a pobreza urbana no brasil: considerações a partir das análises

Propaganda
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
4ª Semana do Servidor e 5ª Semana Acadêmica
2008 – UFU 30 anos
A POBREZA URBANA NO BRASIL:
CONSIDERAÇÕES A PARTIR DAS ANÁLISES GEOGRÁFICAS
Mirlei Fachini Vicente Pereira1
Universidade Federal de Uberlândia
[email protected]
Resumo: O Brasil é um país notadamente marcado pela permanência da pobreza. Como o
processo de urbanização ocorreu de forma acelerada no território brasileiro, grande parcela da
sociedade tornou-se ainda mais sujeita a uma série de carências, sofrendo de uma pobreza e de
uma escassez que na maioria das vezes tornam-se ainda maiores nas cidades. Analisando as
manifestações da pobreza no Brasil, com ênfase no problema da pobreza urbana, este trabalho
pretende discutir os modos como a ciência geográfica brasileira contribui para o entendimento da
pobreza nas cidades.
Palavras-chave: Pobreza; espaço urbano; território brasileiro; análise geográfica.
1. INTRODUÇÃO
O Brasil é um país notadamente marcado pela permanência da pobreza. Como o processo
de urbanização ocorreu de forma acelerada no território brasileiro, grande parcela da sociedade
tornou-se ainda mais sujeita a uma série de carências, sofrendo de uma pobreza e de uma escassez
que na maioria das vezes tornam-se ainda mais acentuadas nas cidades.
Pretendemos assim discutir os aspectos da pobreza urbana no Brasil a partir de análises
geográficas realizadas por autores brasileiros, partindo de uma breve análise dos processos de
urbanização e de aprofundamento da pobreza no Brasil, para depois destacarmos como a pobreza se
manifesta, toma concretude no espaço urbano brasileiro. A função que a grande cidade desempenha
no “acolhimento” de parcela significativa dos pobres no país também nos parece ser de fundamental
importância para a compreensão geográfica deste problema no país. Por fim, retomamos o debate
acerca da teoria do “espaço dividido”, desenvolvida por Milton Santos no final da década de setenta
do século passado, onde o autor analisa a pobreza urbana a partir do chamado circuito inferior da
economia, esquema analítico que nos parece operacional e válido até os dias de hoje para a
compreensão do fenômeno da pobreza urbana, em particular a que ocorre nos países pobres.
2. POBREZA – BUSCANDO UM CONCEITO PARA AS ANÁLISES GEOGRÁFICAS
A pobreza, por se tratar de uma característica marcante do território brasileiro, e de forma
geral do conjunto dos países pobres, é estudada por grande número de ciências, possuindo assim
várias interpretações. Na geografia, a particularidade dos estudos da pobreza envolve uma leitura do
1
Professor Assistente I, IG-UFU, aluno do doutorado em Geografia, UNESP, Campus Rio Claro. Este ensaio que
apresentamos resulta, com algumas modificações, do trabalho final para avaliação na disciplina “A Pobreza Urbana no
Contexto Europeu”, ministrada pelo prof. Dr. Jordi Domingo Coll (Universidad de Lleida-Espanha), no Programa de
Pós-Graduação em Geografia da UNESP, Rio Claro, no 1º semestre de 2007.
1
problema a partir do espaço geográfico, ou seja, como o fenômeno é produzido e como ele se
materializa no território.
Milton Santos, em obra que é referência para o estudo da pobreza e particularmente da
pobreza no meio urbano (Santos, 1979), alerta para o problema de definir o que é pobreza, onde, na
maioria dos estudos, são apresentas definições estatísticas, onde são levados em conta apenas
critérios econômicos e de renda. Mas, como o próprio autor observa,
(...) um indivíduo não é mais pobre ou menos pobre porque consome um pouco
menos ou um pouco mais. A definição de pobreza deve ir além dessa pesquisa
estatística para situar o homem na sociedade global à qual pertence, porquanto a
pobreza não é apenas uma categoria econômica mas também uma categoria política
acima de tudo. Estamos lidando com um problema social (Santos, 1979, p.10).
