1 CETCC - CENTRO DE ESTUDOS EM TERAPIA COGNITIVOCOMPORTAMENTAL Curso de Especialização em Terapia Cognitivo-Comportamental Protocolo da Terapia Cognitivo-Comportamental para o tratamento de pacientes com o diagnóstico de Transtorno Alimentar e Transtorno do Estresse Pós-Traumático LINA SUE MATSUMOTO VIDEIRA São Paulo 2013 2 LINA SUE MATSUMOTO VIDEIRA Protocolo da Terapia Cognitivo-Comportamental para o tratamento de pacientes com o diagnóstico de Transtorno Alimentar e Transtorno do Estresse Pós-Traumático ORIENTADORA: Profª Msc Eliana Melcher Martins COORIENTADORA: Profª Dra Renata Trigueirinho Alarcon São Paulo 2013 3 RESUMO MATSUMOTO V., L.S. Protocolo da Terapia Cognitivo-Comportamental para o tratamento de pacientes com o diagnóstico de Transtorno Alimentar e Transtorno do Estresse Pós-Traumático, Monografia, CETCC-Centro de Estudos em Terapia Cognitivo-Comportamental, São Paulo, 2013 O presente trabalho tem como objetivo pesquisar a existência de protocolos de tratamento na Terapia Cognitivo-Comportamental, para os pacientes diagnosticados com Transtornos Alimentares (TA) e também com o diagnóstico ou a sintomatologia do Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), concomitantemente. Foi realizada uma busca em algumas bases de dados, com as palavras-chaves cognitive therapy, eating disorders e posttraumatic stress disorder, sem limitação de período, nas línguas portuguesa, espanhola, francesa e inglesa. Nenhum artigo foi encontrado que preenchesse totalmente o critério de inclusão. Apesar disto, dois artigos publicados em 2002 e 2012, trazem uma compreensão destes diagnósticos pela ótica do modelo cognitivo, pontuando a importância de se tratar conjuntamente a sintomatologia TA-TEPT através da Terapia do Processamento Cognitivo e o outro pelo Modelo de Dois Fatores, direcionado a tratar a hipersensibilidade neurológica e psicológica conjuntamente. Palavras-chave: Terapia Cognitivo-Comportamental, Transtorno Alimentar, Transtorno do Estresse Pós-Traumático 4 ABSTRACT MATSUMOTO V., L.S. Protocolo da Terapia Cognitivo-Comportamental para o tratamento de pacientes com o diagnóstico de Transtorno Alimentar e Transtorno do Estresse Pós-Traumático, Monografia, CETCC-Centro de Estudos em Terapia Cognitivo-Comportamental, São Paulo, 2013 The presented article aim to research the existing Cognitive Behavioral Therapy protocols to treat patients diagnosed with eating disorders (ED) and Post Traumatic Stress Disorder (PTSD) concomitantly. We realized a search at some databases, using the key-word cognitive therapy, eating disorders e posttraumatic stress disorder, with no period limit, published in Portuguese, Spanish, French and English. No one article was found to fulfill the inclusion criteria. Nonetheless, two articles published in 2002 and 2012, bring a new comprehension of these diagnosis under the cognitive model, addressing the importance of treating the ED-PTSD symptomatology concomitantly using Cognitive Processing Therapy and The Two-Factor Model, to treat neurological hipersensibility at the same time. Key-words: Cognitive Behavioral Therapy, Eating Disorders, Posttraumatic Stress Disorder 5 DEDICATÓRIA À minha gata Hisa, com amor incondicional, admiração e gratidão eterna por ter me escolhido. 6 AGRADECIMENTOS À Eliana e Élcio pelo convite, e por me propiciarem a satisfação de mais uma importante conquista profissional. À Graça, amiga-irmã, pelo convívio carinhoso ao longo deste percurso. 7 “Percebi que há coisas que cada pessoa foi enviada a terra para realizar e aprender. Por exemplo, partilhar mais amor, ser mais amorosa com os outros. Descobri que o mais importante é o relacionamento humano e o amor, e não as coisas da matéria. E entender que cada pequena coisa que se faz na vida é registrada, e mesmo que você passe por ela sem pensar na ocasião, ela sempre vem à tona mais tarde” (RINPOCHE,S., 2000) 8 SUMÁRIO RESUMO ..................................................................................................................... 3 ABSTRACT ................................................................................................................. 4 DEDICATÓRIA ........................................................................................................... 5 AGRADECIMENTOS .................................................................................................. 6 SUMÁRIO.................................................................................................................... 8 1. INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 9 1.1 APRESENTAÇÃO ................................................................................................. 9 1.1.1 Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) ........................................................ 10 1.1.2 Transtorno Alimentar (TA)................................................................................. 11 1.1.3 Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) ................................................. 12 1.2 TEMA / LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO ................................................. 14 2 OBJETIVOS ............................................................................................................ 18 2.1 OBJETIVO GERAL ............................................................................................. 18 2.1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ............................................................................. 18 3. METODOLOGIA ................................................................................................... 19 3.1 PROCEDIMENTOS ............................................................................................. 19 4 RESULTADOS ....................................................................................................... 20 4.1 Artigo 1: Tratamento melhora os sintomas compartilhados pelo TEPT e TA. ........ 20 4.2 Artigo 2: TA e TEPT: Considerações fenomenológicas e do tratamento utilizando o Modelo de Dois Fatores. ............................................................................................. 23 5. DISCUSSÃO ......................................................................................................... 28 6. CONCLUSÃO ........................................................................................................ 