora considerada normal (8).
Este aumento é, geralmente, uma consequência de pressões seletivas, das quais se
consideram o aporte nutricional e o pH (28). Períodos regulares de pH baixo na placa
bacteriana selecionam bactérias como os Lactobacillus e o Streptococcus mutans, uma
vez que estes são mais competitivos neste ambiente quando em comparação com os
microrganismos comensais (8). Deste modo, alguns autores defendem que é o baixo pH
gerado pela dieta e não a quantidade de açúcares presente, por exemplo, que levam ao
desequilíbrio da ecologia da placa bacteriana (8).
9
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Dentro das bactérias com potencial cariogénico, o Streptococcus mutans é o que
apresenta maior risco, desempenhando um papel importante no início e na progressão
das cáries do esmalte (2). O Streptococcus mutans apresenta três características únicas
indutoras de cárie: a capacidade de aderir firmemente à superfície dos dentes na
presença de sacarose através da formação de glucanos insolúveis, a produção de ácidos
a partir dos carbohidratos presentes na dieta e ainda a sua capacidade de crescer e
metabolizar em ambientes com baixo pH, graças ao seu mecanismo de extrusão de
protões a partir de ATPases presentes na membrana celular (29).
O Papel da Saliva
A saliva é um dos principais fatores intrínsecos de proteção contra a cárie dentária
(13). Tem a capacidade de depositar minerais nas superfícies porosas do esmalte
desmineralizadas por ácidos, graças ao facto de se encontrar saturada de cálcio e fosfato
a pH 7, ocorrendo assim o processo de remineralização (1). No entanto, este processo
ocorre lentamente e tem de competir com os fatores que causam desmineralização (13).
Se o processo de remineralização for eficaz, ocorre reparação do esmalte (13). Caso
contrário, e se verifique um pH abaixo do valor crítico, considerado por vários autores
como 5.5, ocorre a desmineralização do dente até se formar uma lesão de cárie cavitada,
sendo a taxa de desmineralização afetada pela concentração de iões de hidrogénio na
superfície do dente e o período de tempo e frequência com que o pH da placa é reduzido
abaixo do valor crítico (1).
Por outro lado, a saliva juntamente com a mastigação contribui para a remoção
dos açúcares e das partículas dos alimentos da cavidade oral, reduzindo assim a
quantidade de tempo em que os açúcares estão disponíveis para produção de ácidos
orgânicos (13). Quanto maior for o fluxo salivar, mais fácil é a eliminação destas
substâncias (13).
A estes mecanismos soma-se ainda a capacidade tampão da saliva, a qual
consiste na neutralização dos produtos ácidos graças à reação que ocorre entre os iões
de bicarbonato presentes na saliva e os iões de hidrogénio libertados pelas moléculas
acídicas (30). Esta reação é catalizada pela enzima anidrase carbónica e resulta na
10
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
libertação de água e dióxido de carbono, sendo este último expelido pela cavidade oral
(30). À medida que mais iões de hidrogénio reagem com iões de bicarbonato, o pH
aumenta (30).
Figura 2 – Diagrama do processo da cárie dentária enquanto um fluxo de desmineralização e
remineralização. Adaptado de Selwitz et al., 2007.
Desmineralização do Esmalte
Voltando ao conceito de pH crítico, este corresponde ao valor de pH em que uma
solução se encontra saturada em relação a um determinado mineral, como por exemplo
o esmalte dentário (31). Se o pH de uma solução estiver acima do valor crítico, a solução
encontra-se sobressaturada em relação ao mineral e uma maior quantidade de mineral
11
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
terá tendência a precipitar (31). Por outro lado, caso o pH da solução esteja abaixo do
valor crítico, a solução encontra-se diluída e o mineral tem tendência a dissolver-se até
a solução ficar saturada (31). Este conceito só é aplicável a soluções que estão em
contacto direto com um determinado mineral, como o esmalte (13). A saliva e o fluído da
placa, por exemplo, estão normalmente sobressaturadas em relação ao esmalte, pois o
pH é mais alto do que o valor crítico, daí os dentes não se dissolverem nestes fluídos
(30).
O
esmalte
dentário
é
constituído
principalmente
por
hidroxiapatite,
Ca10(PO4)6(OH)2, mas também contém várias impurezas como carbonato e flúor (31).
Uma vez que as proporções variam de pessoa para pessoa, e até de dente para dente,
e podem influenciar a solubilidade do esmalte, esta varia ligeiramente de forma
interindividual (31). Ainda assim, os fatores que influenciam a solubilidade do principal
componente do esmalte também influenciam a solubilidade do esmalte em si (31).
Quando a hidroxiapatite está em contacto com água, ocorre a seguinte reação:
Precipitação
Dissolução
10Ca2+ + 6PO43- + 2OH-
Ca10(PO4)6(OH)2
Sólido
H2O
Solução
Uma pequena quantidade de hidroxiapatite dissove-se, libertando iões de cálcio,
fosfato e hidróxido (31). Este processo continua até a água estar saturada em relação à
hidroxiapatite, altura em que a precipitação e dissolução ocorrem de forma equlibrada
(32).
A solubilidade de uma substância como a hidroxiapatite, a qual se consegue
separar em diferentes iões, é caracterizada pelo seu produto de solubilidade, Ks, o
produto das concentrações (mol/dm3) dos iões constituintes, a uma determinada
temperatura e numa solução saturada (32). Sendo assim, para uma solução saturada
com hidroxiapatite, o seu valor de Ks é [Ca]10.[PO4]6.[OH]2, onde os valores entre os
parênteses representam as concentrações efetivas dos iões constituintes (32). Estas
concentrações são inversamente proporcionais às concentrações dos outros iões, tal
12
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
como sódio e potássio, que estão presentes (13). Tendo em conta que a hidroxiapatite é
um mineral muito insolúvel e que a concentração dos três iões constituintes é expressa
em unidades de moles por dm3, o valor medido de Ks para a hidroxiapatite é muito baixo,
na ordem dos 10-117 (31). Embora o Ks seja constante, as concentrações dos três iões
constituintes numa solução saturada podem variar, desde que o seu produto se
mantenha igual ao Ks (12). Assim, numa solução mais ácida, em que as concentrações
de hidróxido são reduzidas, as concentrações de cálcio e fosfato teriam de aumentar
para ser possível manter a saturação (32).