Esta preocupação é importante e ainda mais significativa quando o problema da pobreza é
estudado do ponto de vista geográfico. O contexto em que determinada sociedade se insere ou
mesmo os contextos de cada segmento social dentro de formações territoriais específicas fazem
com que as leituras estatísticas possam sobremaneira distorcer os verdadeiros significados da
pobreza, ou seja, tornar oculta a sua dimensão política, e também as suas dimensões geográficas.
Se a pobreza pode ser identificada como a carência ou a escassez de bens que atendam às
necessidades básicas a uma vida digna em sociedade, esta se diferencia conforme aspectos sociais e
geográficos e qualquer tentativa de análise pautada no estabelecimento de critérios estatísticos pode
facilmente estar exposta a riscos graves. Em outras palavras, os contextos geográficos em que a
escassez e as carências se encontram fazem com que a pobreza se diferencie substancialmente no
território. As necessidades básicas não são as mesmas entre os homens e lugares. Daí a dificuldade
de se estabelecer, sobretudo para um estudo de geografia, o que é a pobreza.
No Brasil, a pobreza urbana se manifesta praticamente em todas as regiões e em todas as
cidades, diferindo, como é claro, a partir de contextos regionais e locais. No entanto, o processo de
intensificação da carência e da escassez no meio urbano parece estar ligado, no caso brasileiro, à
rápida urbanização do território e à forma desigual com que parcelas significativas da sociedade se
apropriaram, de um modo também desigual, da riqueza gerada no país.
3. A URBANIZAÇÃO RÁPIDA E O APROFUNDAMENTO DA ESCASSEZ E DA
POBREZA
O rápido processo de urbanização que o Brasil conheceu ao longo do século vinte, e de
forma mais expressiva na sua segunda metade (Tabela 1), além de expressar um processo de
empobrecimento e mesmo de expulsão da população que residia no campo fez expandir não só o
número e o tamanho das cidades, mas também a pobreza e a escassez no meio urbano.
No entanto, o processo de urbanização se deu de forma diferenciada nos contextos
regionais brasileiros, que, conforme Elisa Almeida (2003) é reflexo da desigual densidade dos
novos objetos geográficos e da infra-estrutura territorial que integrou o país, o que acabou por
aprofundar as diferenças regionais.
2
Tabela 1: Evolução da população e taxas de urbanização no Brasil
Ano
População Total
População
Taxa de
Urbana
Urbanização (%)
1940
41.326.000
10.891.000
26,35
1950
51.944.000
18.783.000
36,16
1960
70.191.000
31.956.000
45,52
1970
93.139.000
52.905.000
56,80
1980
119.099.000
82.013.000
68,86
1991
150.400.000
115.700.000
77,13
2000
169.872.856
137.925.238
81,20
Fonte: Santos, 1994 (dados de 1940 a 1991, aproximados), e IBGE (dado de 2000, disponível em
www.ibge.gov.br, acesso em maio de 2006).
Contraditoriamente, a urbanização e o aumento do trabalho industrial também fizeram
surgir uma “massa de desqualificados” (principalmente os trabalhadores que migravam do campo),
aumentando a precarização do emprego no país e fazendo diminuir o poder de compra da sociedade.
Conforme se consolida a centralidade da região concentrada2 no território nacional
(Santos, Silveira, 2001), as regiões periféricas tendem a se tornarem menos importantes
economicamente, onde paralelamente ocorre um aprofundamento da pobreza e da escassez. O
processo de modernização que o território brasileiro conhece ao longo do século XX, que promove
concomitantemente a rápida urbanização e industrialização, permite com que o capital investido no
trabalho conheça uma reprodução ainda mais ampliada, fazendo com que as desigualdades se
aprofundem.
As necessidades são socialmente criadas, mas a condição urbana de habitação acaba por
induzir um aumento das necessidades e das escassezes, tanto das necessidades e das escassezes
necessárias quanto das desnecessárias. Este fato pode ser simplesmente observado com a maioria da
população brasileira habitando as cidades, onde novas demandas surgem no interior dos espaços
urbanos. É o caso, por exemplo, de uma nova demanda de alimentos industrializados, fato que
promoveu a intensa modernização da agricultura e sua íntima relação com a indústria a partir da
década de 70.
