1 HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA: DOS BARQUINHOS ÀS MONTANHAS – A PRODUÇÃO DISCOGRÁFICA DA BOSSA NOVA MINEIRA* SHEYLA CASTRO DINIZ1, ADALBERTO PARANHOS2 RESUMO: A Bossa Nova, geralmente associada, tanto pelos acadêmicos quanto pelo senso comum, com o ambiente musical carioca dos anos 1950 e 1960, revela-se, neste trabalho, como um tipo de canção igualmente consumida e produzida em Minas Gerais (Belo Horizonte) durante o mesmo período. Este artigo se propõe a analisar o movimento bossanovista mineiro no que compete à sua produção discográfica, que foi desenvolvida principalmente pela atuação do Sambacana, grupo encabeçado por Pacífico Mascarenhas, tendo em vista suas interações com a Bossa Nova do Rio de Janeiro, as apropriações e reapropriações realizadas nesse contexto. Destaco que o caráter além-fronteiras (de tempo e de espaço) que caracteriza a Bossa Nova se configurou em um alicerce para a musicalidade belo-horizontina, sobre o qual se estruturaram parte da sonoridade do Clube da Esquina e a formação artística de vários músicos posteriores. Palavras-chave: História, Música Popular, Bossa Nova. RESUMEN: La Bossa Nova, generalmente asociada tanto por los académicos como por las personas comunes, con el ambiente musical carioca de los años 1950 y 1960, se enseña en este trabajo, como una modalidad de canción igualmente consumida y producida en Minas Gerais (Belo Horizonte) durante el mismo período. Este artículo se propone a analizar el movimiento bossa-novista mineiro de acuerdo con su producción discográfica, que fue desarrollada principalmente a través de la actuación del Sambacana, grupo encabezado por Pacífico Mascarenhas, llevando en cuenta sus interacciones, apropiaciones y reapropiaciones con la Bossa Nova de Río de Janeiro. Resalto que, el carácter más allá de las fronteras (de * Esta pesquisa, realizada no período de agosto de 2007 a julho de 2008, deu continuidade aos trabalhos iniciados em julho de 2006, mediante o financiamento – por dois anos consecutivos – do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq/UFU). 1 Licenciada em Ciências Sociais e graduanda em Música pela Universidade Federal de Uberlândia. Bolsista PIBIC/CNPq/UFU, projeto G-015, 2007/2008. Rua Nelson de Oliveira, 512 – cs. 2, bairro Santa Mônica, Uberlândia/MG, CEP: 38408-204. [email protected] 2 Professor doutor do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Uberlândia. Rua Olegário Maciel, 543, ap. 2102, Centro, Uberlândia/MG, CEP: 38400084. [email protected] 2 tiempo y espacio) que caracteriza la Bossa Nova, se cambió en una base para la musicalidad belo-horizontina, sobre la cual se estructuraron parte de la sonoridad del Clube da Esquina y la formación artística de varios músicos posteriores. Palabras-llave: Historia, Música Popular, Bossa Nova. visão INTRODUÇÃO quase unânime que buscamos acrescentar mais uma página à história da a Para que o leitor possa contextualizar Bossa Nova, ainda não contada e muito pesquisa menos problematizada, focalizando sua rapidamente desenvolvida, o debate retomo em torno do vertente mineira, que teve início na década surgimento da Bossa Nova em 1958.3 A de 1960, em meio à efervescência deste assimilação de procedimentos jazzísticos movimento artístico brasileiro. (de origem estadunidense) pela canção bossa-novista gerou dos final da década de 1950 contava com a “defensores” de uma tradição musical famosa Turma da Savassi – da Praça da brasileira que não admitiam tal influência Savassi –, que, composta basicamente por externa, apontando o aspecto “deturpador jovens do sexo masculino, era reconhecida de nossas origens culturais”. Ao mesmo na cidade por suas peripécias diversas. Os tempo, o novo gênero recebia a aprovação amigos que ali se encontravam, no bairro de muitos que enxergavam nele o ponto de dos partida para a renovação musical do Brasil. realizavam “amorosas serenatas” nas casas Ressaltamos, contudo, que o trabalho das namoradas, organizadas com base em aqui apresentado centra-se na perspectiva um repertório de sambas-canções, que já da apontavam modernidade protestos A cena musical belo-horizontina do estético-musical Funcionários, para inaugurada pela Bossa Nova, sem perder popular de vista seus precursores. Importa salientar essencialmente que o local comumente vinculado à sua Nova. a constantemente “moderna brasileira” referenciada música (MMPB), na Bossa 4 produção e maior propagação sempre foi o Rio de Janeiro, mas é na contramão desta 3 Para mais informações, ver PARANHOS, Adalberto. Novas bossas e velhos argumentos: tradição e contemporaneidade na MPB. História & Perspectivas, n.º 3, Uberlândia, UFU, jul./dez. 1990, p. 5-18. 4 Sobre a importância da Bossa Nova na consolidação da chamada MMPB (moderna música popular brasileira), que passou a ser reconhecida somente por MPB, ver NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a canção”: engajamento político e indústria cultural na trajetória da música popular brasileira (1959-1969). Tese de doutorado em História Social. São Paulo: USP, 1998, p. 1-17. 3 De (1999), acordo o ritmo com Walter Garcia denominada Bossa Nova, mas enfatizamos mais que este gênero repercutiu além dos limites bossa-novista, precisamente o pulsar do baixo do violão do território fluminense. de João Gilberto (considerado o seu Em Minas Gerais, a Bossa Nova inventor ou sintetizador), estaria mais ganhou forma a partir de reuniões musicais ligado aos procedimentos de mesma que passaram a acontecer no início dos natureza adotados para o samba-canção anos 1960, no sítio do pai de Pacífico tradicional das décadas de 1930 e 1940, Mascarenhas, um dos componentes da bem como para a técnica de violão no Turma da Savassi. Regadas a samba e acompanhamento samba-canção caldo de cana, como revelou Pacífico em moderno da década de 1950. Apontamos entrevista6, “nada mais natural do que que, para além do aspecto rítmico, os batizá-las de Sambacana”, nome que se sambas-canções modernos, celebrados, por popularizou na série de LPs lançados pelo exemplo, nas vozes de Dick Farney e músico, mas que não representava um Lúcio Alves, os quais compunham as grupo coeso, já que sua composição era atividades musicais dos integrantes da diferente em cada disco gravado. Ao longo Turma de da do Savassi, revelavam uma sua trajetória, desde o primeiro sofisticação estilística presente nas letras lançamento em 1964, o Sambacana reuniu mais coloquiais e na forma de cantar vários artistas que estavam ingressando no menos dramática e menos impostada. meio musical e que se transformaram em No período pré-Bossa Nova, os jovens músicos belo-horizontinos, assim ícones da Bossa Nova e da MPB, como Joyce, Wagner Tiso e Milton Nascimento. Neste como os do Rio de Janeiro, estavam artigo, ocupamo-nos não sintonizados com as diferentes sonoridades somente da análise da produção do que permeavam o meio musical, advindas, Sambacana, mas também de outras que em grande parte, das incursões do cool paralelamente se integraram à canção jazz5. Não negligenciamos a primazia dos bossa-novista das Geraes7, procurando cariocas que, apoiados na batida de João mostrar, inclusive, traços peculiares em Gilberto, puderam dar o acabamento final composições mais recentes dos músicos para um tipo de canção convencionalmente 6 5 “O cool jazz é elaborado, contido, anticontrastante. Não procura pontos de máximos e mínimos emocionais. O canto usa a voz da maneira como normalmente fala. Não há sussurros alternados com gritos. Nada de paroxismos” (BRITO. In: CAMPOS, 1978, p. 18-19). Entrevista com Pacífico Mascarenhas concedida a Sheyla Castro Diniz em 09 de junho de 2007. Belo Horizonte/MG, duração de 60 min. 7 O termo Geraes se refere à maneira como o Estado de Minas Gerais era chamado no passado, inclusive o termo foi consagrado como título de um disco de Milton Nascimento datado de 1976. 