Formação e mobilização da glicose por tecidos hepáticos e extra-hepáticos O funcionamento celular depende da sua capacidade de disponibilizar glicose para várias das suas vias metabólicas. A glicose para a célula está quer presente no sangue, quer em reservas próprias intra-celulares. O fígado é o órgão fundamental na regulação da glicémia (concentração de glicose no sangue): mantendo-a numa gama de valores normal, sendo esta nos mamíferos de 4.5-5.5 mM. O mecanismo principal da homeostase da glicose celular, que seja em tecidos hepáticos ou extra-hepáticos, será então a troca entre processos de formação e mobilização de glicose. Após a ingestão, as moléculas de glicose absorvidas no intestino chegam ao fígado pela veia porta e são captadas pelos hepatócitos por difusão facilitada, uma vez que não são capazes de se difundirem simplesmente pela membrana, utilizando predominante o transportador GLUT-2. Ao nível dos músculos o transporte é feito pelo transportador GLUT-4. Como possíveis destinos da glicose, vamos ter então: - Degradação para fornecimento de energia de células (glicólise, ciclo de Krebs). - Síntese de glicogénio para reserva (até 10% do peso total do fígado) pela glicogénese. - Em excesso, também para reserva, formação de triacilgliceróis, a partir de acetil-CoA. - Via das fosfopentoses, para formação de transportadores (NADPH) e nucleótidos. Glicólise A glicólise tem, como já vimos, o intuito de fornecer energia às células, mas também de fornecer esqueletos de carbono para vias de síntese. De notar que ao degradar sacáridos com pelo menos duas unidades, temos de transformar todo os monossacáridos resultantes em glicose para prosseguir a via. Isso faz-se através de uma série de reacções, em que intervêm enzimas como uridiltransferase, epimerases e o intermediário UDPGlicose para finalmente formar a Glicose-1-fostato. Note-se que a passagem de glicose a glicose-6-fosfato é efectuada no fígado essencialmente pela hexocinase IV (também denominada de glicocinase) enquanto no músculo as enzimas intervenientes são unicamente a hexocinase I e II. Estas enzimas diferem em termos de regulação e cinética (a hexocinase IV tem um Km mais elevado), e são codificadas por genes distintos, apesar de terem a mesma acção, pelo que se denominam isoenzimas. A glicólise transforma inicialmente a glicose em glicose-6-fosfato, originando no fim duas moléculas de piruvato que farão parte de várias vias metabólicas. O piruvato pode dar origem à acetil-CoA que vai entrar no ciclo de Krebs ao nível das mitocôndrias. Os neurónios dependem unicamente deste catabolismo da glicose para a síntese de ATP. Noutros tecidos, nomeadamente o tecido muscular, o piruvato, em vez de entrar no processo de respiração aeróbia, vai sofrer respiração anaeróbia, mais rápida, apesar de menos produtiva, mas importante em situações de grande necessidade energética muscular, hipóxia ou isquémia, e com formação de lactato no final. Este lactato é enviado para o sangue, onde no fígado é reconvertido em glicose, fechando assim o que se chama de ciclo de Cori. Este ciclo, apesar de ter um baixo rendimento energético, previne a acidose láctica dos músculos sob condições anaeróbias. Há ainda um ciclo análogo, ainda menos produtivo, em que, no músculo o piruvato produz alanina por transaminação. Nos tecidos adiposos, a glicose, após transformada em glicose-6-fosfato, para além de servir como fonte de energia, vai ainda fazer parte da formação de triacilgliceróis, onde é primeiramente transformada em glicerol-3-fosfato que vai estar na origem dos triacilgliceróis ao ser combinar com ácidos gordos. Gliconeogénese A gliconeogénese permite formar novamente glicose, a partir de precursores como: o piruvato, o lactato, o glicerol e produtos do catabolismo de alguns aminoácidos, que entram no ciclo em pontos diferentes. A glicose produzida nos hepatócitos é exportada para outros tecidos quando as