REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ® A punição de condutas ligadas à superstição em sociedades de caráter fortemente teocrático Resumo: Este trabalho tem por escopo procurar as razões que levaram a humanidade a coibir a prática de condutas ligadas à superstição em sociedades de caráter fortemente teocrático. Inicialmente, o trabalho abordará as sociedades mesopotâmicas, consideradas os primeiros núcleos de civilização da humanidade e cujas codificações já traziam a previsão de punição para as práticas ligadas à superstição, como bruxaria e feitiçaria, que em regra eram castigadas com a mais severa das penas: a morte. Tal situação encontrou eco, milênios mais tarde, nas perseguições dos hereges pelo Santo Ofício, tribunal concebido pela Igreja Católica visando punir, entre outros, os acusados de bruxaria e feitiçaria. Desta forma, o presente trabalho pretende analisar as sociedades mesopotâmicas (primeiros núcleos de civilização da História) e seus códigos, assim como o contexto histórico e as principais obras relativas à Inquisição, com ênfase nos procedimentos adotados em Portugal e na Espanha, buscando elucidar a série de razões que levou sociedades tão distintas temporalmente a perseguir de maneira implacável os praticantes de bruxaria, feitiçaria e outras condutas ligadas à superstição.[1] Palavras-chave: superstição, proibição, sociedades mesopotâmicas, Inquisição. Abstract: This paper aims to look for the reasons that led mankind to hinder the practice of superstition-related behaviors in societies with strong theocratic characteristics. Firstly, the paper will address the mesopotamic societies, which are considered to be the first civilization cores of mankind and whose codifications already had punishing previsions for superstition-related practices such as sorcery and witchcraft, behaviors that were, usually, chastised with the most severe of the penalties: the death. Such situation echoed millenniums later in the heretic persecutions performed by the Sanctum Officium, a court conceived by the Catholic Church aiming to punish, among others, those accused of sorcery and witchcraft. In this sense, the present paper intends to analyze the mesopotamic societies (the first civilization cores in History) and their codes, as well as the historic context and the main works regarding the Inquisition, emphasizing the procedures adopted in Portugal and Spain, trying to elucidate the reasons that led societies with such a time gap to pursuit in a ruthless way those who practiced witchcraft, sorcery and other superstition-related behaviors. Keywords: superstition, prohibition, mesopotamic societies, Inquisition. Sumário: Introdução; 1. A Punição de Condutas Ligadas à Superstição na Mesopotâmia e a Manutenção do Regime Despótico; 1.1 Introdução ao Tema; 1.2 Características Gerais da Mesopotâmia ; 1.3 A Proibição da Prática de Bruxaria, Feitiçaria ou de Condutas Ligadas à Superstição na Antigüidade Oriental; 1.3.1 O Código de Ur-Nammu; 1.3.2 O Código de Hamurábi; 1.3.3 Leis da Assíria Central; 1.3.4 Leis Neobabilônicas; 1.3.5 Leis Hititas; 2 A Inquisição; 2.1 A passagem do Império Romano para o Feudalismo; 2.2 O Estabelecimento do Regime Feudal e o crescimento do poder da Igreja; 2.3 A ameaça à hegemonia católica e o início da perseguição; 2.4 A parceria entre Igreja e Estado; 2.5 O processo Inquisitorial;2.5.1 Do Procedimento do Santo Ofício em Geral; 2.5.2 O início do processo: a acusação, a denúncia e a inquisição ; 2.5.3 As Testemunhas;2.5.4 O Interrogatório do Acusado; 2.5.5 As Defesas do Acusado;2.5.6 A Tortura;2.5.7 A Absolvição; 2.5.8 Das Penas; 2.6 Considerações Finais; Conclusão; Referências Bibliográficas. INTRODUÇÃO “Em todas as partes onde os documentos à disposição dos historiadores do Direito permitem remontar às fontes de nossas instituições, constata-se, de fato, que o nascimento das obrigações jurídicas é estreitamente ligado às crenças mágicas ou religiosas. Estas possuem, freqüentemente, uma origem bem anterior à edificação do Direito. Quando as sociedades humanas começam a se organizar para consolidar a estrutura social, os laços coletivos são, como disse Huvelin, ainda muito frágeis para conectar de maneira sólida as vontades; são os ritos religiosos que fornecessem ao Direito a sua força primeira” (DECUGIS, 1946, p. 140). Ao estudar a evolução histórica do poder punitivo em diversas civilizações, percebe-se, destarte, a presença abundante de elementos supersticiosos, mágicos e religiosos. Conforme as palavras de Decugis, estes fenômenos antecedem, em regra, a construção do Direito e, obviamente, influenciaram sua gênese e sua aplicação, razão pela qual seu estudo se torna imprescindível. A produção legal de diversas civilizações é testemunha desta afirmação: mesopotâmicos, egípcios, hebreus, ou romanos, são apenas exemplos de povos têm em comum a presença, em seus ordenamentos jurídicos, de elementos ligados à superstição, à feitiçaria e à religião. Embora a presença da superstição nos códigos da antiguidade seja considerável, o objeto de estudo deste trabalho se limitará, entretanto, à análise dos povos mesopotâmicos e, posteriormente, à Inquisição, com ênfase nos procedimentos adotados em Portugal e na Espanha. A razão da escolha destes limites se fundamenta, inicialmente, no fato de a Mesopotâmia ter sido o primeiro núcleo civilizatório da humanidade, ou seja, a terra compreendida entre o rio Tigre e o Eufrates foi a primeira a ver florescer, em seu solo, estruturas sociais e políticas organizadas em torno de um poder central e, já no primeiro código que se tem notícia no mundo – o código de autoria do soberano de Ur, Ur Nammu – existe a previsão de sanções para práticas ligadas à superstição, como a feitiçaria, além da utilização de ordálias. Tal realidade se reflete nos ordenamentos dos demais povos mesopotâmicos, como os amoritas do notório soberano Hamurábi, os belicosos assírios, os caldeus ou neobabilônicos e, finalmente, nos hititas, sociedade considerada de transição entre mesopotâmicos e gregos. A análise dos institutos jurídicos destes povos é, portanto, essencial para a compreensão da evolução do poder punitivo do Estado e de sua ligação com a religião e, malgrado a escassez de fontes acerca do legado destas civilizações, o presente estudo buscará elucidar a razão da farta presença de sanções para crimes ligados à superstição nestas sociedades. A Inquisição – em especial o processo inquisitorial adotado em Portugal e na Espanha - segundo objeto de análise do presente trabalho, foi selecionada em razão de ter sido a mais explícita amostra de repressão às condutas relacionadas com a superstição ou de caráter considerado “mágico” que a História já observou. A notória caça às bruxas perpetrada pela Igreja Católica Apostólica Romana, através dos inquisidores e do Tribunal do Santo Ofício, foi só uma das inúmeras manifestações repressivas praticadas em nome da chamada “unidade da fé”, denominação que serviu para justificar também a perseguição a todos aqueles que fossem suspeitos de nutrir simpatia por qualquer outro culto ou religião, discordância com os ditames papais, serem apenas desafetos pessoais das autoridades eclesiásticas e, enfim, todos aqueles que significassem uma ameaça à hegemonia do poder da Igreja. Os hereges, denominação que compreendia todos aqueles que discordavam (ou apenas fossem acusados de discordar) dos dogmas da fé católica, submetidos a um processo inquisitorial parcial e injusto, eram privados de seus bens, torturados e, não raro, mortos sob acusações relacionadas à superstição, como adoração do diabo, veneração a outro deus, bruxaria, maldições, etc. Por trás de tão severas repressões, cujas manifestações se deram em sociedades tão distintas, parece haver um motivo bastante semelhante: a manutenção do poder nas mãos das classes dominantes, representadas, nestas sociedades de caráter fortemente teocrático, pelo soberano mesopotâmico que era apoiado pelas classes sacerdotais ou pela aliança entre os reis católicos e o Papa. Em ambos os casos, a fé parece ter servido de pretexto para a dominação, e a punição de práticas supersticiosas se transforma em um meio de controle dos dissidentes, assegurando a conservação do poder nas mãos das classes dominantes. “Na Mesopotâmia de outrora, os grandes impérios guerreiros eram, à época de seu esplendor, governados por déspotas ferozes que eram objeto de um culto religioso. O célebre conquistador Sargão foi endeusado por seus súditos. Depois dele, Hamurábi, Samsoulouinia, e outros ainda, foram também reis-deuses, adorados como tais pelos súditos. Os soberanos babilônicos fingiam descender dos deuses. Em uma grande inscrição do rei Nabucodonossor, lê-se: O deus Bal me criou, o deus Marduk, que me gerou, depositou ele mesmo o germe da minha vida no seio de minha mãe.” Henri Decugis 1 A PUNIÇÃO DE CONDUTAS LIGADAS À SUPERSTIÇÃO NA MESOPOTÂMIA E A MANUTENÇÃO DO REGIME DESPÓTICO No primeiro capítulo do presente trabalho, abordaremos a punição de condutas ligadas à superstição nos povos mesopotâmicos, relacionando tal situação com a manutenção do poder nas mãos dos soberanos despóticos, garantindo a vigência do status quo e inibindo dissidências. Inicialmente, será feita a introdução e contextualização do tema, além de uma descrição das sociedades objeto de análise. Posteriormente, passaremos ao exame dos grandes códigos da Antiguidade Oriental, com ênfase nos dispositivos que previam a punição de condutas ligadas à superstição. 1.1. Introdução ao Tema Há cerca de um século atrás, não se conhecia, dos direitos da antiguidade, senão o direito romano, o direito grego e o hebraico( GILISSEN, 2001). As descobertas arqueológicas e a publicação de documentos jurídicos do chamado Direito Cuneiforme- nome que se refere à escrita utilizada na redação dos códigos mesopotâmicos- são bastante recentes, e, portanto, compreensivelmente são escassas as obras que abordem o assunto. Entretanto, malgrado a insuficiência de publicações que contemplem o estudo aprofundado do direito cuneiforme, foi a Mesopotâmia o país que conheceu as primeiras formulações de direito de que se tem notícia (GILISSEN, 2001). As civilizações mesopotâmicas, primeiras organizações civilizadas do mundo (VICENCTINO, 1997), apresentam uma significativa quantidade de códigos e leis, denotando uma estrutura organizada em torno de um poder central forte, com normas que contemplavam uma miríade de situações. Embora o mais conhecido sistema de normas da antiguidade oriental seja o Código de Hamurábi, muitas outras obras importantes foram produzidas na região localizada entre o rio Tigre e o rio Eufrates, traduzindo as peculiaridades de cada povo e os conflitos mais significativos em cada sociedade. As leis de Ur-Nammu, soberano da cidade suméria de Ur, as leis de Lipit-Ishtar, rei de Isin, as leis do reino de Eshnunna, as compilações do período neobabilônico e as leis hititas são apenas exemplos da espantosa produção legal da Ásia Menor que, pouco a pouco, vem sendo restaurada e decifrada através do esforço dos arqueólogos. O conhecimento dos caminhos que a humanidade percorreu na evolução histórica do direito- e em especial, aqui, do poder punitivo- é, portanto, fundamental para a compreensão do desenvolvimento das sociedades humanas, permitindo que, ao contemplar tal trajetória, possa-se refletir melhor sobre a relação entre o Estado e o poder punitivo nos dias de hoje. Desde o primeiro contato com legado destas civilizações, pioneiras na história, percebe-se claramente a abundante presença de elementos ligados à superstição, feitiçaria ou bruxaria, presente em grande parte das codificações da Mesopotâmia e da Ásia Menor. Ora reprimindo as condutas ligadas ao divino e ao sobrenatural, ora utilizando-se de tais elementos para determinar a culpabilidade ou mesmo a pena do acusado, o Estado preocupa-se com tais manifestações desde os primórdios da Civilização. Segundo as palavras de Decugis, “Constatamos (...) a influência extraordinária das crenças mágicas e religiosas dos homens de outrora sobre a origem e o desenvolvimento das instituições jurídicas. Estas crenças penetram toda a história do Direito, quer se trate do Direito Penal (...), do Direito de Família, da propriedade ou do contrato, encontramos por toda a parte o substrato mágico e sagrado” (DECUGIS, 1946, p. 44). O mesmo autor torna a salientar a importância e a magnitude alcançadas pelo crime de feitiçaria na antigüidade: “Os povos selvagens, em sua maioria, não ultrapassaram este estágio e consideravam unanimemente o crime de feitiçaria como o mais grave de todos. Ele é também, crêem estes povos, o mais freqüente. Todos os eventos infelizes que sucedem: doença acidental, epidemia, morte por acidente, seca, inundação, relâmpago, perda de colheita, aborto de mulheres ou animais, chegada súbita de gafanhotos ou outras calamidades atingindo seja um indivíduo determinado, seja a tribo inteira, não são jamais atribuídos por eles a causas naturais, mas invariavelmente à ação hostil dos espíritos, Procura-se quem poderia tê-los atraído, pois é necessário achar um culpado. Muito freqüentemente, o feiticeiro é acusado de ter provocado a intervenção dos espíritos, e ele é imediatamente levado à morte. Seus malefícios tão perigosos que são realizados em segredo, geralmente à noite. Freqüentemente, eles colocam em perigo não somente a vida de um indivíduo cuja morte o feiticeiro deseja, mas amiúde também a vida de todos os habitantes do vilarejo ou da tribo. Encheriam-se volumes inteiros caso se quisesse descrever o imenso papel desempenhado pelo crime imaginário de feitiçaria na história da humanidade.” (DECUGIS, 1946, p. 150-1, Grifo nosso) Torna-se essencial, portanto, a análise dos institutos direcionados à bruxaria, à feitiçaria ou a algum tipo de superstição, especialmente aqueles presentes nos códigos mesopotâmicos, precursores no mundo, para que se alcance um melhor entendimento e uma compreensão mais abrangente acerca do poder punitivo do Estado e de suas relações de poder. Desta forma, o presente capítulo abordará a presença de elementos vinculados à superstição, bruxaria e feitiçaria nas codificações da Mesopotâmia e da Ásia Menor, buscando esclarecer a finalidade de tais previsões. Inicialmente, será esboçada uma contextualização da sociedade mesopotâmica, com seus caracteres sociais mais relevantes, visando uma compreensão mais ampla dos institutos, frutos do desenvolvimento destas sociedades, que serão analisados. Em seguida, abordar-se-á especificamente a punição de condutas ligadas à superstição nas sociedades mesopotâmicas, com ênfase nas previsões legais de punição de tais condutas, assim como os institutos nos quais práticas ligadas à superstição são fator primordial para determinar a culpabilidade ou a pena do acusado, buscando-se explicar a razão de tais previsões. 