Alta Social: a atuação do assistente social em cuidados paliativos[1]

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Alta Social: a atuação do assistente social em cuidados paliativos1
Francis Sodré2
Algumas inquietações movem um profissional ao escrever sobre sua prática
profissional. Neste artigo, particularmente, ressalto que minhas inquietações vieram do
convívio com um ambiente de trabalho hospitalar no qual a morte é recorrente. Vários
sentidos são atribuídos ao profissional que tem a morte como seu ofício. Também muitos
valores são utilizados para adjetivar tais profissionais.
No caso específico do serviço social, percebo que como todas as demais
profissões que estão inseridas nas equipes de saúde, o contato com o usuário que está fora
de qualquer possibilidade científica de dar continuidade a sua vida, projeta para o assistente
social a noção de que sua intervenção chegou ao fim. Afinal, somos profissionais que
atuamos a serviço da vida, nas suas mais abrangentes determinações. Entretanto, teria a
morte menor valor para o assistente social?
Sabemos que nos dias atuais a morte tornou-se uma situação distante, afinal a
ciência retardou a morte. Adoecemos e envelhecemos, mas a morte está longe. A sensação
da juventude atribuída a um “estado de espírito”, personalidade, estilos de vida nos dão
uma noção de vida prolongada. Ao mesmo tempo, o culto ao corpo, os avanços da
biomedicina, estudos da genética, atividades físicas exacerbadas trazem para nossa
temporalidade a percepção de que a vida se tornou maior. É raro ouvirmos notícias de
morte como antigamente. Aliás, notícias de morte são coisas de antigamente. As famílias se
reduziram, a vida se prolongou, as grandes epidemias já não existem mais.
Nos trabalhos que desenvolvemos nos hospitais e unidades de saúde presenciamos
diariamente o adoecimento pelas doenças do nosso século, como o câncer ou o HIV, mas a
grande vilã tornou-se a violência urbana: acidentes de trânsito, homicídios, assaltos,
seqüestros ou furtos seguidos de morte. Qualquer base de dados estatísticos nos mostra que
esta é a maior causa de morte entre jovens e adolescentes no país.
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Artigo publicado na Revista “Serviço Social & Sociedade”, nº82 da Editora Cortez.
Assistente Social, doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social / UERJ.
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Mas várias são as situações sociais que se desdobram e chegam como demanda ao
serviço social nas unidades de saúde e hospitais no momento da morte, ou após a morte.
Vasconcelos (2002), em sua pesquisa, considerou que os assistentes sociais inseridos em
hospitais, maternidades ou institutos desenvolvem atividades passíveis de uma observação
especial, como: a) alta, b) remoção ou c) comunicação de óbito. Para ela, essas demandas
são historicamente atribuídas ao serviço social, mas sempre causaram controvérsias no
debate da categoria devido o seu componente burocrático. Segundo a autora, os assistentes
sociais sempre conseguiram conduzir tal atividade de modo que se reverta aos interesses
dos usuários.
O cumprimento de tarefas simples e disciplinares também fazem parte da rotina
dos assistentes sociais nos hospitais e unidades de saúde. Em ambulatórios e programas os
principais aspectos em relação ao usuário dizem respeito à observância de horários,
períodos e prazo para retorno de consultas e controle de tratamentos; ao cumprimento
rigoroso de procedimentos terapêuticos recomendados (para atendimentos a crianças em
fase de imunização ou gestantes em pré-natal); além da interpretação de normas3 e rotinas
dos serviços institucionais para os usuários.
Nos hospitais, os assistentes sociais incidem suas principais esferas de atuação
sobre o cumprimento de horários e duração de visitas, o número de visitantes permitidos
para cada paciente internado, comportamentos adotados durante a visita e, até mesmo,
atitudes e comportamentos do paciente e família pós-alta médica ou atitudes dos familiares
caso o doente chegue a óbito (Costa, 2000).
Em uma das pesquisas mais atuais no campo do serviço social voltado para a
saúde, Vasconcelos (2002) direcionou seu estudo para os profissionais que atuam no estado
do Rio de Janeiro, entretanto, estabelece uma correlação com nossa legislação profissional
quando escreve sobre a alta social (remoção para casa ou asilamento a partir de uma
solicitação do serviço social) e demonstra que esta mesma legislação deixa uma lacuna
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O exercício da interpretação das normas institucionais aos usuários fez surgir uma demanda de trabalho aos
assistentes sócias: a elaboração de normas e exigências institucionais. Essa atividade exige da equipe que
gerencia os serviços uma compreensão macro da relação instituição/usuário e também sua concepção sobre o
processo saúde/doença. A rigidez da norma exige comportamentos e precauções na circulação de pacientes e
familiares a ponto de comprometer a capacidade da população de decodificar as normas e agravar o quadro de
exclusão social que se encontra a população usuária do SUS (Costa, 2000).