31 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 32 9 1. INTRODUÇÃO “Não há nada mais difícil para um pintor do que pintar uma rosa, pois antes disso ele precisa esquecer todas as rosas que já foram pintadas” (Narrativa de uma paciente, para explicar como é difícil para um terapeuta tratar cada paciente como sendo o único) 1.1 APRESENTAÇÃO No modelo clínico de atendimento psicológico, buscamos compreender as demandas do paciente: suas queixas, suas angústias, suas dores, seu sofrimento e, principalmente, suas expectativas e esperanças relacionadas ao que irá encontrar no consultório. Atualmente recebemos vários pacientes com a indicação certeira de que a terapia cognitivo-comportamental (TCC) poderá ajudar de forma breve e eficaz na resolução dos seus problemas mais complexos. Há evidências na literatura a respeito da eficácia da TCC através de vários protocolos de pesquisa nos mais diversos diagnósticos psiquiátricos. No entanto ainda não há evidências robustas relacionadas à eficácia da TCC no tratamento dos Transtornos Alimentares, que continua sendo alvo de muitas pesquisas, apontando que a prevalência desses transtornos tem aumentado nas últimas três décadas. Vários estudos apontam que a dificuldade no tratamento desses pacientes possa estar relacionada às várias comorbidades psiquiátricas, alertando para a necessidade de se investigar os eventos traumáticos na infância e adolescência, e também da sintomatologia do Transtorno do Estresse Pós-Traumático. 10 1.1.1 Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) No início dos anos 70 Aaron T. Beck desenvolveu uma abordagem para tratamento baseado nos princípios que ele chamou de terapia cognitiva (TC). Naquela época, não havia evidências de nenhuma intervenção psicossocial que era tão eficaz ou superior à medicação no tratamento da depressão (o transtorno mais frequente na sua prática clinica) e foram suas pesquisas que trouxeram a primeira evidência clara do efeito duradouro da psicoterapia, algo que há muito tempo era almejado pelos pesquisadores, mas nunca antes demonstrado. Trinta anos de pesquisas corroboram para que a TC seja reconhecida, atualmente, como um dos métodos preferenciais para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos, mesmo os casos mais severos. As evidências da sua eficácia não se limitam apenas ao tratamento da depressão, Beck liderou pesquisas na extensão desta abordagem para outros tratamentos e, atualmente, há fortes evidências da eficácia da TC em quase todos os transtornos não psicóticos (pânico e transtornos ansiosos, transtornos somáticos e hipocondria, transtornos alimentares, abuso de substancia e drogadicção, estresse conjugal e uma variedade de transtornos da adolescência) além de trabalhos emergentes para o tratamento dos transtornos de personalidade (transtorno de personalidade borderline e personalidade antissocial) e das psicoses (transtorno bipolar e esquizofrenia) (HOLLON, 2013). Um dos grandes sucessos na história da psicologia contemporânea, a TC encoraja seus pacientes a levantar hipóteses baseadas nas suas crenças (teorias) sobre si mesmo, seu mundo e o seu futuro. Combinados com o Método Socrático, no qual uma série de questões são propostas para ajudar que a pessoa encontre suas crenças subjacentes, e do Empirismo Colaborativo, os pacientes são encorajados a revisar seu sistema de crenças, que resultam na redução do estresse emocional. A ideia central do modelo da TC é que são as cognições que influenciam profunda e causalmente as emoções e os comportamentos, contribuindo assim para a manutenção da psicopatologia, através dos pensamentos disfuncionais e distorções cognitivas. Para a TC, é a maneira que uma pessoa pensa sobre a situação ou experiência que irá influenciar a maneira como ela se sente e se comporta neste mesmo contexto. Assim, as emoções negativas e os comportamentos inadequados seriam produtos dos pensamentos disfuncionais e das distorções cognitivas. A combinação de técnicas de reestruturação cognitiva e experimentos comportamentais podem ser utilizados para modificar 11 pensamentos mal adaptativos e distorções cognitivas, servindo para melhorar a percepção da pessoa de suas habilidades de enfrentamento, reduzir suas percepções de vulnerabilidade pessoal e estresse emocional. O objetivo da TC não é eliminar ou regular as emoções em geral, ao contrário, é fomentar as habilidades dos pacientes de promover para si mesmo uma visão mais realista e acurada das situações que este enfrenta. O efeito da TC tem sido replicado inúmeras vezes em estudos controlados e é claramente um tratamento efetivo para uma variedade de psicopatologias, tendo vários protocolos classificados como tratamentos empiricamente validados, definido pela Divisão 12 da Força Tarefa da Associação de Psicologia Americana (APA) em 1995. A TC não é simplesmente um protocolo de tratamento, e é inapropriado falar sobre “a terapia cognitiva” ou “o modelo cognitivo”, pois a TC descreve uma família de intervenções que compartilham os mesmos elementos básicos do modelo cognitivo que foca na importância dos processos cognitivos para a regulação da emoção (HOFMANN; ASMUNDSON; BECK, 2013). 1.1.2 Transtorno Alimentar (TA) Os TAs são distúrbios psiquiátricos graves que acometem principalmente meninas adolescentes e mulheres jovens. Entre eles, os quadros típicos são: a anorexia nervosa (AN) e a bulimia nervosa (BN). Em comum, os pacientes têm preocupação obsessiva com peso e forma corporal, avaliação distorcida da imagem corporal e o comportamento alimentar absolutamente inadequado, com restrição alimentar, descontrole sobre a ingesta alimentar, prática de atividades físicas claramente excessivas ou uso de métodos purgativos com o intuito de emagrecer. Clinicamente, a AN define-se pela perda de peso intenso e intencional, através de restrição das escolhas alimentares, vômitos provocados, prática excessiva de exercícios físicos e a utilização de laxantes, diuréticos e anorexígenos. A autoestima desses indivíduos depende em alto grau de sua forma e peso corporais e a perda de peso é vista como uma conquista notável e como um sinal de extraordinária disciplina, ao passo que o ganho de peso é percebido como um inaceitável fracasso do autocontrole. As características ocasionalmente associadas com a AN incluem preocupação acerca de comer em público, sentimentos de inutilidade, forte necessidade de controlar o próprio 12 ambiente, pensamento inflexível, espontaneidade social limitada, irritabilidade, humor deprimido e iniciativa e expressão emocional demasiadamente refreada, sendo que algumas dessas características fazem parte dos conjuntos de critérios para Fobia Social, Transtorno Obsessivo-Compulsivo e Transtorno Dismórfico Corporal. O aparecimento da doença frequentemente está associado com um acontecimento vital estressante (DSM-IV-TR, 1995). A BN é caracterizada essencialmente de compulsões periódicas, ingestão de uma quantidade de alimento definitivamente maior do que a maioria dos indivíduos consumiria, sendo realizadas em segredo, em um período de tempo limitado, até se sentirem desconfortáveis ou mesmo dolorosamente repletos. Essas compulsões são tipicamente desencadeadas por estado de humor disfórico, estressores interpessoais ou intensa fome após restrição por dietas ou sentimentos relacionados a peso, forma do corpo e alimentos. Um episódio de compulsão periódica costuma ser acompanhado de um sentimento de falta de controle, que buscam métodos compensatórios inadequados para prevenir o ganho de peso, sendo o mais comum a indução de vomito, uso indevido de laxantes e diuréticos e prática excessiva de atividades físicas. A auto avaliação é excessivamente influenciada pela forma e peso do corpo, e eles tipicamente se envergonham de seus problemas alimentares, procurando ocultar seus sintomas. Estes indivíduos apresentam baixa autoestima, com sintomatologia do Transtorno Distímico, Transtorno Depressivo Maior e Transtornos de Ansiedade, além de 30 a 50% preencherem critério para Transtorno de Personalidade, mais frequentemente Transtorno de Personalidade Borderline (DSM-IV-TR, 1995). 