DEFICIÊNCIA CONGÊNITA SEVERA DO FATOR X DA COAGULAÇÃO SANGUÍNEA: RELATO DE CASO E BREVE REVISÃO DA LITERATURA SEVERE CONGENITAL FACTOR X DEFICIENCY: CASE REPORT AND BRIEF REVIEW DESCRITORES: FATOR X. ANORMALIDADES CONGÊNITAS. KEY WORDS: FATOR ABNORMALITIES. X. DIAGNÓSTICO. DIAGNOSIS. HEMORRHAGE. HEMORRAGIA. CONGENITAL RESUMO A deficiência congênita do FX (deficiência do fator Stuart-Prower) é um raro distúrbio da coagulação sanguínea. Este artigo descreve um caso de uma criança do gênero feminino que aos 19 dias de vida desenvolveu hemorragia no SNC, antecedida de recorrentes episódios de sangramento em pele, mucosas e músculos. A avaliação hematológica correlacionada com os achados clínicos revelou a deficiência congênita do FX da coagulação sanguínea. A paciente foi medicada com CCPA, 70 UI/KG/dia por uma semana e recebeu tratamento profilático para complicações do SNC. Atualmente, a paciente encontra-se em bom estado geral, sem evidência de sequelas neurológicas. ABSTRACT Stuart Prower Factor (Factor X) deficiency is a rare hereditary autosomal recessive coagulation disorder. This paper describes a case of a 19-day-old female infant that presented a SNC bleeding and previous hemorrhagic episodes of skin, mucosae and muscles. Hematological findings in correlation with clinical manifestations revealed congenital factor X coagulation deficiency. She received CCPA, 70 UI/KG daily for a week and, also, prophylactic treatment for SNC complications. She is currently in follow-up and remains without neurologic manifestations. INTRODUÇÃO A deficiência congênita do FX da coagulação sanguínea é uma rara doença autossômica recessiva que acomete ambos os sexos, cuja incidência de indivíduos homozigotos na população geral é de 1:1.000.000. O Fator X ou fator Stuart-Prower é uma glicoproteína de síntese hepática, dependente de vitamina K, presente no plasma numa concentração média de 1mg/dl, que desempenha papel central na cascata de coagulação sanguínea, servindo como primeira enzima na via comum de formação da trombina. A doença é geneticamente heterogênea, posto existirem relatos de mais de 80 mutações no gene que codifica o FX, localizado no cromossomo 13q34-ter. Há evidências de que a caracterização genética tem importantes implicações na severidade e prognóstico da doença.2,3,9,10 Em virtude de suas manifestações clínicas severas, a deficiência do FX é considerada uma das mais graves coagulopatias hereditárias, apresentando-se, usualmente, como hemorragias mucocutâneas e nas articulações, sangramentos excessivos pós-traumáticos, menorragias, sangramento gastrointestinal, sangramento do sistema nervoso central e sangramento precoce do coto umbilical.2,7,9,10 O diagnóstico laboratorial da deficiência do FX é baseado nos níveis plasmáticos da atividade coagulante desse fator FX. A classificação desta coagulopatia relaciona-se com a severidade de suas manifestações clínicas e é efetuada através de um ensaio laboratorial baseado no tempo de protrombina, usando tromboplastina de coelho e plasma deficiente em FX. Desta forma, pacientes com fator X inferior a 1% são classificados como GRAVES, fator X entre 1% e 5%, MODERADOS, e entre 5% e 10%, LEVES. Os pacientes com níveis superiores a 20% raramente apresentam sangramento e os indivíduos heterozigotos são assintomáticos do ponto de vista clínico.1,2,3,8 O tratamento mais usual desse distúrbio coagulativo consiste no uso de plasma fresco congelado ou de concentrado de complexo protrombínico ativado ou parcialmente ativado. 1,2,3 CASO CLÍNICO Menor M.G.D.S., branca, natural de Picuí-PB, nascida de parto cesariano a termo, assintomática, pesando 3,7 Kg. No terceiro dia de vida, apresentou sangramento em local de aplicação de vacina IM para hepatite B. O sangramento não cessou após compressão local, sendo a paciente encaminhada para internação para administração de vitamina K e realização de exames. Após coleta de exames - hemograma e coagulograma- a menor apresentou sangramento e hematoma em local de punção venosa, sendo medicada com vitamina K e, não havendo melhora do quadro, foi administrado Plasma Fresco na dose de 15 ml/kl, com solicitação para avaliação hematológica. Os exames realizados mostraram: Hemoglobina – 10,9 g/dl ; Plaquetas -579.000/mm³ ; Leucócitos totais10.300/mm³,com diferenciação normal; Tempo de Protrombina (TP)-28 segundos (pool controle-14 segundos), com AE 21% e INR 2.3 segundos; Tempo de Tromboplastina Parcialmente Ativado (TTPA)-01 minuto e 20 segundos (pool controle-40 segundos). Com base nos resultados supracitados, o hematologista optou por continuar PFC de 12/12 h, além de solicitar dosagens específicas de fatores da coagulação posto não ter sido observado melhora do quadro com vitamina K, o que descartou a hipótese diagnóstica de deficiência dessa vitamina. Em adição, o prolongamento do TP e TTPA pressupunha deficiência de fatores (proteínas) da coagulação, já que tinham sido afastadas patologias hepáticas, neoplasias ou infecções. Foi também afastada a hipótese de uso de drogas por parte da genitora. A Dosagem dos fatores da coagulação mostrou: Fator V - 132% ( VR- 50 a 145%); Fator VII - 98% ( VR-50 a 150%); Fator X - 0,7% ( VR- 50 a 150%). Desta forma, com a análise dos resultados da dosagem dos fatores acima referidos, foi confirmada a deficiência congênita severa do fator X da coagulação sanguínea. A paciente recebeu alta hospitalar após melhora do quadro hemorrágico, tendo sido orientada a genitora da menor