Para qualquer solução, tal como a saliva, fluído da placa bacteriana, suco gástrico
ou refrigerantes, o produto iónico, Kw, é determinado com um cálculo semelhante,
também baseado nas concentrações de cálcio, fosfato e hidróxido (31). Se o valor de Kw
for igual ao de Ks, a solução encontra-se saturada em relação à hidroxiapatite (31). Se,
por outro lado, for superior ou inferior, encontra-se sobressaturada ou diluída
respetivamente (31). Quando um dente é colocado em água destilada a pH 7, uma
pequena quantidade do mesmo dissolve-se lentamente, cerca de 30 mg num litro de
água (31). O Kw para a hidroxiapatite em água destilada é zero, pois embora a água
contenha iões hidróxido, não contém iões de cálcio ou fosfato (32). Uma vez que o Kw é
inferior ao Ks, a água não está saturada e o dente irá dissolver-se até Kw = Ks (32). Da
mesma forma, um dente irá dissolver-se parcialmente em qualquer solução em que os
iões de cálcio e fosfato não estejam presentes (13). A saliva e o fluído da placa bacteriana
contêm iões de cálcio, fosfato e hidróxido, sendo o Kw superior ao Ks a maior parte do
tempo (13). Deste modo, um dente só se irá dissolver nestes fluídos caso o pH esteja
reduzido a valores inferiores ao pH crítico (31). Em pessoas com baixas concentrações
de cálcio e fosfato, o pH crítico poderá ser mais elevado, na ordem dos 6.5, enquanto
que em indíviduos com maior concentração já se associa o valor mais comumente
mencionado de 5.5 (24, 31). A porção fluída da placa bacteriana contém concentrações
muito superiores de cálcio e fosfato do que a saliva, pelo que o pH crítico pode baixar
até cerca de 5.1 (24).
13
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Solubilidade da hidroxiapatite em meio ácido
A solubilidade da hidroxiapatite aumenta cerca de dez vezes por cada unidade
diminuída de pH. A pH 7, a solubilidade da hidroxiapatite em água é de 30 mg/L, tal como
já tinha sido referido, enquanto que a pH 4 é de cerca de 30 g/L (32). O aumento da
solubilidade do esmalte em meio ácido é explicada por dois fenómenos (31).
Num meio acido, ocorre a ionização parcial ou completa de um determinado ácido,
com libertação de iões de hidrogénio (31). Tendo como exemplo o ácido clorídrico,
observa-se a seguinte reação:
HCl + H2O
H3O+ + Cl-
O H3O+ livre poderá reagir com o hidróxido e o fosfato da hidroxiapatite, de modo
a originar água e ácido fosfórico, respetivamente, como se observam nas seguintes
reações:
H3O+ + OH-
2H2O
H3O+ + PO43-
HPO42- + H2O
H3O+ + HPO42-
H2PO4- + H2O
H3O+ + H2PO4-
H3PO4 + H2O
Pelo princípio de Le Chatelier, quando imposta uma alteração num determinado
sistema em equilíbrio, este reagirá de forma a contrariar esse efeito, ou seja, perante a
diminuição da concentração de hidróxido e de fosfato, o sistema irá evoluir de forma a
repor as suas concentrações iniciais (13). Desta forma, a reação de dissolução da
hidroxiapatite tende a evoluir no sentido direto e, como tal, promove o aumento da
solubilidade deste mineral (13).
14
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
O fosfato inorgânico existente em qualquer fluído orgânico, tal como a saliva e o
fluído da placa bacteriana, está presente sob quatro formas diferentes: H3PO4, H2PO4-,
HPO43- e PO43-, já previamente demonstradas, cujas proporções dependem inteiramente
do pH (32). Quando mais baixo o pH, menor é a concentração de PO 43-, que é a única
forma que contribui para o Kw da hidroxiapatite (32). Desde modo, em qualquer solução
ácida, ainda que a concentração de cálcio possa não estar afetada, observam-se valores
inferiores de [OH-] e [PO43-] e, consequentemente, também o Kw, que se encontra inferior
ao Ks (31).
pH de
pH do suco
refrigerantes
gástrico
Variação do pH salivar
Log concentração (mol/L)
Variação do pH na placa bacteriana
Figura 3 – Efeito do pH nas diferentes formas do fosfato inorgânico na saliva. Adaptado de Dawes, 2003.
Carbohidratos
Açúcares
A taxa de produção de ácidos na placa bacteriana depende do tipo e número de
bactérias, bem como se ocorre ou não uma exposição frequente a açúcares, sendo que
o pH regressa ao seu valor normal dependendo na quantidade e duração da exposição,
o fluxo salivar e a capacidade tampão da saliva (33). Tecnicamente, o termo açúcar
15
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
aplica-se a duas classificações de carbohidratos e, juntamente com o amido,
representam os carbohidratos fermentáveis, ou seja, aqueles cuja digestão se inicia logo
na cavidade oral por via da amilase salivar (10). Os açúcares englobam então os
monossacarídeos (açúcares simples), que incluem a glicose, frutose e galatose, e os
dissacarídeos, que resultam da ligação de dois monosscarídeos através de uma ligação
glicosídica e incluem a sacarose, lactose e maltose (9). Os açúcares entram na dieta sob
duas formas: alguns ocorrem naturalmente e podem ser encontrados em diversos
produtos, tal como na fruta, vegetais, grãos e laticínios, enquanto outros são adicionados
aos alimentos durante o seu processamento para alterar o sabor, o paladar ou a textura
(9).
Dentro dos açúcares, a sacarose tem sido a mais estudada (10). Esta aumenta a
produção de polímeros insolúveis da matriz da placa bacteriana por bactérias
específicas, incluindo o Streptococcus mutans e o Streptococcus sobrinus (8). O
crescimento
destes microrganismos depende
bastante
da
disponibilidade
de
monossacarídeos fermentáveis, fornecidos diretamente pela sacarose e glucose e
indiretamente pela degradação mediada por enzimas do hospedeiro (amilase) de
carbohidratos complexos ou pela ação combinada de outras bactérias orais que
degradam a matriz da placa bacteriana ou ainda mucinas salivares (8). Uma exposição
excessiva a monossacarídeos constitui uma pressão seletiva por via do pH para o
crescimento e retenção de Streptococcus mutans e o Streptococcus sobrinus em relação
a outras bactérias produtoras de ácidos (10). O fornecimento indireto destes nutrientes
não tem um impacto tão imediato, ainda que a libertação mais lenta de monossacarídeos
possa contribuir para aumentar o tempo de produção de ácidos (9).