1.2 Características Gerais da Mesopotâmia Destarte, é fundamental dedicar algumas linhas a um esboço da estrutura social e à história dos povos da Mesopotâmia, nome que significa, literalmente, “entre rios”, designação conferida pelos gregos à região compreendida entre o rio Tigre e o Eufrates (MELLO, 1985), que viu florescer em suas terras as primeiras civilizações de que se tem notícia. Situada em um ponto de passagem entre o Oriente Próximo e o planalto do Irã, a região foi marcada pelas invasões de outros povos, cuja ocupação é traço marcante na evolução política e social da civilização mesopotâmica (MELLO, 1945). Por volta de 3.500 a.C, inicia-se a povoação da parte sul da Mesopotâmia, conhecida como Suméria, área que corresponde, nos dias de hoje, ao Iraque. As terras sumérias tinham sua fertilidade assegurada pelas enchentes periódicas dos rios Tigre e Eufrates, o que possibilitou a fixação dos grupos humanos e o desenvolvimento da agricultura. É neste local que, pouco a pouco, começam a ser erigidas inúmeras cidades-estado, como Ur, Uruk, Lagash, Nipur, Eridu, Adab, Kish e Larsa, povoados murados com economia e governantes próprios, que disputavam o domínio da região. As estruturas sociais estabelecidas nas cidades-estado sumérias serviram de base para os demais povos que se instalariam, séculos mais tarde, na Mesopotâmia, como os acádios, oriundos do norte e do centro da Mesopotâmia, cujo rei Sargão I logrou, por volta de 2.300 a.C., dominar as cidades sumérias e unificar o centro e o sul da Mesopotâmia; os amoritas, que destruindo o Império Acadiano, foram responsáveis pela construção da cidade da Babilônia, tendo como expoente o rei Hamurábi, fundador do Primeiro Império Babilônico; os assírios, civilização que construiu um Estado fortemente militarizado, cujas conquistas incluíram o reino de Israel e o Egito; e, finalmente, os caldeus, também conhecidos como Segundo Império Babilônico, a última grande civilização mesopotâmica, conquistada por Ciro I, rei da Pérsia, em 539 a.C (VICENTINO, 1997). A cultura suméria tornou-se, portanto, a cultura comum de todo o Oriente Próximo (GIORDANI, 1969), fazendo com que os demais povos agregassem, em maior ou menor grau, suas características, como a escrita cuneiforme, e, principalmente, o caráter teocrático desta civilização. Assim, muitas considerações feitas pelos estudiosos acerca da civilização suméria são também aplicáveis aos demais povos mesopotâmicos. A configuração social e econômica das civilizações mesopotâmicas era bastante semelhante, denotando uma estrutura produtiva que “(...) inseria-se no modo de produção asiático, tendo a agricultura como atividade principal e a população submetida a um regime de servidão coletiva. A unidade econômica da cidade-estado ou império dependia do templo, eixo da religião, e dos sacerdotes, que atuavam como elo de ligação entre a população e a autoridade política, o patesi ou o imperador. Como as terras pertenciam aos deuses, os seus representantes (políticos e religiosos) administravam essas terras e dominavam camponeses, artesãos, soldados e serviçais menores, obrigados a produzir, defender e a trabalhar nas obras públicas” (VICENTINO, 1997, p. 35). O poder, tanto nas cidades-estado sumérias como nos demais povos mesopotâmicos, encontrava-se nas mãos de governantes chamados de patesi [2], que assumiam o papel de conexão entre o povo e o deus protetor da cidade, característica que, somada à agricultura baseada nas enchentes dos rios, confere às civilizações mesopotâmicas a classificação de impérios teocráticos de regadio. Assim, na Mesopotâmia, “acima das classes sociais [...] estava o rei ou governador da cidade. O rei era considerado “vigário” da divindade, isto é, intermediário entre o deus-rei e a humanidade: era chefe político e religioso ao mesmo tempo” (GIORDANI, 1969, p. 134). Na ampla base da pirâmide social da Mesopotâmia, encontramos os camponeses, artesãos, serviçais menores e alguns escravos, à semelhança da estrutura encontrada em civilizações como a egípcia. A partir destes dados, tem-se o substrato que permitirá a realização, a seguir, de um exame dos dispositivos que determinavam a punição da prática de feitiçaria ou bruxaria presentes em grande parte dos códigos mesopotâmicos. Da mesma forma, executar-se-á uma análise dos possíveis fatores que levaram à repressão de tais condutas, buscando-se, assim, uma compreensão mais profunda e ampla acerca do exercício do poder punitivo nos primórdios da civilização. 1.3 A Proibição da Prática de Bruxaria, Feitiçaria ou de Condutas Ligadas à Superstição na Antigüidade Oriental Punições para a prática de ritos ligados ao sobrenatural estão previstas em todos os grandes sistemas de normas da Mesopotâmia e da Ásia Menor, o que demonstra claramente a preocupação, por parte de seus soberanos, em coibir tais condutas. À primeira vista, o grande esforço por parte do poder central das cidades-estado em coibir condutas ligadas à feitiçaria e à bruxaria parece conflitar com a presença marcante da religião na estrutura social da região, mas uma análise profunda e cautelosa de sua configuração política revela, pouco a pouco, o motivo que levou a uma repressão deveras violenta das práticas supersticiosas na mesopotâmia e na Ásia Menor. A razão para tais proibições parece se fundamentar na estrutura de poder das Cidades-Estado mesopotâmicas, que se classificam, historicamente, como governos teocráticos. As Cidades-Estado da Baixa e Média Mesopotâmia como Ur, Uruk, Lagash e Nipur eram espécies de principados independentes dotados de um regime de coletivismo teocrático, em que o poder estava na mão de assembléias de sacerdotes (GIORDANI, 1969), ou eram governadas por um patesi, que reunia, ao mesmo tempo, as atribuições de sumo-sacerdote e chefe militar absoluto (VICENTINO, 1997). Nestas “sociedades devotadas ao culto dos deuses e dos soberanos” (ALTAVILA, 1963, p. 31) , a religião da região pregava que todas as terras eram de propriedade dos deuses, representativos de fenômenos da natureza, e que era dever da população obedecer às vontades de tais divindades, corporificadas na figura do governante, considerado um intermediário dos deuses. Tal estrutura, reproduzida por todas as grandes civilizações da Mesopotâmia, determinou, na prática, a concentração dos meios de produção, ou seja, das terras cultiváveis, nas mãos do soberano e da classe sacerdotal. Decugis corrobora tal afirmação, estatuindo: “Na Caldéia, onde a civilização foi teocrática por um grande período, as terras pertenciam aos deuses, teoricamente, ao menos. Na verdade, os soberanos dispunham delas. Ao longo do primeiro milênio antes de Cristo, os reis às concederam em tal quantidade aos seus simpatizantes que a maior parte do solo se encontrava na mão dos nobres” (DECUGIS, 1946, p. 149). Esta forte ligação entre o aspecto religioso e força política dos governantes mesopotâmicos já chamava a atenção de Montesquieu que, em 1748, em sua grande obra “Do Espírito das Leis”, já destaca, ao analisar o despotismo oriental, a importância das instituições e da religião na manutenção da forma despótica de dominação (MONTESQUIEU, 1979). Montesquieu já percebia, portanto, que de uma forma ou de outra toda a produção e a economia das cidades-estado mesopotâmicas passavam pelo controle dos templos de sacerdotes, que, além de terem o domínio sobre as terras, decidiam também o destino do excedente de produção. Ao abordar o tema dos impérios orientais, Walter Vieira do Nascimento declara que, “já constituídas em impérios desde milênios da era cristã, pode-se afirmar que nelas (civilizações orientais) o vínculo originário do sacerdócio e do poder se mantém com mais solidez” (NASCIMENTO, 2004, p. 31). Percebe-se que o monopólio da religião significava o controle da população, o poder de dominação sobre camponeses, artesãos, soldados e serviçais, de acumulação de riquezas e, conseqüentemente, qualquer conduta que ameaçasse este monopólio deveria ser coibida. A prática de bruxaria que é condenada na Mesopotâmia e na Ásia Menor deve ser entendida, portanto, como o conjunto de rituais praticados por pessoas não pertencentes à classe sacerdotal, que buscavam obter algo “diretamente” dos deuses, ou que atribuíam a si próprios capacidades extraordinárias, de cura ou de maldição, mas sem o intermédio dos sacerdotes, desafiando, assim, a exclusividade dos templos e seu poder. Tal proibição visava, ainda, deslocar o eixo de poder e autoridade, antes exercidos em âmbito familiar, pelo chefe do grupo ou da tribo, para a figura distante do soberano, que passa a exercer sua potestas sobre os habitantes da cidade. Portanto, os antigos cultos familiares, que fortaleciam a autoridade do chefe do clã, cedem seu lugar a uma “religião estatal” que busca a ordem e a submissão do povo aos desígnios do soberano. “Os Estados militares poderosos e centralizados são constituídos sob a autoridade de um único chefe. Exércitos mais numerosos, fortemente hierarquizados, foram constituídos e lançados à conquista das terras livres e das rotas comerciais. As pequenas comunidades familiares autônomas foram dominadas e perderam sua autonomia freqüentemente. Os cultos privados que os Romanos chamavam sacra privada declinaram. As religiões do Estado os substituíram pouco a pouco” (DECUGIS, 1946, p. 41, Grifo nosso). Karl Marx, em 1853, ao realizar uma análise sobre as colônias britânicas na Ásia, vislumbrou a força desta estrutura de poder que, no passado, se utilizava da religião para exercer sua dominação despótica: “Ora, por mais triste que seja do ponto de vista dos sentimentos humanos ver essas miríades de organizações sociais patriarcais, inofensivas e laboriosas se dissolverem, se desagregarem em seus elementos constitutivos e serem reduzidas à miséria, e seus membros perderem ao mesmo tempo sua antiga forma de civilização e seus meios de subsistência tradicionais, não devemos esquecer que essas comunidades villageoisies idílicas, malgrado seu aspecto inofensivo, foram sempre uma fundação sólida do despotismo oriental, que elas retém a razão humana num quadro extremamente estreito, fazendo dela um instrumento dócil da superstição e a escrava de regras admitidas, esvaziando-a de toda grandeza e de toda força histórica” (MARX, 2007, p. 37). Demonstra-se, portanto, que o domínio das práticas religiosas significava o comando da unidade de produção e o controle dos ânimos da população, submetida, em grande parte, ao regime de servidão coletiva. Desta forma, seria extremamente prejudicial ao interesse das classes dominantes que alguém alegasse ter os mesmos poderes e que pudesse estabelecer contato com os deuses, pois isso significaria o enfraquecimento do poder central e de seu domínio sobre a população. Neste sentido, a presença de punições, de intensidade variada, em grande parte dos códigos mesopotâmicos, demonstra o grau de reprovação que a prática de feitiçaria ou bruxaria sofria pelo poder central, salientando-se, novamente, que “bruxaria’ e “feitiçaria” devem ser entendidas como a prática de atos ligados ao sobranatural fora do controle da classe sacerdotal, que temia a perda do controle da população servil. Para melhor ilustrar a configuração de tal relação de poder, analisar-se-ão, em seguida, alguns dos grandes Códigos da Mesopotâmia e da Ásia Menor. Chamados também de códigos do “direito cuneiforme” (GILISSEN, 2001), estas obras são exemplos da notável produção legal da Mesopotâmia e da Ásia Menor ao longo dos séculos, refletindo as estruturas sociais e o pensamento de suas sociedades. 1.3.1 O Código de Ur-Nammu O direito punitivo da antiguidade deve ser considerado, como exposto anteriormente, sob a mais forte influência da religião (NASCIMENTO, 2004), sendo esta característica traduzida em inúmeros exemplos na mesopotâmia. Desde o código de Ur-Nammu, considerado o mais antigo código de leis de que se tem notícia na história, vislumbra-se a intrínseca relação entre o direito punitivo e a religião presente nas sociedades mesopotâmicas. Ur-Nammu foi o soberano da cidade suméria de Ur, fundador da terceira dinastia desta cidade, iniciando seu próspero reinado iniciou-se em 2.328 a.C (PELLERÓ, 1969). Considerado um grande legislador e conquistador, este soberano deixou como principal legado para a humanidade o mais antigo código de leis de que se tem notícia. Em seu governo, “a civilização sumeriana conhece uma verdadeira renascença” (GIORDANI, 1969, p. 133), com uma notável produção cultural, razão pela qual iniciam-se também os primeiros trabalhos para codificar as leis sumérias. A principal característica atribuída ao Código de Ur-Nammu é seu caráter mais brando, se comparado com outros códigos mesopotâmicos. Neste sentido, Mário Curtis Giordani afirma que “as leis penais dos sumérios foram as mais clementes da mesopotâmia antiga. No Código de Ur-Nammu encontramos a substituição da lei de Talião por dispositivos mais humanos, como multas” (GIORDANI, 1969, p.139). Um claro exemplo da repressão da qual eram vítimas aqueles que ousassem desafiar o poder central através do exercício de práticas religiosas diversas da oficial na sociedade de Ur é transcrito a seguir: “Se um homem acusa outro homem de feitiçaria e ele é levado à provação divina do rio mas é declarado puro, aquele que o levou (o acusador) deve pesar e entregar 3 shekels[3] de prata” (ROTH, 1997, p. 18). A partir da leitura do artigo acima, percebe-se que o “crime” de feitiçaria era considerado tão grave na cidade-estado de Ur que deveria levar à morte do culpado através da sua submissão à ordália da provação divina do rio, que se destinava a apurar a culpa ou a inocência em crimes considerados de maior gravidade, principalmente aqueles que poderiam levar à deterioração da coesão social da comunidade. A utilização das ordálias como prova judicial não foi exclusividade da Mesopotâmia: “muitos povos primitivos recorreram no passado a procedimentos rudes, tais como as ordálias (palavra derivada de Urtheil, julgamento), espécies de testes ou de invocações ao julgamento de Deus”(DECUGIS, 1946, . 