Concentrada nas cidades, a população passa a ser desejosa também de demandas
desnecessárias, e esse papel é cumprido principalmente pela mídia, veiculando novos modos de
consumo e novos produtos que logo se tornam objetos de desejo de uma população que no mais das
vezes não tem como adquiri-los. Daí, talvez, o aumento desmedido da violência urbana no Brasil
neste início de século, onde a criação e difusão ampliadas de novos objetos de consumo acabam por
induzir aqueles que não possuem meios de adquiri-los a obtê-los de forma ilícita, muitas vezes
através de práticas violentas, no mais das vezes uma violência que visa o alcance de bens ou objetos
desnecessários.
É assim que o Brasil, com a maioria da sua população habitando as cidades já na década
de 70, torna-se de uma só vez um país urbano, industrializado e ainda mais pobre. As infraestruturas territoriais que modernizam e integram o mercado interno que crescia não atendem aos
interesses e às necessidades mais básicas de consumo de uma parcela muito significativa da
sociedade.
A cidade, e principalmente as grandes cidades, ao mesmo tempo em que o país se torna
urbanizado, já apresentam uma série de problemas no que se refere à infra-estrutura e ao aumento
da pobreza no meio urbano. Inclusive, também na década de setenta do século passado, o país já
conhece o fenômeno de metropolização, com um crescimento muito maior da concentração da
população nas regiões metropolitanas (Santos, Silveira, 2001; Almeida, 2003), o que mais uma vez
2
Santos e Silveira (2001) denominam “Região Concentrada” a porção do território brasileiro que compreende as
regiões Sudeste e Sul da atual divisão regional do IBGE, tendo como critério a maior densidade técnica que tal região
apresenta quando comparada ao conjunto do território nacional.
3
acaba por gerar o aumento da escassez e a precariedade da habitação e das periferias pobres nas
metrópoles.
4. A MATERIALIDADE DA POBREZA NO ESPAÇO URBANO BRASILEIRO
Se a pobreza é fenômeno difícil de ser definido, sua manifestação no espaço geográfico, e
de modo particular no espaço urbano das grandes cidades dos países pobres, é um fato que
dificilmente passa despercebido. O processo de periferização, ou seja, o aumento exponencial das
periferias urbanas, principalmente nas grandes cidades brasileiras, é tanto reflexo da condição atual
de reprodução da pobreza na sociedade como da forma desigual como o poder público destina os
investimentos em infra-estrutura nas cidades.
A produção de espaços específicos para o exercício das atividades hegemônicas,
somada às inúmeras intervenções do setor público, que busca através de suas ações
privilegiar sobretudo os agentes hegemônicos e as parcelas com maior poder
aquisitivo da sociedade, conduziu à periferização, entendida como o processo de
exclusão social e geográfica das modernizações do país. As periferias urbanas são o
exemplo mais cabal da valorização desigual dos homens e dos lugares (Almeida,
203, p.218).
Assim, o espaço urbano no Brasil é no mais das vezes marcado por suas inúmeras
carências, reproduz as características do espaço urbano de demais países pobres, onde o problema
da segregação sócio-espacial é emblemático. De um lado, espaços segregados dos pobres se
avolumam nas periferias e favelas, carentes de infra-estruturas e de serviços públicos. De outro,
como é o caso da classe social de alta renda, ocorre uma auto-segregação, sendo os condomínios
fechados de luxo um exemplo também nítido do processo de fragmentação e segregação urbanas
que, em última análise, é conseqüência das desigualdades sociais. “Em realidade, a segregação
parece constituir-se em uma projeção espacial do processo de estruturação de classes, sua
reprodução, e a produção de residências na sociedade capitalista” (Corrêa, 2001, p.132).
Produto das desigualdades sociais, a grande cidade brasileira se torna, de certa
forma, ingovernável no que diz respeito à problemática da pobreza. O aumento da pobreza no meio
urbano, além de produto de uma distribuição desigual dos recursos produzidos na nação, acaba por
produzir a proliferação da violência, são verdadeiras “cidades do medo” (Souza, 2005).