reservas de glicogénio estão (praticamente) esgotadas. Para exportar então a glicose, temos o transporte da glicose-6-fosfato do citosol para o lúmen do retículo endoplásmico do hepatócito (pelo transportador T1). Aí, por acção da enzima glicose-6-fosfatase (inexistente no músculo), temos então a molécula de glicose, lançada novamente para o citosol, junto com o fosfato restante (respectivamente pelos transportadores T2 e T3), e finalmente, pelo GLUT-2, a glicose é lançada na corrente sanguínea aumentando a glicémia. Para além do fígado também os rins em capacidade de libertar glicose que sintetizam para o sangue. Sendo vias, em termos de sentido, inversas, quando a glicólise está muito activada, a gliconeogénese está muito inibida. O fígado tem um papel importante na gliconeogénese, já que é o órgão onde esta ocorre com maior intensidade. O fígado desempenha um papel importante no ciclo de Cori, já que é neste, através da gliconeogénese que o lactato é recuperado para produzir glicose. Também no fígado a alanina é convertida em piruvato, que é um dos substratos da gliconeogénese. Glicogénese A glicogénese consiste na síntese do glicogénio (reserva), a partir de moléculas de glicose (a enzima fundamental é a glicogénio sintase). Com a disponibilidade de glicose, a célula promove a criação de reservas, que permite o armazenamento de grandes quantidades de glicose, sem afectar muito a osmolaridade do meio intracelular, como aconteceria se a mesma glicose estivesse na sua forma livre. A glicose é transformada em glicose-6-fosfato pela hexocinase correspondente e a glicose-6-fostato, por uma glicomutase, forma a glicose-1fosfato, que por sua vez é transformada em UDP-glicose pela UDP-glicose-pirofosforilase. A partir de uma unidade iniciadora (“primer”) e com o “auxílio” da glicogenina, forma-se, por adição sucessiva de unidades de UDP-glicose, em que posteriormente o UDP é libertado, uma cadeia linear, de ligações alfa-1,4. Posteriormente, por acção da enzima ramificante, formam-se ligações alfa-1,6, dando a conformação final ramificada do glicogénio. O glicogénio produzido no músculo representa uma menor quantidade relativa do mesmo do que no fígado, mas uma vez que a massa muscular é maior, é nos músculos que se encontra a maioria do glicogénio, que serve como reserva de glicose para as próprias células musculares. Glicogenólise A glicogenólise é a degradação do glicogénio de modo a obter moléculas de glicose, em caso de necessidade. Por acção da glicogénio-fosforilase, há redução da cadeia de glicogénio a menos uma unidade, formando também uma molécula de Glicose-1-fosfato. Não é o inverso do processo anterior, pois não há o intermediário UDP-Glicose. Nos lisossomas a cisão do glicogénio faz-se por hidrólise e não por fosforólise, através de uma maltase ácida. No fígado a glicogénese está activada quando, durante a absorção intestinal de glícidos, a glicemia aumenta. A descida da glicemia leva ao desencadear de mecanismos homeostáticos que levam à activação da glicogenólise. A presença de glicose-6-fosfatase neste órgão permite a formação de glicose que é vertida na corrente sanguínea sendo utilizada pelos tecidos extra-hepáticos. O fígado é um órgão central no metabolismo da glicose: acumula glicose na forma de glicogénio quando a glicemia é elevado e, através da glicogenólise e da gliconeogénese, forma glicose que verte para o sangue e, em última análise, para os outros tecidos quando a glicemia baixa durante o jejum. De recordar que, em jejum, o ATP formado no fígado é uma consequência da oxidação dos ácidos gordos. Nos músculos esqueléticos, o papel do glicogénio é muito distinto do do fígado. Nos músculos esqueléticos, a acumulação de glicogénio está favorecida durante o repouso e quando a glicemia está elevada enquanto a sua degradação está aumentada quando aumenta a actividade muscular. No músculo, a glicose-6fosfato (formada por acção da fosforílase