Embora o Streptococcus mutans e o Streptococcus sobrinus consigam iniciar o
processo de cárie rapidamente e sem intermediários, existe alguma discussão sobre se
existe ou não um efeito glucano específico mediado pela sacarose no Streptococcus
mutans, sendo que presença de glicosiltransferases específicas para a sacarose no
Streptococcus mutans levou à presunção que existe uma relação única entre esta
bactéria e a sacarose (34). O estabelecimento do Streptococcus mutans na superfície do
dente leva a acumulação de ácidos no local durante o crescimento bacteriano e
16
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
fermentação de açúcares da dieta (34). A sacarose é dividida em glucose e frutose pela
enzima streptococci invertase, frutosiltransferase ou glicosiltransferase (34). Estes
monossacarídeos são facilmente fermentados pela maioria das bactérias da placa
bacteriana por via da sequência glicolítica para produzir principalmente ácido láctico, mas
também álcool e os ácidos acético e metanóico, levando a uma diminuição do pH na
superfície do dente (29).
A frutose é o principal açúcar encontrado na fruta, embora também estejam
presentes a glucose e a sacarose (12). As frutas e os vegetais são geralmente
considerados benefeciais para a saúde, mas o seu impacto na saúde oral ainda é
bastante debatido (12). O conteúdo em açúcar destes alimentos varia muito entre os
diferentes tipos de fruta, sendo que na fruta fresca geralmente ronda os 10 a 15%,
enquanto que nos frutos secos a concentração é muito maior e pode chegar aos 75%
(35). Embora se tenha observado que a fruta pode ser acidogénica, este facto depende
do seu conteúdo em açúcar e da textura (35). Fruta esmagada tem um potencial
cariogénico superior, já que a sua digestão inicial na cavidade oral é mais fácil, e os
frutos secos, devido ao seu elevado conteúdo em açúcar, levam a uma diminuição
significativa do pH da placa bacteriana em comparação com a fruta fresca (35). As
maçãs, por serem altamente ricas em fibras, apresentam um efeito de “autolimpeza”, o
que diminui o seu potencial cariogénico (35). Embora não tenham sido feitos muitos
estudos sobre o assunto, verificou-se que os vegetais têm um efeito cariogénico
apreciável (12).
Tal como a frutose, a lactose também é considerada menos cariogénica em
comparação com outros açúcares e constitui o principal açúcar do leite e produtos
lácteos (36). O leite é uma das principais fontes de açúcares da dieta das crianças e, em
alguns casos, até mesmo da vida do indivíduo (37). A concentração da lactose varia
entre 3 a 8% no leite bovino e humano, sendo que no último pode apresentar
concentrações um pouco superiores (37). O leite possui vários elementos com um efeito
protetor contra as lesões de cáries, dos quais se destacam o cálcio, fosfato, a proteína
caseína e alguns componentes proteícos e lípidos (12). O queijo também tem um efeito
protetor importante, na medida em que apresenta os mesmos constituintes do leite mas
17
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
com pouca ou nenhuma lactose (12). O potencial cariogénico da lactose depende da sua
fonte, ou seja, se proveio do leite ou de uma fonte externa, e da frequência da ingestão
(12).
A consistência dos açúcares, bem como a frequência de ingestão, afetam o seu
potencial cariogénico, uma vez que condicionam a exposição da placa bacteriana a estes
carbohidratos (28). Embora muitos autores apontem para os alimentos mais aderentes
como sendo mais cariogénicos, sabe-se que os açúcares em forma líquida também são
marcadamente prejudiciais, como se observa no caso das cáries de biberão (9). Quanto
maior for a frequência de ingestão, maior é a frequência com que ocorre a queda de pH
na placa bacteriana, pelo que muitos autores consideram este fator como sendo mais
relevante do que o consumo total de açúcares (9).
Os adoçantes são açúcares adicionados como ingredientes para satisfazer o
paladar e, em alguns casos, fornecer energia (38). Estes últimos podem ser divididos em
adoçantes nutritivos, que são calóricos e incluem açúcares e polióis como por exemplo
o sorbitol e o xilitol, e não nutritivos, os quais não fornecem energia, adoçam mesmo em
pequena quantidade e incluem o aspartame, sacarina e sulfame, entre outros (10). Os
adoçantes não nutritivos não são metabolizados em ácidos pela via glicolítica dos
microganismos orais, logo não contribuem para a formação de lesões de cárie (10).
Contudo, há que ter em conta que estes adoçantes não são usados de forma exclusiva
em muitos casos, podendo-se encontrar simultaneamente a presença de carbohidratos
fermentáveis, principalmente em refrigerantes (9). Os polióis são carbohidratos não
fermentáveis, tendo sido demonstrado em diversos estudos que a sua inclusão nos
alimentos reduz o potencial cariogénico dos mesmos (38). Este fenómeno deve-se a
algumas das suas particularidades:

A fermentação do sorbitol pela placa bacteriana é lenta e, deste modo, a
redução do pH na placa é mínima (39). No caso do xilitol, o Streptococcus
mutans é incapaz de o metabolizar e, muito provavelmente, nenhuma
espécie bacteriana presente na placa bacteriana tem essa capacidade
(38).
18
Fábio Monteiro

Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
O metabolismo do sorbitol pelas células bacterianas requer a presença da
enzima sorbitol desidrogenase, a qual não é uma enzima constitutiva (10).
Deste modo, a indução desta enzima requer a presença de sorbitol de
forma a poder ocorrer a síntese da mesma, processo este que é inibido
pela glicose (10).

Nenhum dos polióis é um substrato específico da glicosiltransferase, pelo
que a síntese dos polissacarídeos extracelulares, essenciais no processo
de adesão do Streptococcus mutans, não ocorre (38). Só a sacarose pode
ser utilizada pela glicosil e frutosiltransferases para a síntese de glucanos
ou frutanos, daí a sacarose ser particularmente eficaz ao promover a
implantação e colonização do Streptococcus mutans (38).

A fermentação láctica do sorbitol varia da fermentação da glicose, na
medida em que em vez de fornecer grandes quantidades de lactato como
produto final principal e pequenas quantidades de formato e acetato sob
condições anaeróbicas, produz grandes quantidades de formato e etanol e
pequenas quantidades de lactato (10). Este facto afeta a capacidade das
bactérias em desmineralizar o esmalte (10).
Carbohidratos Complexos - Amido
Embora os açúcares sejam o fator diatético mais importante na etiologia das
cáries dentárias, a dieta de hoje em dia inclui uma quantidade crescente de carbohidratos
fermentáveis, incluindo alimentos processados contendo amido e alimentos com
carbohidratos sintéticos como a oligofrutose, sucralose e polímeros de glucose (9).
Os amidos são polímeros de glucose que variam em comprimento e ramificações,
formando uma rede extensa de estruturas ramificadas em cadeia (11). As moléculas de
amido localizam-se dentro dos grânulos de amido, que variam em tamanho dentro de
cada planta e ainda mais entre diferentes plantas, podendo assumir diversas formas (11).