Sob a lógica da entropia e da pobreza, as principais metrópoles brasileiras – São Paulo e
Rio de Janeiro – crescem de forma desordenada ao longo dos anos 60 e 70, e continuam atualmente
a crescer, ainda que de forma não tão acelerada, mas apresentando a periferia e a favela como
espaços de destino da população pobre que também aumenta. Este processo é também muito visível
nas demais capitais estaduais e nas cidades médias que apresentam maior crescimento populacional
no atual período.
Nas capitais litorâneas da região nordeste, refuncionalizadas recentemente (e
parcialmente) para a atividade do turismo, concentra-se extrema quantidade de pobres que
sobrevivem de subempregos, fazendo com que se proliferem as periferias urbanas. O contraste entre
as paisagens do litoral e a das favelas que se avolumam nas periferias expressa mais uma face da
segregação e da desigual valorização dos homens e dos lugares.
Na Amazônia brasileira, onde mais de 69% da população já habitava as cidades no ano
2000, a pobreza se materializa e se expressa numa “ausência material” das cidades (Becker, 2006,
p.31), que também denuncia uma ausência do poder público no que se refere às necessidades
básicas da sociedade. Ainda que a maioria da população amazônica esteja concentrada em núcleos
urbanos, a cidade ocorre de forma não-material, com processos acelerados de favelização e total
ausência de infra-estrutura urbana e de serviços públicos básicos, principalmente nas capitais
estaduais e nos centros regionais. Há desta forma um imperativo da urbanização que acaba por
concentrar a população nas cidades, ainda que nestas faltem o emprego, os serviços e as condições
mínimas para uma habitação digna.
4
É desta forma que, como nos alerta Amélia Damiani, a urbanização no Brasil é crítica; ou,
em outras palavras, a urbanização e a cidade não ocorrem para todos.
Considerando-se os limites da inserção, no mercado de trabalho, da força de trabalho
disponível nas grandes cidades, considerando-se, também, como fundamento e base
de desenvolvimento das cidades, como corpo citadino ou na sua materialidade, a
propriedade da terra capitalizada, que sustenta um amplo campo de negócios
urbanos, a urbanização em nosso país é crítica (Damiani, 2000, p.30).
Nesse contexto, a parcela pobre da população que habita as cidades é muitas vezes vista
como a responsável pela desordem, pela criminalidade, pela entropia do espaço urbano, quando, na
verdade, é a parcela pobre que mais sofre com este processo. Inclusive, como destaca Santos
(1979), existe um preconceito com as atividades urbanas pobres que acaba sendo muitas vezes
reforçado pela ideologia do planejamento, que acaba se estabelecendo como uma “higienização” do
urbano, com a retirada de moradores pobres dos centros e de áreas revalorizadas por políticas de
planejamento para a refuncionalização de determinadas áreas nas cidades. O espaço urbano dos
países pobres é, deste modo, planejado e constituído apenas para alguns, ganhando caráter de
espaço corporativo e fragmentado, pois não atende aos interesses de todos (Santos, 1990). Desta
forma é que a periferia, desordenada e ausente da presença do poder público, se avoluma nas
grandes cidades, que, aliás, acabam funcionando como um depositório da população pobre e das
atividades econômicas pobres e mais simples.
5. A GRANDE CIDADE COMO REFÚGIO DOS POBRES
Fragmentada, mas portadora de um dinamismo econômico maior, as grandes cidades, e
principalmente as metrópoles brasileiras, ao mesmo tempo comportam as atividades modernas e
permitem uma manutenção do circuito pobre da economia (Santos, 2004).
Contraditoriamente, é na metrópole, que ao mesmo tempo coexistem as atividades de um
setor moderno da economia, já denominado por alguns de setor quaternário (Almeida, 2003), que
envolve a gestão da informação, as atividades de marketing e propaganda e de consultorias,
geradoras de um número limitado e especializado de empregos que beneficia a poucos. Mas estas
mesmas metrópoles também acabam abrigando as atividades simples e pouco intensas em capital
que Milton Santos denominara, na década de 70, circuito inferior da economia urbana.
Entre as décadas de cinqüenta e setenta do século passado a população das metrópoles
brasileiras cresce de modo mais rápido do que a população total da nação (Almeida, 2003, p.214).
Este processo de metropolização (Santos, Silveira, 2001) dará a característica da urbanização
brasileira no período.