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quando há necessidade de remoção do paciente para outra unidade de saúde. Cabe ao
assistente social posicionar-se sobre a transferência do paciente de um serviço de saúde
para outro, situação denominada de forma recorrente por remoção.
No caso da comunicação por óbito, cabe ao médico a responsabilidade por tal
informação devido à necessidade de complementar ações prestadas após o momento da
morte do paciente. Vasconcelos nos diz que o contato estabelecido do assistente social com
os familiares proporciona um diferencial em termos de apoio e orientações sobre o
sepultamento. Sabemos que alguns benefícios institucionais e também aqueles abarcados
por outras instituições são ofertados pelo profissional de serviço social em auxílio às
famílias mais carentes.
De acordo com a legislação do Conselho Regional de Serviço Social do Rio de
Janeiro, o assistente social não deve participar da comunicação de óbito de usuários que
nunca foram atendidos pelo serviço social. Entre nós, assistentes sociais que vivenciamos a
morte de seres humanos em nossa rotina de trabalho, presenciamos repetidamente o
descaso com este momento para os familiares e o excesso de informações truncadas sobre
sepultamento e seguros assistenciais, como o caso do seguro acidente por causa comum ou
acidente de trabalho. Ao usuário que chega vítima de um acidente urbano nos hospitais,
raramente presenciamos uma avaliação cuidadosa sobre a causa mortis. E aquele que
adoece e vem a morrer dentro do ambiente hospitalar, conta com pouca (ou nenhuma)
informação sobre o seu adoecimento e morte para suas famílias.
O interessante é observar que o serviço social sempre é acionado quando o
usuário não tem registro de nenhum familiar por ele ou com ele durante seu atendimento. A
preocupação da equipe de saúde, em hospitais gerais, por exemplo, é se o paciente vier a ter
alta e não ter para onde ir. Como desocupar o leito após seu restabelecimento se não conta
com ninguém para retira-lo do ambiente hospitalar?
Com os familiares por perto, começa o trabalho de responsabilização destes para
auxiliar nos cuidados com este paciente. E isso é uma função atribuída historicamente ao
serviço social. A formação do cuidador ganhou hoje requinte de profissão. Antes o familiar
era um ente querido que se dispunha a ajudar no restabelecimento de seu consangüíneo.
Hoje, um familiar treinado que deverá se especializar em técnicas hospitalares de
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tratamento e recuperação do seu doente. Afinal, alguém deverá assumir o “ônus” de ter um
familiar doente. E quando não se assume, a equipe de saúde trata de designar o familiar ou
amigo mais atento nas visitas médicas para este fim.
Sabemos que o papel do cuidador muitas vezes supera tal análise simples como a
realizada acima. Entretanto, aquelas funções médicas de consultar, diagnosticar e tratar são
acompanhadas pelo trabalho dos assistentes sociais com as famílias – que muitas vezes
desempenham este papel silenciador de demandas que perturbam a ordem hospitalar.
Em situações as quais o acompanhamento é realizado a crianças, o assistente
social elabora a alta social em equipe, pois geralmente torna-se necessário acionar
instituições como o Conselho Tutelar ou algum âmbito do sistema judiciário relacionado à
infância. A família nestes casos não deve ser somente “informada” da alta ou morte do seu
paciente, mas preparada e orientada a atuar neste fim.
O depoimento dos assistentes sociais que trabalham nesta área se repete quando
perguntados sobre a relação com a família. Todos dizem que a família é mais bem orientada
e esclarecida tanto no momento da alta por cura do seu doente quanto no momento da
morte. É para o setor de serviço social que os familiares se dirigem quando recebem uma
notícia como estas e não tem condições sociais de agir em prol do seu ente em recuperação
ou já morto. “Não é só colocar as pessoas na rua” (Vasconcelos, 2002).
O trabalho dos assistentes sociais nos hospitais em situações como estas se resume
a dar voz ao familiar e deixá-lo extravasar sua tristeza ou insatisfação. Ter uma alta
orientada. Dar apoio aos familiares que perderam alguém ou orientar sobre seus direitos
sociais neste momento tão soturno e confuso.