e da fosfoglicomutase) e a glicose (formada por acção da enzima desramificante) originadas durante a glicogenólise são consumidas na fibra muscular onde se formaram. No músculo (e noutros tecidos) a degradação do glicogénio serve as necessidades energéticas da célula onde foi armazenado. Controlo da glicemia em condições alimentares normais A glicemia varia consoante o estado fisiológico do organismo, dependendo de factores como a alimentação e o exercício físico, entre outros. Os níveis de glicemia podem aumentar temporariamente devido a situações de stress intenso, trauma, AVC, ataque cardíaco e cirurgia. Mas neste caso nos vamos focar-nos na regulação da glicemia após a alimentação, situação em que há um aumento temporário dos níveis de glicemia. O pâncreas é um órgão essencial na regulação do metabolismo energético do organismo, pois é ele que secreta e lança para a corrente sanguínea hormonas como a insulina e a glicagina, que são os principais agentes na homeostase dos hidratos de carbono. A insulina é uma hormona polipeptídica formada nas células β dos ilhéus de Langerhans no pâncreas que regula o metabolismo dos glícidos. Concentrações elevadas de glicose como as que ocorrem após a refeição estimulam a secreção de insulina, tornando-a na hormona mais importante quando abordamos a situação de condições alimentares normais. No entanto, a secreção de insulina é influenciada por diversos factores para além dos níveis de glicemia. As células β também são influenciadas pelo sistema nervoso autónomo, isto é, a acetilcolina e a colecistocinina também provocam um aumento da secreção de insulina, enquanto que a epinefrina e a somatostatina (hormona secretada pelas células δ dos ilhéus de Langerhans que inibe a secreção tanto de insulina como de glicagina) a inibem. Em situação de hiperglicemia, a regulação da síntese de insulina é efectuada através do seguinte mecanismo: a glicose entra nas células β pelo transportador de glicose GLUT2, é catabolizada na glicólise e no ciclo de Krebs, com produção de moléculas de ATP. A presença deste ATP vai fazer com que os canais de potássio se fechem e a membrana seja despolarizada. Com a membrana despolarizada os canais de cálcio (Ca2+) controlados pela diferença de potencial abrem-se e os iões cálcio difundem-se para dentro da célula. Para além de haver uma entrada de iões cálcio para a célula, também o retículo endoplasmático liberta iões para o citosol, para aumentar ainda mais a concentração destes no interior da célula. Este processo começa com a fosforilação do fosfatidilinositol na membrana, formando o fosfatidilinositol-4,5-bifosfato (PIP2). A fosfolipase C, sensível à glicose extracelular, vai hidrolisar a ligação entre o glicerol e o fosfato no fosfatidilonositol-4,5-bifosfato, formando inositol-1,4,5-trifosfato (IP3) e diacilglicerol (DAG). O IP3 provoca uma libertação de iões cálcio pelo reticulo endoplasmático. Esta grande concentração de iões cálcio no citosol da célula provoca então a libertação de insulina. É importante referir que enquanto se desencadeia todo este processo de secreção da insulina a glicose já está a ser degradada por outros processos que não envolvem a insulina. A enzima glicocinase é a enzima que tem uma acção mais imediata no combate ao excesso de glicose. Esta enzima catalisa a fosforilação da glicose a glicose-6-fosfato e contrariamente à hexocinase IV não é inibida por uma elevada concentração de glicose-6-fosfato, sendo por isso uma enzima bastante eficaz a baixar os níveis de glicemia mais rapidamente que o processo mediado pela insulina. Depois de ser secretada a insulina vai actuar ao nível das células para diminuir os níveis de glicemia através de diversos mecanismos. A insulina liga-se ao seu receptor na membrana do hepatócito e do músculo esquelético desencadeando cascatas de activações enzimáticas que provocam a activação da fosfoproteína fosfatase-1 e a inactivação