O fenômeno de macrourbanização e metropolização ganhou, nas últimas décadas,
importância fundamental: concentração da população e da pobreza, contemporânea
da rarefação rural e da dispersão geográfica das classes médias, concentração das
atividades relacionais modernas, contemporânea da dispersão geográfica da
produção física (...) (Santos e Silveira, 2001, p.206).
É também neste período de crescimento das metrópoles, com significativa centralidade de
São Paulo como metrópole nacional, que estas vão ganhando novas características. De metrópole
industrial São Paulo transforma-se, nos anos noventa, em metrópole “relacional” ou
“informacional”, onde a concentração das atividades de comando da produção, das finanças e da
informação encontra seu ponto de difusão para o território como um todo (Santos, Silveira, 2001).
O próprio espaço metropolitano é remodelado (conjunto de infraestruturas e sistemas de
comunicação) em áreas específicas, para que as atividades modernas possam ser adicionadas ao
território. No entanto, “Tais adaptações ao moderno representam lógicas distantes, que incidem
5
sobre subáreas privilegiadas do organismo urbano, mas cujo custo é verdadeiramente social. Toda a
cidade sofre os resultados desse processo aumentando os graus de pobreza” (Silveira, 2005, p.159).
As metrópoles tornam-se, deste modo, lugares de coexistência entre as atividades de mais
alto nível de capital (serviços modernos, sedes de empresas, centros difusores de informação e das
idéias, etc.), mas convive com múltiplos setores de uma economia pobre, abrigando milhares de
subempregados e desempregados, processo este que Milton Santos denomina de involução
metropolitana (Santos, 1994).
Palco onde as desigualdades sociais se revelam de maneira mais expressa, a metrópole
brasileira muda não só quantitativa, mas, sobretudo qualitativamente. Portadora de lógicas e de
racionalidades diferentes, centro da acumulação e gestão do capital para as grandes empresas
nacionais e multinacionais e lugar de resistência e luta pela reprodução da vida para um enorme
contingente de pobres, é na metrópole que se instala a contradição e de onde emerge a tomada de
consciência do processo de produção das desigualdades a partir mesmo do nítido confronto de
classes. Assim, a metrópole é portadora da universalidade dos processos sociais, onde o urbano,
deste período presente, como destaca Damiani, sintetiza o momento crítico da história (2000, p.30).
Com o aumento do número de pobres, subempregados e desempregados, ocorre,
concomitantemente, uma degradação das condições de vida e do espaço urbano nas grandes
cidades, onde mais uma vez o aumento exponencial das periferias e das favelas é fenômeno
marcante.
A sobrevivência no lugar de moradia e também na busca pelo trabalho é uma constante entre
a parcela mais pobre da sociedade, que é excluída de direitos básicos pela habitação, educação e
saúde3. Assim, Almeida (2003, p.221) adverte que na grande cidade, milhares de pessoas e firmas
pobres necessitam a cada dia formular novas estratégias que garantam a sua sobrevivência. O
espaço metropolitano que acolhe a população pobre é o mesmo que lhes impõe uma série de
restrições à vida uma digna.
6. PARA COMPREENDER A POBREZA URBANA NOS PAÍSES POBRES:
A ATUALIDADE DA TEORIA DO “ESPAÇO DIVIDIDO”
Durante a década de setenta do século passado, muitos foram os pesquisadores, de
diversas áreas do conhecimento, que se preocuparam com o problema da pobreza em geral e de
forma especial à pobreza urbana. Uma teoria formulada pelo do geógrafo brasileiro Milton Santos
destaca-se pela contribuição na tentativa de compreender a economia que se desenvolve no espaço
urbano dos países pobres4 (2004).
Santos reconhece a existência, no interior do espaço urbano dos países subdesenvolvidos,
de dois “circuitos da economia” – o circuito superior, formado pela economia urbana rica e intenso
em capital, e o circuito inferior, típico das atividades pobres da economia.