1.1.3 Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT) O estado de “stress” pós-traumático constitui uma resposta a uma situação ou evento estressante, de natureza catastrófica, capaz de provocar perturbação na maioria das pessoas, o que posteriormente provocaria a revivescência do evento traumático com lembranças invasivas ou “flashbacks”, sonhos ou pesadelos, embotamento emocional, insensibilidade ao ambiente, anedonia e evitação de situações que possam despertar a lembrança do traumatismo, podendo apresentar uma evolução crônica por vários anos e levar a uma alteração duradoura da personalidade (CID-10, 13 1994). Os eventos traumáticos podem ser vivenciados diretamente (combate militar, ataque físico, ataque sexual, assalto à mão armada, roubo, sequestro, ser tomado como refém, ataque terrorista, tortura, encarceramento, desastres naturais ou causados pelo homem, graves acidentes automobilísticos ou receber diagnóstico de uma doença que traz risco de vida) ou apenas testemunhados (acidentes ou ferimentos graves, conhecimento de doença com risco de vida, morte súbita ou inesperada de familiares ou amigos íntimos) e os estímulos associados ao trauma são persistentemente evitados, causando intenso sofrimento psicológico ou reatividade fisiológica. Os indivíduos com TEPT podem descrever sentimentos de culpa por terem sobrevivido quando outros morreram ou pelas coisas que tiveram que fazer para sobreviver e esquivando-se de situações fóbicas ou atividades que lembram ou simbolizam o trauma original, podendo interferir nos seus relacionamentos interpessoais e acarretar conflito conjugal ou perda de emprego. Há uma constelação de sintomas associados, tais como: prejuízo na modulação do afeto; comportamento autodestrutivo e impulsivo; sintomas dissociativos; queixas somáticas; sensações de inutilidade, vergonha, desespero ou desamparo; sensação de dano permanente; perda de crenças anteriormente mantidas; hostilidade; retraimento social; sensação de constante ameaça; prejuízo no relacionamento com outros ou mudança nas características anteriores de personalidade do individuo, podendo haver risco aumentado de Transtorno de Pânico, Agorafobia, Transtorno Obsessivo-Compulsivo, Fobia Social, Fobia Específica, Transtorno Depressivo Maior, Transtorno de Somatização e Transtornos Relacionados a Substâncias e, não se sabe até que ponto, esses transtornos precedem ou se seguem ao início do TEPT. Em crianças, o sentimento de um futuro abreviado pode ser evidenciado pela crença de que a vida será demasiadamente curta, apresentando um “presságio catastrófico” e apresentação de sintomas físicos, como dores abdominais ou de cabeça. Há evidências de variáveis da história de vida podem influenciar o desenvolvimento do TEPT, porém, pode também se desenvolver sem quaisquer condições predisponentes, caso o estressor for externo (DSM-IV-TM, 1995). 14 1.2 TEMA / LEVANTAMENTO BIBLIOGRÁFICO O tema deste trabalho baseou-se na questão das comorbidades psiquiátricas presentes nos pacientes diagnosticados com TAs, em particular com o TEPT. Optamos pela abordagem da TCC, para a compreensão de tais comorbidades e das evidências da eficácia do protocolo de tratamento na TCC dos pacientes que apresentam o diagnóstico de TA conjuntamente com a sintomatologia ou diagnóstico de TEPT. Inicialmente buscamos em algumas fontes relacionadas a estes assuntos, vários conceitos que consideramos importantes e indispensáveis para maior compreensão e entendimento do tema escolhido. Num estudo investigando a relação entre o TEPT e o comer emocional (a tendência para comer exageradamente em resposta as emoções negativas), os resultados obtidos suportam o modelo do estresse-comer-obesidade onde o comer emocional seria a resposta mal adaptativa aos estressores. Tal modelo, ao longo do tempo, pode levar ao ganho de peso, particularmente ao acúmulo abdominal, o que contribui para o alto risco de comorbidades com desordens médicas. Os achados sugerem a importância de estudos longitudinais futuros para compreender de que forma o comer emocional contribui para as altas taxas de obesidade, diabetes e cardiopatias nos pacientes diagnosticados com TEPT (TALBOT e als., 2013). Outro estudo americano examinou mais de mil mulheres veteranas com TA crônico, associados com TEPT e trauma sexual durante vários estágios da vida (na infância, durante o serviço militar e ao longo da vida) e a relevância de tais associações sugerem a importância de se avaliar clinicamente a presença de tais comorbidades (FORMAN-HOFFMAN et al., 2012). Numa pesquisa europeia sobre a frequência de eventos traumáticos e comorbidades com TEPT em 101 mulheres com TAs, mostrou que 63% das anoréxicas e 57% das bulímicas tinham experienciado pelo menos um trauma ao longo da vida, sendo que 10% das anoréxicas e 14% das bulímicas preencheram totalmente a definição do estudo para o diagnóstico de TEPT. Tais achados trazem suporte adicional para a associação entre somatização e TEPT em pacientes com TA, concluindo que estes poderiam se beneficiar da intervenção clínica ao focar o tratamento também na sintomatologia do TEPT (TAGAY, S., SCHLEGL S., SENF W., 2010). 