145). Esta prática revela um paradoxo, pois, se de um lado o poder central coibia a prática de rituais por pessoas não pertencentes à classe sacerdotal, de outro, muitas instituições mesopotâmicas tinham caráter fortemente ritualístico, mas, recebendo a chancela do Estado, tornaram-se pilares da cultura “oficial” das cidades-estado. Este é o caso, por exemplo, deste aspecto ligado à superstição que, por integrar as práticas adotadas pelo poder central, constituiu a concretização máxima da ligação entre religião e poder punitivo do governante. Presente em quase todas as leis da Mesopotâmia e da Ásia Menor, ícone representativo da prevalência da crença sobre a razão, a ordália da provação divina do rio[4], que consistia na prática de se lançar o suspeito de um crime às águas do rio, é fator peremptório para se determinar a culpabilidade de um acusado. Assim, quando alguém era acusado de um crime, especialmente de um crime ligado à vida ou à honra, essa pessoa era submetida à provação divina do rio, sendo jogada à água. Se saísse com vida, era considerada inocente ou pura, e o acusador devia indenizar o acusado ou até mesmo ser morto. Se o acusado não lograsse êxito, o acusador, em alguns casos, poderia ficar com os bens do falecido. É o caso, por exemplo, da acusação de adultério, que incutia dúvida e desagregação na comunidade. Para sanar o problema, a mulher acusada devia submeter-se à provação divina do rio, provando, assim, sua inocência. Deve-se ressaltar que “às vezes o recurso às ordálias culminava com assassinatos massivos. Este é o caso, por exemplo, já que se tratam de crimes imaginários, dos crimes de feitiçaria, considerados extremamente perigosos. A prova efetiva é, evidentemente, impossível”(DECUGIS, 1946, p. 119). Portanto, culpa e inocência, vida e morte eram decididas com base na crença de que o rio, dotado de poderes divinos, puniria os culpados através do afogamento e deixaria os inocentes viver. “Assim o rio, deus imaginário da lei babilônica punia um crime imaginário através de uma prova ilusória” (DECUGIS, 1946, p.151). Tal determinação encontra previsão nas leis de Ur-Nammu[5], no Código de Hamurábi[6] e nas Leis da Assíria Central[7], explicitando, mais uma vez, um contra-senso, pois, se de um lado o poder central condena a prática de bruxaria, feitiçaria ou outros atos supersticiosos, de outro ele utiliza como “juiz” a crença ritualística de que o rio saberá a verdade sobre acusações que podem levar à morte do réu. 1.3.2 O Código de Hamurábi A coleção de leis que compõe o código de Hamurábi foi compilada ao final do reinado de 43 anos do monarca (1792-1750 a.C.), sexto governante da Primeira Dinastia da Babilônia, e é a melhor e mais bem organizada coleção de leis da Mesopotâmia (ROTH, 1997), razão pela qual é também a mais conhecida. Durante o reinado de Hamurábi “o poder supremo, protegido pelos deuses e exercido por um rei que se considera como um deus, toma a forma de uma monarquia absoluta e hereditária, de inspiração teocrática” (PELLERÓ, 1969, p.130). Em seu extenso prólogo, Hamurábi exorta o juiz a ser imparcial, além de narrar seus feitos e conquistas, enaltecendo suas qualidades. Ao longo de seus 282 artigos, o código aborda temas que vão desde o comércio e matrimônio até roubo e homicídio. A grandiosidade do trabalho de Hamurábi fez-lo ser comparado a Carlos Magno: um grande guerreiro, administrador e legislador (SERRANO, 1963). De acordo com Decugis, “o Código de Hamurábi [...] é testemunho de uma civilização babilônica já bastante evoluída na qual a vingança privada havia desaparecido quase completamente. As origens do direito babilônico são envolvidas por um mistério impenetrável para nós” (DECUGIS, 1946, p.78). O texto presente na legislação do monarca Hamurábi demonstra que a severidade das penas às quais eram submetidos os acusados de feitiçaria não foi exclusividade do código de Ur-Nammu, reforçando a constatação de quão nociva era considerada tal prática em toda a mesopotâmia. O Código de Hamurábi, logo em seu segundo artigo, traz a seguinte determinação: “Se um homem acusa outro homem da prática de bruxaria, mas não consegue trazer provas contra ele, aquele que é acusado de bruxaria deve ir à provação divina do rio, ele deve mesmo ser submetido à provação; se a provação divina do rio o subjugar, seu acusador deve tomar posse legal completa de seu patrimônio; Se a provação divina do rio inocentar aquele homem e ele sobreviver, aquele que o acusou de bruxaria deve ser morto; aquele que se submeteu à provação divina do rio deve tomar posse legal e completa do patrimônio de seu acusador” (ROTH, 1997, p. 41). A morte era, portanto, o destino quase certo daqueles que praticassem bruxaria na Babilônia e, visando coibir de maneira ainda mais efetiva tal conduta, o acusador era “premiado” com o patrimônio do acusado, um incentivo extra à delação. Assim, o poder central cerceava práticas religiosas que pudessem minar a forte influência dos sacerdotes de uma maneira muito efetiva: fazendo com que o repúdio a tal comportamento e sua delação beneficiasse o acusador, instigando o medo e, conseqüentemente, inibindo ainda mais a prática de feitiçaria ou bruxaria. A repressão de condutas ligadas à prática de feitiçaria ou bruxaria acompanhou por um longo tempo a história dos povos da Babilônia, marcando sua cultura de forma considerável, mantendo-se inclusive após a queda do Primeiro Império babilônico que, após a morte de Hamurábi, entrou em decadência devido às rebeliões internas e ondas de invasões de outros povos, por volta de 1750 a. C. (VICENTINO, 1997). Por volta de 612 a.C. o povo caldeu derrotou os assírios e fez da Babilônia, mais uma vez, a capital da Mesopotâmia (VICENTINO, 1997) dando origem ao Segundo Império Babilônico, ou Império Neobabilônico, que ocupou a Cidade-Estado mais de mil anos após Hamurábi. O último povo a ocupar a Mesopotâmia antes de ela ser conquistada por Ciro I, rei da Pérsia, manteve, em suas codificações, a proibição a todos os atos de feitiçaria que pudessem dirimir o poder daqueles que o detinham. 1.3.3 Leis da Assíria Central O que hoje chamamos de “leis assírias” não constitui, em verdade, um texto único e coeso, como um código. Redigidas em diversas épocas, algumas leis assírias datam de antes de Hamurábi, e revelam um direito muito menos desenvolvido do que o da região da Suméria e da Babilônia (GILISSEN, 2001). Tal característica pode ser atribuída ao caráter guerreiro dos habitantes de Assur, mais preocupado com atividades de caráter beligerante e, portanto, dedicados a sua produção legal. A civilização assíria possuía, assim como os demais povos mesopotâmicos, uma concepção teocrática de monarquia, na qual o verdadeiro soberano era o deus Assur, sendo os reis apenas seus sacerdotes (PELLERÓ, 1969). Nas Leis da Assíria Central encontramos uma manifestação ainda mais clara do poder punitivo conferido à classe sacerdotal. Já em seu primeiro artigo, o código assírio traz a seguinte determinação: “Se uma mulher, tanto a esposa de um homem como sua filha, entrar em um templo e roubar algo do santuário e o objeto for encontrado em sua posse ou se foram provadas as acusações contra ela e ela for considerada culpada, deve-se realizar uma “adivinhação”, deve-se inquirir a divindade, ela deve ser tratada como a divindade instruir” (ROTH, 1997, p. 145). É importante ressaltar que a mencionada “vontade” da divindade só era revelada aos membros da classe sacerdotal e aos governantes, em mais uma manifestação de total arbitrariedade por parte do poder centralizado. Dessa forma, cabia à classe dominante decidir, de forma completamente discricionária, qual seria a punição da acusada, justificando seus atos como a obediência à vontade da divindade. Após o declínio da civilização Assíria, a Mesopotâmia assiste à ascensão de um novo império. O povo caldeu, também chamado de neobabilônico, constrói sobre as bases deixadas pelos demais povos uma civilização que tentou levar à Babilônia o resplendor que ela desfrutara nos tempos de Hamurábi. 1.3.4 Leis Neobabilônicas Depois do enfraquecimento e da queda da antiga dinastia babilônica, à qual Hamurábi pertencia, a região foi dominada, durante séculos, pelos assírios. Entretanto, aproximadamente no ano 700 a. C, forças babilônicas e medas retomaram a mesopotâmia, e os caldeus passaram a governar a cidade-estado. Datadas do mesmo período, as leis feitas pela dinastia neobabilônica são um esforço para rivalizar com o legado de Hamurábi, tentando restaurar o esplendor da Babilônia. Infelizmente, apenas 15 artigos destas leis foram preservados, oferecendo uma parca amostra da produção legal desta sociedade. Assim, o artigo 7º[8] das leis Neobabilônicas traz, novamente, vedação à prática de bruxaria ou feitiçaria: “Uma mulher que pratica um ato mágico ou uma purificação ritual contra o campo, barco, forno ou qualquer coisa de um homem... as árvores entre as quais ela pratica o ritual, ela deve dar ao dono do campo o triplo do seu rendimento. Se ela realizar a purificação contra um barco, um forno, ou qualquer outra coisa, ela deve dar o triplo valor das perdas causadas à propriedade. Se ela for pega realizando a purificação contra a porta da casa de um homem, ela deve ser morta” (ROTH, 1997, p. 146). Como se pode perceber, aqui são encontrados elementos diversos dos presentes no Código de Hamurábi. Destarte, enquanto o dispositivo do Código de Hamurábi traz o homem como agente da prática do crime de feitiçaria e, portanto, sujeito à provação divina do rio, as leis neobabilônicas expressamente colocam a figura feminina em seu dispositivo, denotando que, nesta sociedade, a prática de rituais e a ligação com crenças estavam associadas às mulheres. Outra diferença marcante diz respeito à caracterização da conduta do agente, que é muito mais pormenorizada nas leis neobabilônicas do que no Código de Hamurábi. Enquanto as leis do Segundo Império mencionam que a prática de atos contra os meios de trabalho das principais atividades da época (campo, barco ou forno ou fornalha) seria objeto de punição, o Código de Hamurábi não faz tal explicitação, utilizando um conceito extremamente vago (“prática de bruxaria”), que poderia ser interpretado e preenchido conforme a vontade do julgador, dando a este muito mais discricionariedade para punir. Ao definir quais condutas da “feiticeira” deveriam ser objeto de punição, percebe-se uma evolução no sentido de diminuir o poder do julgador, pois, para punir o agente, deve haver subsunção entre a conduta e a norma. A norma determina, ainda, que a feiticeira deva ressarcir em triplo os prejuízos que causar com a prática do “ritual de purificação”. É interessante notar que o artigo utiliza uma preposição de oposição, ou seja, ela pratica o ritual de purificação “contra” algo ou alguém, daí surgindo duas hipóteses, quais são: (i) o “ritual de purificação” significa algum tipo de maldição ou (ii) a lei atribuiu uma conotação negativa ao ritual visando desincentivá-lo, o que deixa transparecer, mais uma vez, o objetivo de coibir qualquer prática capaz de ampliar o conhecimento do povo acerca dos meios capazes de assegurar as formas estabelecidas de exercício de poder e dominação. Finalmente, na leitura do supracitado artigo, encontramos pela primeira vez nos códigos mesopotâmicos, de maneira expressa, a pena de morte para a praticante de feitiçaria quando esta realizar a purificação “contra” a casa do um homem. Aqui, não existe mais a crença de que o rio decidirá quem é culpado e quem é inocente, afogando os primeiros e deixando os últimos saírem com vida de suas águas, e sim a clara previsão da pena de morte como sanção para aquelas que praticassem as condutas previstas no texto da norma. 1.3.5 Leis Hititas A civilização Hitita constitui-se, inicialmente, de pequenos principados que, pouco a pouco, são subjugados pelo rei de Hattusa, cidade que se torna a capital deste reino que, na verdade, se tratava de um “aglomerado de tribos, sempre cobiçando as ricas terras do império vizinho da Babilônia” (ROTH, 1997, p. 148). As escassas informações acerca do direito Hitita estão nas tábuas encontradas em sua antiga capital, Hattusa. O teor destas leis “produz a impressão de um autêntico avanço, sobretudo se comparado ao Código de Hamurábi, muito mais antigo, ou com as leis assírias, quase contemporâneas”[9]. Como o povo Hitita sofreu forte influência cultural dos sumérios[10], suas leis são consideradas o elo entre o direito cuneiforme e o direito grego, e seu conjunto compreende tanto regras de origem consuetudinária como formulações relativamente abstratas de regras jurídicas proclamadas pelo rei [11]. O estudo do direito Hitita fornece, portanto, informações preciosas sobre a transição de um modelo de civilização teocrático, como o encontrado nos povos mesopotâmicos, e uma civilização de cunho mais racional, como a grega. Alguns dispositivos encontrados nas Leis hititas são semelhantes aos encontrados nas leis neobabilônicas. É o caso, por exemplo, do instituto da “purificação”: “Se alguém realizar um ritual de purificação em uma pessoa, ele deve dispor as sobras (do ritual) no entulho de incineração. Mas se ele dispuser-los na casa de alguém, isto é feitiçaria e é um caso para o rei... E ele deve torná-lo ritualmente puro novamente. Se algo ruim acontecer na casa, ele deve torná-la pura novamente. E ele deve compensar quaisquer perdas.”