Talvez por isso tão pouca bibliografia é encontrada sobre a atuação do serviço
social nos hospitais ou unidades de saúde quando se refere à morte. Apesar dos assistentes
sociais reconhecerem, em sua maioria, o valor de sua atuação em um momento de dor,
atribuem menor valor aos cuidados com aqueles que já morreram de forma indireta: seus
familiares. Muitos não gostam de falar sobre a morte de um usuário que acompanhou, ou
relatam com depoimentos reticentes sobre os casos de atendimentos aos familiares de uma
pessoa que já tenha acompanhado e veio a falecer.
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A atividade de comunicar o óbito torna-se um problema para a equipe,
principalmente quando a morte não era esperada. Quando a evolução do tratamento não
mostra efeito rápido e a morte clínica já é sabida, a preparação dos familiares vai se dando
aos poucos, com o objetivo de amenizar sofrimentos, conflitos ou problemas.
Sobre os demais profissionais, os assistentes sociais sempre se colocam favoráveis
a atuar de forma conjunta no que se refere à alta social, remoção, atendimento aos
familiares, acompanhar o tratamento do usuário através de visitas domiciliares; mas nunca
quando se refere à morte. A discussão sobre a promoção do acesso aos direitos sociais, tão
repetida pelos profissionais de serviço social, parece esvair quando relacionada ao usuário
que falece e seus familiares à espera de um rumo ou uma simples orientação. A noção do
acesso parece se perder frente àquela família que chora. O destino da finitude humana
coloca um ponto final no nosso contato com a família que está à nossa frente. Fica a noção
de que não há mais nada a se fazer; tudo o que for feito a partir dali é um mero
procedimento burocrático.
Enfrentamento da morte através dos tempos
Não seria novidade afirmar que a morte sempre foi dotada de mistérios, segredos
e crenças, sendo um dos mais antigos questionamentos humanos. Porque morremos e quais
as representações criadas para explicar a finitude dos seres são questões que se perpetuam e
atravessam os tempos.
Hoje o “morrer” tem novos significados, digo novos porque outras representações
foram criadas pelas sociedades (principalmente a ocidentalizada e medicalizada) e várias
tecnologias são criadas para atenuar, “atrasar”, facilitar, retardar, diminuir a dor e o
sofrimento do indivíduo no momento da morte.
Nas sociedades tradicionais são inegáveis os registros da morte epidêmica de
crianças por doenças infecciosas, de mulheres por parto ou mesmo de homens pelas guerras
e doenças como o tétano. Poderíamos afirmar que verdadeiramente as epidemias eram
fatores que determinavam a morte. O “morto de guerra” era considerado um “glorioso”; as
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crianças “anjos” e as mulheres “nobres” por terem “lutado” pela sobrevivência do seu filho
e tê-lo dado à vida mesmo após o sacrifício da sua.
O significado atribuído à morte nesta época era o da salvação, a passagem da vida
para a morte deveria, antes de qualquer outro procedimento, ter como autoridade a figura
religiosa para abençoar aquele que está para morrer ou aquela que está por parir. Afinal era
o padre o dono do poder de trazer à vida um ser já sacralizado ou despedir-se do morto com
a autoridade de perdoar seus pecados, desde que se arrependesse dos mesmos naquele exato
momento do suspiro final.
Com as epidemias os padres que andavam de casa a casa também eram vitimas do
adoecimento e morte. Ao circular por estes espaços, casas repletas de moribundos, os
padres não conseguiam benzer todas as pessoas que necessitavam antes de morrerem pela
causa a qual seus fiéis também morriam (Elias, 2001). As epidemias avançavam em um
curto espaço de tempo devido às más condições de habitação e ausência total de regulação
sanitária. A degradação do corpo era vista no processo de adoecimento e depois da morte,
pois não havia cemitérios.
As crianças eram batizadas um ano ou dois após seu nascimento, pois não poderia
prever se iriam “vingar” a morte. O registro era feito somente após a certeza que
sobreviveriam. Os miseráveis morriam nos hospitais, que antes chamados hospice em
Londres, tinham o significado de um “morredouro”. Foucault (1979) analisa que o pobre
era alguém que necessitava ser assistido material e espiritualmente na ideologia da época.
