O ato cirúrgico e o dever de indenizar Guilherme Carvalho Monteiro de Andrade Mestre em Direito Empresarial pela Faculdade Milton Campos Professor de Direito Empresarial do Centro Universitário Newton Paiva Advogado, sócio do escritório Monteiro de Andrade e Diniz Advogados Associados A Medicina tem se desenvolvido enormemente nos últimos anos e cada vez mais surgem novas especialidades nesse campo do conhecimento. Além da evolução da ciência médica, as inovações tecnológicas contribuíram muito para as inúmeras mudanças ocorridas na forma de atuação do médico. Os atos que antes eram praticados por um profissional apenas, sem a utilização de qualquer recurso tecnológico, agora passam a ser desempenhados por uma equipe multidisciplinar, que recorre a todo tipo de materiais, aparelhos e ferramentas. Tudo isso a fim de aperfeiçoar e otimizar a prática médica e de oferecer ao paciente um tratamento de melhor qualidade. No campo da cirurgia, o trabalho passou a ser executado por um número considerável de profissionais, que se vale de vários novos recursos tecnológicos. Não somente o cirurgião atuará na realização do procedimento, mas, também, enfermeiros, instrumentadores, médico anestesista, dentre outros que se apresentarem necessários ao fiel cumprimento do trabalho. Quando tudo corre bem no tratamento proposto, o paciente fica satisfeito com a equipe e não se cogita identificar quem foi o responsável pelos atos individuais que foram realizados durante o procedimento. Porém, se o doente sofre alguma conseqüência lesiva em função da cirurgia, surge uma questão intrincada: quem responderá pelo dano oriundo desse ato praticado? A resposta não é simples, é preciso advertir. Em casos como o que foi apontado acima, a legislação brasileira 1 estabelece um liame entre todas as pessoas que participaram do ato que causou o dano, determinando que os prestadores de serviço sejam solidariamente responsáveis pelo ressarcimento dos prejuízos eventualmente impostos ao paciente. Além disso, prevê o legislador2 que o patrão é responsável pelas ações e omissões de seus empregados, prepostos ou representantes autônomos. A aplicação literal dessas normas à hipótese referida anteriormente conduz à conclusão de que o defeito na prestação de serviço cirúrgico atrairá a responsabilidade solidária de todos os profissionais que participaram do procedimento oferecido ao paciente. Todavia, não se pode desconsiderar que, em grande parte dos casos, o defeito é decorrente de alguma ação ou omissão praticada por apenas um dos membros da equipe que prestou o atendimento. Por exemplo, se o anestesista injeta mais droga 1 2 Parágrafo único do artigo 7º e parágrafo único do artigo 25, ambos do Código de Defesa do Consumidor. Artigo 34, do Código de Defesa do Consumidor. do que o necessário para sedar o doente e este sofre algum dano por causa disso, caberia a responsabilização de todos os demais membros da equipe cirúrgica em função desse ato danoso? Nessa hipótese, seria justo responsabilizar os outros profissionais pelo erro isolado do médico anestesista? Não existe uma posição pacificada na literatura jurídica, tampouco nos tribunais brasileiros sobre essa questão. Há quem defenda que o Código de Defesa do Consumidor foi instituído para proteger a parte mais fraca da relação e que, portanto, seria necessário estabelecer a solidariedade de toda a cadeia de prestadores de serviços, por causa da hipersuficiência desses em relação ao consumidor (paciente). Segundo defendem os que aderem a essa corrente de pensamento, no caso de erro do médico anestesista citado acima, os demais membros da equipe médica e a instituição de saúde (seja clínica ou hospital, público ou privado) também ficariam sujeitos à reparação do dano causado ao paciente. Caminhando em direção diversa, existem os que defendem que somente o responsável pelo ato danoso é que deve ser obrigado a indenizar o doente pelos prejuízos causados. Consoante argumentam os adeptos dessa linha de pensamento, se é possível identificar o autor do ato lesivo, não se pode dizer que todos demais profissionais que atuam num ato cirúrgico são responsáveis pelos danos causados ao paciente. Isso porque, sendo a autoria do ato lesivo evidente, o paciente tem condições de saber contra quem deve propor a ação judicial indenizatória, se assim o desejar. A fim de demonstrar a existência dessa divergência de entendimentos, confira-se a decisão proferida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do recurso especial nº 605.435-RJ, de relatoria do ministro João Otávio de Noronha. Nesse caso, os ministros do Superior Tribunal de Justiça posicionaram-se em sentidos diferentes, tendo prevalecido a posição de que existe solidariedade entre todos os membros da equipe médica e entre estes e a clínica médica quando um médico anestesista comete erro e isso causa dano ao paciente. Mas, nem sempre a conclusão deve ser a responsabilização solidária entre todos os participantes da cadeia de prestadores de serviços, como já manifestou o Superior Tribunal de Justiça na ocasião do julgamento do recurso especial nº 908.359-SC, também de relatoria do ministro João Otávio de Noronha. Como se vê, não há uma definição a priori acerca da existência de responsabilidade solidária em casos de danos ao paciente oriundos de defeito ocorrido durante uma cirurgia. Somente a partir da existência do evento danoso é que se poderá estabelecer se há como identificar o autor do ato lesivo. Se for impossível apurar qual foi o grau de atuação de cada membro da equipe que participou do ato cirúrgico, havendo o erro médico causador de dano ao paciente, surgirá para o doente o direito de pleitear indenização contra todos. Em conclusão, é preciso muita parcimônia e cuidado ao aplicar as regras do direito do consumidor em hipóteses como a citada neste artigo, para evitar a interpretação equivocada do instituto da responsabilidade solidária e a condenação injusta de quem não atuou para que o erro acontecesse.