[12] A segunda parte do texto hitita guarda outra semelhança com o direito neobabilônico: mais uma vez, o feiticeiro deve pagar pelas perdas que causar como ritual de purificação. Percebe-se, contudo, que as leis hititas traziam punições mais brandas para os acusados de feitiçaria, o que pode ser explicado pela constituição mais tardia desta civilização na mesopotâmia, quando o poder político começa a se desvincular da religião, além de seu afastamento geográfico em relação às principais cidades mesopotâmicas. Pode-se observar, pela primeira vez nas legislações da antiguidade, a previsão de um julgamento mais racional dos acusados de feitiçaria, que seriam, na sociedade hitita, levados ao tribunal real, e não submetidos à provação divina do rio. O texto legal hitita estatui claramente que “Se alguém molda argila para [uma imagem] (para propósitos mágicos), isto é feitiçaria e é um caso para o tribunal do rei”[13], ou seja, o acusado teria a chance de se defender perante o soberano, não sendo seu destino mais decidido pelas águas do rio. Tal determinação é um claro avanço rumo a uma sociedade menos teocrática e mais racional. É interessante observar que a sociedade hitita preocupou-se também em coibir a prática de feitiçaria por membros da família real. Um edito real restaurado pelos arqueólogos revela que a inquietação com tal questão chegou ao ponto de instaurar uma investigação oficial procurando membros da família real que estivessem desobedecendo à lei. Os acusados deveriam, conforme o texto, serem igualmente submetidos ao tribunal real, e a última parte do edito exorta os cidadãos a não ocultarem tais atividades, mesmo se tratando de um membro da família real. “Edito de Telipinu, §50: Relativamente aos casos de feitiçaria em Hattusa: que continuem as investigações. Qualquer membro da família real que praticar feitiçaria deve ser preso e entregue ao tribunal real. Aquele que não entregá-lo sofrerá conseqüências danosas.”[14] Portanto, mesmo na civilização Hitita, mais distante das civilizações mesopotâmicas tanto geográfica como culturalmente, percebe-se claramente a persistência de uma forte preocupação em punir aqueles que desafiassem o monopólio da religião estabelecido pelos templos, mesmo que os acusados pertencessem à família real. Diante de todo o exposto, constata-se claramente a presença constante de punições, nos códigos da antiguidade oriental, para práticas ligadas à superstição, como bruxaria e feitiçaria. A finalidade a qual almejavam os governantes, ao coibir tais práticas de forma tão intensa, era a manutenção do poder em suas mãos, visto que, em sociedades fortemente teocráticas, como os povos da mesopotâmia, a vontade dos deuses (e, consequentemente, a dos soberanos e da classe sacerdotal) mantinha a população sob seu domínio, obedecendo aos desígnios divinos interpretados pelos governantes. Consequentemente, o controle sobre quaisquer outras manifestações de cunho religioso que não as chanceladas pelo Estado deveria ser implacável, pois aceitar que pessoas comuns, e não os membros da classe sacerdotal ou os governantes, pudessem “estabelecer contato” com os deuses e alegar que também tinham poderes sobrenaturais significaria a paulatina corrosão do poder central, cujo domínio sobre a população perderia pouco a pouco a sua força, baseada no monopólio da religião. Portanto, a extensa gama de normas, nos códigos mesopotâmicos, almejando desincentivar práticas religiosas que não estavam sob o controle do poder central, tinha um motivo deveras pujante para justificar sua existência. Este motivo, ou seja, a manutenção do poder nas mãos de uma classe social, levou inúmeras civilizações, ao longo da história, a coibir determinadas atividades, penalizando seus agentes de forma mais ou menos intensa através dos séculos, com a finalidade precípua de assegurar a manutenção do poder nas mãos das classes dominantes, garantido seu domínio sobre ao restante da população. 2 A INQUISIÇÃO O segundo capítulo do presente trabalho analisará, inicialmente, o panorama histórico e social do qual resultou a instauração dos procedimentos inquisitoriais pela Igreja Católica. Veremos como do desmantelamento do Império Romano surgiu uma ordem estrutural na sociedade européia, dividindo-a hierarquicamente em dois grupos de fácil distinção: aqueles com vasto poder e aqueles com virtualmente nenhum. É nesse contexto que se inserem todas as atrocidades perpetradas pelo tribunal do Santo Ofício, um período de enorme desigualdade social, no qual qualquer instituição capaz de justificar o estratagema da sociedade encontraria adeptos poderosos interessados em manter o status quo inalterado. Além de aliados poderosos, o contato com as culturas orientais acabou por gerar uma vacância espiritual na sociedade européia; a qual, inevitavelmente, deveria ser preenchida. Esse obscuro período da história da humanidade, marcado pela quase total inexistência de direitos e garantias fundamentais, acabou por provar que medo e controle andam de mãos dadas em momentos de grande exploração do homem pelo homem sob o pretexto da unidade da fé. Veremos, a seguir, como esse momento histórico se desenvolveu e os atrozes resultados que o seguiram. 2.1 A passagem do Império Romano para o Feudalismo Durante séculos, o centro de poder no ocidente estabeleceu-se em Roma, capital de um vasto império baseado no modo de produção escravista e nas conquistas militares, com a população estabelecendo-se em centros urbanos ou em suas proximidades. Este sistema, que dominou a Europa e o norte da África por mais de mil anos, começa a ruir frente às inúmeras crises que assolaram Roma desde a morte do imperador Otávio Augusto, em 14. d. C. As lutas pelo poder levaram à instabilidade política, a guerras civis, à corrupção e à desordem política do Império, situação agravada pela anarquia militar instaurada a partir do século III , quando os soldados, classe que desfrutava de enorme prestígio, passaram a levar imperadores ao poder e a destroná-los segundo seus interesses imediatos[15]. Paralelamente, o fim das guerras e a conseqüente diminuição das conquistas levaram à redução significativa do número de escravos, prisioneiros de guerra, comprometendo, portanto, a produção agrícola romana. Os proprietários de terras, agora com poucos escravos para cultivar seus vastos solos, começam a arrendar partes de seus campos para camponeses, determinando a passagem gradual do sistema escravista de produção para uma economia rural de subsistência[16]. O cristianismo, religião combatida pelo Império, ganhava cada vez mais adeptos, que repudiavam a imoralidade que reinava nas altas esferas de poder. Frente ao aumento do número e da influência dos cristãos, o imperador Constantino concede a liberdade de culto à religião que se opunha ao militarismo romano e à estrutura escravocrata, pilares do Império Romano. Portanto “assim que o imperador se converteu ao cristianismo, ele deu à Igreja o apoio precioso da autoridade civil. A jurisdição dos padres tornou-se uma jurisdição temporal cujos progressos foram rápidos e consideráveis. Justiniano terminou por dar plena competência aos padres em matéria criminal para os delitos considerados religiosos ou eclesiásticos”[17]. Coube ao imperador Teodósio, entretanto, tornar o cristianismo a religião oficial de Roma, além de cindir o Império, tornando Constantinopla a capital do Império Romano do Oriente e deixando Roma como a capital do Império do Ocidente. O derradeiro golpe que levaria ao fim do Império Romano do Ocidente foi desferido através das invasões dos povos bárbaros que, aproveitando as inúmeras crises imperiais e a pouca vigilância nas fronteiras, infiltraram-se no território romano e derrubaram, em 476, o último imperador Romano, Rômulo Augusto. Chegava ao fim, no ocidente, uma era marcada pela concentração populacional em centros urbanos, pelo escravismo e pelas conquistas militares, estabelecendo-se, em seu lugar, uma sociedade rural, fragmentada, na qual a Igreja Católica logrou tornar-se a mais influente instituição por aproximadamente mil anos. 2.2 O Estabelecimento do Regime Feudal e o crescimento do poder da Igreja Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, a população abandonou pouco a pouco as cidades, buscando a sobrevivência no campo[18], estabelecendo-se em pequenas vilas auto-suficientes. Este processo de ruralização levou ao estabelecimento do regime feudal no medievo, que se caracterizava por uma base econômica “agrária, não comercial, auto-suficiente e quase totalmente amonetária”[19]. O feudo, unidade econômica de produção, pertencia ao senhor feudal (geralmente um descendente dos chefes tribais germânicos ou um membro do alto clero) que, através de um sistema de suserania e vassalagem, distribuía as terras a outros nobres em troca favores, fidelidade e proteção, gerando uma fragmentação do poder. Além disso, o senhor feudal submetia a população camponesa a um regime de servidão, no qual o servo era preso a terra, tendo seu trabalho explorado em troca da permissão do uso da terra, cujos frutos se destinavam, em grande parte, ao senhor feudal. No topo deste sistema encontrava-se o rei medieval feudal, “suserano entre os suseranos”, primeiro senhor feudal, a quem os demais senhores feudais deviam lealdade, e cujo poder era, de fato, bastante descentralizado. Sobre o estabelecimento do feudalismo no medievo, são esclarecedoras as palavras de Decugis: “Ao tempo do declínio do Império Romano, a terra estava tão sobrecarregada por impostos que os camponeses, arruinados e exaustos, preferiram abandoná-la a continuar a explorá-la. Era necessário impedi-los à força. A partir do reinado de Constantino, uma série de medidas implacáveis procurou prender os camponeses à gleba. Assistiu-se ao desaparecimento da pequena propriedade livre e individual tanto no Império de Bizâncio como no Ocidente latino. Na insegurança geral de uma época tumultuada, os pequenos proprietários e os pobres se colocam voluntariamente sob a proteção de um vizinho poderoso e rico; eles procuravam, por assim dizer, seu patrono, eles se “recomendavam” a ele e, em troca das vantagens que a sua proteção lhes garantem, eles alienavam sua liberdade; eles se tornavam clientes, vassalos deste protetor, e freqüentemente reconheciam a ele um direito de propriedade sobre suas terras. Paralelamente, os grandes proprietários aproveitavam-se de sua força para aumentar seus domínios às custas dos pequenos fazendeiros. E então, ao mesmo tempo em que entre as pessoas criavam-se laços de estreita dependência, enormes domínios se constituíam para o lucro de senhores todo-poderosos. A Igreja tornou-se todo-poderosa aproveitando-se deste movimento. Monastérios foram criados em todas as partes beneficiando-se de doações fundiárias consideráveis feitas por fiéis desejosos de assegurar a saúde de suas almas. Uma quantidade enorme de terras se acumulou nas mãos das congregações religiosas.”[20] Portanto, em um contexto no qual o poder encontrava-se fragmentado nas mãos de diversos nobres, suseranos e vassalos, a Igreja cristã se tornou “a maior instituição feudal do ocidente europeu”[21] e, através de uma consistente estrutura hierárquica e da posição de guardiã da cultura greco-romana, “exerceu a hegemonia ideológica e cultural da época, caracterizada pelo teocentrismo”[22] determinado que, durante séculos, praticamente toda a atividade intelectual se processasse sob sua orientação. Ao contrário da estrutura de poder fragmentada das sociedades feudais, nas quais o rei medieval feudal exercia pouca influência ou autoridade nos domínios dos senhores feudais, a Igreja Católica contava com uma hierarquia rígida na qual o clero estava submetido à autoridade papal. Ademais, em uma sociedade na qual a posse da terra determinava a extensão do poder, a Igreja Católica detinha uma parte considerável das terras cultiváveis, logrando acumular riquezas que, não raras vezes, eram muito maiores do que os tesouros dos príncipes. Domínios tão extensos originaram-se das doações realizadas por fiéis abastados que acreditavam no clero quando este afirmava ser possível usar fortunas terrenas como moeda para comprar benesses celestiais. “Após as invasões germânicas, muitos fiéis, desejando garantir a saúde de suas almas, fizeram doações aos santos por intermédio da Igreja. O clero adquiriu assim imensos domínios fundiários que, ao fim do séc. VII, poderiam ser comparados ao território da Gália. Estas propriedades eclesiásticas eram frequentemente organizadas sob o modelo feudal, através da recomendação, seguindo as idéias da época. Os santos eram considerados pelos doadores como os senhores, os patrões dos quais se busca proteção. A idéia encontrada nestes atos é aquela de um mercado: o doador ouve que, em troca de sua terra, terá certamente um lugar no céu e proteção neste mundo. A Igreja propagou e explorou esta concepção utilitária da religião.” [23] Formam-se, assim, as bases que possibilitaram o estabelecimento da Igreja Católica como único centro de poder organizado, influenciando intensamente todas as esferas da vida no medievo. Contando uma estrutura altamente organizada e com grande parte das terras cultiváveis da Europa em suas mãos, a extensão do poder da Igreja Católica atingiu seu ápice, sobrepujando, muitas vezes, o poder dos reis medievais feudais, que se viam obrigados a obedecer aos ditames do papa sob pena de excomunhão e mesmo de guerra. Um exemplo da extensão deste poder é dado por Will Durant, que afirma: “Essa “República Cristã”, ou esse superestado papal, atingiu o apogeu com o Papa Inocêncio III. No período de dezoito anos (1198-1216), ele forçou todos os monarcas da Europa Latina, exceto Sverrir da Noruega, a reconhecerem-lhe a soberania em matéria de fé, moral e justiça, inclusive o poder de liberar povos inteiros do juramento de obediência para com os respectivos reis. Alguns Estados - Portugal, Hungria, Sérvia, Bulgária, Armênia e até a Inglaterra do rei João - reconheceram-se feudos do papado”.[24] Assim, em um panorama no qual a fé católica era o único poder coeso, em comparação com a fragmentação dos feudos, o monopólio ideológico era fator vital para o exercício do controle da população. Não só os reis medievais feudais encontravam-se em uma posição de submissão aos desígnios papais, como também a população camponesa, através do pagamento de vários impostos, era responsável pela manutenção da opulência na qual viviam os membros do clero, em oposição à situação de miséria que imperava entre os servos da gleba. A Igreja Católica encontrava-se, portanto, em posição incontestavelmente hegemônica até a metade da Idade Média, desfrutando de seus incontáveis privilégios e exercendo sua influência política em quase toda a Europa. 