Diferentes amidos também apresentam um diferente conteúdo de amilose e amilopectina
19
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
(39). Durante a preparação alimentar, os grânulos de amido são danificados pelo calor e
forças mecânicas e passam por uma série de modificações com rutura e eventual
desintegração dos grânulos, ocorrendo a libertação das moléculas de amido num
processo designado por gelatinização (39).
De maneira geral, só os amidos gelatinizados são suscetíveis a quebra
enzimática, ou seja, são biodisponíveis (11). Na cavidade oral, os amidos são
hidrolisados por amilases salivares e bacterianas em maltose, maltriose e dextrinas de
baixo peso molecular (11). A hidrólise do amido na superfície dos dentes inicia-se
rapidamente e as partículas retidas dos alimentos podem conter níveis altos de maltose
e maltopriose, os quais são bons substratos para a produção ácida por parte das
bactérias (11). Embora a fermentação da maltose requeira um certo nível de adaptação
bacteriana, nos humanos tem-se observado que as bactérias da placa conseguem
fermentar a maltose sem grande dificuldade (9).
O modo de preparação, a frequência de ingestão e a retenção também
influenciam o potencial efeito cariogénico do amido (10). Por exemplo, o tempo de
remoção de açúcares salivares derivados do pão é maior do que o de açúcares derivados
das batatas ou arroz (39). Suspensões de farinha de trigo são significativamente
acidogénicas quando fervidas, mas ainda mais quando cozinhadas por extrusão, ou seja,
aquecidas a 180ºC com pouca água e grande agitação mecânica (11). Verifica-se ainda
que quanto maior for o grau de processamento da farinha de trigo, mais acidogénica esta
se torna (11). Por outro lado, a farinha de trigo ou centeio fervida é mais acidogénica do
que o pão correspondente, o que se correlaciona com o menor grau de gelatinização do
pão (9). Embora não tenham sido feitos muitos estudos sobre o assunto, sabe-se que
quando maior for a frequência de ingestão destes alimentos, maior será a sua
disponibilidade (10). Por outro lado, tem-se comprovado que alimentos contendo amido
são mais viscosos e aderentes, aumento não só a sua retenção na cavidade oral mas
também a dos carbohidratos mais simples e, consequentemente, o risco de desenvolver
cárie dentária (11).
20
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Proteínas
Fosfoproteínas
A ligação iónica do cálcio às moléculas das proteínas não ocorre exclusivamente
em relação às macromoléculas dos dentes e do tecido ósseo (12). Na realidade, verificase uma ligação extensa entre o cálcio e as proteínas caseína, presente no leite, e
fosvitina, existente nas claras dos ovos, para além das proteínas da matriz do tecido
ósseo, dentina e esmalte (12). Estas proteínas têm bastante em comum, principalmente
no que toca a possuirem regiões de alta polaridade criadas por grupos de aminoácidos
e a presença de uma percentagem significativa de aminoácidos fosforilados (12).
A presença de fosfato orgânico já foi comprovada na dentina e no esmalte, bem
como na fosvitina, a qual apresenta uma quantidade superior (14). Tal como nas outras
fosfoproteínas, a maior parte do fosfato orgânico parece existir sob a forma de fosfato de
serina. Dickson et al. (40), isolaram um fosfopeptídeo da dentina, o qual era rico em
fosfato de serina e similar em termos da composição em aminoácidos às fosfoproteínas
já mencionadas.
A ligação de minerais a estas fosfoproteínas parece ser consideravelmente maior
do que a presença de aminoácidos acídicos ou fosforilados levaria a crer (14). Ocorre
uma ligação cooperativa de catiões, especialmente cálcio, que se mantêm ligados
fortemente às proteínas (14). Ainda assim, a remoção de grupos fosfato reduz fortemente
a afinidade para o cálcio, levando à perda do mineral e a um processo de
desmineralização (12). A enzima responsável pela remoção de grupos fosfato das
fosfoproteínas é a fosfoproteína fosfatase (12). Enzimas com esta especificidade foram
isoladas de amostras de dentina cariada, de placa bacteriana e saliva, e têm revelado
contribuir para o aumento da solubilidade do esmalte (16). Dentro das fosfoproteínas, a
caseína tem sido a mais estudada (15).
Caseína e CPP-ACP
A caseína é uma das principais proteínas presentes no leite, correspondendo a
cerca de 80% do seu conteúdo proteico, e apresenta quatro variantes de relevo: αs1-,
21
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
αs2-, β- e κ-caseína (36). No leite, é encontrada sob a forma de micelas que estabilizam
os iões de cálcio e fosfato (36). A adsorção desta proteína no esmalte protege o esmalte
contra o desgaste ácido e inibe a desmineralização e promove a remineralização através
da integração de cálcio e fosfato (15). O fosfopeptídeo de caseína – fosfato de cálcio
amorfo (CPP-ACP) é um derivado da caseína não tóxico e anticariogénico que pode ser
obtido através de digestão enzimática ou ultrafiltração (12). Este derivado liga-se à
superfíce do dente e à placa supragengival através de ligações hidrofóbicas e pontes de
hidrogénio com as células bacterianas ou a película aderida, onde promove a
estabilização de iões de cálcio e fosfato como iões biodisponíveis, produzindo assim um
gradiente de concentração favorável que promove a remineralização e deprime a
desmineralização (12). Este composto já foi introduzido em pastilhas elásticas e alguns
produtos dentários (41).
O CPP-ACP diminui a desmineralização através de quatro mecanismos (12). Este
composto liga-se à hidroxiapatite, revestida ou não por saliva, atuando como uma
barreira física que não permite a libertação de cálcio e fosfato, e previne a dissolução por
se ligar à face dos cristais de apatite e bloquear os locais ativos de dissolução (15). Numa
placa bacteriana cariogénica, o CPP-ACP e os iões de fosfato que neutralizam alterações
de pH, graças ao facto de este derivado ser composto por resíduos de aminoácidos com
grupos R ionizáveis, como nomeadamente os resíduos fosfoserilo, histidilo e glutamilo
(12). Uma vez que a constante de acidez, pKa, para estes resíduos é 6.4, 6.6 e 4.9
respetivamente, a ação neutralizante do CPP-ACP faz-se sentir em variações de pH
entre 7 e 5 (12). Verifica-se ainda que a degradação da caseína liberta resíduos de
arginilo, asparaginilo e glutamilo, os quais podem ser convertidos em amónio, ocorrendo
consumo de protões e diminuição do pH (42). Os iões de fosfato, que se encontram
principalmente nas formas de PO43- e HPO42-, ligam-se aos protões, contribuindo assim
para a neutralização ácida a valores de pH inferiores a 7 (42). Outro mecanismo de
proteção consiste na manutenção do Kw da apatite (12). Ao localizar-se na placa, o CPPACP aumenta a biodisponibilidade dos iões de cálcio e fosfato, o que contribui para
aumentar o Kw e, consequentemente, a saturação em relação à hidroxiapatite (Kw=Ks),
ocorrendo diminuição da desmineralização (12). Por fim, o CPP-ACP também confere
proteção contra a desmineralização por alterar a composição da placa bacteriana,
22
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
prevenindo a aderência e colonização de bactérias cariogénicas específicas (42). Este
derivado
tem
a
capacidade
de
“mascarar”
recetores
específicos,
ligar-se
competitivamente ao cálcio para prevenir a formação de pontes de cálcio entre as células
bacterianas e ligar-se à superfície das bactérias causando repulsão eletrostática (42).
