TERRITÓRIO OCULTO: o escondimento da pobreza em Blumenau.

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Simpósio de Geografia da UDESC
2º SEMINÁRIO NACIONAL DE PLANEJAMENTO E DESENVOLVIMENTO
ÁREA TEMÁTICA: DESENVOLVIMENTO SOCIOAMBIENTAL,
CONFLITOS/DESIGUALDADES.
TERRITÓRIO OCULTO: o escondimento da pobreza em Blumenau.
Maria Roseli Rossi Avila1
Jorge Gustavo Barbosa de Oliveira2
Janaina Mayara Müller da Silva3
Cristiane Mansur de Moraes Souza4
Gilberto Friedenreich dos Santos5
Resumo
Este trabalho tem como objetivo explicitar e discutir o escondimento da pobreza que ocorre
em Blumenau (SC), como um exemplo entre tantos outros das cidades brasileiras. É estudada
a transferência, realizada em 1949, das 102 famílias que residiam na Favela Farroupilha,
localizada na margem esquerda do rio Itajaí-Açu, no centro da cidade. Quando se
aproximavam as comemorações do centenário (1950) da colonização alemã do município,
uma Comissão instituída pela Câmara de Vereadores recomendou – e o prefeito municipal
acatou – a remoção dos moradores da comunidade, a qual foi dividida e transferida para duas
regiões mais afastadas e precárias, as ruas Araranguá e Pedro Krauss Sênior. A origem da
Favela Farroupilha está ligada à vinda para Blumenau de trabalhadores imigrantes para
construir uma estrada de ferro. Sem condições financeiras, autoconstruíram suas moradias
junto ao próprio local de trabalho. Interesses políticos e imobiliários, no entanto, provocaram
o deslocamento dos seus habitantes para áreas periféricas, afastando-os das vistas do resto da
sociedade. Casos de transferência de populações de baixa renda ocorrem com frequência no
País, o que evidencia a necessidade destes estudos. No quadro teórico, discutiu-se o território
como lugar de pertença e de sociabilidades, os espaços de desigualdades, a pobreza e a
exclusão social, a qual contrasta largamente com a propalada imagem de cidade de belezas e
ímpar arquitetura. Utilizamo-nos da pesquisa documental e da coleta de dados. Quanto aos
resultados, constata-se que, passado já mais de meio século, os acontecimentos repetem-se.
Aos excluídos do passado, somam-se os novos excluídos, que juntam velhas e novas formas
1
AVILA, M. R. R. Bacharel em Serviço Social. Mestranda em Desenvolvimento Regional pela Universidade
Regional de Blumenau (FURB), Blumenau/SC. Especializando em Dependência Química e Comunidade
Terapêutica pela Faculdade Luterana de Teologia (FLT), São Bento do Sul/SC. Bolsista do PROGRAMA
UNIEDU PÓS-GRADUAÇÃO
. E-mail: [email protected]
2
OLIVEIRA, J. G. B. de. Bacharel em Ciências Sociais. Mestrando em Desenvolvimento Regional pela FURB.
Especialista em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília/DF. Professor e Coordenador do Curso de
Ciências Sociais da FURB, Blumenau/SC. E-mail: [email protected]
3
SILVA, J. M. da. Bacharel em Serviço Social. Mestranda em Desenvolvimento Regional pela FURB,
Blumenau/SC. E-mail: [email protected]
4
MANSUR, de M. S., C. Bacharel em Arquitetura e Urbanismo. Doutorado em Interdisciplinar em Ciências
Humanas. Mestrado e Especialização em Urban Design Ma. Oxford. Coordenadora do PPGDR da FURB.
5
SANTOS, Gilberto Friedenreich dos. Bacharel em Geografia. Doutorado e mestrado em Geografia. Professor
do PPGDR da FURB.
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de resistência. Os conflitos aumentam e alargam-se os espaços das desigualdades. As
discriminações se perpetuam no tempo e no espaço e exigem respostas e soluções.
Concluímos que se faz urgente uma mudança completa de paradigmas, com ênfase no
desenvolvimento socioterritorial. Esta mudança deve ser iniciada em contextos locais,
regionais e globais. Elencamos propostas que podem servir como subsídios para a concepção
e implementação de políticas públicas voltadas à valorização de populações historicamente
discriminadas. Transformações são necessárias, que de pequenas se tornem grandes, a partir
da ação coletiva.
Palavras-chave: Exclusão Social, Território, Desigualdade, Pobreza e Poder Político.
Abstract
This study aims to explain and discuss the concealment of poverty that occurs in Blumenau
(SC), as one example among many others of Brazilian cities. It is studied the transfer, held in
1949, of the 102 families that lived in the slum Farroupilha, located in downtown, on the left
bank of the river Itajaí-Açu. When it was approaching the celebrations for the 100th
anniversary (1950) of the German colonisation of the municipality, a Commission established
by the House of councillors recommended – and the mayor of the town followed – the
removal of the residents of the community, which was divided and transferred to two more
remote and precarious regions, the Araranguá and Pedro Krauss Senior streets. The origin of
slum Farroupilha is linked to coming to Blumenau of immigrant workers in order to build a
railroad. Without financial conditions, they self-built their homes next to the workplace.
Political and real estate interests, however, caused their displacement to peripheral areas,
away from the views of the society. Cases of transfer of low-income populations occur
frequently in the Country, which is evidence of the need for these studies. For the theoretical
framework, it was discussed the territory as a place of belonging and sociability, the spaces of
inequality, poverty and social exclusion, which contrasts greatly with the vaunted image of
city of beauty and unique architecture. We make use of documentary research and data
collection. The conflicts increase and widen the spaces of inequalities. The discrimination is
perpetuated in time and space and it requires answers and solutions. We conclude that there is
an urgent need of a complete change of paradigms, with emphasis on territorial development.