2.3 A ameaça à hegemonia católica e o início da perseguição Entretanto, a hegemonia da fé católica começa a degradar-se, principalmente devido ao fracasso das Cruzadas, convocadas pelo Papa Urbano II em 1095 através do Concílio de Clermont, visando libertar o Oriente Próximo, especialmente Jerusalém, das mãos dos muçulmanos. Após inúmeras batalhas e incontáveis mortes, não só os cruzados falharam em libertar o Oriente Próximo do domínio muçulmano como também entraram um contato com “a riqueza, a ciência, a arte e a sabedoria dos mouros, que despertaram nos cruzados derrotados um ceticismo que logo afligiu a ortodoxia cristã com inúmeras heresias”[25]. Assim, em contato com o desenvolvimento do Oriente, uma civilização que, ao contrário dos reinos medievais feudais, não parara no tempo, os nobres cruzados começam a perceber a estagnação cultural e científica da Europa. Pouco a pouco novas idéias chegavam ao velho continente junto com os cruzados que regressavam, e com elas dúvidas e contestações começam a surgir. Além disso, fato de a Igreja ser dona da maior parte das terras cultiváveis da Europa era alvo de críticas e de inveja, pois, no medievo, só o primogênito herdava as terras da família, ou seja, muitos nobres não possuíam terras ou propriedade alguma, e seus olhos se voltavam para os ricos mansos senhoris da Igreja. A Igreja Católica enfrentava ainda crises dentro de sua própria instituição, pois “a Igreja tornara-se negligente e mundana nas suas atividades. Reinava a simonia, isto é, o abuso do tráfico de dignidades eclesiásticas, e os leigos exerciam uma influência desproporcionada na nomeação de dignitários da Igreja”[26]. Tal realidade, somada ao grande envolvimento de membros do clero em questões como a política e o acúmulo de riquezas, fez surgir no seio da Igreja, por volta do séc. XII, grupos que passaram a pregar a adoção da vita apostólica, ou seja, de uma vida semelhante à de Cristo e de seus apóstolos, baseada em votos de pobreza e em pregações dos Evangelhos. Entretanto, os grandes responsáveis pela difusão da vita apostólica não foram os membros do clero, e sim os leigos, homens e mulheres de todas as classes sociais que “proclamavam o valor absoluto e literal dos Evangelhos, mesmo correndo o risco de colocar em questão as instituições existentes”[27] Portanto, pouco a pouco a unidade da fé mantida pela Igreja foi sendo abalada e, neste sentido, tornava-se imperativo, para a manutenção do vasto poder da Igreja, coibir qualquer atitude que revelasse incerteza na fé católica e em suas pregações e, consequentemente, contestação da autoridade papal. A mais poderosa instituição do medievo não poderia tolerar dúvidas ou qualquer conduta que ameaçasse sua hegemonia, pois isto significaria arriscar o controle do poder econômico, ideológico e político da Europa. Desta forma, dissidentes da fé católica, antes razoavelmente tolerados, começaram a ser perseguidos implacavelmente pela Igreja, pois representavam uma séria ameaça à unidade, ao monopólio da fé nas mãos da Igreja Católica e, consequentemente, ao exercício de seu poder. Perder fiéis significaria comprometer a grande influência política do Papa, diminuir a arrecadação dos pesados tributos que sustentavam a vida soberba dos membros do alto clero e, finalmente, comprometer o domínio exercido pela Igreja em todas as instâncias da vida no medievo. A Igreja Católica, uma “sociedade coercitiva”[28], decide, portanto, que certas diferenças de doutrina e de interpretação da fé católica seriam consideradas heresia[29], sendo o critério para tal enquadramento a sujeição ou não aos ditames papais, ou seja, “na definição de heresia e de herético, o que se considerava crucial era a questão da obediência”[30]. O papa Inocêncio III passa então a ressaltar a importância da manutenção da unidade da Igreja, fazendo “certas concessões a grupos laicos e ordens mendicantes desde que pelo menos a unidade e a autoridade da Igreja fossem aceitas por todos”[31]. Os primeiros a sofrerem as conseqüências desta intolerância foram os cátaros[32] albingenses, membros de uma seita que teve sua origem nos Bálcãs e logo ganhou adeptos entre os nobres na França, especialmente em Montpellier, Narbonne, Marselha, Toulouse e Orléans[33]. De cunho fortemente maniqueísta, esta seita negava a autoridade papal, afirmando que a Igreja Romana era “a prostituta da Babilônia e o papa, o Anticristo” [34] pois, segundo os albingenses, São Pedro jamais fora a Roma e, consequentemente, jamais fundara o papado. O papa seria, portanto, um sucessor dos imperadores, e não dos Apóstolos. Indignados com a opulência da vida dos membros do clero, diziam que, enquanto Cristo vivera na miséria, os bispos, sacerdotes e monges viviam soberbamente, e comparavam-lhes aos fariseus. Tolerados por muito tempo, os albingenses não tiveram a mesma sorte após a ascensão de Inocêncio III ao papado, que viu na seita uma forte ameaça à Igreja. A preocupação do Papa está expressa em uma carta enviada ao bispo de Auch, na Gascônia: “O pequeno barco de São Pedro está sendo atingido por muitas tempestades e balança no mar. Mas o que me atinge mais do que tudo é..., que... Agora surgem, mais desenfreados e prejudiciais do que nunca, ministros que cometem erros diabólicos e que estão seduzindo as almas dos simples. Com suas superstições e mentiras, pervertem o significado da Sagrada Escritura Católica e tentam destruir a unidade da Igreja Católica. Como... Esse erro pernicioso está crescendo na Gascônia e nos territórios vizinhos, nós desejaríamos que vós e os bispos que vos seguem resistísseis com toda a vossa energia. [...] Nós vos damos ordens estritas para destruirdes todas essas heresias e repelirdes da vossa diocese todos os que estiverem contaminados por elas, empregando para isso todos os meios [...] Se necessário, podereis induzir os príncipes e o povo a eliminá-los com a espada.” [35] [Grifou-se] Inocêncio III lançou uma cruzada contra os albingenses, oferecendo indulgência plenária a todos os fiéis que se juntassem a esta guerra. Só na cidade de Béziers, 20 mil homens, mulheres e crianças foram mortos pelos cruzados. Segundo Herculano, “a história da guerra dos albingenses não é senão um tecido de atrocidades praticadas pelos católicos contra os hereges”[36]. Finalmente, em 1227, um acordo põe fim à guerra dos albingenses, mas a Inquisição, “instituição terrível que, juntando ao monstruoso da origem e natureza a demência das suas manifestações e a atrocidade das suas fórmulas, surgiu no seio do catolicismo durante o século XIII, e que veio com o nome de Inquisição ou Sancto Officio, a cobrir de terror, de sangue e de luto quase todos os países da Europa meridional e, ainda, transpondo os mares, a oprimir extensas províncias da América e do Oriente”[37], estava apenas no início. Com o triunfo da ortodoxia, a Igreja não encontrou dificuldade em achar passagens bíblicas que, pregando a morte dos hereges, autorizavam os membros do clero a acabar com seus inimigos ou com qualquer um que ameaçasse sua hegemonia de forma abrupta. Em Deuteronômio, capítulo 13, versículos 6 a 9, encontramos o seguinte texto: “Quando teu irmão, filho da tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu seio, ou teu amigo que te é como a tua alma, te incitar em segredo, dizendo: Vamos e sirvamos a outros deuses! - deuses que nunca conheceste, nem tu nem teus pais, dentre os deuses dos povos que estão em redor de ti, perto ou longe de ti, desde uma extremidade da terra até a outra - não consentirás com ele, nem o ouvirás, nem o teu olho terá piedade dele, nem o pouparás, nem o esconderás, mas certamente o matarás; a tua mão será a primeira contra ele para matá-lo, e depois a mão de todo o povo.” [38] Segundo a passagem acima, adotar qualquer fé que não a católica deveria significar, portanto, a morte para aqueles que se atrevessem a desafiar o poder da Igreja Católica Romana. Era ainda dever de o fiel católico matar impiedosamente qualquer um que professasse outra fé, não importando se este fosse membro de sua família ou seu amigo, fomentando o medo e a intolerância dentro dos núcleos familiares. Em João, capítulo 15, versículo 6, a Igreja encontrou outra passagem que incentivava a intransigência e a inclemência com aqueles que não pertencessem ou se desviassem da fé católica: “Quem não permanece em mim é lançado fora, como a vara, e seca; tais varas são recolhidas, lançadas no fogo e queimadas”[39]. É possível que esta passagem tenha ainda inspirado a tradicional punição das feiticeiras, ou seja, a fogueira. Finalmente, em Êxodo, capítulo 22, versículo 18, pode-se ver claramente que destino estaria reservado às mulheres acusadas de bruxaria, pois o texto dispõe, incontestavelmente, que atitude deve tomar o fiel católico: “Não permitirás que viva uma feiticeira”[40]. Munida de justificativas bíblicas para perseguir e massacrar seus inimigos, a Igreja e os governos católicos passaram a considerar a heresia como uma traição, ou seja, um ataque aos alicerces da ordem social[41], e a perseguição aos hereges toma conta da Europa. Finalmente, em 1233, o papa Gregório IX edita a bula “Licet ad Capiendos[42]”, marco do início oficial da Inquisição ou Sanctum Officium, tribunal que, “sob a autoridade da Santa Sé, foi encarregado inicialmente de perseguir os hereges em todos os países da Cristandade. Ele perseguiu rigidamente seu objetivo durante muitos séculos, sobretudo na Espanha, em Portugal, na França e nos Países-Baixos. Nos séculos XI e XII a Europa estava se tornando uma teocracia como no passado fora o Egito sob a XVIIIª dinastia.”[43] A previsão do uso da tortura na Inquisição, visando à confissão do réu, surge em 1252, na bula “Ad Extirpanda”[44] do papa Inocêncio IV. O mesmo documento determinava o confisco da propriedade do réu confesso, e parte desta arrecadação iria para o Estado que, em troca, se encarregaria da aplicação das penas. Forma-se, assim, a parceria entre Igreja e Estado na persecução religiosa que, tendo intensidade diversa em cada reino, levou à prisão e à morte de milhares de pessoas sob a acusação de heresia, seja por professarem outra fé, por praticarem atos considerados “feitiçaria ou bruxaria” ou apenas por deterem conhecimentos científicos. 2.4 A parceria entre Igreja e Estado Ao abordarmos o tema das Inquisições, é preciso ter em mente, ab initio, que elas adquiriram contornos e matizes diversos conforme o local de seu estabelecimento. Neste sentido, é importante a observação de Bethencourt, que afirma: “As Inquisições são referidas, geralmente, no singular. Essa tradição exprime uma realidade: os diferentes tribunais da fé têm como fonte comum de legitimidade a delegação de poderes, feita pelo papa, em matéria de perseguição de heresias. A designação única pode ser cômoda, mas esconde realidades muito diversas: a Inquisição pontifícia estabelecida no século XIII desenvolve um modelo de ação estranho aos modelos (no plural) seguidos, por exemplo, pelos tribunais de Veneza, Modena ou Nápoles do século XVI ao XVIII; a Inquisição espanhola (criada em 1478), tal como a Inquisição portuguesa (estabelecida em 1536), tem um estatuto particular que se traduz por uma quase completa independência de ação em relação à cúria romana”[45]. Percebe-se, portanto, que embora todas as Inquisições fossem legitimadas pela autorização papal, elas se manifestaram de diversas formas em cada reino da cristandade. Assim, visando um exame mais profundo dos pormenores de tal instituição, o presente trabalho concentrará sua análise no modelo adotado pela Espanha, cujos moldes serviram de referência para a inquisição adotada posteriormente em Portugal[46], país que também viu surgir em seu território um “Tribunal simultaneamente régio e eclesiástico, [que] inseria-se na política de centralização do poder. A sua criação e os seus membros estavam ligados à Igreja, mas todo o funcionamento era superiormente controlado pelo rei, desde a nomeação dos inquisidores-gerais, que despachavam directamente com o monarca, até à execução das penas de morte, para o que os condenados eram entregues ao braço secular.”[47] Na Espanha, a aliança entre a Igreja e o Estado oficializou-se através da bula Exigit sincerae devotionis affectus, assinada pelo papa Sisto IV em novembro de 1478, que dava início a uma nova inquisição no país[48]. Isabel de Castela e Fernando de Aragão, reis espanhóis, visavam conferir unidade ao novo reino, reconquistado dos muçulmanos, através da fé católica. Assim, a bula concedia a Castela e Aragão o poder de nomear, substituir ou revogar inquisidores, competência antes exclusiva do Sumo Pontífice, o que significava a formação de um vínculo formal entre a jurisdição eclesiástica e a civil, entre o poder da Igreja e o poder dos reis. Embora este vínculo entre os reis espanhóis e o papa tenha se formalizado em 1478, a Inquisição espanhola é ainda mais antiga, pois, em 1358, Nicolas Eymeric, inquisidor espanhol, já havia escrito um manual visando orientar os demais inquisidores durante o processo inquisitorial. Este processo, cuja finalidade precípua era a obtenção da confissão do acusado de heresia, fornece uma boa amostra da extensão do poder da Igreja e das atrocidades por ela cometidas visando à manutenção deste domínio sobre a população, e será analisado a seguir. 2.5 O processo Inquisitorial O processo inquisitorial -conjunto de procedimentos adotados pelo Tribunal do Santo Ofício- era conduzido, invariavelmente, de forma a condenar o acusado de heresia, preferencialmente com uma prova robusta, como a confissão, obtida, na maior parte dos casos, através de torturas atrozes. Desta forma, “a instrução dos processos de heresia, concretamente, orienta-se a partir de dois objetivos centrais: o controle dos indícios e a obtenção da confissão dos acusados”[49]. A melhor e mais confiável fonte sobre o conjunto de procedimentos adotados pelo Tribunal do Santo Ofício encontra-se na obra do inquisidor Nicolas Eymeric, que em 1358 escreveu o Diretorium Inquisitoum, ou Manual dos Inquisidores, um código penal a ser utilizado nas inquisições de Portugal e Espanha. A obra descreve de forma minuciosa o conjunto de atos a ser adotado pelo inquisidor, sempre visando obter, a qualquer custo, a confissão do acusado, prova considerada suficiente para a condenação do acusado em matéria de heresia, conforme explanado por Eymeric: “Se pode proceder à condenação com base unicamente na confissão do culpado posto que, sendo a heresia um crime do espírito, muitas vezes não pode ser provado de outra forma além da confissão do criminoso.”