Neste espaço trabalhavam àquelas pessoas dotadas de um espírito sacerdotal – por
caridade ou por arrependimento de seus próprios pecados. Basta lembrar da história da
formação profissional dos enfermeiros, atividade iniciada por ex-prostitutas idosas que
desejavam o perdão dos seus pecados. Com o início da profissionalização dos mesmos, um
broche na roupa era utilizado para diferenciar as ex-meretrizes das profissionais por
formação técnica.
Em uma época de valorização extremada da família nuclear, os “moribundos”
tinham consciência da aproximação da própria morte, pois as epidemias (ou pestes)
marcavam a pele e traziam os sinais da morbidez com a evolução do quadro. Ao reconhecer
os sinais de sua própria morte, os amigos e parentes eram comunicados, este era o momento
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dos arrependimentos, despedidas e perdões. O adoecimento que se agravava trazia a certeza
da morte.
Em grande parte dos casos, a morte se dava em casa com a família ao redor. A
casa ficava aberta para que o corpo fosse velado comunitariamente. As crianças poderiam
presenciar a cena (Elias, 2001). A comunidade vivia a realidade da morte entre pessoas
muito jovens e por causas hoje consideradas muito simples. Velar o corpo era o conforto
para a família que aguardava a chegada dos vizinhos com as portas de suas casas abertas e
esta era uma realidade rotineira devido o grande número de mortos.
O mais importante de toda essa história é que o “moribundo” era o protagonista de
tudo. A cena girava em torno dele. A morte era o momento em que ele era o foco e tinha
voz (Menezes, 2004). O momento de morrer era vivido lentamente, com despedidas e
depoimentos surpreendentes aos familiares. Ele sabia “sua hora”, os sinais de seu fim e era
o centro neste último momento de sua vida.
Com a chegada do século XX, o Iluminismo – idade das luzes, outros
protagonistas vivenciam a cena. A ciência avançou de forma incontestável. O médico e sua
equipe trouxeram a autoridade da competência técnica para responderem, com
argumentação científica, por esta cena.
Quando se está para morrer ou parir, não se lembrava do padre, mas sim do
médico – um profissional que deveria estar ao seu lado no momento da dúvida sobre a
vinda da morte ou da chegada de um novo ser ao mundo. A crença se desloca da religião
para a ciência. A família passou a delegar os cuidados do seu moribundo ao médico.
Apesar de datado o seu nascimento no século XVIII, o hospital manteve sua
estrutura espacial; mas a introdução de mecanismos disciplinares é que possibilita sua
medicalização e o confinamento por princípio segregador (Foucault, 1979).
O surgimento dos antibióticos e das vacinas, de forma autoritária, trouxe
resultados científicos passíveis de comprovação. Este era o diferencial do conhecimento
produzido pela época; tudo era comprovado através de sinais no próprio corpo. A somar-se,
ainda, a tecnologia empregada para o retardamento da morte: na Noruega, em 1946, criou-
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se o primeiro “pulmão de aço”, o arquétipo do respirador artificial4. Na Europa o ultra-som
surgiu através de uma tecnologia utilizada para encontrar submarinos em alto mar. Bem
como o uso do lazer em processos cirúrgicos – resultado de tecnologias utilizadas em
guerras (Menezes, 2003).
A primeira experiência de um Centro de Terapia Intensiva (CTI) aconteceu a
partir da experiência do respirador artificial: uma caixa de metal que pressionava o corpo,
forçando os pulmões. Essa experiência foi primeiramente testada em crianças. O ambiente
era composto da equipe médica e enfermagem, o respirador, o doente e o espaço confinado
(Menezes, 2004).
Em 1969, ano em que o homem pisou na lua, foi realizado o primeiro transplante
de coração5, o transplante só pode ser realizado devido existência de um respirador
artificial. Agora, respira-se artificialmente, coração não pára (mesmo desconectado ao
corpo) e cria-se o conceito de “morte cerebral”. O indivíduo só é considerado morto quando
o cérebro não mais responde, pois todos os outros órgãos estão sob controle (Menezes,
2004).
O doente, despossuído de voz, diferencia-se do moribundo descrito no processo
histórico acima. No século XX, o hospital agregava a família, o doente e a equipe. A
primeira, sem nenhum conhecimento do que haveria de ser feito pelo seu ente. O segundo,
sem as vestes próprias, nu, com um roupão verde padronizado, o corpo entregue à equipe
médica e de enfermagem. A equipe, detentora da autoridade científica, responsável pela
continuidade da vida e também pelo fracasso profissional se o doente chegar a óbito.