15 Autores franceses apontam que apesar do abuso sexual adulto ter sido sugerido como um fator de risco para o TA, pouco se sabe sobre os caminhos que levam a esta patologia. Realizaram um estudo com 296 estudantes francesas que preencheram um questionário sobre as suas experiências de abuso sexual, sintomas de TEPT, sintomas depressivos e TA. Os resultados mostraram que os sintomas de TEPT são mediadores totais dos efeitos do abuso sexual no TA e que os sintomas depressivos são mediadores parciais, colocando em pauta a complexa relação existente entre sintomas de TEPT, sintomas depressivos e o TA após um abuso sexual (DUBOSC A. et al., 2012). A significância mediacional do TEPT e do desenvolvimento da sintomatologia do TA após uma experiência sexual traumática foi estudada numa pesquisa com 72 vítimas de trauma sexual e 25 sujeitos controle, que completaram entrevistas e questionários avaliando a psicopatologia do TA e a sintomatologia do TEPT. Os resultados apontam uma significante associação entre a história do trauma e os sintomas do TA e TEPT, sendo mais pronunciado nos componentes de evitação e excitação fisiológica. Estes achados suportam a ideia de que indivíduos que desenvolvem TA após um trauma sexual tenham experienciado a sintomatologia do TEPT. Tais achados apresentam implicações significativas para os modelos causais do TA em vítimas de traumas e, mais importante, as intervenções clínicas para os pacientes traumatizados diagnosticados com TA serão beneficiados com foco na sintomatologia do TEPT (HOLZER S. R. et als., 2008). Num trabalho americano realizado na Califórnia, os autores sugerem que nos indivíduos com TA são esperadas histórias de abuso ou negligência na infância, ou então que eles tenham sido vitimizados na adolescência ou na vida adulta, e que essas experiências estariam frequentemente associadas com uma expressão mais severa e complexa na sintomatologia do TA. As implicações de se investigar detalhadamente o trauma são discutidas, inclusive da ineficácia de se tratar somente os sintomas do TA nesses pacientes com histórico de trauma anterior ao TA (BRIERE, J., SCOTT C., 2007). A forte relação entre trauma na infância e dificuldades psicológicas na vida adulta tem sido apontada por diversos autores, e numa revisão interdisciplinar feita no Canadá, resultados indicaram que os efeitos a longo termo são bem maiores para as doenças físicas. O TEPT tem sido apontado como uma possível variável mediadora em relação a várias doenças: abuso de substância, fobias, múltiplos transtornos de 16 personalidade, síndrome do colo irritável, artrite reumatóide, doenças autoimunes e TAs (MULVIHILL D., 2005). Com o objetivo de examinar a sintomatologia do TEPT entre mulheres com TA, uma amostra de 294 mulheres diagnosticadas com AN (n=121), BN (n=103) ou Transtorno Alimentar Não Especificado (TANE, n=70) completaram uma versão da escala de sintomas de TEPT juntamente com outros instrumentos mensurando a sintomatologia específica do TA. Desta amostra, 154 (52%) reportaram sintomatologia atual consistente com TEPT, no entanto, a severidade da sintomatologia do TEPT ou do TA não estava relacionada a nenhum tipo específico de diagnóstico, seja AN, BN ou TANE. Esses achados sugerem que a sintomatologia do TEPT é comum e também uma variável clínica importante entre as mulheres com TA, ainda que, aparentemente, não esteja diretamente relacionado com o TA per se (GLEAVES D. H., EBERENZ K. P., MAY M. C., 1998). Embora a grande maioria dos pacientes com AN ou BN tenha desenvolvido o TA na adolescência ou em torno dos 20 anos, alguns pacientes desenvolveram mais tarde, em seus 30, 40 ou 50 anos. Este estudo aponta para um subgrupo de pacientes com alguns padrões de sintomas com histórico muito particular: 1) abuso físico ou sexual severo perpetrado por membros da familia; 2) condição prémorbida marital e profissional relativamente boa, ainda que caracterizada por 3) hipomania, compulsão alimentar e obesidade mórbida seguida de uma pronunciada mudança no comportamento alimentar após 4) trauma médico por cirurgia, câncer ou sequelas que ocorreram após os 30 anos, levando a restrição severa de alimentos, vômitos e importante perda de peso e que, 5) durante a perda ou restauração do peso apresentou significantes distúrbios dissociativos no humor e na personalidade, comportamentos autodestrutivos e evitação de comida como uma forma de manejo dos sintomas do TEPT (TOBIN D. L., MOLTENI A. L., ELIN M. R., 1995). O modelo cognitivo do TEPT é um dos muitos exemplos que ilustra como a teoria cognitiva fornece uma alternativa e um modelo mais eficaz e alinhado com os dados empíricos do que os modelos comportamentais de aquisição e extinção do medo. O modelo pavloviano de condicionamento do medo é um modelo animal óbvio para o estudo do TEPT nos humanos, pois assume que, com o treino da extinção do medo em animais, a associação entre o estímulo condicionado e o estimulo não condicionado pode ser enfraquecido se o estímulo condicionado não mais predizer o estimulo não condicionado. No entanto, um modelo animal tão simples não explica 17 outras expressões do TEPT em humanos, variando entre depressão e sentimentos de culpa até o isolamento e embotamento emocional, porém o modelo cognitivo para o TEPT tem sido formulado para dar conta destas e de outras configurações. Este modelo cognitivo argumenta que os indivíduos desenvolvem persistentes sintomas do TEPT se eles processarem um evento traumático e/ou suas sequelas de forma que produza uma sensação de uma forte ameaça constante, resultante de a) uma interpretação excessivamente negativa do trauma e/ou suas sequelas e b) uma perturbação no processamento da memória do trauma devido a uma pobre elaboração e interpretação. Uma vez que estes processos estejam ativados, a percepção de intensa e constante ameaça é então acompanhada de hipervigilância, ansiedade, outras respostas emocionais, pensamentos intrusivos e revivescência dos sintomas. Tal percepção motiva uma série de comportamentos e cognições com a intenção de reduzir a ameaça e o estresse em curto prazo, no entanto estas tentativas não resolvem o problema, ao contrário, impedem a mudança cognitiva e assim contribuem para a manutenção do problema. Baseado neste modelo, um tratamento efetivo para o TEPT terá que identificar as avaliações mais relevantes, as características de memória e gatilhos, e as variáveis cognitivas e comportamentais que mantem o TEPT. As técnicas específicas para alcançar estes objetivos incluem: a) modificação das avaliações excessivamente negativas do trauma e/ou suas sequelas, examinando os significados atribuídos aos momentos de maior estresse na memória do trauma (hotspots), b) elaborar a memória do trauma e discriminar os gatilhos que levam a reexperienciar o trauma e c) eliminar os fatores das cognições disfuncionais que levam à manutenção do TEPT, conduzindo, ao final do tratamento, às mudanças nas cognições disfuncionais pós-trauma, resultando na redução da sintomatologia do TEPT, depressão e ansiedade no geral (HOFMANN, S. G., ASMUNDSON, G. J. G., BECK, A. T., 2013). Entendemos, a partir destes estudos e da experiência clínica no consultório e na vivência em ambulatório psiquiátrico, a relevância de estudar o tema em questão. 18 2 OBJETIVOS 2.1 OBJETIVO GERAL O objetivo geral deste trabalho é pesquisar a existência de protocolos de tratamento para pacientes com o diagnóstico de TA e TEPT, através de intervenções da TCC, utilizando premissas do modelo cognitivo. 2.1.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS Os objetivos específicos deste trabalho foram: 1. Identificar qual o protocolo de tratamento na TCC existente para o tratamento de pacientes diagnosticados com TA e TEPT. 2. Avaliar a viabilidade de implantação de tais protocolos na prática clínica no cotidiano do consultório particular de um terapeuta TCC. 19 3. METODOLOGIA Foi realizada uma revisão bibliográfica na busca de evidências da eficácia do tratamento pela TCC nos pacientes diagnosticados com TA e TEPT, simultaneamente. 