[50] A inocência do réu raramente era reconhecida, e, mesmo que o fosse, a sentença de absolvição não era considerada um juízo definitivo. Esta obra inspirou e orientou as atrocidades cometidas em nome da fé católica em Portugal e na Espanha durante séculos, e seu estudo é fundamental para a compreensão de como a Igreja Católica instituiu um regime de medo, perseguição e terror, visando assegurar a manutenção de seu vasto poder. 2.5.1 Do Procedimento do Santo Ofício em Geral No primeiro capítulo de sua obra, Eymeric afirma a necessidade de se proceder da maneira mais rápida e simples possível em matéria de heresias. Para tanto, devia se proceder “cortando os prazos inúteis, trabalhando na instrução da causa mesmo nos dias em que os demais juízes suspendem sua tarefa, denegando apelações que só servem para prolongar o juízo, rechaçando a inútil apresentação de inúmeras testemunhas, etc”[51]. Embora à primeira vista tal exortação à celeridade processual pareça louvável, sabe-se que ela só era aplicada em desfavor do acusado, diminuindo-lhe os prazos, negando suas apelações e deixando de ouvir os poucos e corajosos que se aventuravam a testemunhar em favor do réu. Uma amostra de que tal celeridade não era observada em favor dos acusados é trazida no relato de Hipólito José da Costa que, preso pela Inquisição portuguesa em 1802 sob a acusação de prática da maçonaria, narra seus dois anos e meio no cárcere, esperando pelo julgamento. “Não obstante tudo quanto eu tinha lido e ouvido sobre a Inquisição, julgava que os procedimentos deste Tribunal não tinham já aquele caráter de crueldade, nascida da ignorância do Direito criminal de seus ministros, e da insaciável cobiça de se aproveitarem dos bens alheios, a título de confiscação, e esperava eu que meu processo findaria com brevidade, lisonjeando-me com a esperança de uma sentença que, fosse qual fosse, me seria grata, só por me ver livre do horror de um cárcere solitário, em que jazia sepultado por tantos meses.”[52] 2.5.2 O início do processo: a acusação, a denúncia e a inquisição O Diretorium Inquisitorum continua suas lições explicando a existência de três maneiras de iniciar o processo em matéria de heresia: a acusação, a denúncia e a Inquisição. Na acusação, um delator se oferecia a provar os fatos criminosos imputados a alguém, submetendo-se à lei de Talião caso fracassasse. Entretanto, Eymeric avisa que este método deve ser usado em raras oportunidades em virtude do risco que corre o acusador e do caráter longo e litigioso do método, embora o acusador já não fosse mais submetido, na prática, à lei de Talião. Recebida a acusação, o acusador se torna parte no processo, e o Inquisidor não agirá mais de ofício, e sim ad instantiam partis. Entretanto, Eymeric observa que já não compete mais ao particular o papel de acusador, e sim a um agente do Santo Ofício, o Procurador Fiscal, que, por exercer uma função pública, não se submeteria a castigo ou pena alguma caso não conseguisse provar suas acusações[53]. Tal mudança no pólo ativo da acusação provavelmente se deu porque, submetidos à lei de Talião, poucos lançavam acusações contra os suspeitos de qualquer prática proibida pela Igreja. Além disso, as pequenas comunidades feudais viviam em uma economia baseada em trocas e, como a acusação de heresia significaria a morte do acusado, isto comprometeria a subsistência do feudo, pois aqueles que se colocassem ao lado do acusado não mais negociariam ou manteriam relações com os simpatizantes do acusador, e este cisma levaria à desagregação da sociedade feudal. Todavia, a figura do Procurador Fiscal, um agente público e não submetido aos inconvenientes da lei de Talião, resolveu estes problemas, ajudando a sedimentar uma atmosfera de temor e suspeitas. A segunda maneira de iniciar o processo inquisitorial era a denúncia, método mais utilizado, no qual se delatava alguém sem que o delator se tornasse parte no processo. De acordo com Eymeric, o delator só fazia a denúncia “para não merecer a excomunhão com que se castiga ao que não denunciam a heresia, ou por causa de zelo pela fé.”[54] Percebe-se, portanto, mais um mecanismo do Santo Ofício para induzir os fiéis a delatarem qualquer conduta suspeita: a excomunhão, que, no medievo, significava praticamente um banimento da vida social do feudo, e ainda um possível processo inquisitorial, pois aqueles se abstivessem de delatar os suspeitos de heresia eram considerados seus cúmplices. A denúncia poderia ser recebida por escrito ou tomando-se nota do que afirma o denunciante e, no curso deste procedimento, o Inquisidor atuava de ofício, pois o denunciante não era considerado parte no processo, ou seja, o acusado não tinha parte adversa. Quanto ao teor da denúncia, Eymeric adverte ao Inquisidor que este não deve descartar as acusações desprovidas de qualquer aparência de veracidade, pois “o que não se descobre em um momento pode descobrir-se em outro”[55], mais um mecanismo de minar qualquer possibilidade de absolvição do acusado de heresia. Finalmente, o terceiro método de iniciar um processo em matéria de heresia é a Inquisição, na qual não existe a figura do denunciante ou do acusador. Existem dois tipos de Inquisição: a geral e a baseada em rumor público. A Inquisição geral é a busca, realizada de tempo em tempo, por hereges em uma comarca ou diocese. Seu fundamento está no Concílio de Toulouse, cujo texto é transcrito por Eymeric em sua obra: “Em todas as paróquias serão eleitos um ou dois sacerdotes e dois ou três laicos, gente de bem, que deverão prestar juramento e que deverão realizar buscas freqüentes e escrupulosas em todas as casas e habitações, depósitos de grãos, sótãos, etc, para assegurarem-se de que não haja neles hereges ocultos”.[56] Encontrando-se um herege nesta investigação, o inquisidor podia exercer suas funções de ofício, pois não havia denunciante ou acusador. Já a segunda espécie de Inquisição é aquela baseada em rumor público, ou seja, em boatos que chegavam até o inquisidor de que alguém estava praticando heresias. Deve-se salientar, entretanto, que muitas vezes estes boatos eram espalhados pelos próprios inquisidores, visando levar determinada pessoa ao cárcere ou manter-la lá. Neste sentido, a narrativa de Hipólito José da Costa é bastante clara: “É logo necessário que eu mostre que os diferentes boatos, que se espalharam a meu respeito não foram senão um efeito da antiga prática dos inquisidores e seus sequazes, que procuram diminuir o ódio público, que naturalmente lhes atrai o cruel tratamento dos seus presos, fazendo circular contra eles calúnias improváveis e até narrações absurdas e contraditórias, que não deixam lugar ao povo de inquirir a verdade, e diminuem necessariamente o zelo e diligência dos amigos ou protetores do preso, em solicitar a sua soltura, ou justa sentença.”[57] Na Inquisição baseada em rumor público, o inquisidor citava testemunhas para que comparecessem ao Tribunal do Santo Ofício e respondessem perguntas acerca da reputação do acusado, se ele era considerado herege, desde quando ele praticava heresias, etc[58]. Para comprovar a má reputação do acusado, eram suficientes duas testemunhas, e bastava que elas afirmassem ter ouvido dizer que o suspeito era herege[59]. A precariedade das provas necessárias para levar alguém à morte sob a acusação de heresia fica ainda mais evidente quando Eymeric afirma que “ quando as testemunhas afirmarem que um acusado tem fama de herege e se perguntar a elas o que entendem por fama ou reputação (quid es fama), não é necessário que dêem uma definição exata, bastando que digam que é o que se afirma comumente”[60]. Se as respostas das testemunhas comprovassem a má reputação do acusado, este seria citado para comparecer ao Tribunal e prestar contas de sua fé. Finalmente, na última parte do capítulo sobre o procedimento do Santo Ofício em Geral, Eymeric declara que, embora em matéria civil ninguém seja obrigado a trazer provas contra si mesmo, esta obrigação existe em matéria de heresia, sendo, portando, dever de o acusado comunicar ao Santo Ofício a existência de peças, documentos, etc., que possam servir ao Procurador Fiscal para fundamentar sua acusação. Percebe-se, portanto, um total descaso com o princípio de Nemo Tenetur Se Detegere em acusações envolvendo heresia, o que demonstra claramente a preocupação da Igreja em punir aqueles que representassem uma ameaça ao seu poder, seja por não professarem a fé católica ou por terem condutas consideradas nocivas pela Igreja. 2.5.3 As Testemunhas As testemunhas desempenhavam papel importante no processo inquisitorial, pois “a credibilidade das denúncias baseia-se quase exclusivamente na verificação da “qualidade” das testemunhas e de seu “prestígio” entre os vizinhos, bem como na observação de seu comportamento no tribunal quando depõem”[61]. Assim, a reputação das testemunhas definia “o estabelecimento e a fundamentação da acusação”[62], sendo sua honra e boa fama, em tese, fundamentais para a credibilidade da acusação. Entretanto, o pragmatismo do Tribunal do Santo Ofício diversas vezes ignorava a má reputação das testemunhas se seus depoimentos ajudassem a condenar o acusado. Eymeric, por exemplo, afirma que em prol da fé serão aceitos os testemunhos dos excomungados, de cúmplices do acusado, de infames e pessoas culpadas de qualquer crime e de hereges que testemunhem contra o acusado, mas nunca em seu favor[63]. Para justificar tal gritante injustiça, Eymeric diz que quando um herege testemunha em favor de um acusado o faz por ódio à Igreja, mas que esta presunção desaparece quando o mesmo herege testemunha contra o acusado. Da mesma forma, os testemunhos de infiéis e de judeus eram só aceitos para averiguar se o acusado havia caído na infidelidade ou no judaísmo, ou se havia cometido algum pecado contra a fé cristã. As testemunhas poderiam, ao contrário do que ocorria nos tribunais seculares, retratar sua declaração. Tal possibilidade, entretanto, só tinha eficácia caso a segunda declaração fosse desfavorável ao acusado, incriminando-o, pois, caso este segundo testemunho fosse favorável ao suspeito, ele seria desconsiderado, atendo-se o Santo Ofício à primeira declaração, e a testemunha ainda seria castigada por falso testemunho com a pena de prisão perpétua e, em alguns casos, com a mesma pena do réu, mais uma forma de coibir qualquer tentativa de solidariedade ou ajuda ao acusado de heresia em processo inquisitorial. Quanto ao testemunho de familiares, o Diretorium Inquisitorum demonstra novamente a perversidade e a injustiça dos métodos utilizados pelo Santo Ofício. Em primeiro lugar, as chamadas testemunhas domésticas, ou seja, a esposa, filhos, parentes ou criados do acusado, só poderiam testemunhar contra ele. Eymeric afirma que a razão de se aceitar o testemunho acusador de filho contra pai é que é dever de todo católico amar a Deus antes de amar seus pais, e de que, se era permitido matar seu pai quando este for inimigo da pátria, com mais razão poderá o filho denunciá-lo (e, consequentemente, mandá-lo para a morte) quando esse for culpado de heresia, ou seja, quando for um inimigo da Igreja[64]. Talvez o instrumento mais cruel e desagregador utilizado pelo Santo Ofício tenha sido punir os filhos de hereges, mas eximi-los de tais castigos caso eles delatassem seus pais. Duas testemunhas eram consideradas suficientes pelo Tribunal do Santo Ofício para condenar definitivamente o acusado. Eymeric, entretanto, diz que é prudente que esta condenação com base em apenas dois testemunhos se dê quando se verificar a má reputação do acusado, pois, como o suspeito não sabe quem são as testemunhas, sua defesa se torna mais difícil, devendo, portanto, se examinar a causa com cuidado. Em relação às perguntas que se devem fazer às testemunhas, os inquisidores deveriam buscar informações gerais sobre o acusado, se ele havia sido visto praticando algum ato contra a fé, o local e o número de vezes que ele praticou este ato, etc. Finalmente, a testemunha deveria guardar segredo acerca de suas declarações, pois todo o processo era secreto, fato que permitia que os inquisidores que praticassem incontáveis arbitrariedades e dificultassem ao máximo a defesa do acusado. Novamente, Hipólito José da Costa fornece, através de seu relato, um panorama de tais abusos: “Quanto à veracidade das minhas asserções, só digo que apelo para as pessoas que têm de mim familiar conhecimento e pelo que diz respeito às provas, é tal a desgraça que até delas me vejo privado, porque, ao tempo da minha prisão, me foram apreendidos e depois sumidos todos os papéis que tinha; o meu processo foi sempre feito em segredo e sem testemunhas a quem pudesse chamar para depor acerca do que afirmo, e, numa palavra, tomaram-se todas as precauções para que não me restasse documento algum com que justificar a minha inocência, e por isso não só não me é imputável a falta de provas, mas até julgo que isso mesmo conduz à minha justificação, tanto mais que um juízo crítico será bastante para decidir da sinceridade da minha relação”[65]. 2.5.4 O Interrogatório do Acusado O capítulo do Diretorium Inquisitorum que fornece instruções aos inquisidores de como proceder ao interrogatório dos acusados é mais uma oportunidade de se vislumbrar a extrema parcialidade do processo inquisitorial, e seu claro intuito de não deixar escapar aqueles que, por uma razão ou outra, desafiavam o poder da Igreja. Ao iniciar o interrogatório, o inquisidor deveria fazer o acusado jurar sobre o Evangelho e, em seguida, perguntar seu nome, local de nascimento, etc. Após esta série inicial de perguntas, o inquisidor questionava o acusado especificamente sobre a heresia da qual era considerado culpado, o que ele havia falado, etc. Eymeric faz uma advertência ao inquisidor para que este seja prudente, pois “os hereges possuem uma extrema habilidade para ocultar seus erros: sabem simular santidade e verter lágrimas fingidas, capazes de comover os mais impiedosos juízes. Mas um inquisidor deverá saber defender-se contra tais artimanhas e supor sempre que lhe quer enganar”[66]. Entre os ardis recomendados aos inquisidores visando obter a confissão dos acusados, o Diretorium sugere que, inicialmente, sejam feitas repetidas perguntas, forçando o suposto herege a responder de maneira clara e exata a cada uma delas. Se existe a suspeita de que o acusado está disposto a ocultar seu crime, o inquisidor deve interrogá-lo, inicialmente, com brandura, buscando uma confissão. É possível encontrar exemplos deste procedimento no relato de Hipólito José da Costa de sua primeira audiência com o inquisidor: “Advertiu-me que eu estava no Tribunal mais justo e misericordioso que havia sobre a terra, mas que para obter da sua piedade o perdão dos meus crimes, era necessário que confessasse de motu próprio todos os crimes que tivesse cometido, sem omitir cúmplices, fatores, ou circunstância alguma; que esta confissão devia ser imediatamente feita, porque era aquele o momento mais favorável que tinham os presos da Inquisição, visto que, se para diante confessasse o que ao princípio ocultasse, já não experimentaria a mesma benignidade”.