Para além disso, a acumulação localizada de iões de cálcio pode ter efeitos bactericidas
ou bacteriostáticos (42).
CPP-ACP
Figura 4 – Imagem de microscopia eletrónica da placa bacteriana supragengival mostrando o CPP-ACP
como partículas eletrodensas associadas à superfície das bactérias e à matriz intercelular. Adaptado de
Reynolds et al., 2003.
Para além de proteger contra a desmineralização, o CPP-ACP também contribui
para o processo de remineralização através de: libertação de iões durante o ataque
ácido; formação de pares de iões neutros, CaHPO40 e HF0; difusão de iões para a
subsuperfície da lesão; aumento do grau de saturação na lesão e formação de
hidroxiapatite (15). Os iões de cálcio e fosfato são libertados dos nanocomplexos de
CPP-ACP por diversos processos, como nomeadamente derivados pelo equilíbrio,
modificações conformacionais, pH e enzimáticos (42). Os iões livres participam
posteriormente na formação de diferentes espécies de fosfato de cálcio, dependendo do
pH e disponibilidade de flúor (42). O processo de difusão dos iões para a subsuperfície
é electroneutro, pelo que o potencial de difusão para a subsuperfície do esmalte pode
ser caracterizado pelo gradiente de atividade do par iónico neutro CaHPO40 para a lesão
(12). À medida que o par iónico se difunde, não sendo impedido pelas cargas na placa,
23
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
película aderida e esmalte, dissocia-se para formar cálcio e fosfato, aumentando o grau
de saturação em relação à apatite e promovendo crescimento dos cristais (42). Na
presença de flúor, formam-se as espécies neutras CaH2FPO40 e HF0, as quais
contribuem para a formação de fluorapatite (12).
Os restantes 20% do conteúdo proteico do leite correspondem às proteínas do
soro, solúveis na sua forma nativa independentemente do pH, ao contrário da caseína
que é insolúvel a pH 4.6 (36). Estas proteínas incluem diversas enzimas, inibidores
enzimáticos, proteínas que se ligam a iões metálicos, proteínas que se ligam a vitaminas
e fatores de crescimento, todas elas com propriedades bioativas que podem contribuir
para um efeito cariostático, ainda que não tão relevante (36).
Lípidos
A maioria dos autores defende que uma dieta rica em lípidos tem um potencial
cariogénico baixo (16). Os ácidos gordos são ácidos carboxílicos com longas cadeias
alifáticas, sendo que geralmente ocorrem na natureza com um número par de átomos de
carbono, entre 4 a 28, podendo ser saturados ou não (25). Os ácidos gordos de cadeia
longa não saturados têm uma atividade antibacteriana já largamente conhecida, sendo
que alguns já são usados como ingredientes importantes para inibir o crescimento de
microrganismos indesejados em diversos alimentos (43). Os ácidos gordos de cadeia
longa, como nomeadamente os ácidos linoleico e oleico, são bactericidas para
importantes microrganismos, como por exemplo Staphylococcus aureus, Helicobacter
pylori e Candida albicans (25). Estes ácidos gordos também inibem o crescimento do
Streptococcus mutans em baixas concentrações (25).
Ácidos Gordos Omega-6, -7 e -9
Os ácidos gordos omega-6, -7 e -9 têm vários benefícios para a saúde e são
importantes nutrientes da dieta (44). Os ácidos gordos omega-6 são ácidos gordos poliinsaturados essenciais, não sendo produzidos pelo corpo humano (45). Podem ser
encontrados em óleos vegetais, na clara dos ovos e na carne, principalmente de orgãos
24
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
(45). Os ácidos gordos omega-7 são monoinsaturados e incluem o ácido palmitoleico, o
qual é produzido pela pele e um poderoso antioxidante (46). Os ácidos gordos omega-9
são poli-insaturados, e destes destaca-se o ácido oleico, presente no azeite (46). Num
estudo por Huang et al. (17), observou-se que os três principais ácidos gordos do grupo
dos omega-6, os ácidos linoleico, gama-linoleico e araquidónico; o ácido palmitoleico e
o ácido oleico, bem como os seus ésteres metil e etil, apresentam atividade
antimicrobiana contra vários patogéneos orais, como nomeadamente o Streptococcus
mutans, Aggregatibacter actinomycetemcomitans, Candida albicans, Porphyromonas
gingivalis, Fusobacterium nucleatum e Streptococcus Gordonii. Comprovou-se a
existência de especificidade, sendo que os ácidos gordos com cadeias curtas tinham
bioatividade negligenciável e os ácidos gordos de cadeia média ou longa tinham uma
ação focalizada ou abrangente, sobretudo em microrganismos Gram-positivos (17).
Mecanismos de ação
Kensche et al. (25), sugeriram que bochechos contendo lípidos poderiam atrasar
a maturação do biofilme bacteriano e, deste modo, prevenir a formação de lesões de
cárie. Estudos in vitro demonstraram que a adesão e o número total de Streptococcus
mutans foram diminuídos repetidamente por produtos baseados em óleos vegetais, dos
quais se destaca o azeite (16, 47). O monoglicerídeo do ácido láurico, presente em
grande quantidade no óleo de coco, é bastante eficaz contra organimos Gram-positivos,
podendo ter um efeito moderamente cariostático (16). Asokan et al. (48), verificaram que
o efeito positivo dos óleos vegetais se deve à hidrólise alcalina dos lípidos, tendo
designado este processo como “saponificação”.
Num estudo por Giacaman et al. (49), in vitro, verificou-se que a exposição de um
biofilme de Streptococcus mutans a ácidos gordos após contacto com sacarose reduzia
o potencial cariogénico da mesma, não só por diminuir a acidez e a desmineralização no
esmalte, mas também por alterar o biofilme em si. O facto de o pH baixar, ainda que
pouco, teve implicações na microdureza da superfície do esmalte (49).