3.1 PROCEDIMENTOS Realizou-se uma revisão de literatura nas bases de dados eletrônicas (Pubmed, Lilacs, Psycinfo, Scopus e Embase) e a estratégia de busca utilizou-se das seguintes palavras-chave: terapia cognitiva (cognitive therapy) combinada com transtornos alimentares (eating disorders) e transtorno do estresse pós-traumático (post traumatic stress disorder), sem nenhuma restrição ou limitação na busca. Os artigos identificados pela estratégia de busca inicial somaram 40, dos quais foram lidos apenas o resumo, em língua inglesa. Não foram encontrados trabalhos escritos na língua portuguesa, francesa e espanhola. Um artigo foi excluído por ter o seu original escrito em alemão. Após a leitura de 12 artigos na sua íntegra, foi efetuada a exclusão dos trabalhos que não estavam relacionados a nenhum dos três temas que compõem este trabalho, entre eles: 1) TCC (pesquisas relacionadas ao tratamento efetuado por abordagem da TC, mas não TCC: Terapia do Processamento Cognitivo – TPC e Modelo dos Dois-Fatores – MDF, além de tratamentos por outras abordagens: Terapia Inter Pessoal - IPT, Terapia Comportamental Dialética - DBT e Terapia de Aceitação e Compromisso - ACT), 2) TA (pesquisas relacionadas apenas à obesidade, compulsão alimentar, seletividade alimentar e comer emocional) e 3) TEPT (pesquisas relacionadas a transtornos de ansiedade diversos, estresse, distúrbios do sono, transtornos de humor e transtornos de personalidade). 20 4 RESULTADOS Nenhum artigo preencheu completamente os critérios de inclusão para o tema deste trabalho, evidenciando o ineditismo do tema escolhido e a falta de tratamento e a falta de pesquisas no tema. Apesar de não termos encontrado artigos que preenchessem a todos os critérios de inclusão para este trabalho, selecionamos dois artigos que buscam novas propostas de tratamento para a comorbidade TEPT-TA, e que questionam este assunto tão complexo e ainda incipiente, de forma bastante criteriosa e dentro do paradigma cognitivo. Estes artigos articulam alguns conceitos importantes da TC, utilizando variações do modelo cognitivo no tratamento da sintomatologia do TA conjuntamente com a sintomatologia do TEPT: 1) se refere ao tratamento do TEPT através da Terapia do Processamento Cognitivo (TPC) com foco na sintomatologia do TA e 2) se refere ao tratamento utilizando o Modelo de Dois Fatores (MDF) para o TEPT, e com adaptações propostas para a sintomatologia do TA. 4.1 Artigo 1: Tratamento melhora os sintomas compartilhados pelo TEPT e TA. Este primeiro artigo foi publicado pela Sociedade Internacional para Estudo do Estresse Traumático (ISTSS), com o apoio do governo americano, em outubro de 2012 com o título “Treatment Improves Symptons Shared by PTSD and Disordered Eating” baseado na premissa de que TA e TEPT são condições debilitantes que frequentemente coexistem. Ainda que os dois transtornos tenham diferentes apresentações clínicas, eles compartilham características associadas. No Estudo Nacional de Mulheres, das participantes com TA (BN), 37% apresentavam TEPT ao longo da vida, comparadas com 12% nas mulheres sem TA. Há várias teorias considerando a comorbidade entre TEPT e TA, e que o trauma, particularmente o sexual, impacta diretamente na imagem corporal, e as compulsões alimentares ou purgação seriam utilizadas como formas de automedicação. Essa sobreposição de TEPT e TA pode ser consequência de aspectos e sintomas associados, incluindo desregulação emocional, impulsividade e alexitimia (a dificuldade de uma pessoa em identificar e 21 descrever suas emoções). Indivíduos com TEPT podem tentar controlar demasiadamente os seus estados emocionais na intenção de evitar pensamentos e emoções indesejadas, associadas com o evento traumático e indivíduos com TA usam a compulsão e purgação para regulação de afetos negativos e ansiedade, especialmente os que têm muita impulsividade. A alexitimia tem sido também associada a várias formas de trauma, incluindo combate e estupro, e pode estar relacionada com um déficit na percepção interoceptiva, apresentando dificuldade em discriminar sensações e sentimentos, inclusive fome e saciedade. Os autores sugerem que possa haver uma vulnerabilidade cognitiva específica subjacente ao TEPT e TA (MITCHELL, K. S. et als., 2012). Os tratamentos cognitivos, que focam na identificação do pensamento automático mal adaptativo e nas crenças que perpetuam os sintomas psicológicos, são indicados para TA e também para TEPT, pois abordam as características comuns associadas a estes transtornos, incluindo alexitimia, medo em amadurecer, dificuldades interpessoais e a regulação emocional. Em relação ao tratamento da comorbidades de TEPT e TA há alguns debates na literatura sobre se um transtorno deveria ser tratado antes do outro, ou se eles devem ser tratados simultaneamente, no foco dos sintomas em comum. Um autor sugere que o TA seja tratado em primeiro lugar, pois a compulsão e purgação contribuem para um estado de desregulação física e emocional, entretanto, outro autor sugere que qualquer comorbidade significante, e não apenas o TEPT, seja tratada antes de se iniciar a TCC para o TA, pois uma depressão severa, por exemplo, com desesperança e dificuldade de concentração, pode ser uma barreira para o tratamento. Além disso, se o comer é utilizado para escapar ou evitar as memórias intrusivas ou as emoções intensas, poderá ser mais difícil tratar os sintomas alimentares sem abordar antes os sintomas do TEPT. A proposta de tratamento vai depender da conceitualização feita pelo terapeuta da relação comórbida entre TEPT, TA e sintomas sobrepostos. A hipótese é que melhoras na percepção interoceptiva, na regulação do impulso e dos comportamentos alimentares inadequados, possam estar associadas ao decréscimo nos sintomas do TEPT, além dos aspectos de inefectividade, perfeccionismo, desconfiança interpessoal e insegurança, que podem melhorar também após o tratamento (MITCHELL, K. S. et als., 2012). Os dados deste artigo são baseados na análise secundária de uma grande investigação de TPC para o tratamento do TEPT, que coletou dados sobre o trauma físico ou sexual, depressão, saúde física, história do trauma, comportamentos 22 alimentares, TEPT e informações sócio demográficas. A amostra incluiu pacientes (n=150) com intenção de se tratar que completaram entrevistas estruturadas, questionários de autopreenchimento e receberam tratamento de Outubro/2000 a Agosto/2005. A decisão de incluir o Inventário de TA foi posterior ao início da pesquisa, sem a intenção diagnóstica, mas sim a de levantar dados mais apropriados ao TA, e apenas uma pequena amostra de mulheres preencheram estes