4 belo-horizontinos, inseridas no que Luiz composições dos músicos mineiros que Tatit (2004) chama de Bossa Nova foram gravadas antes e depois que a Bossa “extensa”. Nova estabeleceu seus parâmetros de execução. Temos ciência de que o seu surgimento não se deu da noite para o dia, “EU GRAVO ATÉ EM DISCO”8 A considerando que muitas obras antecedentes já apontavam características BOSSA NOVA DAS GERAES harmônicas, melódicas, poéticas, rítmicas e A música, assim como as fontes visuais – artes que compuseram o quadro de interpretação, mais tarde sintetizadas pelo movimento bossa-novístico. dos chamados “novos objetos” dentro das Exemplo desta constatação é à ciências humanas –, exige do pesquisador interpretação de João Gilberto para um olhar mais apurado para compreender “Saudade da Bahia”9, de Dorival Caymmi, os seus significados, não limitados à que ganhou uma ressignificação estética e linguagem textual, mesmo porque muitas de estilo manifestada pela economia dos “canções” são escassas de palavras. instrumentos (violão, marcação da bateria, Partimos da premissa de que a trompete e um trombone somente na análise da música popular como texto introdução), pela voz contida na fluência “literário” e “sonoro” implica a adoção de da fala e pela singularidade do ritmo. A uma metodologia capaz de comportar o gravação da mesma música pelo seu entendimento de que letra e som podem se próprio autor10 sugere um clima bem complementar contrapor, distinto, com arranjo carregado de cordas, dependendo, muitas vezes, da performance sopros e vocalizações que permeiam, quase de seus intérpretes e do momento histórico o tempo todo, a melodia regida pela em que ela se faz e se refaz. Em outras expressividade palavras, uma composição é um “espaço acompanhamento binário do samba ao aberto para a pluralidade de significados e pandeiro e cavaquinho. e/ou se modificações 8 no com possibilidades trazidas pela Bossa Nova, (PARANHOS, 2004, p. 24). forma, voz, Este tipo de prática deve-se às novas para a incorporação de vários sentidos” Desta da destacamos as tratamento de Alusão à música “Amor certinho” do mineiro Roberto Guimarães, gravada por João Gilberto no LP O amor, o sorriso e a flor, de 1960. 9 “Saudade da Bahia” (Dorival Caymmi). João Gilberto, LP João Gilberto. Odeon, 1961 (relançamento: CD de João Gilberto, O mito. Emi, 1992). 10 “Saudade da Bahia” (Dorival Caymmi). Dorival Caymmi, LP Eu vou pra Macacangalha. Odeon, 1957. 5 que, além de inovar em termos de cantor elementos constituir o elemento mais marcante na estético-musicais, busca Gilberto valorizar o “espírito da coisa”11, ou seja, música, um jeito diferente de conceber a canção. grandiloqüente Seguiram essa linha as composições não Santana, apresenta apesar uma com interpretativos, de emissão contrastes assemelhando-se ao de Pacífico Mascarenhas reunidas no LP colorido romantizado e volumoso da voz Um passeio musical – gravado em 1958 na de Lúcio Alves, que naquela época era Cia Brasileira de Discos (RJ), hoje estimado por muitos músicos mineiros. Universal –, que, segundo ele, foi a Ao escutar a mesma composição, primeira produção independente do Brasil. gravada em 1964 no primeiro disco da Organizado com 14 faixas, sendo as sete série Sambacana e cantada por Joyce últimas instrumentais, o disco mostra a (artista tendência da pré-Bossa Nova, trazendo musical) músicas que mesclam jazz, choro, bolero e continuidade samba-canção, explicitando o hibridismo chamamos de gêneros musicais que assinalavam a transformações ocorridas em favor de uma tentativa de criar algo novo. As canções concepção à luz da Bossa Nova. Diferentes são interpretadas por Paulinho e Seu significados estéticos e sonoros foram Conjunto, grupo belo-horizontino do qual inseridos nessa gravação, que, além de ter faziam o ritmo modificado, pouco propício à parte alguns participantes esporádicos da Turma da Savassi. ainda e desconhecida Toninho à a (que carreira no meio não deu de atenção cantor), para as dança, comporta improvisações ao piano e Selecionamos propositalmente duas à flauta13, que por vezes comenta em faixas desse LP que foram gravadas quatro trechos curtos, a melodia do canto. O anos depois. A primeira delas, “Quanto canto, por sua vez, não apresenta-se como tempo” (Pacífico Mascarenhas), assume foco características samba-canção integração com a harmonia, formando, em alguns momentos, duetos dissonantes. Esse de um abolerado, convidativo à aclimatado para execução uma dança e principal devido a sua maior de orquestras de baile, acostumadas com gran finalles em dominante e tônica12. A voz do 11 Esta expressão foi retirada de uma fala de Carlos Lyra, apud PARANHOS, 2000, op. cit, p. 39. 12 Os ritmos que, na década de 1950, estavam atrelados à dança, tal como o bolero, geralmente apresentavam uma harmonização simples baseada no campo harmônico primário, com finalizações vibrantes que confirmavam a tonalidade através do movimento da dominante (tensão) para a tônica (estabilidade). 13 Encontram-se práticas de improvisação em gêneros musicais brasileiros anteriores à Bossa Nova, como, por exemplo, o choro, porém, certas habilidades neste sentido só foram devidamente exploradas a partir de experimentações jazzísticas. 6 é despojado, desprovido de quaisquer formalidades e impostações vocais. Segundo Brito (op. cit.) a Bossa Nova ultrapassou os dualismos relativos à utilização de acordes consonantes ou dissonantes e à separação do que seriam harmonia e melodia, visto que a primeira era quase sempre elaborada em favor da última. Neste sentido, o hibridismo de gêneros que aparece em Um passeio musical foi suplantado no primeiro trabalho de fato bossa-novista de Pacífico Mascarenhas, lembrando que os arranjos deste disco são de Roberto Menescal e Hugo Marota e os teclados executados por Eumir Deodato, músicos já com certa experiência nesse campo. Outro elemento inovador está expresso na troca de palavras da canção “Se eu tivesse coragem” (Pacífico Mascarenhas), sobre a qual o autor relata ter composto com o objetivo de embalar as serenatas que realizava com seus amigos. Em Um passeio musical, esta composição está em linha de sintonia com o estilo galante que alimentava tais práticas de conquistas amorosas. Se eu tivesse ao menos coragem/ de dizer que te amo e te quero/ que te adoro meu bem/ que há muito te espero/ que por ti meu amor já sofri/ e por ti meu amor já penei/ se ao menos, porém refletisses/ e pensasses um pouquinho em nós dois/ se porém compreendesses que te amo tanto/ que por ti meu amor já sofri/ que por ti meu amor morrerei/ eu não consigo te dizer/ que gosto muito de ti/ fico acanhado em te pedir/ que me dês logo o teu amor/ se um dia, porém resolveres/ confessar que me amas também/ tão feliz eu seria/ se tivesse um dia/ um momento feliz ao teu lado/ um momento feliz com meu bem (“Se eu tivesse coragem", Pacífico Mascarenhas, LP Um passeio musical, 1958, faixa 3). Percebe-se um toque de erudição literária na disposição dos verbos em segunda pessoa, embalados pelo bolero que rege o ritmo desta música – aspectos não observados na gravação para o primeiro Sambacana. A letra da canção acima, na voz de Joyce, é modificada em muitos trechos, substituindo-se “tu” por “você” e mudando-se os tempos verbais para o infinitivo, o que configura um clima informal e “relaxado”. Frisamos que, apesar da canção tratar das “dores de amor”, ela assume ares de jovialidade que transformam a tristeza em coisa leve e até corriqueira, numa atitude típica dos letristas da Bossa Nova. Porém, o principal indício de um despojamento literário no ainda pré-bossanovista LP Um passeio musical está presente em “Turma da Savassi”, um samba-choro que exibe uma variada gama de gírias para contar o cotidiano desse grupo, com direito a assovio no início da introdução. A turma é mala, esculachada, dá pernada/ é de tudo, né de nada/ a turma briga, dá pancada/ bebe whiskie até 7 cachaça/ e prá dá azar não ameaça/ ninguém põe banca com a Turma da Savassi/ por que turma assim de cancha/ não de mete com essa classe/ o povo sabe que essa turma é diferente/ conquista todo mundo/ e não dá bola pressa gente/ por isso mesmo vai aqui nosso lembrete/ quando derem um banquete/ e nós não convidar/ nunca esquecendo que essa turma é de apetite/ com entrada ou sem convite/ no seu lar vai penetrar (“Turma da Savassi”, Pacífico Mascarenhas, José S. Guimarães e Luiz Mario Barros, LP Um passeio musical, 1958, faixa 7). quando este já era um músico conhecido, e ousou mostrar a ele sua composição “Amor certinho”, que veio a integrar o LP O amor, o sorriso e a flor, de 1960.15 A mesma composição foi gravada um pouco antes por Jonas Silva, ex-integrante do grupo vocal Garotos da Lua, a pedido do próprio João Gilberto, que também atuou como croonner do conjunto. E posteriormente a canção também se fez ouvir nas vozes de Leila Pinheiro em 1994 e Lô Borges em 2003.16 Sobre a letra, Pacífico explica que antigamente, a palavra mala é o contrário de hoje. A turma é mala, quer dizer, a turma é espetacular. Esculachada, não ligava pra nada. Dá pernada, a gente tinha mania de ficar dando pernada... Então, você fala em mala hoje é completamente o contrário do que significava antigamente.14 