Ainda não se compreende muito bem os mecanismos que conferem aos ácidos
gordos as suas propriedades antibacterianas, mas têm sido apontadas bastantes teorias
25
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
(49). Por um lado, um vez que estes compostos são semelhantes à membrana bipolar
da célula bacteriana por possuírem uma cabeça hidrofílica e uma cauda hidrofóbica, é
possível que levem à morte da bactéria por penetrarem na membrana, formarem poros
e impedirem o seu funcionamento normal (17). Por outro lado, pode ocorrer inibição da
atividade enzimática, interferências com a fosforilação oxidativa por alteração do
transporte de eletrões, perda de produtos intracelulares e ainda a formação de produtos
de degradação por oxidação e auto-oxidação (49). No caso dos microrganismos orais,
tem-se observado que alguns ácidos gordos formam uma micela rodeando a bactéria e
impedem a adesão da mesma ao esmalte bem como o transporte de substâncias através
da membrana, deixando de ocorrer o metabolismo bacteriano e a produção de ácidos
(49). A ação dos ácidos oleico e linoleico sobre o Streptococcus mutans, já previamente
mencionada, deve-se ao facto de estes compostos serem capazes de inibir as
glicosiltransferases deste microrganismo (25).
Elementos da Dieta com Efeito Protetor
Atualmente, o flúor é um dos principais meios utilizados para combater
preventivamente as lesões de cárie (50). Na presença de iões de cálcio e fosfato
resultantes da desmineralização do esmalte pelos ácidos orgânicos bacterianos, os iões
de flúor promovem a formação de fluorapatite, sendo este o seu principal mecanismo de
ação (50). Ainda assim, os iões de flúor também promovem a remineralização do esmalte
desde que haja uma quantidade suficiente de iões de cálcio e fosfato presentes na placa
bacteriana (7). Para cada ião de flúor, são necessários 10 iões de cálcio e 6 de fosfato
para formar uma unidade de fluorapatite [Ca 10(PO4)6F2], daí ser tão importante a
presença de cálcio e fosfato, o que se pode tornar num fator limitativo da ação do flúor
(7). A maior fonte de flúor na dieta provém do consumo de águas fluoretadas,
principalmente canalizadas, e de bebidas fabricadas a partir destas, consistindo em
cerca de 66 a 80% da ingestão de flúor no adulto (51).
26
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Período de desmineralização sem
flúor
Período de desmineralização com
flúor
Figura 5 – Curva de Stephan demonstrando o efeito dos açúcares sobre o pH da placa bacteriana. A
presença de flúor diminui o pH crítico a que ocorre a dissolução de cálcio e fosfato. Adaptado de
Cummins, 2013.
Os efeitos cariostáticos do leite e do queijo têm sido demonstrados em diversos
estudos (36, 37). Os mecanismos pelos quais o leite confere proteção incluem
neutralização dos produtos ácidos, estimulação salivar, redução da adesão bacteriana,
redução da desmineralização do esmalte e/ou promoção da remineralização através da
caseína e iões de cálcio e fosfato (37). O queijo, para além de também exercer estes
mecanismos, é rico em péptidos biologicamente ativos e probióticos que se formam
naturalmente (12). A identificação e isolamento dos componentes dos lacticínios que
conferem proteção contra as lesões de cárie poderá vir a ser útil no futuro para o fabrico
de produtos com efeito preventivo (52).
A piridoxina ou vitamina B6 é uma vitamina solúvel em água e aparenta ter a
capacidade de alterar a proporção de bactérias presentes no biofilme ao nutrir as
bactérias incapazes de a sintetizar (18). Por outro lado, o fosfato de piridoxal, que é um
derivado fosforilado, ao ser um cofator de reações de transaminação e descarboxilação
promove o metabolismo dos aminoácidos e, consequentemente, reduz a produção de
ácidos na placa bacteriana (18). Esta vitamina pode ser encontrada em diversos
produtos, como nomeadamente carne, vegetais, bananas, nozes e nos grãos de cereais
(12).
27
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Existem outros alimentos a ter em conta (19). As maçãs contêm tanino, um
composto polifenóico presente nas plantas que se liga a proteínas, aminiácidos e
alcaloides causando a sua precipitação, o qual tem um efeito inibitório sobre a síntese
de glucanos pela glicosiltransferase dos Streptococcus mutans e sobre a aderência das
células bacterianas (53).
O café torrado tem atividade antibacteriana contra o Streptococcus mutans graças
a possuir compostos α-dicarbonil (54). Alguns componentes do café, dos quais se
destacam a trigonelina e os ácidos nicotínico e clorogénico, interferem com a adsorção
do Streptococcus mutans na hidroxiapatite por se ligarem a este mineral, impedindo
assim a interação entre o dente e a bactéria (55).
Um estudo realizado por Daglia et al. (56), demonstrou que o vinho tinto inibe a
adesão e a formação do biofilme pelo Streptococcus mutans nas superfícies ocluais de
dentes extraídos. Este fenómeno parece dever-se à presença de proantocianidina,
também denominada procianidina, a qual é um composto pertencente ao grupo dos
flavonoides que existem nas plantas (56). Geralmente, surge na natureza em misturas
de proantocianidinas ligadas umas às outras, formando complexos moleculares de
maiores dimensões, os oligomeros procianidólicos (56).
O chá verde é rico em catequina, um composto polifenóico com propriedades
antioxidantes que tem a capacidade de inibir o crescimento bacteriano, a viabilidade
bacteriana e a atividade das enzimas glicosiltransferase e α-amilase (57). O chá preto
também tem um efeito protetor contra a cárie dentária, uma vez que inibe a placa
bacteriana, a acidez e microflora cariogénica graças a apresentar na sua constituição
polímeros polifenóicos (57).
Ooshima et al. (58), reportaram que alguns extratos da casca do grão de cacau,
rica em polifenóis, reduzem a incidência da cárie dentária. Por outro lado, extratos do
grão de cacau em si, reduzem significativamente a queda do pH induzida pela glucose
presenta na dieta (59). Srikanth et al. (60), demonstraram que bochechos contendo
extratos da casca do grão de cacau inibiram a deposição de placa bacteriana e o número
de Streptococcus mutans em crianças.
28
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Conclusão
A dieta é um dos principais fatores envolvidos no desenvolvimento das lesões de
cárie, uma vez que não só pode induzir alterações de pH na cavidade oral e contribuir
para o aumento da resistência dos dentes, mas também participa na seleção de
microrganismos cariogénicos e constitui o substrato necessário para a produção de
ácidos orgânicos.