O isolamento, a exclusão do indivíduo do processo decisório sobre sua condição
de adoecimento, luz fria, ausência de familiares, quarto sem janelas6 e uma infinidade de
aparelhos conectados ao seu corpo em uma sala fria devido o ar condicionado - compõem a
cena do ser humano que está “em processo” de morte. Elias (2001) ressalta que a morte em
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O respirador artificial mudou a concepção de morte. Antes, ao parar a respiração ou os batimentos cardíacos,
o indivíduo era considerado morto. A partir deste período, não. A morte tornou-se um processo. Os órgãos
param aos poucos, um por um. Cria-se o argumento científico de morte cerebral ou falência múltipla dos
órgãos. O indivíduo é considerado morto por partes do corpo, aos poucos (Menezes, 2004).
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Como se faz um transplante de coração? Por escrever para profissionais das ciências humanas, cabe
descrever: 1) retira-se todo sangue do corpo e a circulação passa a ser de forma extracorpórea; 2) respira-se
artificialmente e; 3) retira-se o coração e coloca-se outro no lugar.
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Os CTI´s, quando possuem janelas, geralmente são janelas altas e pequenas com insul film. Dentro, perde-se
totalmente a noção do tempo.
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um CTI é uma morte higienizada se comparada aos nossos antepassados; os moribundos
são tratados de acordo com o mais recente conhecimento biofísico especializado – mas
neutra de sentimentos, podem morrer em um total isolamento.
Enquanto nas sociedades tradicionais o grande receio do moribundo era ter a
extrema unção antes de morrer, neste século, passa a ser o medo de sentir dor e de morrer
só. Os hospitais passam a ficar repletos de idosos e vitimas da violência urbana, solitários e
entubados; afinal praticamente é erradicada a mortalidade de crianças e a vida se prolonga.
cuidados paliativos, uma “boa morte” é necessária
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Segundo a Organização Mundial de Saúde, “Cuidados Paliativos consistem na
abordagem para melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus familiares, no
enfrentamento de doenças que oferecem risco de vida, através da prevenção e alívio do
sofrimento. Isto significa a identificação precoce e o tratamento da dor e outros sintomas de
ordem física, psicossocial e espiritual”.
Esta é a definição, na íntegra do texto, que revela o que são cuidados paliativos no
site do Instituto Nacional do Câncer (INCA). Esta instituição foi uma das precursoras neste
tipo de abordagem no país, afinal seu público, quando em fase terminal, torna-se uma
clientela diferenciada; pois se denomina por pacientes fora de possibilidades terapêuticas
(FPT). O que isso significa? Significa que este tratamento é dado aos pacientes que
clinicamente já não há nada a ser feito por eles. Os recursos científicos para a obtenção da
cura se esgotam e a certeza da morte é presente e inquestionável.
Quando o paciente não pode ser curado, para a filosofia deste tipo de tratamento
ainda há muito que fazer por ele. Os cuidados paliativos visam prolongar a vida do doente
com boa qualidade, retardar a morte, aliviar o sofrimento, integrá-lo novamente à
comunidade e à sua família. É uma prática comum em tratamentos na área de oncologia e
também em infectologia (HIV/AIDS). Segundo a revista Prática Hospitalar (27),2003; em
O termo “boa morte” foi apropriado da tese de Menezes (2004) quando relata sobre os significados do
modelo de morte atual.
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1994 existia dez equipes de cuidados paliativos no Brasil, em 2003 somavam-se mais de
quarenta.
Não podemos considerar os cuidados paliativos como uma especialidade médica
porque pressupõe a atuação multiprofissional. É interessante observar que esta
especialidade nunca será tarefa de um único profissional, mas sim de uma equipe preparada
para isso. O que se prega como objetivo desta proposta de tratamento é cuidar do indivíduo
em todos os aspectos: seu corpo, mente, espírito e social. Aliviar a sua dor, diminuir seu
sofrimento e ampliar sua qualidade de vida.
Estas definições oficiais do ministério da saúde nos levam ao questionamento de
qual tipo de morte ou processo de morte estão sendo produzidos. O que é morrer bem?
Morrer com “qualidade de vida”? O que é um tratamento da saúde física, social,
psicológica e espiritual?