This change should be initiated in local, regional and global contexts. We listed proposals that
can serve as subsidies for the design and implementation of public policies aimed at recovery
of populations historically discriminated. Changes are necessary, that small become large,
from collective action.
Keywords: Social Exclusion, Territory, Inequality, Poverty, Political Power and Real Estate
Interests.
Introdução
O tema deste trabalho é o escondimento da pobreza em Blumenau. A discussão
nasce com a proposta de desvelar a realidade de nosso município, que ostenta riquezas e
belezas aos olhos do País, mas que, paradoxalmente, oculta os territórios de conflito,
desigualdade, pobreza e exclusão social.
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Na primeira parte do trabalho, apresentamos a história da Favela Farroupilha e a
transferência, em 1949, das 102 famílias que lá moravam: de uma área central para a periferia
da cidade. Os direitos da comunidade pobre são desprezados em razão de alegadas
considerações estéticas, orientadas pelos padrões burgueses dominantes. A deslocalização,
segundo raciocinavam as elites econômicas e políticas, esconderia atrás dos morros e becos
do município a pobreza e os “farrapos” dos moradores. Na segunda parte, caracterizamos o
território oculto, lugar de destino das 102 famílias: as comunidades da Rua Araranguá e da
Rua Pedro Krauss Sênior, com foco nesta última. Através dos mapas apresentados é-nos
possível visualizar onde se localizava a Favela Farroupilha e onde os dois fragmentos da
comunidade foram reassentados. Na terceira, discutimos as desigualdades, a pobreza e a
exclusão social que viceja sob os olhos das elites políticas, econômicas, culturais. A quarta
parte abre o debate sobre o território como lugar de pertença e sociabilidades, de elaboração
do processo de viver, da formação das identidades, das materializações e trocas. Por fim,
apresentamos nossa homenagem aos farroupilhas de Blumenau e elencamos indicativos que
podem contribuir para a elaboração de ações e estratégias conducentes a mudanças de
paradigmas.
1. A chaga exposta: história da Favela Farroupilha
O histórico do município, marcado por inúmeros desastres socioambientais e o
impacto destes no desenvolvimento urbano, demonstra que o debate sobre as questões sociais,
ambientais e de urbanização é urgente e imprescindível.
A cidade é exaltada e venerada pelos seus munícipes, além de ser reconhecida
nacionalmente pela beleza de sua arquitetura e vegetação. No entanto, oculto em seu seio,
possui territórios e espaços de conflito, desigualdades, pobreza e exclusão social. Conforme
SAMAGAIA (2010, p. 105, grifo no original),
[...] o histórico da pobreza em Blumenau, ao se explicitar espacialmente como
questão urbana, tem início já no final da década de 1920, mais especificamente em
1929, quando o processo de industrialização local estava se consolidando. O
primeiro aglomerado que surgiu em condições “ilegais” do ponto de vista da
aquisição dos terrenos, situava-se bem no centro da cidade, ao lado da ponte de ferro
(hoje Ponte Aldo Pereira de Andrade) que outrora era passagem do trem. A
ocupação do local tem relação direta com a construção da ponte de ferro, levando-se
em conta que grande parte dos moradores da localidade eram operários que
trabalhavam na sua construção. A pequena comunidade chegou a abrigar 102
famílias e foi autodenominada pelos próprios moradores de “Favela Farroupilha”,
como ficou conhecida na cidade.
A escolha, pelos moradores, do nome Favela Farroupilha, reflete a origem destes
trabalhadores imigrantes, suas vivências, seus valores e visão de mundo. Conforme
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depoimento da historiadora Sueli Petry (05 maio 2014), os moradores da comunidade eram
negros, provenientes de cidades litorâneas, como Itajaí, Tijucas etc. Autodenominaram-se
Farroupilhas por, conforme afirma, “serem pobres, desguarnecidos, ou seja, vestiam-se com
farrapos. Farrapos → Farroupilha”. Embora esta seja a origem da denominação a que os
moradores se atribuíram, o nome guarda analogia com a situação dos combatentes da
Revolução Farroupilha, episódio da História brasileira em que as províncias6 do Rio Grande
do Sul e de Santa Catarina, respectivamente, Repúblicas do Piratini e Juliana (FAGUNDES,
1989), levantam-se contra o Império brasileiro, em conflito que durou de 1835 a 1845. O
termo Farroupilha alude, portanto, à capacidade de luta e de resistência, mesmo em condições
de penúria, pela sobrevivência.
Assim, os trabalhadores imigrantes que vieram construir a estrada de ferro, frente
à impossibilidade de acederem a habitações por via do mercado imobiliário, dados os seus
parcos salários, partiram para a autoconstrução de suas moradias junto ao próprio local de
trabalho, a ponte da travessia do rio Itajaí-Açu, no centro de Blumenau.