com relação à necessidade da realização de consultas periódicas no ambulatório de hematologia. Entretanto, após 12 dias da alta hospitalar, a paciente retornou para internação com queixa de vômitos, irritabilidade e choro constante. Ao exame físico, detectou-se fontanela abaulada e paresia em MIE, além de convulsões, sendo, de urgência, solicitada TC de crânio, que mostrou Hemorragia Subaracnóidea. A menor permaneceu na UTI pediátrica por 01 semana, sendo medicada com CCPA, na dose de 70 UI/KG,01 vez/dia, além de decadron,gardenal e hidantal. Foi conferida alta hospitalar após 20 dias de internação, com recomendação de retorno semanal da menor para administração do Complexo Protrombínico Parcialmente Ativado a fim de prevenir novos episódios de sangramento. Atualmente, a paciente encontra-se em bom estado geral, sem evidência de sequelas neurológicas. DISCUSSÃO O Fator X da coagulação sanguínea (fator de Stuart-Prower) consiste numa serinoprotease vitamina K-dependente que atua como enzima inicial na via comum da formação da trombina. Consequentemente, a deficiência hereditária ou adquirida desta proteína é causa de graves e recorrentes episódios hemorrágicos.2,3,4 A deficiência congênita do fator X é uma das mais raras doenças hereditárias da coagulação. Sua incidência em indivíduos homozigotos é de 1:1.000.000 na população em geral, tendo sido relatado que quando se manifesta na heterozigose, a doença é usualmente assintomática.2,5 A forma adquirida da doença ocorre em torno de 5% dos pacientes com amiloidose, como resultado de complicações esplênicas, mas também foi relatada em pacientes com distúrbios neoplásicos e infecciosos.2,6 O diagnóstico laboratorial da deficiência do FX é efetuado com base na concomitância do prolongamento do T.T.P.A. (tempo de tromboplastina parcial ativado) e T.P. (tempo de protrombina) associados a uma dosagem deficiente de fator X. 1,7,8 Para uma hemostasia eficiente, o nível plasmático considerado ótimo do fator é 10%. A ocorrência e a frequência dos eventos de sangramento correlacionam-se com o grau da insuficiência do FX, porém a maioria dos pacientes (cerca de 56%) apresenta grau severo de deficiência (FX < 1%), com constância de sangramentos mucocutâneos, subcutâneos, além de episódios hemorrágicos ocorrendo nos músculos, articulações ou cavidades corporais.6,8 Nas deficiências congênitas são comuns os sangramentos no período neonatal, sendo usualmente observado sangramentos do coto umbilical.2 No caso aqui relatado, a paciente desenvolveu hemorragia subaracnóide aos 19 dias de vida, com queixa de episódios anteriores de sangramento persistente, observados após eventos traumáticos de menor porte. A paciente não obteve melhora clínica com a vitamina K, sendo descartada a hipótese de deficiência dessa vitamina. Além disso, foram afastadas hipóteses de patologias hepáticas, neoplasias ou infecções, bem como a utilização de drogas por parte da genitora. O diagnóstico da deficiência congênita do fator X da coagulação sanguínea foi feito com base na dosagem plasmática desse fator. É importante mencionar que a genitora foi questioanada com relação a relações de consanguinidade, visto que alguns estudos relatam uma maior incidência da deficiência congênita do fator X em crianças geradas de relações consanguíneas3, entretanto, a mãe da menor negou a existência de tal vínculo. Devido à raridade da deficiência do fator X, até o momento não existem evidências de protocolos terapêuticos de uso geral recomendado. O tratamento mais usual consiste na utilização de plasma fresco congelado ou de concentrado de complexo protrombínico. Contudo, Diversos autores referem que o tratamento profilático com concentrado de complexo protrombínico pode controlar os episódios hemorrágicos.1, 2,3 Com relação ao caso aqui apresentado, como a paciente cursou com complicações do SCN, foi medicada com CCPA, além de decadron, gardenal e hidantal, medicações usuais na profilaxia das complicações neurológicas. Destaque-se que, após a alta, foi recomendado o retorno semanal da paciente para administração do Complexo Protrombínico, conforme preconizado de forma ampla na literatura pertinente 1,2,7,8 CONCLUSÃO: A deficiência congênita do FX consiste numa doença de significativa raridade. Entretanto, é fundamental que neonatologistas e hematologistas estejam atentos para as características clínicas e laboratoriais desta patologia, pois o diagnóstico precoce e o tratamento específico são importantes indicadores prognósticos para essa inusitada coagulopatia hereditária. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÀFICAS 1.BRASIL. Ministério da Saúde. 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AUTORES: 1. *Sandra Sibele Leite Vieira de Figueiredo (Autora Principal); 2. **Geraldo Luis dos Santos (Orientador); 3. ***Cláudia Roberta Leite Vieira de Figueiredo (Colaboradora). *Médica Hematologista, Professora da Disciplina de Hematologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); Gestora Estadual do Programa de Coagulopatias Congênitas do Ministério da Saúde; Responsável Técnica pelo Hemocentro da Paraíba; ** Médico Hematologista, Professor da Disciplina de Hematologia da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); ***Patologista Bucal, Professora da Disciplina de Patologia Geral da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Endereço para Correspondência: Rua Maria Jacy Pinto Costa, 76, Apto.204, Bessa. CEP:58037—435. e-mail: [email protected]