De modo simplificado, podemos distinguir os dois circuitos da seguinte maneira, “(...) o
circuito superior é constituído pelos bancos, comércio e indústria de exportação, indústria urbana
moderna, serviços modernos, atacadistas e transportadores” e o circuito inferior como sendo aquele
“(...) constituído essencialmente por formas de fabricação não-‘capital intensivo’, pelos serviços
não-modernos fornecidos ‘a varejo’ e pelo comércio não-moderno e de pequena dimensão” (2004,
p.40). A existência destes dois circuitos é sobretudo produto das diferenças qualitativas e
quantitativas de consumo entre ricos e pobres na cidade, visto que nem toda a sociedade possui um
acesso amplo e constante à todos os tipos de bens e serviços (Santos, 1979, p.37).
3
A questão do emprego é emblemática. Em 1996, apenas 50,39% dos habitantes das regiões metropolitanas brasileiras
trabalhavam com carteira assinada, porcentagem que se mantêm praticamente igual nos dias atuais, refletindo a
precariedade das relações de trabalho nas grandes cidades brasileiras (ALMEIDA, 2003).
4
A teoria encontra-se sintetizada no livro “O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana nos países
subdesenvolvidos”, publicado pela primeira vez em 1979 (Rio de Janeiro, Francisco Alves), com nova edição em 2004
(São Paulo, Edusp).
6
Os pobres não tem acesso a um grande número de mercadorias modernas. Os mais
pobres só podem obter bens de consumo corrente através de um determinado
sistema de distribuição frequentemente complementado por um mecanismo de
produção igualmente específico. Esse sistema surge em resposta às condições de
pobreza em que vive uma grande parte da sociedade (Santos, 1979, p.37).
Caracterizando os dois circuitos como subsistemas interdependentes na economia urbana,
Santos (2004) reconhece que existe uma subordinação do circuito inferior frente ao circuito
superior, visto que os recursos públicos destinam-se claramente, e de forma quase exclusiva, à
economia dominante, tanto no que diz respeito à dotação das infra-estruturas como do crédito. Ao
mesmo tempo, a economia informal processada no interior do circuito inferior compete e é
combatida pelo circuito superior. “As atividades do circuito superior apóiam-se direta ou
indiretamente na ajuda governamental, enquanto as do circuito inferior, ao contrário, não contam
com tal apoio; e em muitas cidades são até perseguidas, como é o caso dos vendedores ambulantes”
(Santos, 1979, p.42). Assim, como descreve o autor,
(...) a provável função essencial do circuito inferior é difundir o modo capitalista de
produção entre a população pobre através do consumo, e absorver para o circuito
superior a poupança e a mais-valia das unidades familiares, por intermédio da
máquina financeira, de produção e de consumo (Santos, 1979, p.57).
A caracterização da pobreza no meio urbano dos países subdesenvolvidos elaborada por
Milton Santos se mostra extremamente atual até o presente. A contribuição maior foi, além do
reconhecimento da existência dos dois circuitos, a compreensão de que os pobres, ainda que
dependentes do circuito superior da economia, vivem à custa de uma economia que envolve
basicamente os próprios pobres.
Envolvendo tanto as atividades simples, “não-capital intenso” (Santos, 2004), da economia
formal como também as atividades informais, o circuito inferior se mostra presente e se prolifera no
espaço das cidades brasileiras (principalmente das grandes cidades) no período atual. É
principalmente através do trabalho informal e das relações trabalhistas precárias, cada vez mais
crescentes no território brasileiro atual, que as grandes cidades acolhem e oferecem subsistência à
classe pobre, constituindo-se como espaços onde há uma pluralidade intensa de classes sociais, de
capitais e de diversas racionalidades de uso.
Mais uma vez, é na “região concentrada” do território brasileiro onde se concentra o maior
número de empresas informais com atuação no espaço urbano, com destaque para os estados de São
Paulo e Minas Gerais, responsáveis, respectivamente, por 25% e 10,2% do total de empresas
informais do território brasileiro no ano de 2003 (Figura 1).
7
Figura 1. Empresas informais urbanas no Brasil – Participação por Unidade da Federação (2003).
7. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pobreza, e especificamente a pobreza urbana, ainda são, de certo modo, pouco estudadas
pela geografia brasileira. A produção e os estudos mais significativos foram, a nosso ver, os
realizados por Milton Santos na década de setenta, sendo que poucos outros trabalhos foram
desenvolvidos nas décadas seguintes. No entanto, a temática se mostra sobremaneira atual, e carece
de novas investigações que se preocupem com as dinâmicas recentes do problema da pobreza no
Brasil contemporâneo. A diferença atual reside no fato de que hoje, neste período de globalização, a
pobreza é estrutural5 (Santos, 2000).