Em Friedrich Ratzel, conforme Corrêa (1995, p. 18), os conceitos de território e
de espaço vital (Lebensraum) assumem, respectivamente, os significados de “apropriação de
uma porção do espaço por um determinado grupo” e satisfação das suas necessidades
territoriais de modo a, numa relação entre população e recursos, mediada pela capacidade
técnica, viabilizar o seu desenvolvimento. O autor alemão, logicamente, produziu seu
pensamento em contexto e proporções muito distintas, de disputas intra e ultra continentais
entre Estados-nação por territórios, por seus recursos naturais e humanos, bem como por
mercados. No entanto, salvaguardados os contextos, o aproveitamento de tais conceitos é
fecundo para a compreensão do fenômeno que estudamos. Tratava-se de disputa territorial
associada aos significados materiais e simbólicos de reprodução: da vida dos trabalhadores,
por um lado; da imagem que a burguesia local fazia de si própria, por outro; mas que não se
reconhecia naquele emblemático local, ocupado por gente “intrusa”, alienígena, forasteira,
pobre, “deserdados da sorte”, de outra classe social. Uma vez que se descartou a cooperação
para resolver a questão social, o conflito e a exclusão se instalaram. A elite e seus
representantes, investidos do Poder Público, decidiram retirar do local a comunidade pobre, e
escondê-la. Dividiram-na e deslocaram-na para espaços afastados, valendo-se do
6
Conforme Costa Gomes (1995, p. 49-76), a palavra província é proveniente do latim provincere, em referência
à submissão ao controle da hegemonia romana.
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emaranhamento topográfico que caracteriza a geografia do município. A FIGURA 1 mostra o
assentamento da Favela Farroupilha ao pé da ponte de ferro.
FIGURA 1 – Favela Farroupilha (1940) junto à ponte de ferro, centro de Blumenau
Fonte: SAMAGAIA (2010, p. 106).
A ocupação de um trecho da margem esquerda do Itajaí-Açu, produto da vinda de
trabalhadores
imigrantes
para
implantar
uma
infraestrutura
importantíssima
ao
desenvolvimento da região, a Estrada de Ferro de Santa Catarina (EFSC), na década de 1940,
conforme relata Samagaia (2010, p. 105), resultou numa disputa territorial, como se verá a
seguir, pelo seu valor simbólico e imobiliário. A sua expressão, aos olhos das elites, dava-se
no contraste da beleza do centro da cidade frente àquela chaga social. As comemorações do
Centenário da colonização, em 1950, aproximavam-se, fazia-se necessário “esconder a
pobreza”. É caso para lembrar as palavras de Lúcio Kowarick, para quem
As coisas simples precisam constantemente ser ditas: é o capital – e não sua força de
trabalho – que deteriora a vida metropolitana. Para o capital, a cidade e a classe
trabalhadora interessam como fonte de lucro. Para os trabalhadores, a cidade é o
mundo onde devem procurar desenvolver suas potencialidades coletivas. Entre os
dois existe um mundo de diferenças. E um mundo de antagonismos (KOWARICK,
1993, p. 54).
Este antagonismo e suas consequências é fruto da estrutura social polarizada pelo regime de
propriedade. Em um pólo, encontram-se os proprietários, controladores das relações e
proprietários dos meios de produção; de outro, os que vendem o único que possuem, e que
interessa aos primeiros comprar: a capacidade de trabalho. Esta relação entre seres
socialmente desigualados é que permite a apropriação e a concentração da riqueza gerada
socialmente. A pobreza, antes de ser geradora das mazelas e feiúras, é consequência e vítima
da extrema concentração de riqueza.
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No caso em estudo, a resposta das autoridades e da elite local para o
enfrentamento da questão culminou com a transferência das 102 famílias para outros locais da
cidade.
Em reunião da Câmara de Vereadores, no dia 17 de março de 1948, foi discutida
uma indicação, que lhe fora apresentada no dia anterior pelo vereador Herbert Georg,
requerendo solução imediata para o problema que denomina “cancro social” e sugerindo à
Câmara a instituição de uma comissão interna especial para estudar a questão (CIDADE DE
BLUMENAU, 1948, p. 1). No requerimento enviado pelo referido vereador, noticiado pelo
jornal Cidade de Blumenau a 20 de abril de 1948, em reportagem intitulada Para presservar
(sic) a cidade do Problema das Favelas, constam 10 questões que deveriam ser respondidas
pelo estudo da comissão a ser criada (ANEXO 1).
Analisando os textos, vimos que são utilizadas expressões estigmatizadoras, como
intrusos, cancro social, deserdados da sorte para referir-se aos favelados, o que também
revela os graus de conflitualidade e discriminação existentes na época entre as pessoas de
baixa renda e as autoridades. As dez questões formuladas pelo vereador Herbert Georg,
desejavam saber sobre:
a) que locais da cidade seriam favoráveis à formação de favelas; b) onde elas já existiam; c) o
número de famílias e de seus integrantes, bem como a densidade das ocupações; d) quantos
seriam os moradores que auferiam rendas ou lucros suficientes para poderem pagar aluguel; e)
que medidas a Comissão sugeriria para se obstar a formação de novas favelas, para se evitar a
ampliação das mesmas e para extingui-las; f) a definição do lugar de assentamento da
população a ser deslocada; g) que medidas tomar para se evitar o fluxo a Blumenau de
famílias pobres, em especial das originárias do Litoral; h) qual a acolhida dos empresários da
indústria e do comércio a respeito da composição de um fundo dedicado à aquisição de
terrenos considerados adequados para loteamento, construção e venda, a preço de custo, aos
trabalhadores, i) se o município poderia contar com a colaboração do Estado e da União para
se evitar a formação de favelas e resolver o problema habitacional, j) qual seria a reação dos
favelados perante medidas de coação que os conduzissem à zona de assentamento
determinada pelas autoridades.
O conjunto das questões formuladas deixa clara a intenção das autoridades em
buscar informações que lhes permitissem executar sua política de contenção e eliminação – ou
pelo menos escondimento – de favelas no município. Curiosamente, os membros da Comissão
instituída eram integrantes dos diferentes setores sociais envolvidos, menos o da própria
favela Farroupilha. Os indicados foram o juiz de Direito da Comarca de Blumenau, o
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presidente da Câmara Municipal, o vereador que formulou a petição pela Comissão, um filho
do proprietário do terreno onde se localizava a Farroupilha, o prefeito municipal, e um
vereador do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Pelo perfil partidário, possivelmente este
último membro da Comissão fosse o único em condições de levar à discussão a palavra dos
membros da comunidade alvo.