[67] Muitos eram os que, temendo as atrocidades perpetradas pelo Tribunal do Santo Ofício, confessavam qualquer acusação, por falsa que fosse, contando com a misericórdia dos inquisidores. Seus destinos, entretanto, não eram menos cruéis do que os daqueles que, após as investigações e, sem terem confessado, eram considerados culpados pela Inquisição. Se o suspeito de heresia, após esta primeira audiência, continuasse negando seu crime, o tratamento ficaria cada vez mais severo e mais traiçoeiro. As instruções de Eymeric são claras neste sentido: “O inquisidor o fará comparecer e lhe formulará perguntas aleatórias. Quando o acusado negar algum feito tomará em suas mãos a ata na qual se incluem os interrogatórios precedentes e, folheando-a, dirá: É evidente que me estás ocultando a verdade; deixas de dissimular. De modo que o acusado creia que o inquisidor está convencido e que a ata contenha provas contra ele”.[68] O texto do Diretorium Inquisitorum sugere ainda que o Inquisidor faça outras dissimulações, como, quando for interrogar o acusado, levar um documento qualquer e, quando o suspeito negar alguma coisa, “demonstrar assombro, dizendo: ‘Como podes dizer algo semelhante? Por acaso não está claro?’ Imediatamente lerá em seu papel, efetuando as mudanças necessárias, e agregará : ‘Bem, confessou então que eu estava certo!’”[69]A astúcia e a ardilosidade do Santo Ofício ficam cada vez mais evidentes, pois, caso tal medida não surtisse efeito, recomendava-se que o inquisidor dissesse ao acusado que: “Deve [o inquisidor] ir imediatamente para muito longe, que não sabe quando voltará, que o desgosta muito ver-se obrigado a deixá-lo apodrecendo na cela, que havia desejado escutar a verdade de sua boca para enviá-lo a sua casa e terminar o processo. Mas como se obstina em não querer confessar, terá que deixá-lo no cárcere até o seu regresso, que sente uma grande compaixão por ele já que sabe de sua fragilidade e que, indefectivelmente, vai ficar doente, etc.”[70] A gama de artifícios e insídias utilizados pelo Tribunal do Santo Ofício no interrogatório dos acusados de heresia visando obter a confissão é extensa, mas vale salientar finalmente que, além de ameaças e submissão à tortura, os inquisidores podiam mentir ao acusado, prometendo-lhe graças e mesmo a impunidade caso confessassem. Para justificar tal hipocrisia, Eymeric afirma que “tal mentira é boa e de utilidade para o bem público.”[71] 2.5.5 As Defesas do Acusado Como se pode perceber claramente, todo o processo inquisitorial era voltado para obtenção da confissão do acusado, razão pela qual suas defesas são meramente formais, ou seja, apenas existem para complementar uma encenação que, na verdade, não concedia chances reais de defesa ao réu. Segundo Eymeric, as principais defesas do acusado do crime de heresia consistiam na consulta de um advogado, na impugnação das testemunhas (quando o acusado conseguia adivinhar quem havia testemunhado contra ele), na impugnação do inquisidor e na apelação[72]. A consulta a um advogado, primeira defesa do réu, era permitida somente nos casos nos quais o acusado negava a prática do crime que lhe era imputado, ou seja, quando sua confissão não era obtida. Nestes casos, o inquisidor nomeava um advogado que, como “defensor da fé”[73], tinha como função primordial “exortar o acusado a confessar a verdade e a pedir perdão por seu crime se fosse culpado”[74]. O advogado não passava, portanto, de mais um agente que, a serviço da Inquisição, buscava obter a confissão do acusado. Tal situação evidencia-se ainda mais quando nos deparamos com a proibição do advogado de exercer sua função em favor do herege e de somente poder prestar seus serviços àquele acusado de heresia com a autorização do inquisidor e, ainda, sob o juramento de abandonar a causa assim que constatar que seu cliente é um herege. No tocante à segunda defesa do acusado do crime de heresia, ou seja, a impugnação das testemunhas, Eymeric adverte que ela não será admitida facilmente, já que, em favor da fé, chegam a ser admitidos os testemunhos de excomungados, hereges, etc. Assim, a única forma de impugnar um testemunho seria a alegação de inimizade capital entre o acusado e a testemunha, devendo esta ter se manifestado em atentados contra a vida[75]. A terceira defesa do acusado consistia na impugnação do inquisidor e, como regra geral, só era admitida em casos de inimizade capital ou de extrema gravidade. Alegada alguma destas causas, o acusado e o inquisidor nomeariam, cada um, um árbitro, que deveriam entrar em acordo acerca da nulidade ou legitimidade da impugnação e, caso os dois árbitros não lograssem chegar a um acordo, seria nomeado um terceiro árbitro para decidir a questão. Para invalidar a impugnação, o inquisidor poderia, antes que lhe fosse comunicada a impugnação, delegar seus poderes a outra pessoa, que julgaria o acusado e não poderia sofrer impugnação por parte deste. A outra maneira de o inquisidor se ver livre da impugnação era retificar seus erros e devolver o processo ao estado em que este se encontrava antes da falta que deu origem à impugnação. Vale salientar, entretanto, que muitos renomados autores da época afirmavam ser impossível afastar os inquisidores do processo por impugnação, “já que deve supor-se que para tão elevada função só se escolhem homens muito justos, muito prudentes e acima de qualquer suspeita”[76]. Finalmente, a última defesa do acusado era a apelação, interposta perante o papa para ser julgada pela Corte de Roma, instância máxima da Inquisição. Tal recurso, entretanto, tinha aplicação bastante restrita, pois os hereges não podiam apelar contra sentença definitiva, ou seja, se o acusado havia confessado ou se a sentença havia sido proferida “após profundos exames e maduras deliberações”[77]. Na prática, isto significava que o recurso de apelação raramente tinha lugar, pois cabia ao inquisidor designado para o caso realizar o exame de admissibilidade da apelação, decidindo se o acusado havia sido “legitimamente culpado”[78] ou não. Nos raríssimos casos em que o inquisidor admitia que o condenado possuísse motivos justificados para apelar, ele deveria remeter os autos para Roma, caso no qual o processo seria julgado pela Corte de Roma. 2.5.6 A Tortura “A Idade Média generalizou o emprego da tortura prévia. Os tribunais a empregavam como complemento cômodo do interrogatório secreto para chegar à confissão do acusado que, era considerada como a mais contundente das provas, sem considerações acerca dos meios empregados[79]”. A utilização de meios de tortura atrozes pelo Tribunal do Santo Ofício visando obter a confissão do acusado de heresia é notória, e a extensa gama de utensílios elaborados para este fim comprova a necessidade de severa repressão, por parte da Igreja, de condutas que contrariassem seus ditames. Longe de constituir uma exceção, a submissão do acusado a diferentes suplícios era corriqueira no medievo, sendo a tortura autorizada nos casos em que (a) o acusado desse diferentes respostas no interrogatório, negando o feito principal; (b) houvesse, contra o herege, uma testemunha e a comprovação de sua má-fama; (c) houvesse, contra o herege, indícios (ou mesmo um só indício) considerados de peso, mesmo sem a presença de uma testemunha e, finalmente (d) mesmo quando não houvesse difamação de heresia, mas uma testemunha tivesse escutado o acusado dizer algo contra a fé e houvesse também algum indício de heresia[80]. Embora a má reputação do acusado não fosse, em regra, suficiente para a aplicação dos tormentos, esta regra era relativizada em casos nos quais a má reputação era acompanhada por maus hábitos do acusado, estes sem definição exata, o que aumentava a arbitrariedade praticada pelos inquisidores. Ainda, quando o acusado estivesse foragido, este indício, junto com a má reputação, seria suficiente para que ele fosse submetido à tortura quando capturado. A submissão do acusado à tortura deveria ser precedida pela leitura de uma sentença definindo dia e hora para a aplicação dos suplícios. Eymeric fornece, em sua obra, um modelo de sentença a ser adotado pelos inquisidores: “Eu, inquisidor, pela graça de Deus, considerando cuidadosamente o processo que segue contra vós, vendo que mudais vossas respostas e que há contra vós indícios suficientes; a fim de saber a verdade por vossa própria boca, e de que não sigais fatigando os ouvidos de vossos juízes, declaramos e decidimos que tal dia, a tal hora, sereis submetido ao tormento”.[81] Portanto, o destino daqueles que negassem a prática do crime de heresia era, inexoravelmente, a submissão a uma série de suplícios, até que o acusado confessasse. Nos raríssimos casos nos quais o acusado suportava toda a série de suplícios sem confessar, o inquisidor deveria libertá-lo através de uma sentença indicando que “após examinar-se cuidadosamente seu processo, não foram encontradas provas legítimas contra ele acerca do crime do qual era acusado”[82]. Faz-se mister salientar, entretanto, que raramente o acusado que não confessava sobrevivia aos suplícios, pois sua aplicação significava perfurações em órgãos, estiramento e mesmo decepação de membros, o que levava o réu à morte em conseqüência da gravidade destas lesões. 2.5.7 A Absolvição A absolvição do acusado do crime de heresia era um fato bastante raro, visto que uma só testemunha era suficiente para proceder à condenação. Da mesma forma, a má-reputação ou a suspeita de que o acusado fosse um herege, conceitos vagos a serem preenchidos pelos inquisidores no caso concreto, impediam a absolvição do réu. Assim, nos poucos casos de absolvição, deveria ser proferida uma sentença, nos seguintes termos: “Havendo invocado o santo nome de Deus, declaramos que legitimamente não foi provado nada contra vós que pudesse fazer-vos suspeito de heresia, por tal causa...”[83]. Entretanto, a sentença de absolvição não significava que o acusado fosse considerado inocente, podendo ele ser submetido à investigação novamente. Finalmente, a sentença de absolvição em matéria de heresia não era considerada um juízo definitivo, pois isto, segundo os inquisidores, seria contrário à fé. 2.5.8 Das Penas As penas impostas pela inquisição consistiam em sanções pecuniárias, como multas, confisco de bens, privação de qualquer emprego ou ofício e, por fim, a condenação do acusado à prisão perpétua e seu envio à justiça secular. As penas pecuniárias impostas aos acusados de heresia deveriam ser utilizadas em obras piedosas mas, na maioria das vezes, serviam para a manutenção do Santo Ofício e de seus funcionários. Eymeric justifica o destino do valor arrecadado com tais sanções afirmando que “(...) sendo o estabelecimento e conservação da inquisição a mais útil de todas as obras pias, as multas poderão ser aplicadas, sem nenhuma dificuldade, na manutenção dos inquisidores e de seus parentes. Não se deve crer que esta aplicação deva se dar unicamente em caso de necessidade, já que é muito útil e vantajoso para a fé cristã que os inquisidores disponham de muito dinheiro para poder manter-se e pagar seus parentes, para favorecer a busca e a encarceramento dos hereges e fazer frente a todos os gastos em que devam incorrer”.[84] Em relação ao confisco dos bens do herege, tal procedimento poderia ocorrer mesmo após a morte do acusado, pois, em matéria de heresia, a ação criminal não terminava, necessariamente, com a morte. A severidade de tal conduta não deveria ceder sequer perante o estado de mendicância dos filhos do herege pois “de acordo com as leis tanto divinas como humanas, os erros dos pais recaem sobre os filhos”[85]. A sentença que considerava o acusado culpado pela prática do crime de heresia produzia conseqüências drásticas na vida do condenado, mesmo que ele conseguisse escapar da pena de morte pela fogueira. Desde a condenação, o herege era privado de todo o emprego, ofício, benefício ou poder que tivesse, ou seja, “desde o momento em que um homem é considerado culpado de heresia, perde toda a autoridade civil sobre seus empregados, toda a autoridade política sobre seus súditos, todos os direitos sobre seus bens e sobre todos aqueles que tivessem para com ele alguma obrigação em virtude de qualquer classe de juramento, e, finalmente, perde também a autoridade paterna.”