A visita domiciliar é parte principal deste atendimento para o doente, para a
família e principalmente para o médico. A idéia é que o profissional se beneficie como ser
humano ao realizar esse trabalho. Já o paciente deverá ser acompanhado pela equipe no
lugar mais adequado para praticá-lo: sua própria casa. Normalmente a família recebe
orientação do paliativista de como cuidar do seu familiar doente. O médico, assistente
social, enfermeiro e psicólogo ensinam cuidados como, por exemplo, não deixar o doente
sozinho por muito tempo, conversar com ele, abraçá-lo. Ensina, também, a respeitar o
doente mesmo que ele se encontre, por exemplo, em coma, pois o último sentido que se
perde é a audição e ele não deve escutar discussões ou qualquer tipo de coisa que o
desagrade, pois isso pode prejudicar seu tratamento.
O discurso disseminado pelos profissionais que atuam com cuidados paliativos é
que a partir da segunda metade do século XX, a medicina teve um desenvolvimento
fantástico em seu aspecto científico, mas perdeu todo seu lado de humanização e fazer
cuidados paliativos é resgatar esta humanização. O paciente e sua família devem ser bem
tratados; quando não há mais cura o papel do paliativista é fazer com que a morte ocorra
com dignidade.
A terapêutica paliativa é voltada para o controle sintomático e preservação da
qualidade de vida para o paciente sem função curativa, de prolongação ou de abreviação da
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sobrevida. A empatia, bom humor e compreensão são integrantes fundamentais da
terapêutica. Deixa de ser uma preparação para morte e passa a assumir um papel de suporte
a toda família do doente (Ministério da Saúde, 2001).
Em várias produções científicas que pesquisei, concluí que o assistente social tem
um papel determinante para a concretização dessa nova forma de tratar, cuidar. Os cuidados
paliativos só se operacionalizam com a visita sistemática ao paciente em sua casa. O
treinamento do cuidador é parte deste tratamento. A família é o foco da abordagem para a
preparação da casa, do doente, dos amigos no prolongamento da vida e na abreviação da
morte.
O assistente social8 administra e gerencia a divisão das tarefas em equipe, atende
os familiares e os treina para aceitação desta nova fase da vida e, muitas vezes, fora do
espaço da casa do doente, treina9 pessoas que serão voluntárias para os cuidados com outras
pessoas também fora da possibilidade clínica e científica de continuar a viver.
Um dos instrumentais mais utilizados pelos assistentes sociais é a visita
domiciliar. Por meio dela, lançamos mão de outras técnicas como a entrevista a familiares
de forma sistematizada, atendimentos à família (em grupo), e visam intervir nas relações
estabelecidas; a divisão de papéis e tarefas em um âmbito domiciliar. Quando necessário,
também são resgatados amigos e familiares que estavam distantes. É mapeado o resgate de
uma rede social daquele doente que até então se considerava perdida.
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No site do St. Christophers Hospice de Londres (instituição especializada somente em cuidados paliativos)
existe a definição de algumas atividades do serviço social. “Dentre elas a mediação e a articulação da rede
social do paciente, como: os parceiros de trabalho, membros da família ou amigos. A preocupação da equipe é
que possa haver coisas significativas a dizer das pessoas dessa rede para o paciente em um momento como
este. O assistente social pode ajudar essas conversações longitudinais e organizar o planejamento prático
destas relações” (http://www.stchristophers.org.uk em 11/03/2005). [tradução nossa]. Destacamos o papel
articulador de uma rede afetiva que o assistente social desempenha com a finalidade de envolver o usuário e
assim dinamizar a relação de cuidado integral. Cabe ressaltar que St. Christhopher é o santo que protege os
viajantes e no hospice a morte é concebida apenas como uma passagem. É uma instituição fora do hospital; o
doente que nele é atendido recebe a concepção de “totalidade” para a saúde (bio, psico, social e espiritual).
Aquele que cuida de alguém doente está propenso a grande crescimento espiritual. Nos hospices vigoram a
filosofia que o doente, mesmo terminal, só pedirá para morrer (eutanásia) se não for bem assistido ou bem
cuidado. Conceituam-se como um modelo cristão/humanista de saúde. Foi uma das primeiras instituições que
atendiam sob a ótica do que hoje chamamos de cuidados paliativos. Na instituição, em tratamento, o doente
deverá ter o direito de dizer e ouvir cinco frases “me perdoe, te perdôo, eu te amo, obrigado e adeus”
(Menezes, 2004). A equipe de um hospice visa o conforto do doente (controle da dor) e a aceitação da morte.