Neste processo ficou patente, para além da exclusão estrutural, própria do
capitalismo, também a exclusão, em termos de cidadania, dos principais interessados pelo que
se estava a preparar. Também se evidenciou, uma vez mais, o caráter de classe, não apenas da
Comissão composta, mas dos próprios poderes públicos ali constituídos. Em uma sociedade
democrática o contraditório é reconhecido, e mesmo incentivado, pois permite a expressão e
representação da variedade de setores sociais, portadores de interesses distintos, mas todos
com direitos reconhecidos, inclusive de participar da formulação das políticas públicas, em
defesa das respectivas posições, e de se beneficiarem dos serviços prestados pelas instituições
públicas.
Segundo os jornais A Nação (1949) e Cidade de Blumenau (1948), e o Relatório
de Gestão dos Negócios Administrativos do Município de Blumenau Durante o Ano de 1949,
Apresentado à Câmara Municipal pelo Prefeito Frederico Guilherme Busch Júnior, o
incorporador Roberto Baier recebeu “pagamento do auxílio [...] para extinção da Farroupilha
existente no terreno de propriedade do mesmo” (BLUMENAU, 1949, p. 15). Cabe ressaltar
que este “auxílio” foi proveniente do Poder Público municipal, e que foi utilizado para
comprar terrenos a serem vendidos a baixo preço para os moradores desalojados (SILVA,
2008, p. 110). A intenção era instituir, no local da Favela Farroupilha, um loteamento com
residências de alto padrão a serem vendidas a terceiros (A NAÇÃO, 1949, p. 2, 6ª coluna).
Este acordo do Poder Público com um incorporador privado para desalojar populações pobres
e, em seu lugar, colocar pessoas mais ricas tem sido prática recorrente. Ele evidenciou o
caráter de classe da medida e visou à acumulação de riqueza via renda imobiliária.
Deste modo, os deslocados da Favela Farroupilha foram submetidos à estratégia
do escondimento, muito praticada no Brasil. Foram reassentados na Rua Araranguá 7 (antigo
Beco Araranguá) e na Rua Pedro Krauss Sênior8 (antigo Beco das Cabras). Lugares na “época
7
A comunidade da Rua Araranguá localiza-se na região da sub-bacia do Ribeirão Araranguá que se localiza “na
parte sul da cidade de Blumenau [...], com uma área de apenas 2,24 Km²” sendo “1 Km² de área urbana” e “é
composta por parte dos bairros Ribeirão Fresco e Garcia”. (AVILA; SAMAGAIA, 2013, p. 13).
8
A Comunidade Pedro Krauss localiza-se na Macrorregião Sul da cidade de Blumenau (SC). [...] pertence ao
bairro Vorstadt (na língua alemã a palavra quer dizer antes da entrada/entrada da cidade)8, numa “área de
ocupação irregular” “com declividade acentuada” [...], próxima à região central do município. (AVILA;
SAMAGAIA, 2013, p. 6-7).
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discriminados como locais de moradia dos pobres” (MOSER, 2007, p. 17) e, posteriormente,
considerados pela Secretaria de Planejamento do Município de Blumenau (BLUMENAU,
2011, p. 20-21) como “Áreas de Risco Geológico (ARGs)”, ou seja, “pontos que tiveram a
maior ocorrência de deslizamentos” durante o desastre socioambiental de 2008. Para termos
noção dos deslocamentos realizados com a transferência das 102 famílias, apresentamos a
abaixo a FIGURA 2.
FIGURA 2 – Mapa com a localização dos assentamentos
Fonte: AVILA; OLIVEIRA; SILVA, 2014. Mapa com a localização dos assentamentos, adaptado do
Mapa de Sobreposição de Áreas de Concentração de Pobreza sobre Áreas de Risco (SAMAGAIA, 2010, p. 123).
Como se vê, o primeiro círculo encontra-se na margem esquerda do Rio ItajaíAçu, exatamente em uma das extremidades no núcleo central da cidade, em frente à foz do
Ribeirão da Velha e junto à ponte de ferro. A outra extremidade da zona central está à jusante,
na foz do Ribeirão Garcia, sede da antiga Prefeitura Municipal. Mais afastadas do centro,
vemos as regiões da Rua Pedro Krauss Sênior (círculo 2), e da Rua Araranguá (círculo 3),
ambas situadas na margem direita do Itajaí-Açu.
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Esta análise circunscreve-se à comunidade da Rua Pedro Krauss Sênior, embora
as duas comunidades9 situem-se na periferia da cidade, em áreas de ocupação irregular e de
risco. Conforme Avila e Samagaia (2013, p. 3), no Brasil, em geral denominam-se essas áreas
de favelas, e seus moradores são discriminados pejorativamente como favelados, atribuindose aos mesmos a responsabilidade por grande parte (ou quase toda) da violência e dos
problemas das cidades.
2. Território oculto: a comunidade da Rua Pedro Krauss Sênior
A comunidade tem o nome da sua principal via de acesso, denominada Rua Pedro
Krauss Sênior (SEPLAN, 2010, p. 04). De início, ela chamava-se Rua das Cabras. Em 18 de
agosto de 1942, porém, através do Decreto de Lei nº 68 passou-se a chamá-la Chapecó. Mais
tarde, em 18 de agosto de 1961, recebeu a designação atual, nome do neto do antigo dono das
terras, antes da ocupação. Em 1949, a comunidade da Rua Pedro Krauss Sênior recebeu a
transferência, como já citado, de uma parte das famílias provindas da Favela Farroupilha,
localizada no centro da cidade (AVILA; SAMAGAIA, 2013, p. 7).