Valendo-se de adjetivos no diminutivo que reproduzem uma atmosfera ingênua e jovial (principalmente na voz contida de João Gilberto), “Amor certinho” é um caso interessante de sutileza poética. Estruturada à luz da Bossa Nova no que compete ao ritmo, disposição dos instrumentos e acordes dissonantes com as Além de fazer parte do CD Belo chamadas tensões harmônicas17, a canção Horizonte que eu gosto, de 2003, “Turma não perde de vista o comentário recíproco da Savassi” ganhou uma nova roupagem entre letra e música: o amor, que já tem instrumental jazzística no disco em que o patente registrada, pode ser gravado em norte-americano Cliff Korman, ao lado do disco Quartet Bossa Jazz, gravou 19 músicas de conhecimento do “negócio bem bolado, Pacífico Mascarenhas. direitinho” da Bossa Nova. para todo mundo tomar Antes de continuar analisando a produção discográfica de Pacífico, Amor à primeira vista/ amor de primeira mão/ é ele que chega cantando, sorrindo/ direcionamos o foco a outro personagem de igual importância que se inclui entre os bossa-novistas mineiros. Roberto Guimarães teve contato com João Gilberto, 14 Entrevista com Pacífico Mascarenhas concedida a Sheyla Castro Diniz em 22 de julho de 2008. Belo Horizonte/MG, duração de 60 min. 15 João Gilberto. LP O amor, o sorriso e a flor. Odeon, 1960 (relançado em CD). 16 Leila Pinheiro. CD Isso é Bossa Nova. EMI, 1994, faixa 4; e Roberto Guimarães & convidados. CD Amor certinho. S/ grav., 2003, faixa 1. 17 Em termos harmônicos, a Bossa Nova configurou-se em um rico laboratório para a experimentação de notas que se superpunham aos acordes convencionais – as referidas tensões. 8 pedindo entrada no coração/ o nosso amor já tem patente/ tem marca registrada/ é amor que a gente sente/ eu gravo até em disco todo esse meu carinho/ todo mundo vai saber/ o que é amar certinho/ esse tal de amor não foi inventado/ foi negócio bem bolado/ direitinho pra nós dois/ foi ou não foi?/ esse tal de amor não foi inventado/ foi negócio bem bolado/ direitinho pra nós dois (“Amor certinho”, Roberto Guimarães. João Gilberto, LP O amor, o sorriso e a flor, 1960, faixa 11). As composições de pelo arranjo do piano, único instrumento a dar pinceladas harmônicas, remetendo-se, por vezes, a um clima impressionista debussyano.18 Branca é a estrela mais pura/ de uma noite imensa/ que nasceu da ternura/ de um beijo da lua/ e viveu desse encanto/ sem nunca morrer/ Branca é a última espuma/ de uma onda do mar/ que chorou de tristeza/ ao vê-la perdida/ nos braços da praia/ sem nunca voltar/ Branca é a gota de orvalho/ que a noite deixou/ na flor mais bonita/ meu sonho mais puro/ mais cheio de sonhos/ que o dia acordou/ Branca é a alma criança/ alegre lembrança/ de saudade feliz/ é a imagem mais pura/ a mais doce ternura/ de um sonho que eu quis (“Serenata branca”, Roberto Guimarães. Sérgio Ricardo, LP Depois do amor, 1961, faixa 5). Roberto Guimarães, criadas no auge da década de 1960, não certinho”, se limitaram contudo, ao muitas “Amor delas só apareceram em 2003 no CD Roberto Guimarães & convidados, como, por exemplo, “Manhã já vem”, “Encoste o rosto ao meu” e “Adeus que não parte”. Revisitada, a canção ganha outro No compacto gravado em 1962, com a parceria de Pacífico, registram-se três músicas de Roberto: “Menina da blusa vermelha”, “Para haver amor” e “Sem dizer mais nada”. Entre essas gravações da década de significativas 1960, é uma “Serenata das mais Branca” (Roberto Guimarães) cantada por Sérgio Ricardo em seu LP Depois do amor, de 1961, que reúne obras de Ronaldo Bôscoli, Roberto Menescal e Tom Jobim. Nele, a interpretação desta canção agrega uma profunda sensibilidade em relação à letra; a voz do cantor não segue à risca o chamado canto-falado bossa-novista, mas nem por isso deixa de manifestar um caráter intimista que se fortalece principalmente perfil, ao associar violão, violoncelo, trompete e uma performance mais tênue com o vocal de Renato Motha no CD Roberto Guimarães & convidados (2003). Apesar de se constituir – como revela, de 18 “A música de Debussy abandona o modo narrativo, e com ele o encadeamento coerente projetado pela consciência” (GRIFFITHS, 1998, p. 10), o que se percebe também no arranjo de “Serenata branca”: a técnica impressionista é praticada do ponto de vista da harmonia não tão previsível e da utilização da “poesia-retrato”. Os procedimentos de criação e concepção da Bossa Nova se devem, em parte considerável, à música erudita, especialmente introduzida pelas mãos de Tom Jobim, apreciador de compositores modernos, como Stravinsky, Schoenberg, Prokofiev, Debussy, Villa-Lobos e Radamés Gnattali, parceiro de Tom, apontado como um importante mediador entre o “erudito” e o “popular” na música brasileira. Sobre o assunto, ver NAVES, Santuza Cambraia. Da Bossa Nova à Tropicália: contenção e excesso na música popular. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 43, v. 15, jun. 2000, p 35-44. 9 antemão, o título – mais como uma projetadas pelo movimento da Bossa serenata, ela se concilia aos experimentos Nova” (CAMPOS, In: CAMPOS, 1978, p. que dominaram a cena musical brasileira a 61), e são organizadas de forma semântica partir do pioneirismo da Bossa Nova. e sintática em integração com a harmonia, Por hora, demarcando a década de melodia e instrumentação. O texto, como 1960, o primeiro disco da série Sambacana significação literária, não exprime por si só (1964) foi o que mais se aparentou às o conteúdo da música, pois este está características primárias da Bossa Nova, necessariamente arraigado ao som. No que tendo como apoio principal a experiência compete às temáticas e à forma, “a letra, dos músicos cariocas já citados. A primeira primeiramente, restabelece para a música faixa do LP, com um minuto e onze popular brasileira a poesia não-poética” segundos de duração e intitulada “Pouca (SANT’ANNA, 2004, p. 44), recheada de duração” (Pacífico Mascarenhas), valendo- trechos prosaicos que evocam cenas se de uma história de amor, apresenta uma triviais, privilegiando o momento, como co-dependência entre letra e som, numa um retrato, inversamente à narração de estreita ligação que não sustenta o mesmo uma história. sentido se esses elementos fossem analisados separadamente. A utilização da A audição de “Pouca duração” nos remete a essas práticas, comprovando o metalinguagem envolvimento de seu compositor com as (presente em “Pouca duração”) na canção novidades popular e precisamente na Bossa Nova, ou novistas. estético-musicais bossa- seja, a especificidade de se falar de música utilizando-se da própria, foi elucidada pelos estudiosos Augusto de Campos (1978) e Affonso Romano de Sant’Anna (2004), ao analisarem composições emblemáticas como “Samba de uma nota só” e “Desafinado” (ambas de Tom Jobim e Newton Mendonça), e também por Walter Garcia (1999), no caso de “Bim Bom” (João Gilberto). Essas três composições, cada uma à sua maneira, articulam “relações formais ou estruturais de natureza propriamente musical, Essa canção terá pouca duração/ como o nosso amor que tão cedo acabou/ pode compará-la também com uma flor/ que desabrochou, mas não durou secou/ por isso a canção só terá essa parte/ a outra existirá na imaginação/ vamos combinar eu termino a canção/ se você voltar/ mas só se você voltar/ se você voltar para o meu coração (“Pouca duração” Pacífico Mascarenhas. LP Conjunto Sambacana, Odeon, 1964, faixa 1 – interpretação de Joyce e Toninho). Podemos fazer uma sutil comparação entre “por isso a canção só terá essa parte/ a outra existirá na imaginação/ vamos 10 Vou descobrir onde mora/ essa garota colegial/ que passa sempre dando bola/ dentro de um especial/ não sei se essa menina estuda no Colégio Assunção/ se é do Santa Marcelina/ ou do Sagrado Coração/ já me disseram que ela mora lá na Serra/ já estudou no Izabela/ no Sion e Helena Guerra/ esta garota talvez seria aquela do Sacré Couer/ que muito me prestigia com a do Santa Maria/ hoje o especial passou/ e ninguém olhou pra mim/ ou ela não foi à aula/ ou não gosta mais de mim. (“Ônibus colegial”, Pacífico Mascarenhas e Ubirajara Cabral. LP Conjunto Sambacana, Odeon, 1964, faixa 6 – interpretação Joyce e Toninho). combinar eu termino a canção/ se você voltar para o meu coração” com o seguinte trecho de “Bim Bom”: “é só isso o meu baião/ e não tem mais nada não/ o meu coração pediu assim só/ bim bom bim bim bom/ bim bom bim bim bom/ bim bom”.19 Ambas as canções revelam procedimentos metalingüísticos entre o texto e a concepção musical e ainda reforçam o ideário econômico da