dados, antes (n=65) e após o tratamento (n=49). A idade variava entre 18 a 74 anos, tinham em média 13 anos de estudo, 50% eram solteiras, 62% eram caucasianas, 34% americanas africanas, 7% asiáticas e a média do Índice de Massa Corporal (IMC) era 30 (obesidade). Os participantes foram randomizados para participar da TPC (com intervenções cognitivas e relatórios escritos), TPC-E (com intervenções cognitivas e sem relatórios) e Só-E (somente com relatórios). O grupo da TPC e TPC-E receberam 12 sessões de 60 minutos (com 2 sessões por semana), e o grupo Só-E recebeu 7 sessões de 120 minutos (com 2 sessões de 60 minutos somente na primeira semana) (MITCHELL, K. S. et als., 2012). A pesquisa apontou que entre as participantes, 68% relataram que tiveram pelo menos um incidente de agressão física na vida adulta e 46% tiveram pelo menos um incidente de agressão física na infância. Além disso, 62% relataram alguma história de agressão sexual na infância, incluindo estupro (38%), tentativa de estupro (31%) ou outro tipo de agressão sexual (49%). Somente 6% relataram história de agressão física, na infância ou na vida adulta, mas não agressão sexual e apenas 16% das participantes relataram história de agressão sexual, na infância ou na vida adulta, mas não agressão física (MITCHELL, K. S. et als., 2012). O tratamento pela TPC contribuiu para o decréscimo nos sintomas comuns do TEPT e TA, ainda que comportamentos específicos do TA não tenham sido impactados. A TPC e TPC-E focaram diretamente na identificação de pensamentos e sentimentos e nos mecanismos pelos quais os pensamentos automáticos levam as emoções negativas. A TPC teve os mais baixos escores após tratamento, e a TPC-E mostrou melhores resultados se comparados com Só-E, que era um tratamento similar à Terapia de Exposição, sem o componente cognitivo. Nomear verbalmente os pensamentos e emoções pode ajudar os pacientes na regulação das emoções, pois esse processo aumenta a atividade do lóbulo frontal e diminui a atividade da amigdala. Assim, não é de se surpreender que o tratamento para o TEPT possa resultar na melhora da percepção interoceptiva e na regulação da emoção. Além do mais, a formação de 23 uma forte relação terapeuta acessará diretamente questões interpessoais de desconfiança. Estes resultados suportam a hipótese de que a comorbidade TEPT-TA é devida, em grande parte, aos sintomas em comum, e é possível que algumas mulheres deste estudo utilizem a compulsão e a purgação como estratégia de enfrentamento (coping) para os sintomas do TEPT, no entanto, os escores de BN não decresceram de forma significativa. A TPC não é especificamente direcionada para tratar o TA, e mais terapia é necessária para alcançar resultados clínicos e estatísticos significativos para os comportamentos e atitudes mais específicos. É notável que a média dos participantes eram obesos (IMC=30) e há varias explicações para isto: o TEPT está associado com altas taxas de obesidade, a compulsão alimentar contribui para o sobrepeso e obesidade e/ou as mulheres que sofreram ataque sexual querem ganhar peso para serem menos atrativas para o sexo oposto (MITCHELL, K. S. et als., 2012). O presente estudo foi limitado pela pequena amostra, ainda que tenha se chegado a achados significativos. Infelizmente, como fazia parte de um grande estudo sobre TPC para tratar o TEPT, não houve grupo controle (placebo) para se comparar os escores do TA. Além disso, o estudo focou somente no trauma interpessoal entre mulheres, e nenhum outro tipo de trauma foi estudado. Também não fica claro se estes resultados podem ser generalizados para homens e outras grupos diversos, além da média de idade deste grupo (35) que diverge bastante da média de idade para o início do TA. O estudo foi também limitado, pois não havia o diagnóstico de TA, mas apenas os sintomas identificados pelo autopreenchimento do inventário específico. Apesar destas limitações, este estudo é o primeiro a examinar o impacto do tratamento do TEPT nos sintomas comuns a ambos TEPT e TA. Embora este seja apenas um pequeno passo na investigação das abordagens no tratamento destas comorbidades, pesquisas futuras devem continuar a explorar a comorbidade entre TEPT e TA entre os diversos grupos de pessoas (MITCHELL, K. S. et als., 2012). 4.2 Artigo 2: TA e TEPT: Considerações fenomenológicas e do tratamento utilizando o Modelo de Dois Fatores. Este segundo artigo foi publicado no Jornal Internacional de Emergência em Saúde Mental, em 2002 com o título “Eating disorders and posttraumatic stress: phenomenological and treatment considerations using the two-factor model” com o 24 objetivo de aumentar a percepção na possibilidade de que a apresentação de um TA pode não ser um fenômeno isolado, e poderia ser prudentemente diagnosticado se os clínicos acessarem a historia do trauma e/ou os sintomas de trauma presentes. Para os clínicos tratando estes dois diagnósticos concorrentemente, os autores sugerem a utilização do Modelo de Dois Fatores (MDF) para o TEPT, bem como a Terapia Neuropersonológica (TPN) como um modelo de conceitualização e tratamento (LATING, J. M., O’REILLY, A. M., ANDERSON, K. P., 2002). Estimadamente oito milhões de pessoas no mundo sofrem de TA. O objetivo primário dessas pessoas é controlar seu peso através de métodos irracionais e perigosos. Há numerosas complicações físicas associadas ao TA incluindo problemas gastrointestinais, ósseos, dentários, cardiovasculares e reprodutivos. Além disso, os aspectos psicológicos aparecem pelos sintomas de ansiedade, pobre controle do impulso, baixa autoestima, passividade, dependência e dificuldades interpessoais. Devido as suas preocupações com o ganho de peso, estes pacientes são também descritos como histriônicos, esquizofrênicos, depressivos e/ou obsessivos. Todas as escolas de psicologia já tentaram explicar a etiologia do TA, e não é surpresa que elas estejam associadas a fobias com comida/peso, ansiedade mal adaptativa, conflitos do desenvolvimento maturacional, distorções cognitivas e disfunção familiar. Para os indivíduos sofrendo com TA, o peso e a forma corporal são os referenciais de auto avaliação e, com o sucesso de dietas rígidas, um sentimento de maestria e autocontrole, competência e realização costuma ser alcançado (LATING, J. M., O’REILLY, A. M., ANDERSON, K. P., 2002). O diagnóstico comórbido de TA e TEPT tem recentemente recebido atenção e alguns estudos apontam para a relevância de se investigar a sintomatologia do TEPT que pode ser uma variável clínica relevante nos pacientes que se apresentam com TA e que a sua detecção precoce durante as avaliações iniciais pode influenciar positivamente o prognóstico. Quando a TCC foi aplicada, conjuntamente com hipnose, focada nos sintomas do TEPT, ao invés do TA, melhoras importantes ocorreram não somente nos sintomas do TEPT, mas também nos sintomas alimentares, no pânico e