Casos como este, de transferência de populações, ocorrem com frequência. Após
o desastre de 200810, parte dos atingidos da Pedro Krauss foi novamente transferida, agora
para os condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida11. Engels (1983, p. 380), ao se
referir a uma situação semelhante na Europa, ocorrida na parte baixa do vale do rio Medlock,
conhecida pelo nome de Pequena Irlanda, que, após uma forte inundação, foi transferida “da
parte sul da Oxford Road para a parte norte”, afirma que este é um “exemplo marcante de
como a burguesia resolve na prática a questão da habitação” (ENGELS, 1983, p. 382).
Segundo o autor, “os focos de epidemias, as mais infames cavernas e buracos em que o modo
de produção capitalista encerra noite após noite os nossos operários não são eliminados, mas,
apenas... mudados de lugar!” (ENGELS, 1983, p. 382). O autor acredita que a solução reside
na abolição do modo de produção capitalista e não na transferência dos moradores para
lugares com as mesmas necessidades. Segundo aponta,
9
Ambos os assentamentos cresceram. Na comunidade da Rua Araranguá habitam hoje 1.635 famílias. Por sua
vez, na comunidade da Rua Pedro Krauss Sênior residem 704 famílias (AVILA; SAMAGAIA, 2013, p. 5).
10
Em novembro de 2008, o Vale do Itajaí foi atingido por um intenso volume de chuvas. As precipitações que
atingiram a região causaram perdas irreparáveis, materiais e humanas. Conforme Mattedi (2009, p. 14), “as
chuvas intensas [...] provocando escorregamentos, enxurradas e inundações, obrigaram 14 municípios a decretar
estado de calamidade pública e 63 a decretar situação de emergência, o que demonstra a extensão do desastre”.
Blumenau foi um dos municípios mais atingidos. (MATTEDI, 2009, p. 14).
11
O PMCMV é financiado com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial. É um programa do Governo
Federal em parceria com os estados e municípios, gerido pelo Ministério das Cidades e operacionalizado pela
CAIXA. O objetivo do Programa é a produção de unidades habitacionais, que depois de concluídas são vendidas
sem arrendamento prévio, às famílias que possuem renda familiar mensal de até R$1.600,00. (PMCMV, 2014).
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A mesma necessidade econômica que os tinha provocado no primeiro sítio produ-los
também no segundo. E, enquanto o modo de produção capitalista existir, será
disparate pretender resolver isoladamente a questão da habitação ou qualquer outra
questão social que diga respeito à sorte dos operários. A solução reside, sim, na
abolição do modo de produção capitalista, na apropriação pela classe operária de
todos os meios de vida e de trabalho. (ENGELS, 1983, p. 382).
No caso da Favela Farroupilha, os moradores foram segregados por razões
alegadamente estéticas, e excluídos do centro da cidade. Conforme Boff (1993, p. 3) “a
injustiça social acarreta injustiça ecológica e vice-versa. Portanto não adianta venerar a
natureza sem articulá-la com a agressão aos seres importantes dessa natureza que são os
humanos marginalizados e empobrecidos”. Não houve outra preocupação que não a estética,
segundo os padrões da classe dominante, pois os locais para onde os moradores da Favela
Farroupilha foram deslocados se encontram em igual ou tanto mais risco do que a área
anterior. Prova disto é o que aconteceu com a comunidade da Pedro Krauss no desastre
socioambiental de 2008, quando 42 moradias de uma só área (ver Figura 2 – zona circulada)
foram totalmente destruídas pelos escorregamentos, ou, ao serem posteriormente condenadas
pela Defesa Civil, pelos próprios moradores (AVILA; SAMAGAIA, 2013, p. 9).
FIGURA 3 – Mapa da localidade segundo a unidade de Estratégia da Saúde da Família
(ESF) local
Fonte: Mapa da Comunidade Pedro Krauss, segundo a Unidade de Estratégia da Saúde da Família. Foto
de arquivo pessoal de Maria Roseli Rossi Avila. 2014.
A primeira exclusão, provocada pela ação do Poder Público em 1949, não resultou
em consequente inclusão. Se havia pobreza, ela cresceu e se agravou. Se havia riscos, eles se
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agudizaram. A conjunção de crescimento populacional com uso desordenado do solo,
associada ao risco geológico12, ameaçam novos desastres socioambientais13.
3. A exclusão social
O tema da exclusão social deve ser visto como um processo histórico sistêmico,
ou seja, um todo gerador: por um lado, de extrema concentração de riqueza; por outro, da sua
consequência necessária, a pobreza extrema; incluídas as tentativas de encobrir suas
manifestas consequências. Neste caso, o escondimento da própria forma de sobrevivência da
classe trabalhadora em meio urbano, as favelas e habitações periféricas.
Na origem, a exclusão social foi associada ao não ter: não ter acesso à terra, ao
trabalho, à renda para fazer face às necessidades básicas, dentre elas a de moradia. A sua
complexidade, no entanto, levou à compreensão de que tal exclusão levanta questões ligadas
ao ser. Como refere o Atlas da Exclusão Social (2004, p. 29, grifo no original), “Assim, a
exclusão social assume características de natureza política e econômica, fazendo com que
alguns segmentos sociais sejam algo porque têm, enquanto outros não sejam porque não têm
e, possivelmente, jamais serão, pois nunca terão.”