da glicogénio sintase cinase 3, bem como a síntese da hexocinase II, PFK-1 e piruvato cinase. A activação da fosfoproteína fosfatase-1, inibe a fosforilase cinase e a glicogénio fosforilase inibindo a glicogenólise, fazendo com que a glicose seja armazenada sob a forma de glicogénio. A inactivação da glicogénio sintase cinase 3 promove a activação da glicogénio sintase. Como estas enzimas pertencem à glicogénese, há então um aumento da glicogénese. Como já foi referido anteriormente na explicação do mecanismo de secreção da insulina há também um aumento da glicólise aquando da entrada de glicose nas células por meio do transportador GLUT2. O aumento da glicólise deve-se, para além do aumento da concentração de glicose na célula ao facto da insulina induzir a síntese de hexocinase II, PFK-1, piruvato cinase e glicocinase. A insulina suprime também a produção de glicagina e, consequentemente, reduz a produção hepática de glicose, sendo assim bastante eficaz na redução da glicemia. Em suma, a insulina promove uma descida da glicemia através da inibição da glicogenólise, do aumento da glicogénese e do aumento da glicólise. Quando a glicemia se estabelece nos valores fisiológicos normais, cessa ou diminui a secreção de insulina a partir das células β dos ilhéus de Langerhans. Controlo da glicemia em jejum Em estado de jejum, ocorre exactamente o oposto do que ocorre em estado de alimentação. Neste caso, os níveis de glicémia podem baixar bastante (hipoglicémia), o que em casos prolongados pode levar ao esgotamento das reservas energéticas hepáticas, e ter graves consequências, principalmente a nível cerebral, e que pode resultar em coma ou em casos mais raros à morte. São as hormonas que têm o papel principal na regulação da glicémia em jejum, sendo que a principal é a glicagina, que é produzida nas células α dos ilhéus de Langerhans, e actua de forma contrária à insulina (hormona principal na regulação da glicémia em estado alimentado). Quando os níveis de glicémia baixam, há libertação de glicagina, que vai gerar AMPc (por via da adenilato ciclase, a partir de ATP, via esta que é favorecida pela proteína GSα, activada pela glicagina e também pela epinefrina). Este AMPc é responsável pela activação da proteína cinase 1 (PKA). É esta PKA que vai ser a mediadora de todos os efeitos da glicagina, através de processos de fosforilação. As acções da glicagina são: Inibição da glicólise e activação da gliconeogénese, que pode ser alcançada de duas formas distintas: por um lado, através da fosforilação da proteína bifuncional fosfofrutocinase-2/frutose-2,6bifosfatase (PFK-2/FBPase-2), e consequente activação da FBPase2, o que leva à diminuição da concentração de frutose-2,6-bifosfato, convertida em frutose-6-fosfato, que tem como efeito a inactivação da fosfofrutocinase-1 (PFK-1), e consequente inibição da glicólise, e activação da enzima gliconeogénica frutose-1,6bifosfatase (FBPase-1), o que ajuda na estimulação da gliconeogénese; por outro lado, pela fosforilação da enzima glicolítica piruvato cinase, e sua consequente inactivação. Esta inactivação da enzima piruvato cinase é também alcaçada pelo aumento da concentração de frutose-6-fosfato acima referido. Estimulação da glicogenólise, que é conseguida através da fosforilação da fosforilase cinase (forma inactiva b), novamente pela PKA, activando-a, dando origem à forma activa da fosforilase (forma a), o que leva à activação da glicogénio fosforilase. Esta enzima é responsável pela fosforilação do glicogénio e formação de glicose-6-fosfato, que é convertida em glicose nos tecidos hepáticos pela glicose-6-fosfatase, e depois libertada para a corrente sanguínea, levando ao aumento dos níveis de glicémia. Inactivação da glicogénese, alcançado através da fosforilação da glicogénio sintase a (forma activa), privilegiando a forma b da glicogénio sintetase (inactiva), e consequentemente inactivando a glicogénese.