Dentro dos elementos da dieta com potencial cariogénico, destacam-se os
carbohidratos, em especial a sacarose, uma vez que esta é directamente matabolizada
pela bactéria com maior impacto na cárie dentária, o Streptococcus mutans, para a
síntese de polissacarídeos que vão constituir a estrutura do biofilme e, deste modo,
permitir a ação de outros microrganismos.
Juntamente com o flúor de origem sistémica, o leite e os laticínios têm um papel
importante na defesa contra a cárie dentária. O fosfopeptídeo de caseína – fosfato de
cálcio amorfo é um derivado da caseína, importante proteína presente no leite, que
através de vários mecanismos reduz a desmineralização do esmalte dentário e contribui
para o fenómeno de remineralização.
29
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Referências
1.
Selwitz RH, Ismail AI, Pitts NB. Dental caries. Lancet. 2007;369(9555):51-9.
2.
Kidd E. The implications of the new paradigm of dental caries. Journal of dentistry.
2011;39 Suppl 2:S3-8.
3.
Cummins D. Dental caries: a disease which remains a public health concern in the
21st century--the exploration of a breakthrough technology for caries prevention.
The Journal of clinical dentistry. 2013;24 Spec no A:A1-14.
4.
Brown LJ, Selwitz RH. The impact of recent changes in the epidemiology of dental
caries on guidelines for the use of dental sealants. Journal of public health
dentistry. 1995;55(5 Spec No):274-91.
5.
Marthaler TM. Changes in dental caries 1953-2003. Caries research.
2004;38(3):173-81.
6.
De Grauwe A, Aps JK, Martens LC. Early Childhood Caries (ECC): what's in a
name? European journal of paediatric dentistry : official journal of European
Academy of Paediatric Dentistry. 2004;5(2):62-70.
7.
Mobley C, Marshall TA, Milgrom P, Coldwell SE. The contribution of dietary factors
to dental caries and disparities in caries. Academic pediatrics. 2009;9(6):410-4.
8.
Sheiham A. Dietary effects on dental diseases. Public health nutrition.
2001;4(2B):569-91.
9.
Touger-Decker R, van Loveren C. Sugars and dental caries. The American journal
of clinical nutrition. 2003;78(4):881S-92S.
30
Fábio Monteiro
10.
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Gupta P, Gupta N, Pawar AP, Birajdar SS, Natt AS, Singh HP. Role of Sugar and
Sugar Substitutes in Dental Caries: A Review. ISRN dentistry. 2013;2013:519421.
11.
Lingstrom P, van Houte J, Kashket S. Food starches and dental caries. Critical
reviews in oral biology and medicine : an official publication of the American
Association of Oral Biologists. 2000;11(3):366-80.
12.
Wilson M. Food Constituents and Oral Health: Current Status and Future
Prospects. 1 ed. North America: Woodhead Publishing Limited; 2009.
13.
Kidd E, Fejerskov O. Cárie Dentária - A Doença e o seu Tratamento Clínico. 2 ed:
Santos; 2011.
14.
Kreitzman SN. Enzymes and dietary factors in caries. Journal of dental research.
1974;53(2):218-25.
15.
Rose RK. Effects of an anticariogenic casein phosphopeptide on calcium diffusion
in streptococcal model dental plaques. Archives of oral biology. 2000;45(7):56975.
16.
Bowen WH. Food components and caries. Advances in dental research.
1994;8(2):215-20.
17.
Huang CB, George B, Ebersole JL. Antimicrobial activity of n-6, n-7 and n-9 fatty
acids and their esters for oral microorganisms. Archives of oral biology.
2010;55(8):555-60.
18.
Thaniyavarn S, Taylor KG, Singh S, Doyle RJ. Pyridine analogs inhibit the
glucosyltransferase
of
Streptococcus
1982;37(3):1101-11.
31
mutans.
Infection
and
immunity.
Fábio Monteiro
19.
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Gazzani G, Daglia M, Papetti A. Food components with anticaries activity. Current
opinion in biotechnology. 2012;23(2):153-9.
20.
Tanaka K, Miyake Y, Sasaki S, Hirota Y. Dairy products and calcium intake during
pregnancy and dental caries in children. Nutrition journal. 2012;11:33.
21.
Devulapalle KS, Gomez de Segura A, Ferrer M, Alcalde M, Mooser G, Plou FJ.
Effect of carbohydrate fatty acid esters on Streptococcus sobrinus and
glucosyltransferase activity. Carbohydrate research. 2004;339(6):1029-34.
22.
Naidoo S, Myburgh N. Nutrition, oral health and the young child. Maternal & child
nutrition. 2007;3(4):312-21.
23.
Hannig C, Hannig M. The oral cavity--a key system to understand substratumdependent bioadhesion on solid surfaces in man. Clinical oral investigations.
2009;13(2):123-39.
24.
Marsh PD, Bradshaw DJ. Dental plaque as a biofilm. Journal of industrial
microbiology. 1995;15(3):169-75.
25.
Kensche A, Reich M, Kummerer K, Hannig M, Hannig C. Lipids in preventive
dentistry. Clinical oral investigations. 2013;17(3):669-85.
26.
Gibbons RJ, Etherden I. Comparative hydrophobicities of oral bacteria and their
adherence to salivary pellicles. Infection and immunity. 1983;41(3):1190-6.
27.
Busscher HJ, Rinastiti M, Siswomihardjo W, van der Mei HC. Biofilm formation on
dental
restorative
and
implant
materials.
Journal
of
dental
research.
2010;89(7):657-65.
28.
Moynihan PJ. The role of diet and nutrition in the etiology and prevention of oral
diseases. Bulletin of the World Health Organization. 2005;83(9):694-9.
32
Fábio Monteiro
29.
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Bradshaw DJ, Lynch RJ. Diet and the microbial aetiology of dental caries: new
paradigms. International dental journal. 2013;63 Suppl 2:64-72.
30.
Lenander-Lumikari M, Loimaranta V. Saliva and dental caries. Advances in dental
research. 2000;14:40-7.
31.
Dawes C. What is the critical pH and why does a tooth dissolve in acid? Journal
(Canadian Dental Association). 2003;69(11):722-4.
32.
Barron RP, Carmichael RP, Marcon MA, Sandor GK. Dental erosion in
gastroesophageal reflux disease. Journal (Canadian Dental Association).
2003;69(2):84-9.
33.
Moynihan P, Petersen PE. Diet, nutrition and the prevention of dental diseases.
Public health nutrition. 2004;7(1A):201-26.
34.
van Palenstein Helderman WH, Matee MI, van der Hoeven JS, Mikx FH.
Cariogenicity depends more on diet than the prevailing mutans streptococcal
species. Journal of dental research. 1996;75(1):535-45.