As pessoas não chegam a ser porque não têm oportunidades para manterem a
saúde, para educarem-se, para profissionalizarem-se, enfim, para realizarem-se. Neste quadro
de aguda desigualdade, sem políticas públicas de inclusão, a questão crucial para os
trabalhadores e suas famílias passa a ser a sobrevivência. Esta se dá através de ocupações mal
remuneradas no mercado de trabalho. Por consequência, em função dos escassos recursos,
eles alojam-se em moradias, técnica e materialmente precárias, de periferia; autoconstruídas
12
Conforme Aumond et al. (2009, p. 24) a bacia do Vale do Itajaí possui “[...] grande complexidade geológica,
susceptibilidade à dinâmica dos processos erosivos e fragilidade ambiental.” Os mesmos destacam que a
paisagem do Vale do Itajaí sofreu muitas transformações com o passar do tempo, devido aos fenômenos naturais
(chuva, vento, clima, vegetação etc.). Estes fenômenos contribuíram para a modificação do solo, inclusive nas
rochas (muito presente na região), que geraram um solo bastante frágil e permeável. Grande parte do Sul de
Blumenau, [...], apresenta um solo “[...] onde as rochas formam camadas dobradas, fraturadas e inclinadas [...]”
(2009, p. 29), aumentando as possibilidades de escorregamento. Para os autores, a ocupação do solo e a
exploração dos recursos naturais foram e são influenciados pelo aumento da população humana e interesses
econômicos, que não respeitaram a fragilidade e peculiaridade do ecossistema regional. A vegetação tem papel
fundamental no ecossistema regional, retardando o movimento do solo e mantendo-o coeso, em caso de muita
chuva. A preservação da mata nativa também evita a erosão superficial do mesmo. Entretanto, o solo vem sendo
utilizado e visto somente para fins econômicos, e desta forma, o Vale torna-se ainda mais propício a danos e
perdas, em épocas de muita chuva.
13
Embora Blumenau possua diversas condições naturais propícias a desastres naturais, grande parte dos
desastres é consequência da ação humana. A ocupação desordenada do solo e o desmatamento agravam o risco, e
aumentam o número de vítimas. Aumond e Sevegnani (2009, p. 78-91) exemplificam a ação humana através dos
cortes nos morros, que contribuíram para fragilizar encostas e com as chuvas, desencadearam o escorregamento.
Para os autores, é dever do poder público a orientação, a fiscalização e a proibição desta conduta. Porém, além
de não seguir esta regra, o poder público é na maioria das vezes o responsável por executar estes cortes.
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ao longo de anos, sem possibilidade de cumprirem com as regulamentações legais; sob
condições sanitárias, acústicas, climáticas, ambientais e de segurança que os expõem a
significativos riscos.
A cidade, locus por excelência da sociedade contemporânea, onde acima de 80%
dos brasileiros vivem, mais do que gerar riqueza e decisão, produz simultaneamente exclusão
social. Há séculos oprimidas e empobrecidas, as populações rurais, que até a década de 1960
eram maioria no País, devido à industrialização, e por complexo processo migratório, em que
atuam efeitos propulsores e regressivos (econômicos), conjugados com fatores de mudança e
de estagnação (sociais), põem-se em movimento, confluem para as cidades. (SINGER, 1987,
37-45). Elas acabam por receber toda a desigualdade e a exclusão previamente existente,
processam-nas, e geram outras mais.
A concentração e a centralização da riqueza produzem segregação no território
urbano, a qual é plasmada nos bairros considerados nobres, de um lado; nas favelas e nas
construções de periferia, de outro. Este último lado é o que, quase invariavelmente, concentra
os mais baixos índices de inclusão social. “A beleza das luzes, do moderno, da cultura, o
charme sofisticado de alguns endereços são, de um momento para outro, trocados pela
escuridão da pobreza, das tragédias e da violência.” (Atlas, 2004, p. 97).
Havia um problema com a Favela Farroupilha. Ela não estava na periferia, mas
sim no centro da cidade, junto à ponte da estrada de ferro, que os trabalhadores construíram, e
onde se alojaram. Tratava-se de território apreciado como nobre; fronteiro à antiga estação
ferroviária, hoje Prefeitura Municipal, próximo ao início da principal rua comercial. Segundo
as autoridades, deixá-la ali significava manter, cada vez mais ampliada, a evidência da
segregação desta sociedade. Em vez de se combater a segregação, preferiu-se escondê-la. A
saída encontrada foi a transferência dos trabalhadores e de suas famílias para dois outros
locais, onde nem eles nem suas moradias seriam vistos. O local de reprodução e realização de
suas vidas, apesar de necessário para a sociedade, ficaria oculto. Habitações de periferia
distantes do centro significam uma precarização ainda maior das condições habitacionais,
comparativamente àquelas verificadas em uma favela, como fica evidente no caso estudado.
A Farroupilha foi criada pelos próprios moradores, a partir da sua história e de suas
necessidades, localizada próximo aos bens e serviços oferecidos pelo conjunto da sociedade.
A periferia significou um afastamento forçado das condições de vida que, com seus esforços,
haviam construído.
A classe dominante e as autoridades optaram pela gentrificação, como explica
Martínez Alier (1998, p. 329), através da qual se retiram as pessoas pobres das áreas
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valorizadas pelo capital, com seus interesses imobiliários e, posteriormente, coloca-se gente
mais rica, com infraestruturas e serviços compatíveis aos novos moradores. Anos após a
retirada dos moradores da Favela Farroupilha, poucos metros a jusante, e na mesma quota, o
Poder Público autorizou a edificação de um portentoso arranha-céu para abrigar uma unidade
hoteleira, entre outras construções.