Bossa Nova. Tem-se registrado que João Gilberto em um encontro informal com os músicos bossanovistas mineiros em Belo Horizonte, interpretou, ao seu modo particular, “Pouca duração”. numa análise do LP Conjunto Sambacana (1964) são os assuntos de algumas letras que revelam o cenário cotidiano daqueles jovens compositores. Um exemplo disso se encontra em “Ônibus colegial” (Pacífico Mascarenhas e Ubirajara Cabral), na qual são mencionados, sob o pretexto de onde estudaria a menina paquerada, muitos colégios da cidade. Essa estratégia significou um marketing interessante, já que “quando essa música tocava na rádio, todo mundo se ligava nela” Roberto Menescal, lança mão de recursos auditivos que imitam, no início e no final da música, a buzina do ônibus colegial, que Outro aspecto a ser considerado descobrir A instrumentação, arranjada por (cf. entrevista de Pacífico Mascarenhas). parece ser mais o transporte do narrador (eu lírico) do que propriamente da “garota” que “passa sempre dando bola dentro de um especial” (veículo de transporte coletivo da época). Em “Ônibus colegial”, encontramos a primeira alusão a Belo Horizonte, que se repetiu e ganhou ares até saudosistas em trabalhos posteriores. Pontuamos que um dos ambientes mais citados nas composições de Pacífico Mascarenhas é a Praça da Savassi, lugar onde se reunia a turma que, de certa forma, deu início ao movimento mineiro de Bossa Nova, adquirindo a mesma importância atribuída à praia de Copacabana pelos músicos do Rio de Janeiro. Cabe observar que os compositores 19 A música “Bim bom” (João Gilberto) foi lançada em 78 rpm, lado B, pela Odeon no ano de 1958. mineiros não se absteram de falar da 11 capital carioca, afinal era ali o lugar das caráter gravadoras que poderiam oferecer um cuidadosamente celebrado no primeiro melhor trabalho em termos fonográficos. Sambacana. No entanto, o fato de se Assim como ocorrera com o primeiro disco conceber um arranjo instrumental mais do Sambacana, procederam as gravações complexo não nega a essência bossa- do LP do Quarteto Sambacana, Muito pra novista revelada, de maneira mais ousada, frente (1965), tendo Milton Nascimento pelo ritmo constante que dá margem às como cronner e participação de Wagner improvisações instrumentais, vozes que, Tiso como cantor e compositor. O quarteto justapostas, propiciam acordes dissonantes se e interpretações em sintonia com o modelo justifica pelas quatro vozes que integraram os coros: Milton Nascimento econômico da Bossa Nova, despojado e intimista. (solista), Gileno Tiso (irmão de Wagner Esse disco traz, na faixa inicial, mais Tiso), Sérgio Salles e Marcos de Castro um caso de metalinguagem: “Tom da (arranjador do disco), lembrando que canção” (Pacífico Mascarenhas), que segue Wagner Tiso também conduziu os vocais. a mesma lógica de “Pouca duração”, na Antes de dar prosseguimento ao qual há o entrecruzamento de letra e assunto, convém registrar que, em 1964, música. Além de uma introdução suspensa Pacífico (Milton que eclode com o canto e os instrumentos Nascimento) e Wagner Tiso participaram transpostos meio tom acima, ouvem-se das vocalizações da faixa “Deus brasileiro” improvisações vocais ao final – herança (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle) do jazzística que aproxima-se do econômico único disco da cantora Luiza, produzido e jogo prosódico, de caráter minimalista, arranjado por Moacir Santos, que contou, presente em “Bim bom”. Mascarenhas, Bituca inclusive, com a gravação de “Olhando as estrelas no céu”, de autoria de Pacífico Mascarenhas e Gilberto Mascarenhas Cury. Numa comparação com o disco Conjunto Sambacana, nota-se, no LP Muito pra frente, uma instrumentação mais densa que engloba metais em praticamente todas as faixas, além da estrutura das vozes em blocos de acordes, o que, à primeira vista, envolveria um distanciamento do Olhe, meu bem/ achei o tom/ o tom da canção/ para você cantar/ não repare não/ que eu toco mal violão/ se você quiser/ peça alguém para acompanhar/ obrigado meu bem/ já pode começar/ farei todo possível/ pro’s acordes não errar/ vai sair horrível/ assim mesmo vou tentar/ só para ouvir você cantar/ bem bem bem bem bom/ bem bem bem bem bom (“Tom da canção”, Pacífico Mascarenhas. LP Quarteto Sambacana Muito pra frente, Odeon, 1965, faixa 1 – interpretação Milton Nascimento). 12 Entretanto, o que faz do disco um marco importante é justamente trazendo como pano de fundo a marcação a de uma bateria, introduz o som esporádico participação de Milton Nascimento e de uma viola caipira, de flauta e piano, Wagner Tiso, atestando as raízes musicais articulando, bossa-novistas destes artistas e refletindo agrupamento de vozes que faz lembrar os na produção futura do Clube da Esquina, coros das canções litúrgicas – ingrediente do qual eles foram ícones. que insere as igrejas como símbolo das a estes elementos, um Minas Gerais na elaboração da letra. Luiz Pacífico deu muita força para Bituca e o incentivou na carreira musical. A primeira vez que Bituca entrou num estúdio foi para gravar “Barulho de trem”. A segunda foi para gravar como vocalista num disco de Pacífico Mascarenhas (BORGES, 2004, p. 6869). “O navio e você”, Cláudio, inclusive, comprometeu-se com uma vertente de canções seresteiras, tanto na instrumentação quanto na letra, reavivando o cotidiano simples das cidades históricas mineiras. (Pacífico O seresteiro sempre trazia/ nas mãos as prendas da alegria/ no paço traço de uma saudade/ na voz o canto do que só fazia/ cidade antiga de Ouro Preto/ teu soneto se escondia/ pelas sacadas onde a saudade/ vela o sonho de tanta Maria/ me conta agora o que cantou/ o violeiro que aqui passou/ nesses caminhos coloniais/ me fala coisas dessas igrejas/ anjos barrocos, paços, candeias/ lembro o amor que aqui ficou/ o casario esparrama o dia/ sobre a cidade adormecida/ pela viola que ainda chora/ numa janela do meu coração/ lá lá lá lá... (“Em canto antigo”, Luiz Cláudio e Roberto Guimarães. LP Conjunto Sambacana, v. 3, Odeon, 1969, faixa 11). Mascarenhas e Wagner Tiso) remonta o clima praiano carioca que, a exemplo de “O barquinho” (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli), descreve a volta do navio “que vem do sul/ trazendo o meu amor/ flutua no mar azul/ vai navegando e assim/ estou a esperar.../ Olha pro cais/ o navio apitou”. Mais adiante, o navio foi substituído pelo trem de ferro nos temas das canções de Milton Nascimento e de letristas como Fernando Brant e Márcio Borges. Referindo-se ao terceiro Sambacana, Tal característica interiorana, que se Pacífico Mascarenhas explica que Marcos confunde com a idéia de mineiridade, de Castro (arranjador), em função de seu ornamenta algumas músicas que compõem contrato com a Odeon, aproveitou o disco o para terceiro Sambacana: Conjunto acrescentar músicas de outros Sambacana vol. III, de 1969. Entre elas, compositores, como Tito Madi, Paulo destacamos “Em canto antigo” (Luiz Moura, Tibério Gaspar, Wagner Tiso e Cláudio e Roberto Guimarães), que, Antônio Adolfo. Justamente por essa 13 diversidade de compositores, o terceiro intérpretes em shows de jazz e Bossa Sambacana se diferencia dos dois discos Nova, e passaram a integrar o Sambacana anteriores, provocando um estranhamento ao gravarem o terceiro exemplar desta em relação ao estilo bossa-novista, pois série, fazendo também parte da vertente algumas canções fogem da perspectiva mineira do “Música nossa”, movimento rítmica, instrumental, melódica e estética criado por Roberto Menescal no Rio de da Janeiro. Bossa Nova. Contudo, tal distanciamento não acontece de forma Relatando seu envolvimento com a integral, porque, além de ser perceptível Bossa Nova a partir da audição de uma ou outra particularidade da Bossa “Desafinado” com o Tamba Trio, Bob Nova em músicas aparentemente distantes Tostes explica o porquê de o terceiro dela, outras exibem parâmetros que em Sambacana carregar nada contrariam tal vinculação, como é o diferenciado, interagindo caso de “Saudade nos olhos” (Pacífico linguagens musicais. um com aspecto outras Mascarenhas), “Perdido no espaço” (Bob O terceiro, eu acho que é um disco diferente, é menos Sambacana que os outros, mudou de cara um pouco... Estava acontecendo aqui no Brasil, não era bem um movimento musical, mas tinha um estilo de música que se baseou, a meu ver, um pouco no Wilson Simonal (ele gostava muito da expressão “vamos voltar para a pilantragem”), daí criaram a Turma da Pilantragem...20 E para mim tem muito a ver com a toada moderna que o Antônio Adolfo criou... O Marcos de