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Muitos cursos e treinamentos sobre cuidados paliativos em todo Brasil oferecem como disciplina
informações sobre Tanatologia (estudo ou tratado sobre a morte), com enfoques em: biologia e deontologia da
morte, psicologia da morte, espiritualidade da morte, eutanásia e por fim cuidados paliativos.
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Em entrevista a assistentes sociais que compõem uma equipe de cuidados
paliativos em um hospital público da Grande Vitória/Espírito Santo somei relatos
minuciosos sobre o enfrentamento da morte por estas famílias que estão sendo
acompanhadas. Uma delas em uma visita domiciliar ouviu de uma senhora que tinha
somente alguns dias de vida que não queria que o seu esposo soubesse que já presentia a
chegada de sua morte; enquanto isso o marido relatava para o enfermeiro, na mesma casa,
em outro ambiente, que não queria que sua esposa soubesse que ele estava certo que restava
à sua esposa apenas poucos dias de vida. Os sinais dados pelo cansaço do corpo, as dores
incontroláveis, a dificuldade em conseguir se alimentar dava ao casal a certeza da finitude
da paciente. O clima era de ocultação do presságio, mas de manutenção da cordialidade,
troca de afetos e cooperação que deveria ser mantido.
O termo utilizado pelos assistentes sociais paliativistas é que este paciente está
“fora de possibilidade de cura” e não “fora de possibilidade terapêutica” – uma alusão à
definição macro de cuidados paliativos que descreve o ministério da saúde: a cura científica
para este paciente não existe, mas terapêuticas de cuidado e tratamento sempre são
possíveis para proporcionar-lhe uma morte digna.
Segundo os assistentes sociais o suporte com aparelhagem e recursos humanos
oferecidos pelo hospital são para a casa, mas o paciente é da família. Os ensinamentos da
equipe sobre o momento do banho ou das conversas com o enfermo devem ser momentos
de afeição, ternura e benevolência.
Em uma entrevista o assistente social relatou-me que na rotina dos atendimentos
nas enfermarias o médico pode diagnosticar que o paciente está “fora da possibilidade de
cura”. Em seguida, com o diagnóstico fechado, prevendo que a morte é certa, o médico
pergunta ao assistente social: “Quando posso dar alta? Quanto tempo vocês precisam para
preparar esta família para ficar com ele [o paciente] em casa?” Isso foi considerado um
grande avanço para a equipe de serviço social., pois na alta social é que o profissional de
serviço social avalia se a família está pronta ou não para receber a equipe de paliativistas
em casa e cuidar do seu doente até a morte.
Para o assistente social paliativista, a alta social representa o fim do
acompanhamento
hospitalar
e
o
início
de
um
acompanhamento
aos
moldes
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hospiatalocêntricos no âmbito domiciliar. Deve-se destacar que entre os assistentes sociais
funcionários efetivos dos hospitais entrevistados, os mesmos profissionais que atuam nas
enfermarias e ambulatórios são os que também realizam cuidados paliativos. O número de
contratações de assistentes sociais efetivos geralmente não é satisfatório em hospitais de
grande porte no que se refere à demanda atendida.
O manuseio e o gerenciamento de medicamentos para dor crônica deve ser parte
do treinamento oferecido ao familiar-cuidador; bem como uma certa destreza para
alimentar o paciente que já não consegue ingerir alimentos. Entretanto, tais cuidados, disseme uma assistente social, despertam o sentimento de “consciência tranqüila” da família
cuidadora até os momentos finais do seu doente. “No momento da morte estes pacientes
raramente choram; apegam-se a religiões em 99% dos casos; quase sempre têm uma morte
feliz. Parecem uma vela que vai se apagando aos poucos”. Isto, porque, sentimentos como:
pedidos de perdão, aproximação de familiares que há muito não se encontravam, poder
auxiliar um amigo ou parente no momento da dor e do sofrimento com a doença são
situações, ações e sentimentos despertados pelo paliativista na família. A maior parte das
vezes este paliativista é o assistente social – considerado o profissional que proporciona
esses momentos de fortalecimento das relações, e, também aquele que providencia recursos
materiais emergenciais que são demandados pelos cuidados básicos quando necessários.