[86] O Santo Ofício poderia determinar a prisão perpétua do herege caso ele fosse penitente e não-reincidente, ou seja, caso ele manifestasse arrependimento pela prática do crime de heresia e fosse a primeira vez que ele era considerado culpado por esta prática. As condições extremamente adversas e insalubres dos cárceres e o tratamento desumano dispensado aos prisioneiros, entretanto, determinavam a morte do condenado em pouco tempo. Finalmente, o Tribunal do Santo Ofício determinava a transferência à Justiça secular dos hereges sentenciados à pena de morte, pois esta detinha a autoridade para executá-los. A transferência à Justiça secular era cabível quando (a) o herege fosse impenitente; (b) reincidente; (c) se fosse considerado negativo, ou seja, negasse seus crimes e mesmo assim fosse considerado culpado, ou se (d) estivesse foragido, caso no qual seria executado em efígie se não pudesse ser preso[87]. Prova inequívoca da hipocrisia que permeava toda a estrutura do Santo Ofício encontra-se no fato de que, embora na sentença que determinava a transferência do herege para a Justiça secular o inquisidor rogasse a ela que moderasse “sua sentença, de tal sorte que tudo ocorra para vós sem derramamento de sangue nem perigo de morte”[88], o magistrado que não ditassem de imediato a pena de morte aos hereges seriam excomungados e tratados também como hereges. Desta forma, revestindo-se de um “véu de legalidade”, a Igreja Católica, através dos processos inquisitoriais, logrou manter sua posição hegemônica como centro de poder do medievo. Com a justificativa de combater as condutas heréticas, especialmente aquelas ligadas à superstição, o Tribunal do Santo Ofício aniquilou todos aqueles que, por praticarem (ou simplesmente serem acusados da prática de) atos de cunho supersticioso, mágico e mesmo religioso (como os judeus), representavam uma ameaça ao vasto domínio católico. Portanto, “não devemos nos surpreender com a extraordinária importância que os tribunais eclesiásticos ganharam ao longo dos séculos. Seus progressos começaram no Baixo-Império, aumentando com a desordem das invasões e então com a decomposição do regime feudal. Durante estas épocas tumultuadas, a Igreja foi um elemento de ordem e estabilidade. (...) Ela contava, ainda, com a temível arma da excomunhão para impor respeito às suas sentenças, e a usava largamente”.[89] 2.6 Considerações Finais Diante do exposto percebe-se claramente, portanto, que a punição de condutas ligadas à superstição pelo Santo Ofício era, em verdade, um pretexto para coibir qualquer forma de ameaça ao poder hegemônico da Igreja. A manutenção desta teocracia, na qual os reis católicos se aliaram ao Papado para perseguir aqueles que, através da manifestação de outra crença, desafiavam sua supremacia, custou a vida de milhares de pessoas ao longo de séculos. A unidade da fé que o Santo Ofício buscava e que justificou suas atrocidades tinha por trás de si, portanto, o mais mundano dos objetivos: conservar o poder e a dominação nas mãos daqueles que há muito já os exerciam. CONCLUSÃO Percebemos com freqüência em nossa sociedade uma tendência a alterar a visão e interpretação que temos do passado com base naquilo que necessitamos no presente, ou que vislumbramos necessário para o futuro. Entretanto, importantíssimo é para a humanidade, para todas as gerações que virão, perceber o real significado de certos eventos históricos cuja compreensão transcende em muito o significado restrito que por vezes nos é ensinado. Através do presente trabalho, percebemos que a punição de condutas ligadas à superstição, especialmente em sociedades de caráter fortemente teocrático, visava coibir, em verdade, qualquer ameaça que pudesse atentar contra a hegemonia do poder central. Este poder, que perseguiu aqueles cujas crenças tornavam-nos um perigo à dominação exercida, através da fé, pelas classes dominantes, pode assumir a forma do déspota oriental, do Papa, dos reis católicos, dos aiatolás e, no hodierno cenário internacional, de alguns presidentes eleitos de forma democrática por seus pares. O exame dos dispositivos presentes nos códigos orientais que cominavam penas severas aos feiticeiros e de passagens bíblicas que fundamentaram a perseguição religiosa instaurada através do Santo Ofício, assim como estudo dos pormenores do (injusto) processo inquisitorial ajudam a compreender como, sob o pretexto da unidade da fé, milhares de seres humanos perderam a vida para perpetuar regimes de exploração e servidão. Assim, munindo-se do aparato jurídico necessário, cobertos por um “véu de legalidade”, estes regimes repreenderam qualquer ameaça a sua hegemonia. É para que tais situações não se repitam que não podemos esquecer nem diminuir a intensidade dos atos perpetrados em tais momentos, e nem as verdadeiras razões por trás da punição, nestas sociedades, de condutas ligadas à superstição. Através do controle mental, instaurando medo generalizado, do controle físico, eliminando qualquer oposição capaz de movimentar a população contra a Igreja ou a ordem vigente e do controle prático, ditando os valores a serem seguidos por todos e perseguindo qualquer voz dissonante, os detentores do poder nestas sociedades lograram submeter populações aos seus desígnios. A utilização do poder punitivo com a finalidade de reprimir os opositores do regime instituído não é exclusividade das sociedades de caráter fortemente teocrático. Elas são apenas um dos tristes exemplos de que a repressão de determinadas condutas muitas vezes não visa o bem-comum, e sim a perpetuação de uma ordem nem sempre justa ou louvável. Longe de ficar apenas no passado, ainda hoje, em especial nos países do Oriente Médio, o poder punitivo persegue os dissidentes da fé para assegurar a manutenção do regime. Devemos nos questionar, portanto, quando aceitamos passivamente que a liberdade de expressão de seres humanos é tolhida de forma brusca e quando suas vidas são sacrificadas “em nome de Deus” ou de qualquer outra “entidade”. As vítimas de tais atrocidades, as bruxas e os feiticeiros de nossos dias, podem não lançar maldições contra ninguém, podem não fazer pactos com o diabo, podem, enfim, apenas discordar de seus governantes, professar outra fé ou crença, mas seus suplícios continuam semelhantes às fogueiras medievais. Referências ALTAVILA, Jayme de. Origem dos Direitos dos povos. 3ª edição. São Paulo: Melhoramentos. 1963. BETHENCOUT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. BÍBLIA ON LINE. Disponível em <http://www.bibliaonline.com.br/ > Acesso em 22.06.2007 BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. CATHOLIC ENCYCLOPEDIA. Disponível em <http://www.newadvent.org/cathen/08026a.htm> Acesso em 14.04.2007 CATHOLIC LIBRARY. Disponível em <http://www.catholic.com/library/Inquisition.asp> Acesso em 14.04.2007 COSTA.Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974. DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 1 e 2. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rabello. – Rio de Janeiro : Ediouro, 2002. EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. GIORDANI. Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 13ª edição. 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Lições de História do Direito. 15ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2004. PELLERÓ, Eduardo Ripoll. Prehistoria e historia del próximo oriente. 3ª edição. Barcelona: Labor, 1969. ROTH, Martha T. Law Collections from Mesopotamia and Asia Minor. 2ª edição. Atlanta: Scholars Press, 1997. VICENTINO, Cláudio. História Geral. 8ª edição. São Paulo: Scipione, 1997. WOLKMER. Antônio Carlos. Fundamentos da História do Direito. 2ª edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. Notas: [1] Monografia apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Orientador: Prof. Tupinambá Pinto de Azevedo [2] O nome patesi correspondia, inicialmente, ao título dado aos chefes locais, sendo lugal o título conferido aos reis. Pouco a pouco, entretanto, o termo lugal desaparece, sendo a designação patesi também utilizada pelos reis e governantes. GIORDANI, op. cit., p. 133. [3] Shekel é uma medida equivalente à 8,33g. [4] Embora muitos autores de língua portuguesa utilizem a expressão “deus rio” ao invés de “provação divina do rio”, compartilho o entendimento dos autores de língua inglesa de que a segunda opção exprime melhor a idéia de prova, de teste de inocência ao qual o acusado era submetido. [5] “Se um homem acusar a esposa de um jovem de promiscuidade mas a provação divina do rio a considerar pura, o acusador deve pesar e entregar 20 shekels de prata”. ROTH, Martha T. Law Collections from Mesopotamia and Asia Minor. 2ª edição. Atlanta: Scholars Press, 1997. p. 18. Tradução Livre. [6] “Se a esposa de um homem for denunciada em acusação envolvendo outro homem, embora ela não tenha sido pega dormindo com outro homem, ela deve se submeter à provação divina do rio para seu marido”. Idem, p. 106. [7] “Se um homem disser para outro homem “ todo mundo tem relações sexuais com a sua esposa”, mas não há testemunhas, eles devem fazer um pacto, eles devem se submeter à provação divina do rio”. Idem, p. 159. [8] O texto do referente artigo não foi completamente restaurado, e, portanto, as lacunas serão representadas por uma série de pontilhados. [9] Idem. p.196. [10] Idem. p.193. [11] GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 62. [12] ROTH, Martha T. Law Collections from Mesopotamia and Asia Minor. 2ª edição. Atlanta: Scholars Press, 1997. p.233. Tradução Livre. [13] Idem, p. 231. [14] ROTH, Martha T. Law Collections from Mesopotamia and Asia Minor. 2ª edição. Atlanta: Scholars Press, 1997. p.238. Tradução Livre. [15] VICENTINO, Cláudio. História Geral. 8ª edição. São Paulo: Scipione, 1997. p. 94. [16] Idem, ibidem. [17] [17] DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 2. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. p. 97. Tradução Livre. [18] VICENTINO, Cláudio. História Geral. 8ª edição. São Paulo: Scipione, 1997. p.107. [19] Idem, p. 109. [20] DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 1. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. p. 227. Tradução Livre. [21] Idem, p. 111. [22] Idem, ibidem. [23] DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 2. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. p.142. Tradução Livre [24] DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rabello. – Rio de Janeiro : Ediouro, 2002. p. 236. [25] DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Rio de Janeiro : Ediouro, 2002. p. 237. [26] BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 22. [27] Idem, p. 29. [28] BOLTON, Brenda. A Reforma na Idade Média. Lisboa: Edições 70, 1983. p. 32. [29] Do grego hairesis, ou seja, possibilidade, capacidade de escolha. [30] BOLTON, op. cit., p. 33. [31] Idem, p. 34. [32] Do grego katharos, que significa puro. [33] DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Rio de Janeiro : Ediouro, 2002. p. 237. [34] Idem, p. 238. [35] DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Rio de Janeiro : Ediouro, 2002. p. 239. [36] HERCULANO. Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal. 9ª edição. Lisboa: Bertrand, 1950.p.37. [37] HERCULANO. Alexandre. História da origem e estabelecimento da inquisição em Portugal. 9ª edição. Lisboa: Bertrand, 1950.p.25. [38] BÍBLIA ON LINE. Disponível em <http://www.bibliaonline.com.br/ > Acesso em 22.06.2007 [39] BÍBLIA ON LINE. Disponível em <http://www.bibliaonline.com.br/ > Acesso em 22.06.2007 [40] Idem. [41] DURANT, Will. O livro de ouro dos heróis da história. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rabello. – Rio de Janeiro : Ediouro, 2002.p. 240. [42] O texto da bula dava instruções aos Dominicanos, estatuindo: “Onde quer que os ocorra pregar estais facultados, se os pecadores persistem em defender a heresia apesar das advertências, a privar-los para sempre de seus benefícios espirituais e proceder contra eles e todos os outros, sem apelação, solicitando em caso necessário a ajuda das autoridades seculares e vencendo sua oposição, se isto for necessário, por meio de censuras eclesiásticas inapeláveis.”Idem, p.241. [43] DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 2. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. p.99. Tradução Livre [44] LIVING TRADITION- ORGAN OF THE ROMAN THEOLOGICAL FORUM Disponível em: < http://www.rtforum.org/lt/lt119.html > Acesso em 12.07.2007 [45] BETHENCOUT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.15. [46] Em Portugal, a Inquisição foi instaurada inicialmente em 1531, fundamentada na bula Cum ad nihil magis do Papa Clemente VII, que a revogou no ano seguinte. Entretanto, em 1536 o texto da bula é novamente publicado, marcando oficialmente o início da Inquisição portuguesa. [47] INSTITUTO DOS ARQUIVOS NACIONAIS DA TORRE DO TOMBO. Disponível em < http://ttonline.iantt.pt/dserve.exe?dsqServer=calm6&dsqIni=Dserve.ini&dsqApp=Archive&dsqCmd=show.tcl&dsqDb=Catalog&dsqPos=0 &dsqSearch=(((text)='INQUISIÇÃO')AND((text)='HERESIA')) > Acesso em 12/07/2007. [48] BETHENCOUT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.17. [49] BETHENCOUT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.50. [50] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.49. [51] Idem, p. 15. [52] COSTA.Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974. p.48. [53] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.17. [54] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.49. [55] Idem, p.18. [56] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.18. [57] COSTA. Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974. p. 19. [58] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.19. [59] Eymeric afirma, entretanto, que o inquisidor pode também realizar buscas contra pessoas que não haviam sido difamadas de heresia. [60] Idem. p. 19 e 20. [61] BETHENCOUT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p.50. [62] Idem, ibidem. [63] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p. 23. [64] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972.p. 25. [65] COSTA.Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974. p. 19. [66] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972.p. 36 [67] COSTA.Hipólito José da. Narrativa da Perseguição. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1974. p. 50. [68] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.40 [69] Idem, ibidem. [70] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.41. [71] Idem, p. 43. [72] Idem, p.49. [73] Idem, p.50. [74] Idem, ibidem. [75] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.51 [76] Idem, p.55. [77] Idem. p.57. [78] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.56. [79] DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 2. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. p. 123. Tradução Livre [80] EYMERIC, op. cit., p. 51. [81] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p.62. [82] Idem, p.64. [83] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p. 75. [84] Idem, p.89. [85] Idem, ibidem. [86] EYMERIC. Nicolas. El Manual de los Inquisidores. Buenos Aires: Rodolfo Alonso: 1972. p. 73. [87] Idem, p. 101. [88] Idem, ibidem. [89] DECUGIS, Henri. Les Étapes du Droit – des origines a nos jours. Vol. 2. 2ª edição. Paris : Librairie du Recueil Sirey. 1946. p.99. Tradução Livre