Castro quis “modernizar” um pouco o Sambacana e esse disco tem uns arranjos que estão sintonizados com essa Turma da pilantragem e nele tem duas composições do Antônio Adolfo: “Giro” nós a tornamos Bossa Nova, mas “Moça” traz esse ritmo de dança... Contudo, foi um disco que ficou um Tostes e Elmo de Abreu Rosa), “Giro” (Antônio Adolfo e Tibério Gaspar) e “Por que” (Pacífico Mascarenhas). Seja entre essas canções ou entre as demais que compõem as onze faixas do disco, há um elemento comum ensinado de forma especial pela Bossa Nova: a maneira de cantar, alheia a qualquer tipo de impostação, intérpretes adotada Bob e pelos irmãos Suzana Tostes. Pontuamos o caráter até sussurrado da voz de Suzana, comum a cantoras do repertório bossa-novista. Além dos solistas, incluindo a cantora Magda, mencionada no disco, o trabalho contou com a participação de um grupo de quatro vozes de Juiz de Fora. Bob Tostes e Suzana apareceram na cena musical belo-horizontina no final da década de 1960, apresentando-se como 20 A Turma da Pilantragem, grupo idealizado e produzido por Nonato Buzar, atuou nos anos 1968 e 1969, recuperando e ressignificando clássicos da música brasileira, como “Primavera” (Carlos Lyra e Vinícius de Moraes), à luz de um ritmo dançante, já que a Bossa Nova se afastara desta característica. Essa prática foi também utilizada pelo músico norte-americano Chris Montez, que gravava standarts com swing para a dança, cf. entrevista com Bob Tostes. 14 pouco descaracterizado, perdido... gozado que há uns três ou quatro anos, ele foi relançado no Japão.21 de Janeiro. Todavia, no quarto Sambacana, encontramos referências explícitas à cidade de Belo Horizonte e à Praça da Savassi, De certa forma comprometido com confirmando que o lugar de origem das um caráter dançante e outras sonoridades, composições teve, para a Bossa Nova o mineira, a mesma importância que as terceiro Sambacana não perde a simplicidade e a espontaneidade que regem as músicas a Sabemos que o Estado de Minas complexidade em que se apresentam os Gerais não é banhado pelo mar, mas é só arranjos trocar “m” por “b” para chegar a um dos do do primeiro, segundo, visto praias tiveram para a Bossa Nova carioca. que teve a participação de Milton Nascimento. lugares muito mencionados pelos bossa- Adiantando-se à época em que a canção bossa-novista, muitas cariocas, um local propício para encontros polêmicas, consolidou-se até mesmo como inspiradores era a praia, nas Geraes, longe “cartão do oceano, um dos cenários preferidos era postal” do após novistas mineiros: o bar. Se para os Brasil, o quarto Sambacana, de 1976, colheu alguns frutos o regados pela Bossa Nova das Geraes. “Programa Analisando, em primeiro lugar, o aspecto Mascarenhas). Bob Tostes conta que bar, como de se pode conferir Domingo” em (Pacífico visual deste LP, visualizamos na capa a foto de um carro antigo que leva Pacífico Mascarenhas a bordo e exibe a placa dianteira com os grifos “MG-Belo Horizonte”. Além de celebrar a paixão de seu idealizador por carros antigos, a ilustração indica o vínculo das músicas gravadas com a capital mineira. Importa lembrar que, como tema de várias canções bossa-novistas, as praias cariocas de Ipanema e, principalmente, de Copacabana ocuparam lugar privilegiado, o que contribuiu decisivamente para a conexão imediata entre Bossa Nova e Rio 21 Entrevista com Roberto Tostes Martins (Bob Tostes) em 18 de maio de 2008. Belo Horizonte/MG, duração de 90 min. o "Chez Bastião", localizado perto da Praça da Liberdade, foi o primeiro barzinho da cidade. Fundado por Tuíca Rabello nos anos 1960, foi o único do seu gênero durante anos... ele não tinha aquela conotação de bar boêmio... Já o Baubles foi inaugurado em 1974 por mim, que na época tranquei minha matrícula na PUC onde fazia Comunicação. Localizado na Savassi, o Baubles durou apenas quatro anos, pois em 1977 abri a loja de discos (que durou 20), mas movimentou a cena com muita música ao vivo e pockets show. O nome Baubles foi uma idéia que eu tive a respeito daquela música que o Frank Sinatra gravou, inclusive com o Tom Jobim: “Baubles, bangles...”, e foi lá que eu praticamente comecei a cantar em público” (Entrevista com Bob Tostes). 15 De caráter altamente jovial e descontraído, o arranjo de “Programa de suavidade, como se a canção estivesse suspensa e flutuasse, como um avião. domingo”, neste LP, traz improvisações vocais, instrumentais e pequenos breaks22 Sobrevoando o meu país/ enquanto vou voltando/ da viagem que eu fiz/ olha lá/ entre rios e montanhas/ cidades tão antigas/ só pode ser Minas Gerais/ ainda bem/ que ela deve estar me esperando/ ela mora aqui também/ penso nela enquanto estou voando/ avisto ao longe Belo Horizonte/ o avião já vai chegar/ meu amor a me esperar/ o avião já vai pousar/ meu amor a me esperar (“Minha cidade”, Pacífico Mascarenhas. IV Sambacana, Tapecar, 1976, faixa 12 – interpretação de Bob Tostes e Suzana). que dialogam com uma prática jazzística sobre um ritmo constante da bateria e do violão, não deixando que o “balanço” ritmo da Bossa Nova se perca, lembrando, entretanto, que esta não se justifica somente por seu aspecto rítmico. Aconteceu no verão num piquenique/ um bate-papo/ um bingo e uma esticada até o pique/ para iniciar o nosso encontro no domingo/ à tarde passeamos na Savassi/ e depois você insinuou/ vamos ao Baubles ou Chez Bastião/ e depois de lá uma seresta/ um violão/ quando o outro dia clareou/ você brigou/ e o nosso programa terminou/ mas eu vou sentir muita saudade/ do domingo que passou. (“Programa de domingo”, Pacífico Mascarenhas. IV Sambacana, Tapecar, 1976, faixa 6 – interpretação de Bob Tostes e Suzana). Bob Tostes e Suzana, cronners deste disco, registraram suas vozes como quem canta para pequenos públicos, de maneira informal, contida e econômica. Contudo, eles não foram os únicos a beber dessa fonte musical e dar continuidade à iniciativa dos bossa-novistas mineiros Pacífico Mascarenhas e Roberto Guimarães, pois outros músicos que já Já a canção “Minha cidade” (Pacífico Mascarenhas) parafraseia com “Samba do avião” de Tom Jobim, podendo ser compreendida até mesmo como a atuavam no cenário belo-horizontino, conhecidos por fazerem parte do Clube da Esquina23, atestaram suas habilidades instrumentais no IV Sambacana. A ficha correspondente mineira desta. Em sintonia com a letra, o andamento musical discorre lento, dando base a uma instrumentação e a uma harmonia que se apegam à melodia leve e amena, suscitando uma sensação de 22 Por break entende-se uma pausa em determinado momento da música para que haja uma improvisação rápida (vocal ou instrumental), muito comum no jazz e também no subgênero do samba, hoje quase inexistente, conhecido por samba de breque. 23 A denominação “Clube da Esquina” não foi premeditada pelo grupo de instrumentistas e compositores que, com características musicais próprias, formou-se em Belo Horizonte no final dos anos 1960. O título surgiu mais a partir de um anseio midiático em rotular a nova sonoridade marcada pelo lançamento, em 1972, do LP Clube da Esquina, nome dado em virtude de um dos pontos de encontro desses músicos: a esquina da Rua Divinópolis com a Rua Paraisópolis no bairro de Santa Tereza. Ressaltamos que a vinculação dos músicos ao nome em questão teve a aceitação de todo o grupo, lembrando, porém, que eles seguiram carreira individual, estabelecendo, ao longo dos anos, diversas parcerias. 