na depressão. A reestruturação cognitiva utilizada na TCC aparentemente permite que o paciente desenvolva novas perspectivas sobre o trauma, os ajudando a focar no aspecto positivo da sua sobrevivência, aliviando sentimentos de culpa e ajudando a remover imagens intrusivas. Estudos sugerem que o processamento cognitivo associado aos eventos traumáticos possa ser muito similar aos pensamentos associados ao peso no TA. 25 Há uma complexa inter-relação entre a fenomenologia do TEPT e do TA, pois as memórias intrusivas do evento traumático podem ser substituídas pela preocupação com a comida e que o controle rígido sobre a ingesta alimentar diminui os sentimentos de desesperança. A questão levantada é a noção de que as desordens na ingesta alimentar na população de pacientes com TA, que foram abusadas sexualmente quando criança, agiria como um redirecionamento, suprimindo ou dissociando dos pensamentos intrusivos, imagens, sentimentos e flashbacks, podendo ser, a evitação do alimento como uma técnica utilizada para manejar os sintomas do TEPT (LATING, J. M., O’REILLY, A. M., ANDERSON, K. P., 2002). Considerando os dados preliminares sobre a eficácia de se considerar e tratar a sintomatologia do TEPT nos pacientes com TA, se houver a concorrência destes diagnósticos, então pode ser benéfico conceitualizar essa sobreposição a partir de uma perspectiva fenomenológica comum. O modelo teórico racional do MDF pode ajudar os clínicos mais acostumados a trabalhar com pacientes com TA a considerar conceitualmente essa relação e formular intervenções e tratamentos quando trabalharem com estes dois diagnósticos concorrentemente. O MDF para o TEPT é um modelo integrativo neurocognitivo e fenomenológico dos elementos biológicos e psicológicos que constituem o TEPT: Fator 1) É caracterizado pela hipersensibilidade neurológica devida à excitação do sistema nervoso central, o sistema nervoso autonômico e vários mecanismos neuroendócrinos, e tal hipersensibilidade é também referida como neurotoxicidade excitatória, que pode resultar na inabilidade de regular a excitação e comportamentos de impulsividade e irritabilidade podem aparecer, e Fator 2) É caracterizado pela hipersensibilidade psicológica que a pessoa com TEPT experiência quando um evento traumático viola profundamente suas crenças ou suposições a respeito do seu mundo, que são imperativas para um funcionamento adaptativo desde que elas serviram para prover sentido, ordem, controle e segurança para o ambiente. As experiências que desafiam, ameaçam ou invalidam essas crenças assumidas podem resultar em padrões mal adaptativos de enfrentamento. As cinco crenças centrais mais relevantes são 1) a crença num mundo correto e justo, 2) a necessidade de apego e confiança no outro, 3) a necessidade de segurança, 4) a crença em alguma forma superior ou de sentido na vida (espiritualidade, fé e religião) e 5) a necessidade de auto eficácia e auto estima. A traumatização psicológica coloca em contradição e invalida essas crenças básicas, por exemplo, a) coisas ruins acontecem 26 com pessoas boas é uma violação da suposição de que o correto e o justo sempre prevalecem, b) abandono ou traição de uma pessoa de minha confiança é uma violação da necessidade de proximidade, confiança e apego, c) ataques imprevisíveis e violentos, especialmente contra crianças ou pessoas amadas é uma violação da necessidade de segurança, d) adversidades imprevisíveis e caóticas podem resultar numa crise de fé ou de religião, e e) um ato que inadvertidamente causa danos ao outro podem afetar a autoestima e/ou podem levar a sentimentos de culpa no sobrevivente (LATING, J. M., O’REILLY, A. M., ANDERSON, K. P., 2002). A mesma estratégia empregada no uso do MDF para o TEPT também pode ser utilizado para o TA, conceitualizando os sintomas físicos e psicológicos associados, mesmo que esses transtornos apresentem características físicas totalmente diferentes, os constituintes biológicos aparentam serem questões centrais para o padrão sintomatológico e, de fato, podem compartilhar algo em comum na neurofisiologia. É possível visualizar a associação da proposição das crenças centrais assumidas no MDF no TA, onde os pacientes são descritos como lutando com o real e a sensação de controle, frequentemente lamentando sobre a injustiça em relação à forma do seu corpo, levando a comportamentos auto induzidos (restrição, compulsão, purgação) que podem prejudicar sua saúde física e, claramente, a sua autoestima fica severamente comprometida por esses atos, e eles são motivados pela noção de que ordem e continuidade nas suas vidas serão apenas conquistadas com o sonhado peso e forma corporal. A abordagem terapêutica do MDF consiste em cinco estágios: 1) formar a aliança terapêutica, 2) prover educação sobre sintomas e reações, 3) utilizar relaxamento e estratégias de manejo de estresse para diminuir a excitação fisiológica, 4) determinar as questões relacionadas à experiência atual, salientando sua visão de mundo e 5) ajudar a restaurar uma visão de mundo mais funcional e adaptativa. A partir desta descrição, fica claro porque a TCC para TA é considerada o tratamento de escolha para os indivíduos com BN, AN e compulsão alimentar e é, na essência, análoga a formulação do tratamento neuropersonológico do MDF. Similar aos pacientes com TEPT, os pacientes com TA tipicamente se engajam em erros racionais habituais e possuem crenças subjacentes que contribuem para o desenvolvimento e manutenção do transtorno. Assim, incorporar os conceitos e técnicas do MDF para o tratamento do TEPT no protocolo do tratamento padrão do TA pode ser benéfico no tratamento deste transtorno tão complexo. Ainda que o TEPT e o TA sejam entidades diagnósticas distintas, ficou claro neste trabalho que elas apresentam similaridades conceituais e 27 acreditamos que seria prudente para os clínicos com pacientes com TA a acessar a história do trauma. A consideração na comorbidade entre trauma e TA pode fornecer o ímpeto para futuras pesquisas neste tema (LATING, J. M., O’REILLY, A. M., ANDERSON, K. P., 2002). 