Considerações Finais
O trabalho do assistente social tem acompanhado o modelo disciplinar da saúde e,
entretanto, muitas são as concepções de saúde, doença, vida e morte que tem sido
produzidas em nossa contemporaneidade. Nos ambientes hospitalares e unidades de saúde
várias intervenções estão sendo pensadas no sentido de facilitar e vida em períodos os quais
a morte é próxima.
A especificidade do olhar social sobre a morte mistura-se ao olhar sobre as
relações afetuosas, papéis socialmente construídos e atribuídos aos membros de uma
família ou rede afetiva. O assistente social torna-se aquele que reforça o papel de facilitador
nas relações de um grupo familiar e sob esse novo prisma, socializa suas técnicas de
intervenção em âmbito domiciliar.
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A morte, já vista como castigo, desgraça, ou infortúito, recebe várias
representações sociais através dos tempos, bem como várias formas de tratá-la ou enfrentála. O avanço inegável da ciência determina que o ser humano “não morre” mais. As
notícias de morte são consideradas um fracasso para a equipe de saúde que não
conseguiram através de técnicas cientificas retardar a morte e ganhar sobrevida. A vida não
pode ter fim e se tiver, não pode ser com dor ou sofrimento. Não pode carregar mágoas ou
rancor. Essa é a boa morte ou a morte digna.
Neste modelo de cuidado em saúde a medicalização passa a fazer parte de uma
rotina doméstica, com direito a equipe e aparelhagem montada nas residências. O
atendimento ao doente em fase terminal, sem a possibilidade de cura prevista pelo
argumento científico, ganha status de protagonista nos seus momentos finais. Tudo, no
modelo de saúde ditado pelos cuidados paliativos, gira em torno dele; com o intuito de dar
voz ao sujeito nos seus dias finais.
Discordamos de Bravo (2004) quando diz que os objetivos profissionais do
assistente social passam pela compreensão dos aspectos sociais, culturais e econômicos que
interferem no processo saúde-doença e o enfrentamento dessas questões. Para a autora, a
atuação do assistente social não pode se reduzir a questões subjetivas vividas pelo usuário
nas diferentes especialidades da medicina, pois reforçaríamos a concepção da estratificação
por área das patologias. No entanto, consideramos que o nosso entendimento sobre aquilo
que é considerado “social” não abarca questões que passam por uma outra forma de
entender as relações sociais. A dimensão sobre o que é social em um sistema de trocas
cooperativas no trabalho da saúde, nos proporciona o entendimento que fazer saúde é muito
mais do que objetivar relações sociais, pois as mesmas relações também são subjetivas.
Como o próprio nome diz, o que paliativo é momentâneo. Por ser circunstancial,
mesmo com a certeza da morte; um cuidado que é paliativo tem menor valor? O que
determina a dimensão social de um acompanhamento realizado pelo assistente social? Qual
o parâmetro que mensura um trabalho ter menos atributos que outro?
O controle sobre o corpo, sobre as relações, sobre as redes sociais ganha outras
dimensões que chegam a afetar o trabalho do assistente social (há tão pouco tempo
histórico) considerado um profissional integrante de uma equipe de saúde. A alta social
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considerada o fim da intervenção do assistente social, passa a ser o começo de uma outra
intervenção. A alta não representa a cura para os cuidados paliativos, mas a luta a favor da
vida, sem dor, sofrimento e com o máximo de cuidados. Tecer, analisar, avaliar e
movimentar uma rede social é papel da saúde e função do assistente social. Novas
demandas atribuídas sob um novo olhar sobre as questões sociais.
Referências Bibliográficas
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controle de sintomas. Rio de Janeiro: INCA, 2001.
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Social & Sociedade. São Paulo: Cortez, (62), 2000.
Elias, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editora, 2001.
Foucault, Michael. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Editora Graal/15ª edição, 2000.
Menezes, Raquel Aisengart. “Em busca da ‘Boa Morte’: uma investigação sócio-antropológica
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Menezes, Raquel Aisengart. “Tecnologia de morte natural: o morrer na contemporaneidade. In:
Physis. 13 (2), 2003.
Vasconcelos, Ana Maria. A Prática do Serviço Social – cotidiano, formação e alternativas na área
da saúde. São Paulo: Cortez, 2002.
Sites consultados
www.inca.gov.Brasil/cuidados paliativos/dor
www.secpal.com
www.aamycp.org.ar
www.nhpco.org/templates
www.hospicefoundation.org
http://www.stchristophers.org.uk
— todos os sites citados entre os consultados foram revistos em 07 de julho de 2005
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