16 técnica de tal LP informa que os arranjos das canções e a gravação do piano ficaram aos cuidados de Wagner Tiso e o violão a cargo de Toninho Horta. Novelli se encarregou do baixo elétrico e os sopros (sax e flauta) foram executados por Nivaldo Ornelas. O disco reforçou ainda mais a importância da Bossa Nova mineira e da figura de Pacífico Mascarenhas para a seguinte geração de músicos belo- 24 horizontinos . Milton Nascimento cunhou o seguinte texto na contracapa do LP IV personalidade do autor. Vá em frente, Mestre. E continue olhando por nós (texto retirado da contracapa do LP IV Sambacana de 1976). Estes dados, além de comprovar as relações entre a Bossa Nova produzida em Minas Gerais e o Clube da Esquina, sinalizam a abrangência, em termos estéticos, estilísticos e musicais, da canção bossa-novista, que se encontra presente, sob diferentes aspectos, no repertório musical brasileiro posterior ao seu período de efervescência. Sambacana: Pacífico Mascarenhas sempre foi um cara muito importante pra mim. A primeira grande demonstração de confiança e amizade do “Mestre” foi durante a gravação do segundo LP do Conjunto Sambacana (Marcos Minhoca, Wagner Tiso, Gileso Tiso, Sérgio e eu). Seu apoio foi fundamental para nós, músicos novos à procura de uma oportunidade. O tempo passou e Pacífico, em seu sossego de Minas, continuou o mesmo: o amigo sincero, o coração do tamanho do mundo. E foi essa bondade imensa que fez com que ele me honrasse ao pedir que escrevesse estas linhas para a contracapa de seu último disco. Este disco de canções tranqüilas, de um som sereno como a A PRODUÇÃO RECENTE E AS REMINISCÊNCIAS DA BOSSA NOVA MINEIRA “Eles aprenderam com a Bossa Nova que o universo dos sons é um mundo sem fronteiras de qualquer espécie” (PARANHOS, 1990, p. 86) Esta citação, empregada em outro contexto pelo autor, concilia-se à problematização que propomos agora. Luiz Tatit, num capítulo à parte de 24 Em 1999, Pacífico Mascarenhas foi homenageado pelo grupo belo-horizontino Alarme Falso Bossa Nova (CD Passagem), com a composição “Ao mestre com carinho”. Esta canção não só demonstra a admiração e gratidão que os músicos têm por Pacífico, como fala dele como referência em termos de Bossa Nova e de apoio a tantos artistas, citando, ao final, um trecho de “Ônibus colegial” (Pacífico Mascarenhas e Ubirajara Cabral) e ainda mencionando a Turma da Savassi, que antes do Sambacana, procurava pela “canção moderna” em noites de serenatas também “modernas”. seu livro O século da canção, estabelece uma argumentação interessante que situa a Bossa Nova sob dois pontos de vista: Uma coisa é a Bossa Nova como movimento musical – caracterizado como intervenção “intensa” que durou por volta de cinco anos (de 1958 a 1963), criou um estilo de canção, um 17 estilo de artista e até um modo de ser que virou marca nacional de civilidade, de avanço ideológico e de originalidade. Outra coisa é a Bossa Nova “extensa” que se propagou pelas décadas seguintes, atravessou o milênio, e que tem por objetivo nada menos que a construção da “canção absoluta”, aquela que traz dentre de si um pouco de todas as outras compostas no país (TATIT, 2004, p. 179). associado simploriamente à classe média. Esta postura foi adotada curiosamente pelo até então bossa-novista Carlos Lyra, que defendeu, inclusive, a necessidade de um diálogo entre os compositores da Bossa Nova e os compositores “populares” de samba. Vale lembrar que, nesse espaço de tempo, despontariam as composições de O autor comenta que da Bossa Nova Chico Buarque e Edu Lobo, que, com “intensa” participaram diretamente João questionadoras temáticas sociopolíticas, Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes mesclaram as tradições sambista e regional e toda a turma de músicos da Zona Sul do às inovações celebradas pela Bossa Nova, Rio de Janeiro. Alargando a perspectiva de resgatando Tatit e com o olhar voltado para a cena composições de Noel Rosa e da cultura musical popular nordestina, no caso de Edu.25 Pacífico mineira, consideramos Mascarenhas e que (especialmente Chico) Roberto Assim, a musicalidade que surgiu Guimarães, mesmo que um pouco mais posteriormente ao referido movimento tarde, também podem ser incluídos nesta “intenso” não excluiu as características vertente, já que suas composições e primordiais da Bossa Nova, mesmo que atuações marcaram e influenciaram o meio aparentemente elas tivessem esmaecido artístico belo-horizontino. em favor de uma posição ideológica, como Passado esse período imediato, a no caso do CPC. Essa postura é levada à Bossa Nova teria se confinado nos cabo ainda hoje pelo pesquisador José bastidores para dar lugar às canções de Ramos Tinhorão, incapaz de enxergar o protesto atreladas, de forma especial, ao caráter expansivo da Bossa Nova após Centro Popular de Cultura (CPC) da União 1963.26 Nacional dos Estudantes (UNE), em Para avaliar os projetos mais recentes virtude de um cenário político controverso dos compositores mineiros, adotamos a e cada vez mais elitista e repreensivo que definição de Bossa Nova “extensa” como se agravou com o Golpe Militar de 1964. processo “de depuração de nossa música, Segundo os militantes do CPC, a música 25 popular deveria se preocupar em relatar os problemas sociais “do povo ao povo”, o que negaria o modelo bossa-novista Para mais informações, ver NAVES, Santuza Cambraia, op. cit. 26 Para mais informações, consultar TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 3ª. ed. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 36-47. 18 de triagem estética, que se tornou modelo fusão de outros elementos, as contribuições de concisão, de eliminação dos excessos, da Bossa Nova, principalmente em relação economia à sua vertente mineira, o que nos interessa de recursos e rendimento artístico” (TATIT, 2004, p. 179), práticas que não estão mais de perto. necessariamente Para dar prosseguimento a tal subordinadas a um tempo cronológico. No assunto, abrimos aqui um parêntese. Após entanto, Tatit enfatiza que, dessa fase, o quarto Sambacana foram lançados mais participaram somente João Gilberto e Tom três Jobim, distantes, de certa forma, dos composições do passado, intercaladas com caminhos que a canção brasileira tomou músicas novas que ressaltam, sobretudo, naquele período, com a consolidação da cenas e cenários mineiros, como pode ser MPB, os grandes festivais e a retomada das observado em Belo Horizonte que eu hibridizações musicais que chegaram ao gosto, CD lançado em 2003. Projetado auge com a Tropicália. com canções que exaltam uma visão de Ampliando o sentido “extenso” da discos realidade desta acerca série, de Belo reavivando Horizonte, Bossa Nova, entendemos que ele pode ser Pacífico destaca a Praça da Savassi, o empregado, inclusive, na análise dos Minas Tênis Clube (do qual é diretor social resultados de procedimentos depuradores há 23 anos) e o futebol, tema da canção “O da música brasileira, executados com jogo” (Pacífico Mascarenhas). excelência por João Gilberto, Tom Jobim e Descrevendo com detalhes a outros compositores que, seguindo os dinâmica de uma partida de futebol, esta passos destes dois, igualmente deram suas canção cita o nome do ex-jogador belo- contribuições, a exemplo de Pacífico horizontino Tostão, que se sobressaiu, Mascarenhas e Roberto Guimarães. segundo a mídia e a apreciação popular, Além das manobras artísticas de Edu tanto no América e no Cruzeiro (times Lobo e Chico Buarque e das inovações do mineiros) quanto na seleção brasileira. Nos Tropicalismo27, apontamos como resultado registros da obra de Pacífico Mascarenhas, dessa “depuração” o Clube da Esquina e a “O jogo” só aparece no quinto Sambacana produção independente de seus integrantes, (1981), mas sua primeira gravação consta na qual é possível perceber, em meio à no LP Milton – lançado por Milton 27 Nascimento em 197028 – ao lado de “Tema Naves (2000, op. cit.) explora os pontos de referência pelos quais se ligam e se contrapõem a Bossa Nova e a Tropicália: apesar de a primeira valorizar a contenção e a segunda optar pela excessividade, ambas têm no despojamento sua fórmula comum. 28 Neste LP, aparecem pela primeira vez as gravações de “Clube da Esquina” – música que deu nome ao movimento belo-horizontino – e “Para 19 de Tostão” e “Aqui é o país do futebol” interação entre a Bossa Nova, (ambas de Milton Nascimento e Fernando especialmente aquela composta em Minas Brant). Sintomaticamente, este disco, de Gerais, e o Clube da Esquina, permitindo caráter pluralista em temática e sonoridade, relacionar os dois movimentos musicais traz à tona músicas que celebram um dos também no que se refere às temáticas ícones da brasilidade, justamente em 1970, locais, uma vez que canções como “Ruas ano em que o Brasil disputou e ganhou a da cidade” (Lô Borges e Márcio Borges) e Copa do Mundo. “Clube da esquina” (Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges) discorrem Já vem vindo/ meu time atacando/ jogadas surgindo/ com a bola rolando/ em passes ligeiros/ no campo contrário/ do adversário/ cruzaram a pelota/ da intermediária/ num chute certeiro/ para a grande área/ eis que surge então/ o lance genial/ do craque Tostão/ que toma a bola/ entra na área/ passa a primeiro/ o segundo, o terceiro/ vai mais à frente/ finta o goleiro/ e chuta pro gol/ a bola vai entrando no fundo da rede/ o juiz apita gol/ a torcida levanta/ solta foguete/ e pede mais um/ recomeça o jogo/ a charanga tocando/ bandeiras acenando na comemoração/ da vitória do povo/ que tanto esperou/ ser campeão (“O jogo”, Pacífico Mascarenhas. LP Milton, EMI-Odeon, 1970, faixa 13). indiretamente sobre Belo Horizonte. Em relação às carreiras individuais dos músicos que participaram do Clube da Esquina, também é possível perceber as heranças da Bossa Nova. Nelson Ângelo, por exemplo, gravou em 1972, com a cantora Joyce – a mesma que anos antes foi solista do primeiro Sambacana –, um disco que insere canções com características regionais, jazz, rock e uma conotação suave de Bossa Nova, principalmente em “Tiro cruzado” (Nelson Com recursos auditivos que evocam o ruído de uma torcida em êxtase, “O jogo” transita facilmente por Ângelo e Márcio Borges) e “Linda” (Nelson Ângelo e Joyce).29 características Outra figura importante reconhecida jazzísticas (especialmente nos desenhos da muitas vezes por sua ligação com Milton bateria), (nas Nascimento é Toninho Horta, compositor, harmonizações e no ritmo do violão) e instrumentista e cantor que conta com um sambistas vasto repertório independente do Clube da bossa-novistas (pela estrutura do canto exaltado). O fato de esta composição Esquina. estrear em um disco de Milton Nascimento violonista do IV Sambacana, Toninho revela mais um elemento que nos remete à Horta sempre deixou transparecer, entre Lennon e McCartney”, que demarcou a influência dos The Beatles entre os compositores do grupo. 