As residências populares foram removidas, mesmo aquelas situadas em cotas
superiores à do tabuleiro da ponte de ferro, onde a água nunca atingiu. Se havia casas
construídas em zona de inundação, não foi este o critério utilizado para a remoção, pois, à
montante e à jusante, outras habitações e construções comerciais e residenciais não foram
removidas. Pelo contrário, inclusive outras edificações, posteriormente, foram e continuam lá
a ser construídas.
É certo que esta continuidade, na contramão do sentido da sociedade justa, não se
circunscreve ao território de Blumenau. Todo o contrário. À luz da experiência histórica da
Humanidade, cumpre-se a alternada visão do teólogo Leonardo Boff (1993, p. 4), para quem o
ser humano pode ser anjo da guarda, bem como satã da Terra. O que se vê é a Terra a sangrar,
especialmente em seu ser mais singular, o oprimido, o marginalizado e o excluído, pois todos
esses compõem as grandes maiorias do planeta. Previdente e otimista, contudo, aconselha-nos
a pensar o equilíbrio universal e a nova ordem ecológica mundial exatamente a partir dos
oprimidos, o que também faz Pieruccini Souza (2007, p. 91), ao apontar para um horizonte de
esperança ao afirmar que “as cidades podem se tornar espaços iluminados e dignos para o ser
humano em seu cotidiano”.
4. O território – lugar de pertença e sociabilidades
Como pensar o equilíbrio, a dignidade e o desenvolvimento em meio a um modelo
sistêmico centrado no crescimento econômico, na espoliação e na exploração de uma classe (a
burguesa) sobre a outra (a classe proletária)? Como pensar o futuro sem recorrer aos mesmos
erros do passado? É possível o desenvolvimento (regional e global) sem injustiça social?
Sach (1993), aponta a necessidade de se olhar os interesses a curto prazo das
populações, e argumenta que o “não desenvolvimento” não é a solução para o “mau
desenvolvimento”. Já Jean (2010, p. 74), afirma que o desenvolvimento, por definição, é
sempre territorializado. Para o autor, não há desenvolvimento adequado sem um longo
trabalho realizado com as populações, de modo a se chegar a uma visão comum e
compartilhada do diagnóstico da situação e também dos meios a mobilizar para a gestão
sustentável de um futuro planejado em conjunto. O território serve como um poderoso
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referencial na formação das identidades individual e social. É pilar estruturante das mesmas,
juntamente com os referenciais familiares e profissionais, afirma o autor. Seus referenciais
resultam do voluntarismo das coletividades humanas, daquilo que caracterizamos como sendo
seu “projeto de território” (JEAN, 2010, p. 74). O território da Favela Farroupilha pertencia
aos seus moradores, pois foi por eles conquistado. Segundo Corrêa (1995, p. 15-23), o
território é vinculado à apropriação de uma porção do espaço por um determinado grupo. E
este espaço conquistado foi o lugar onde os moradores desenvolveram seus projetos de vida,
ou projeto de território.
Collischonn (2007) cita Brito (2002, p 12) para afirmar que o espaço geográfico é
resultado da “[...] dialética das relações sociais e suas materializações.” O território, por sua
vez, é a fração do espaço onde sujeitos reproduzem as “relações sociais e suas
materializações” de acordo com seus interesses. Estes territórios apresentam características
determinadas por estes sujeitos. Na mesma perspectiva, defende que as relações de poder
medeiam as relações sociais em determinado espaço, tornando-se um território. Mas isto não
quer dizer que os agentes tenham este espaço como território, pois a apropriação é apenas
política.
O projeto de território dos moradores da Favela Farroupilha estava enraizado aos
pilares da ponte de ferro onde trabalhavam. Naquele espaço haviam construído sua história,
fincado suas raízes e firmado relação de identidade territorial. Perceber esta realidade é
imprescindível para compreender o que significou para aquela comunidade ser arrancada de
seu espaço de “elaboração do processo de viver”, como denomina Valêncio et al. (2007, p.
84). Cada família lá existente foi arrancada, desenraizada, por ter sido retirada “do lugar onde
se situava. O espaço onde elaborava o processo de viver, no âmbito privado e comunitário”.
As famílias da Favela Farroupilha foram jogadas para a periferia da cidade, como se não
pertencessem ao lugar, ao espaço vivido anteriormente. Para Milton Santos (1979, p. 9-10), “a
história não se escreve fora do espaço e não há sociedade a-espacial”. Segundo este autor, a
sociedade só pode ser definida através do espaço, já que este é o resultado da produção, uma
decorrência de sua própria história, mais precisamente da história dos processos produtivos
impostos ao espaço pela sociedade.
Para Milton Santos (1994, p. 110), o espaço “comporta muitas definições,
segundo quem fala e o que deseja exprimir. [...] o espaço como conjunto contraditório,
formado por uma configuração territorial e por relações de produção, relações socais; [...]”.
Ainda conforme Santos, citado por Azeredo (2010, p. 580), “o território usado é chão mais a
identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o
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fundamento do trabalho: o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício
da vida”. O autor ressalta o território, o “lugar” como “identidade” do sujeito, lugar de
pertencimento, o espaço onde realiza trocas, tanto materiais como espirituais, enfim, onde
estão encravadas suas raízes. Sobre a sensação de “pertencimento”, Amaral (2006, p. 1, grifo
no original) afirma que, ao mesmo tempo em que nos sentimos pertencer a um lugar,
precisamos sentir que este lugar nos pertence. Para a autora, “significa que precisamos nos
sentir como pertencentes a tal lugar e ao mesmo tempo sentir que esse tal lugar nos pertence,
e que assim acreditamos que podemos interferir e, mais do que tudo, que vale a pena interferir
na rotina e nos rumos desse tal lugar” (AMARAL, 2006, p. 1). Outro autor afirma que este
espaço de viver é o território, que é “mais que um simples conjunto de objetos, mediante os
quais trabalhamos, circulamos, moramos”, é lugar de pertença (SANTOS 1998, p. 61, apud
Valêncio et al., 2007, 84),. “Hoje”, afirma, “certamente mais importante que a consciência do
lugar é a consciência do mundo através do Lugar” (SANTOS, 2005, p.161).