28 5. DISCUSSÃO Acreditamos que o tratamento de pacientes com TA exige uma atitude de compreensão, não apenas no nível teórico e prático, mas também no estabelecimento de uma boa aliança terapêutica, devido às dificuldades de adesão ao tratamento que estes pacientes apresentam. Baseado nos resultados de várias pesquisas apresentadas anteriormente, partimos do pressuposto de que o tratamento pela TCC dos sintomas do TA com foco na investigação de um trauma prévio e na sintomatologia do TEPT poderia ser um caminho mais curto, eficiente e eficaz. Pesquisar o caminho já percorrido por outros profissionais que atuam nesta área de estudo específica possa trazer luz para a compreensão e tratamento de pacientes com alto grau de complexidade, na direção da prevenção de tais quadros e diminuir a cronicidade, na direção de melhores prognósticos. Compreendemos que este trabalho expressa importância acadêmica e científica, pois a compreensão e análise dos protocolos da TCC para o tratamento dos pacientes diagnosticados com TA e também do TEPT possa colaborar para um melhor entendimento destes quadros psicopatológicos de alta complexidade e de difícil tratamento. Neste estudo, entendemos que através dos protocolos de tratamento da TCC apresentados detalhadamente, poderemos dar uma contribuição significativa para que os terapeutas TCC possam atuar melhor nos seus consultórios, utilizando o conhecimento acumulado por profissionais estudiosos nas suas áreas específicas de atuação, tanto na abordagem teórica da TCC, na compreensão da etiologia dos TAs e no desenvolvimento do TEPT. Ao ampliarmos a compreensão sobre a complexidade destes diagnósticos, poderemos nos beneficiar dos dados das pesquisas encontradas, em favor do nosso paciente, contribuindo para um melhor prognóstico. A partir da análise dos dois estudos encontrados, procuramos traduzir e transcrever os aspectos centrais destas pesquisas, da proposta do tratamento, de forma sintética e simplificada. Buscamos priorizar os aspectos cognitivos apresentados nestes estudos, visando construir uma ponte entre o modelo cognitivo de Beck, a TCC e a proposta de tratamento apresentada, a fim de facilitar a compreensão, viabilizando uma possível aplicação prática de tais achados na prática clínica, no consultório. O MDF é o que mais se aproxima do modelo cognitivo, com base no trabalho focado nas crenças centrais e crenças subjacentes, que são formadas ao longo 29 da vida e fornece ao sujeito sua visão de mundo e a possibilidade de se adaptar a ele. No modelo neuropersonológico para o TEPT, quando essas crenças mais centrais em relação a um mundo correto e justo são violadas por um evento traumático, o indivíduo pode perder sua esperança e questionar e desafiar seus valores mais básicos: família, sociedade, fé e religião. Segundo Brewerton (2007) é muito raro que os pacientes com TA sejam simplesmente isto – indivíduos só com TA e é um fato que as comorbidades são efetivamente “a regra e não a exceção”, como identificado abaixo, as relações significantes entre TA e TEPT incluem a) abuso sexual na infância como um fator de risco inespecífico, b) o espectro do trauma associado ao TA tem sido estendido do abuso sexual a uma variedade de outras formas de abuso e negligencia, c) trauma é mais comum em pacientes bulímicas do que em não bulímicas, d) achados relacionando TA com trauma tem sido estendido de crianças a adolescentes com TA, e) achados relacionando TA com trauma tem sido estendidos desde meninos a homens com TA, f) múltiplos episódios e vários tipos de trauma são associados ao TA, g) trauma não necessariamente está associado com a maior severidade do TA, h) trauma está associado a maior comorbidade nos pacientes com TA (incluindo e frequentemente associado ao TEPT) i) o diagnóstico de TEPT parcial ou subclínico pode representar um fator de risco para BN e sintomas bulímicos, j) o trauma e o TEPT ou os sintomas devem ser expressamente e satisfatoriamente abordados no sentido de facilitar a recuperação completa do TA e das comorbidades associadas. Há inúmeras considerações importantes que potencialmente emergem na abordagem e no tratamento dos pacientes com TA-TEPT. Isto vai depender do nível do treinamento, habilidades e experiência do clinico, bem como da sua disciplina e orientação teórica. Alguns terapeutas que são inexperientes no tratamento de pacientes com TA podem subestimar a necessidade de reabilitação nutricional e prosseguir muito rápido no trabalho com o trauma, podendo inadvertidamente colidir com a esquiva do pacientes, ativando questões do próprio terapeuta. O TEPT tardio pode ocorrer uma vez que a reabilitação nutricional ocorrer e os pacientes podem se lembrar dos eventos traumáticos em sua vida que já haviam previamente esquecidos. Às vezes, os pacientes nem sequer perceberam que foram abusados, até que as definições de abuso ou negligência são explicadas. Uma vez que o padrão cognitivo é alterado, eles então podem perceber as experiências passadas como abusivas, e os sintomas do TEPT podem aparecer tardiamente. Na Conferencia Internacional sobre TA e Obesidade, no primeiro evento 30 internacional no Rio de Janeiro, Brasil, em 2010, o trabalho “Bullying and eating disorders: Is it feasible to undo the chain” mostrou a forte ligação existente entre a vivência traumático do bullying e graves quadros psiquiátricos, apontando que o envolvimento dos adolescentes vitimas de bullying na escola estava associado a numerosos problemas de saúde mental, sugerindo que o bullying poderia estar potencialmente associado a problemas psicológicos e psicossociais, a médio e a longo prazo, tais como estresse emocional, baixa autoestima, dificuldade em fazer amigos, solidão, ansiedade, depressão, ideação suicida e TA, apontando para o potencial traumatizante deste comportamento agressivo como possível gatilho para o TA (MATSUMOTO, L. S., 2010). Esperamos que as informações apresentadas até aqui, possam ter utilidade prática para os terapeutas clínicos, tanto na compreensão e avaliação, mas também para um tratamento mais eficaz para os pacientes com TA-TEPT. 31 6. CONCLUSÃO Esperamos ter contribuído com este trabalho no sentido de alertar sobre a complexidade da sintomatologia presente nos pacientes com TA, que tenham vivenciado um evento traumático e apresentem também a sintomatologia do TEPT, trazendo luz sobre uma etiologia tão complexa. e ainda controversa. A esperança de que este trabalho traga um novo olhar sobre os pacientes com TA e, quem sabe, possa explicar o curso crônico da doença e as várias recaídas, através da compreensão da possibilidade da comorbidade com o TEPT que, não diagnosticado e nem tratado em algum momento do passado, deixou marcas profundas na memória, no corpo e no coração. Talvez, sob esta nova luz, os pacientes que apresentem a sintomatologia do TA-TEPT possam ser compreendidos e respeitados na sua dor e sofrimento intenso, e serem beneficiados ao receberem um tratamento adequado à sua necessidade diagnóstica e não mais serem avaliados e julgados apenas pelo seu comportamento alimentar inadequado e muitas vezes bizarro. 32 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. DSM-IV-TM - MANUAL DIAGNÓSTICO E ESTATÍSTICO DE TRANSTORNOS MENTAIS. 4o ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6320. Informação e documentação: Referências – Elaboração. Rio de Janeiro, Ago, 2002. BRIERE, J.; SCOTT, C. Assessment of trauma symptoms in eating-disordered populations. Eat Disord, v. 15, n. 4, p. 347-58, 2007 Jul-Sep 2007. ISSN 1064-0266. Disponível em: < http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17710571 >. DUBOSC, A. et al. 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