29 Participando, em 1976, como Nelson Ângelo e Márcio Borges são nomes emblemáticos do Clube da Esquina; o primeiro, principalmente por sua atuação como instrumentista, e o outro, por suas letras. 20 outras influências, as lições que aprendeu linguagem espontânea, simples e direta com a Bossa Nova, sejam na maneira de deve-se, em grande parte, a Vinícius, que cantar, na habilidade com o violão e a modificou sua perspectiva de escritor para guitarra ou no tratamento dos arranjos de compatibilizar sua arte às propostas da suas composições, reveladas desde os Bossa Nova.31 primeiros trabalhos – um deles concebido E mesmo a gente que é letrista também viveu o surgimento da Bossa Nova... eu cresci ouvindo até a pré-Bossa Nova: Tito Madi, João Donato, Johnny Alf, Lúcio Alves, Dick Farney... Mas o que me marcou de fato, além do disco do João Gilberto, foi quando apareceu um disco do Tamba Trio em 1962, e em particular o jeito de tocar do Luiz Eça, com um balanço danado... E na minha condição de letrista, o Vinícius de Moraes era quem dava um exemplo diferente. Eu cresci no momento em que... não somente essa coisa de música, mas também essa parte de cinema, de literatura, pois eu estava interessado em tudo... mas na parte de música, a Bossa Nova se fez presente.32 em parceria com Beto Guedes, Danilo Caymmi e Novelli em 1973. O compositor Roberto Guimarães descreve suas impressões acerca de Toninho Horta ainda adolescente: Eu era muito amigo do irmão mais velho dele, o músico Paulinho Horta... E o Toninho fazia uns acordes... umas pestanas que usava o dedo polegar... E tirava uns acordes completamente inusitados que você nunca tinha ouvido nada igual. Eu lembro até hoje a sensação que eu tive, que coisa fantástica, né... e ninguém o conhecia... imagina, 15 anos... na flor da idade... e olha o que ele se tornou... O Toninho Horta representa para o Clube da Esquina o que eu acho que o João Gilberto representa para a Bossa Nova.30 Esta relação por nós mencionada não se refere aos temas propriamente ditos, mas sim à maneira de conceber um texto informal Julgamos pertinente ainda estabelecer laços entre a Bossa Nova e o Clube da Esquina no que diz respeito à valorização de uma nova estética no campo sonoro e, neste caso, especialmente poético, o letrista Fernando Brant admite, entre outras bases de sua formação, a importância de influências como a de (mesmo que metafórico) e acessível do ponto de vista cotidiano, atentando também para a valorização do discurso musical atrelado à letra ou para a primazia desta. No caso da Bossa Nova, temos o uso da metalinguagem, e no Clube da Esquina, vê-se a utilização de recursos auditivos que remetem a um plano visual e a não subordinação do som ao texto como Vinícius de Moraes. O arejamento das letras bossa-novistas por meio de uma 30 Entrevista com Roberto Guimarães. Belo Horizonte/MG, 17 de maio de 2008. Duração de 120 min. 31 Para mais informações, consultar PARANHOS, 1990, op. cit., p. 48-49. 32 Entrevista com Fernando Brant. Belo Horizonte/MG, 25 de julho de 2008. Duração de 40 min. 21 Sonhei que eu estava no Clube da Esquina/ na Divinópolis com Paraisópolis/ vendo Lô Borges no “Trem azul”/ Beto Guedes fazendo “Avião”.../ depois quem chegou foi Toninho Horta/ veio no jipe “Manuel Audaz” trazendo Marilton/ Murilo Antunes, Tavinho Moura, Ronaldo Bastos/ vejam só que coisa maluca/ Fernando Brant, Marcinho, Bituca/ pedindo notícias do mundo de lá/ ao Flávio Venturini na “Estação de trem”/ surpreso eu fiquei quando já ia embora/ uma homenagem tão calorosa/ Nelson Ângelo ao violão/ Wagner Tiso, acordeão/ Nivaldo Ornelas tocando “Pouca duração” (“Sonho no Clube da Esquina”, Pacífico Mascarenhas, VII Sambacana, faixa 15 – interpretação Renato Motha). mera prática de acompanhamento. Sobre esta questão, Fernando Brant afirma que quase sempre compunha suas letras depois que a música já estava pronta, procurando encaixar as palavras “conforme o que a música queria dizer” (cf. Fernando Brant). Além da participação de Milton Nascimento, Wagner Tiso, Toninho Horta e Nivaldo Ornelas nos discos do Sambacana, as relações entre o Clube da Esquina e a Bossa Nova mineira novamente se confirmam em 2004, quando Pacífico Mascarenhas é convidado para Esta música, estruturada à maneira fazer parte do conselho consultivo do “Museu Clube da Esquina”, uma associação de amigos que, sem fins lucrativos, visa, entre outros projetos, expandir a obra do movimento. Na intenção de selar o convite, Pacífico Mascarenhas compôs “Sonho no Clube da Esquina”, na qual cita, fazendo um contraponto com o título de algumas canções, os nomes dos integrantes do grupo, que ao final se juntam para tocar “Pouca duração”, considerado entre eles, o “cartão de visita” da Bossa Nova das Geraes.33 de Pacífico – compositor fiel ao estilo inaugural de seu trabalho –, conta com a interpretação vocal e violonística de Renato Motha no VII Sambacana, CD gravado em 2006 e com previsão de lançamento para o ano de 2008. Outro músico atuante dentro e fora do cenário belo-horizontino, inclusive parceiro de Toninho Horta e Chiquito Braga34 no disco Quadros Modernos (2000), é Juarez Moreira, guitarrista convidado para as gravações do quinto e do sexto discos da série Sambacana. Com formações diferenciadas que vão da literatura ao jazz instrumental, Renato e Juarez declaram a 33 Nesse mesmo espírito de influências mútuas, sem perder de vista, contudo, as várias possibilidades de “tributo” e propaganda em favor dos 50 anos da Bossa Nova, comemorados em 2008, Milton Nascimento gravou, ao lado do Jobim Trio, o CD Novas Bossas, cantando composições consagradas de Tom Jobim e João Donato e incluindo sucessos do Clube da Esquina. O trio é formado por Paulo Jobim, Daniel Jobim e Paulo Braga – este, parceiro de Milton Nascimento desde os tempos do Berimbau Trio em Belo Horizonte na década de 1960. 34 Chiquito Braga é violonista atuante na cena musical de Belo Horizonte, participando, inclusive, das gravações de Belo Horizonte que eu gosto e Guinness: Bossa Novíssima de Pacífico Mascarenhas. 