Brandão (2004) acredita que o desenvolvimento deve caminhar juntamente com
ações disruptivas e emancipatórias aos sujeitos, para que a construção social tenha um caráter
duradouro. O processo de transformação precisa acontecer em várias dimensões (produtiva,
social, tecnológica) e escalas (local, regional, nacional e global). As políticas de
desenvolvimento devem buscar reduzir as disparidades inter-regionais e ampliar a
autodeterminação de todas as comunidades. Também são necessárias estratégias que busquem
melhoras as condições de trabalho e erradicar o desemprego, mas que também influenciem a
consciência social cidadã e legitimação política. Para o autor, o Brasil precisa investir no
potencial de variedades, utilizando de sua riqueza da biosociodiversidade e potencialidades da
convivência de talentos, e com isso, “[...] ativar a capacidade revolucionariamente inventiva e
criativa culturalmente da sociedade brasileira.” Estratégia de resistência ao modelo atual.
Sachs (1993) propõe a gestão socioterritorial integrada e participativa com a
interparticipação da administração municipal e dos moradores da cidade (comunidades
locais), em interface com as demais instâncias de poder como resposta as questões sociais e
de urbanização das cidades. Conforme Pieruccini Souza 2007, p. 106, grifo no original), o
urbano é o possível que rompe com o impossível e seus obstáculos, numa relação com a
cidade, onde encontra-se, conforme Milton Santos (2001, p. 64), citado pela autora, “a
resistência, a criatividade e a possibilidade de indignação”. Indignar-se diante do
individualismo, do desrespeito, da violência, do controle capitalista sobre a vida e o ser
humano, da perversidade sistemática que consagra, “cotidianamente o fim da ética, da justiça,
da equidade e da política”, da indiferença e a exclusão dos mais fragilizados pela
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competitividade e a lógica de mercado. É na indignação e na perspectiva de um futuro
diferente que entram as utopias, resultado da combinação entre os valores fundamentais,
essenciais, fundadores do homem, que, nas palavras de Milton Santos, são válidos em
qualquer tempo e lugar, como a liberdade, a dignidade e a felicidade.
Considerações finais
Faz-se urgente e necessário, uma mudança completa de paradigmas, com ênfase
no desenvolvimento socioterritorial, na perspectiva de: a) valorização dos saberes e
conhecimentos dos cidadãos; b) da promoção da superação da forma predatória de
relacionamento com o meio ambiente; c) do estímulo à reflexão e ao desenvolvimento,
considerando o potencial de recursos naturais e socioculturais da comunidade. Conforme
Sachs (1993), as soluções devem tratar das raízes dos problemas e não de seus sintomas.
Segundo o autor, uma mudança de paradigmas da sociedade deve ser iniciada em contextos
locais e destes avançar para o global. Entra também aqui o papel da universidade, a qual,
segundo Monteiro (1996), “ao reunir e harmonizar os saberes nas suas diferentes
manifestações, ao lado da elaboração da nova "razão" e do novo "humanismo" que se torna
imprescindível ao porvir, é o lugar indicado para a geração das novas ideias e
procedimentos”. Faz ele um apelo para que “os programas de pesquisas dos futuros doutores
não visem apenas a ser um meio de titulação acadêmica, mas também um foco produtor de
conhecimentos aplicável ao bem estar e felicidade da Nação” (MONTEIRO, 1996, p, 97).
Passado já mais de meio século, os acontecimentos relacionados ao escondimento
dos farroupilhas – testemunhas e vítimas da exclusão gerada pelo sistema capitalista –
repetem-se. Aos excluídos de então, e que assim permanecem em resistência, somam-se os
novos excluídos, que juntam velhas e novas formas de resistência. Assim se apresenta o
mundo. No meio do conflito e da desigualdade, há esperança.
Os autores que acima ofereceram suas contribuições, seja no nível da
compreensão do que se passou e se passa localmente, seja dos que pensam a partir da
dimensão sistêmica, propõem soluções que passam pela democratização, pela superação das
injustiças e desequilíbrios sociais. Eles sugerem a comunhão do ser humano com a Natureza,
através do relançamento dos valores e dos princípios fundamentais, no sentido do equilíbrio,
do respeito a todas as formas de vida, e até dos que não são seres viventes, mas que pertencem
a, e ajudam a compor este mundo. Pensam e repropõem categorias explicativas, fazem a
crítica e apresentam alternativas, mas voltam ao começo. É preciso transformações, pequenas
que se devém grandes, a partir da ação coletiva.
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Já se disse que é preciso pensar globalmente, e agir a partir do nível em que nos
situamos. Portanto, começar por onde vivemos. Este trabalho rende homenagem e expressa
profundo respeito pelos que foram, aqui mesmo, desrespeitados em seus direitos
fundamentais, e que nos trazem ao presente portando a experiência vivida, de quem vive a
cotidiana luta pela sobrevivência com dignidade.
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ANEXO 1 – Cidade de Blumenau, 20 de abril de 1948, p. 1.
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