Como pudemos observar, a pobreza urbana no Brasil acompanha o processo de
urbanização e mesmo é aprofundada devido ao caráter de rapidez com que o processo de
urbanização se realiza no território brasileiro. O crescimento das metrópoles e o aumento da
população pobre e da periferização nestes grandes aglomerados urbanos constituem questões
privilegiadas para o desenvolvimento de novos estudos.
5
“Ela [a pobreza] é estrutural e não mais local, nem mesmo nacional; tornada globalizada, presente em toda parte do
mundo. Há uma disseminação planetária e uma produção globalizada da pobreza, ainda que esteja mais presente nos
países já pobres. Mas é também uma produção científica, portanto, voluntária de pobres da dívida social, para a qual, na
maior parte do planeta, não se buscam remédios” (Santos, 2000, p.69).
8
É na grande cidade, aliás, que a pobreza se materializa de forma mais marcante, e que a
população pobre encontra abrigo para a reprodução das atividades da economia simples que garante
as ações de sua subsistência. O espaço urbano das grandes cidades, pela sua própria organização,
denuncia as carências e a situação crítica em que se encontra a sociedade brasileira atual. Também
nesse sentido, o circuito inferior da economia urbana nas grandes cidades é ainda um tema de
extrema importância e atualidade para a compreensão do espaço e da economia urbana no Brasil
contemporâneo, visto que garante a existência do emprego e promove oportunidades para a
população pobre.
Como adverte Silveira (2005, p.142), a pobreza necessita ser reconhecida menos como um
resultado indesejado e mais como uma dívida social. Esta nos parece ser uma dimensão de análise
que os novos trabalhos poderiam privilegiar. As grandes cidades brasileiras têm, ao longo dos
últimos anos, conhecido a organização de uma série de movimentos populares que lutam entorno de
políticas que garantam, por exemplo, o acesso à moradia nas cidades. O Movimento dos Sem Teto,
inspirado no MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e organizado na cidade de São Paulo
exemplifica este processo. É a partir da ação destas classes historicamente marginalizadas da
sociedade que a nação brasileira como um todo poderá tomar consciência do processo de alienação
que orienta tanto a sociedade quanto o espaço injustos.
REFERÊNCIAS:
ALMEIDA, Eliza, 2003, O processo de periferização e uso do território brasileiro no atual período
histórico. In: SOUZA, Maria Adélia Aparecida de (org.) “Território Brasileiro: Usos e Abusos”.
Cap. 14. Territorial: Campinas. p.213-239.
BECKER, Bertha, 2006, “Amazônia. Geopolítica na virada do III milênio”. 2ª ed. Rio de Janeiro:
Garamond Universitária.
CORRÊA, Roberto Lobato, 2001. Processos espaciais e a cidade. In: “Trajetórias Geográficas”. 2ª
ed. Cap.5. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, p.121-143.
DAMIANI, Amélia Luiza, 2000, A metrópole e a indústria: reflexões sobre uma urbanização
crítica. “Terra Livre”. São Paulo, n. 15, p.21-38.
SANTOS, Milton, 1979, “Pobreza Urbana”. São Paulo: Hucitec.
_____. 1990, “Metrópole corporativa fragmentada. O caso de São Paulo”. São Paulo: Nobel.
_____. 1994, “A urbanização brasileira”. São Paulo: Hucitec.
_____. 2000, “Por uma outra globalização. Do pensamento único à consciência universal”. Rio de
Janeiro: Record.
_____. “O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos”,
2004 [1979], 2ª ed. São Paulo: Edusp.
SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Pequenas Empresas), 2005, “Economia Informal
Urbana”. SEBRAE: Brasília, 2005.
Souza, Marcelo Lopes de Souza, 2005, Clima de guerra civil? Violência e medo nas grandes
cidades brasileiras. In: ALBUQUERQUE, Edu Silvestre (org.) “Que país é esse?” Pensando o
Brasil contemporâneo. São Paulo: Globo, p. 101-140.
9
Download