35.
Arora A, Evans RW. Is the consumption of fruit cariogenic? Journal of investigative
and clinical dentistry. 2012;3(1):17-22.
36.
Grenby TH, Andrews AT, Mistry M, Williams RJ. Dental caries-protective agents
in milk and milk products: investigations in vitro. Journal of dentistry.
2001;29(2):83-92.
37.
Tanaka K, Miyake Y, Sasaki S. Intake of dairy products and the prevalence of
dental caries in young children. Journal of dentistry. 2010;38(7):579-83.
38.
Van Loveren C. Sugar alcohols: what is the evidence for caries-preventive and
caries-therapeutic effects? Caries research. 2004;38(3):286-93.
33
Fábio Monteiro
39.
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Navia JM. Carbohydrates and dental health. The American journal of clinical
nutrition. 1994;59(3 Suppl):719S-27S.
40.
Dickson IR, Dimuzio MT, Volpin D, Ananthanarayanan S, Veis A. The extraction
of phosphoproteins from bovine dentin. Calcified tissue research. 1975;19(1):5161.
41.
Cai F, Manton DJ, Shen P, Walker GD, Cross KJ, Yuan Y, et al. Effect of addition
of citric acid and casein phosphopeptide-amorphous calcium phosphate to a
sugar-free chewing gum on enamel remineralization in situ. Caries research.
2007;41(5):377-83.
42.
Cross KJ, Huq NL, Reynolds EC. Casein phosphopeptides in oral health-chemistry
and
clinical
applications.
Current
pharmaceutical
design.
2007;13(8):793-800.
43.
Choi JS, Park NH, Hwang SY, Sohn JH, Kwak I, Cho KK, et al. The antibacterial
activity of various saturated and unsaturated fatty acids against several oral
pathogens. Journal of environmental biology / Academy of Environmental Biology,
India. 2013;34(4):673-6.
44.
Harris W. Omega-6 and omega-3 fatty acids: partners in prevention. Current
opinion in clinical nutrition and metabolic care. 2010;13(2):125-9.
45.
Wijendran V, Hayes KC. Dietary n-6 and n-3 fatty acid balance and cardiovascular
health. Annual review of nutrition. 2004;24:597-615.
46.
Galli C, Calder PC. Effects of fat and fatty acid intake on inflammatory and immune
responses: a critical review. Annals of nutrition & metabolism. 2009;55(1-3):12339.
34
Fábio Monteiro
47.
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Pretty IA, Gallagher MJ, Martin MV, Edgar WM, Higham SM. A study to assess the
effects of a new detergent-free, olive oil formulation dentifrice in vitro and in vivo.
Journal of dentistry. 2003;31(5):327-32.
48.
Asokan S, Rathan J, Muthu MS, Rathna PV, Emmadi P, Raghuraman, et al. Effect
of oil pulling on Streptococcus mutans count in plaque and saliva using Dentocult
SM Strip mutans test: a randomized, controlled, triple-blind study. Journal of the
Indian Society of Pedodontics and Preventive Dentistry. 2008;26(1):12-7.
49.
Giacaman RA, Jobet-Vila P, Munoz-Sandoval C. Fatty acid effect on sucroseinduced enamel demineralization and cariogenicity of an experimental biofilmcaries model. Odontology / the Society of the Nippon Dental University. 2014.
50.
Moynihan P. The interrelationship between diet and oral health. The Proceedings
of the Nutrition Society. 2005;64(4):571-80.
51.
Jones S, Burt BA, Petersen PE, Lennon MA. The effective use of fluorides in public
health. Bulletin of the World Health Organization. 2005;83(9):670-6.
52.
Tinanoff N, Palmer CA. Dietary determinants of dental caries and dietary
recommendations for preschool children. Journal of public health dentistry.
2000;60(3):197-206; discussion 7-9.
53.
Yanagida A, Kanda T, Tanabe M, Matsudaira F, Oliveira Cordeiro JG. Inhibitory
effects of apple polyphenols and related compounds on cariogenic factors of
mutans streptococci. Journal of agricultural and food chemistry. 2000;48(11):566671.
54.
Daglia M, Papetti A, Dacarro C, Gazzani G. Isolation of an antibacterial component
from roasted coffee. Journal of pharmaceutical and biomedical analysis.
1998;18(1-2):219-25.
35
Fábio Monteiro
55.
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Daglia M, Tarsi R, Papetti A, Grisoli P, Dacarro C, Pruzzo C, et al. Antiadhesive
effect of green and roasted coffee on Streptococcus mutans' adhesive properties
on saliva-coated hydroxyapatite beads. Journal of agricultural and food chemistry.
2002;50(5):1225-9.
56.
Daglia M, Stauder M, Papetti A, Signoretto C, Giusto G, Canepari P, et al. Isolation
of red wine components with anti-adhesion and anti-biofilm activity. Food Chem.
2010;119:1182-8.
57.
Wu CD, Wei GX. Tea as a functional food for oral health. Nutrition (Burbank, Los
Angeles County, Calif). 2002;18(5):443-4.
58.
Ooshima T, Osaka Y, Sasaki H, Osawa K, Yasuda H, Matsumura M, et al. Caries
inhibitory activity of cacao bean husk extract in in-vitro and animal experiments.
Archives of oral biology. 2000;45(8):639-45.
59.
Ooshima T, Osaka Y, Sasaki H, Osawa K, Yasuda H, Matsumoto M. Cariostatic
activity of cacao mass extract. Archives of oral biology. 2000;45(9):805-8.
60.
Srikanth RK, Shashikiran ND, Subba Reddy VV. Chocolate mouth rinse: Effect on
plaque accumulation and mutans streptococci counts when used by children.
Journal of the Indian Society of Pedodontics and Preventive Dentistry.
2008;26(2):67-70.
36
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Anexos
37
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Declaração
Monografia de Investigação/Relatório de Actividade Clínica
Declaro que o presente trabalho, no âmbito da Unidade Curricular Monografia de
Investigação/Relatório de Actividade Clínica, integrado no Mestrado Integrado em
Medicina Dentária da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade do Porto, é da
minha autoria e todas as fontes foram devidamente referenciadas.
O Autor,
38
Fábio Monteiro
Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na Cárie Dentária
Parecer
Informo que o Trabalho de Monografia desenvolvido pelo estudante Fábio André
Carvalho Monteiro, com o título: “Mecanismos Bioquímicos da Influência da Dieta na
Cárie Dentária”, está de acordo com as regras estipuladas na FMDUP, foi por mim
conferido e encontra-se em condições de ser apresentado em provas públicas.
O Orientador,
39
Download