22 importância da “escola bossa-novista” em (participante da turma do Sambacana), suas carreiras. Carlão, Marcos Marzano, Sérgio Santos, Affonsinho e Beto Lopes, e os já A Bossa Nova aparece na minha vida como influência, mas eu nunca me considerei um bossa-novista, para mim ela está viva enquanto é permeável de fusões... toda música brasileira tem um retorno à Bossa Nova...35 A música pra mim sempre foi algo muito aberto, eu nunca fiquei assim preso a um gênero só, até porque eu nunca precisei disso, sempre tive uma liberdade assim de músico independente... Mas a Bossa Nova sempre esteve presente na minha concepção, dentro do meu objeto musical, seja nos meus discos, seja nas minhas realizações com o Bob, o Roberto ou com o Pacífico...36 conhecidos Renato Motha, Bob Tostes e Suzana. Situado um pouco depois do que podemos chamar de “velha guarda” da Bossa Nova mineira, representada por Pacífico Mascarenhas e Roberto Guimarães, Bob Tostes é um músico que intercala, na sua condição de cantor e produtor, as impressões iniciais da Bossa Nova carioca, caracterizadas por aquele “momento intenso”. Dialogando com o estilo particular de Roberto Menescal, com Uma das realizações mencionadas o qual mantém uma relação profissional por Renato se concretizou com o Guinness até hoje, a singularidade de Bob está no Bossa Novísssima, CD concebido por modo ímpar com que sonda a canção e a Pacífico Mascarenhas em 2002, fruto da adorna com uma perspectiva mineira. O criatividade que, desde os anos 1960, CD Sessão Dupla/Novas Bossas, assinado permeia a divulgação de sua obra. Além de também por Suzana Tostes em 2001, reunir sessenta “bossas”, entre recentes e apresenta, no encarte, o desenho de alguns antigas – projeto inédito que premeditava a barquinhos que flutuam sobre “ondas entrada para o Livro dos Recordes –, o montanhosas”, conduzindo à leitura de que trabalho traz à apreciação do público a voz a Bossa Nova, na contínua expansão de sua e os instrumentos de músicos belo- estética e de seu estilo marcantes, pode ser horizontinos pouco citados pela mídia, reinterpretada como Marilton Borges (irmão de Lô contextos, como o foi em Minas Gerais. Borges), Marina Machado, Paula Santoro, Carla 35 Villar, Gilberto Mascarenhas Entrevista com Juarez Moreira. Belo Horizonte/MG, 23 de julho de 2008. Duração de 30 min. 36 Entrevista com Renato Motha. Belo Horizonte/MG, 24 de julho de 2008. Duração de 60 min. com Mostramos base que em os outros elementos caracterizadores da Bossa Nova não se limitaram a um espaço específico e muito menos a um cronologicamente, período determinado alternando, muitas vezes, os seus significados pelas constantes 23 encontrei, afinal/ bem no meio do dial/ na onda que trazia/ o Rio na Rádio Nacional/ Rio que mora no mar/ de onde eu curtia Lúcio Alves/ Dick Farney, o Radamés e o Tom Jobim/ nos morros gerais de Minas/ em rimas e desvarios/ o meu Rio, meu Rio/ um abraço João Gilberto/ que me deixa tão desperto/ vem me tirar o sossego/ de meu mineiro aconchego/ ai ai ai, ai que chamego/ você foi arranjar/ que esse sonho tão desperto/ essa mania de João Gilberto/ não pode acabar (“Mania de João Gilberto”, Roberto Guimarães, CD Roberto Guimarães e convidados – Amor certinho, 2003, interpretação Marina Machado, faixa 6). misturas e novas concepções no âmbito da música popular brasileira. Os artistas mineiros pertencentes a uma “nova geração” há tempos perceberam esta tendência, o que não exclui, contudo, os modelos consagrados do passado. Neste aspecto, João Gilberto e João Donato37 continuam sendo referência para vários músicos, como traduz, por meio de canções, o compositor Roberto Guimarães, um dos idealizadores da Bossa Nova em Minas Gerais nos anos 1960. Este samba é pro Donato/ que é João, é um barato/ todo João é uma canção/ de piano ou violão/ ou é santo ou pecador/ mas é sempre cantador/ vem do Acre ou da Bahia/ tem o lacre da poesia/ é bim bom, café com pão/ sapo, rã, lugar comum/ olodum, emoriô/ quem não sabe já dançou/ passarinho em bananeira/ que besteira é não cantar/ quem não curte já morreu/ não nasceu para bailar/ acredite João Donato/ te curtir é um barato/ aqui vai simples carinho/ de quem tem amor certinho/ pelo samba verdadeiro/ balançado brasileiro/ só de ouvir sou muito grato/ pelo samba do Donato (“Samba pra Donato”, Roberto Guimarães, CD Roberto Guimarães e convidados – Amor certinho, 2003, interpretação Vanessa Falabella, faixa 8). É incoerente pensar que a Bossa Nova feita em Minas Gerais ocupou uma posição de prestando coadjuvante homenagens na história, a figuras reverenciadas e não desapegando do ambiente carioca, como ocorre na letra de “Mania de João Gilberto”. Em caminho inverso, a começar por João Gilberto com a gravação de “Amor certinho” em um de seus discos, vários músicos brasileiros de renome internacional deram a devida importância Mascarenhas ao trabalho e Roberto de Pacífico Guimarães. Destacamos Eumir Deodato, que gravou e Um abraço João Gilberto/ foi de peito aberto e traço certo/ que o seu desafinado/ me fez tão encantado/ chega de saudade, a realidade/ é que em cinqüenta e tal/ a primeira vez que te lançou, nos Estados Unidos, versões instrumentais de “Começou de brincadeira” (1964) e “O jogo” (1973), ambas de Pacífico Mascarenhas.38 Da 37 João Donato, com suas habilidades ao acordeão e ao piano, deu contribuições imprescindíveis à Bossa Nova, mas não se ateve puramente a ela, buscando formas de enriquecê-la com concepções advindas do samba, do jazz e da música latinocaribenha. Por isso, a composição de Roberto Guimarães dedicada a Donato contém um sentido híbrido mais presente. mesma forma, Luiz Eça, Luiz Alves e Ricardo Costa (Luiz Eça Trio) inseriram 38 Estas músicas encontram-se, respectivamente, nos LPs O som dos catedráticos (1964) e Os catedráticos (1973), gravados pela Ubatuqui. 24 em seus trabalhos, sob o selo da gravadora estabelecer a existência de duas Bossas Velas, vinte músicas do compositor. Novas distintas, nosso objetivo foi o de No que evidenciar a importância da vertente ressoavam das Geraes também se fizeram mineira em termos de movimento e de ouvir, resultando na consolidação de dois herança para a MPB. CDs exterior, as instrumentais canções do pianista Nesta perspectiva, consideramos a estadunidense Cliff Korman e outro com atuação voz e arranjos do músico argentino Jorge horizontinos que se apoiaram nos trabalhos Cutello. dos pioneiros Pacífico Mascarenhas e de Roberto produção CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS vários Guimarães, músicos o bossa-novista belo- consumo mineira da pelos músicos cariocas e ainda as repercussões no exterior, incluindo influências num Neste ano de 2008, a mídia brasileira vem prestando homenagens aos 50 anos da contexto musical geral, principalmente sobre o jazz. Bossa Nova, que teve seu início marcado a partir de 1958, mais precisamente pelo lançamento do LP Chega de Saudade, de João Gilberto. Como era de se esperar, os debates sobre este movimento musical estão centrados na reafirmação da exclusividade carioca, cultivando sempre os mesmos clichês e idéias cristalizadas. Poucas são as iniciativas que se propõem a lançar novos olhares sobre o tema e a problematizar noções “esgotadas”. em pesquisas que antecederam sua escrita, foi o de elucidar as características da produção fonográfica da Bossa Nova em Minas Gerais, mostrando peculiaridades e pontos comuns em relação à dinâmica bossa-novista do Rio de Janeiro. Longe de popular brasileira se modificou, a partir da adoção de novos elementos introduzidos pela Bossa Nova, esta não se conformou ao que se pode chamar de “puritanismo” musical, buscando interagir com múltiplos estilos e tendências que compõem o complexo e rico cenário artístico brasileiro. Não confinados composicional, a mas uma sim fórmula embasados estética e musicalmente na Bossa Nova, A intenção do presente artigo, fundamentado Da mesma forma que a música querer artistas mineiros como Bob Tostes, Renato Motha, Juarez Moreira, Toninho Horta, Nelson Ângelo, Fernando Brant, Wagner Tiso e Milton Nascimento puderam rumar por outras direções no plano sonoro, ora mais perto, ora mais distantes iniciativas bossa-novistas das Geraes. das 25 CASTRO, Ruy. Chega de saudade: a AGRADECIMENTOS história e as histórias da Bossa Nova. 3.ª Para a realização desta pesquisa, ed. São Paulo: Companhia das Letras, contei com o financiamento do Programa 1990. de Iniciação Científica do CNPq, do qual GARCIA, Walter. Bim bom: a contradição fui bolsista por dois anos consecutivos, sob sem conflitos de João Gilberto. São Paulo: a inestimável orientação e apoio do Paz e Terra, 1999. professor Dr. Adalberto Paranhos. Dedico GRIFFITHS, Paul. A música moderna: este de uma história concisa e ilustrada de belo- Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge artigo, também agradecimento, horizontinos em aos forma artistas Pacífico Mascarenhas e Zahar: 1998. Roberto Guimarães, que gentilmente me MATOS, concederam clima TRAVASSOS, Elizabeth; MEDEIROS, agradável e informal. Sem eles, a Bossa Fernanda Teixeira de (orgs.). Ao encontro Nova das Geraes não seria possível. da palavra cantada: poesia, música e voz. Igualmente agradeço àqueles que levaram Rio de Janeiro: 7 Letras, 2001. a Bossa Nova adiante, acrescentando sua MEDAGLIA, Júlio. Música impopular. marca pessoal: Bob Tostes, Renato Motha São Paulo: Global, 1988. e Juarez Moreira, e a Fernando Brant, que NAPOLITANO, Marcos. “Seguindo a me prestigiou com suas declarações, canção”: engajamento político e indústria entrecruzando a Bossa Nova e o Clube da cultural na trajetória da música popular Esquina. brasileira (1959-1969). 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Belo Horizonte/MG, duração de 90 min. http://www.museudapessoa.net/clube http://www.pacificomascarenhas.com.br