Papa João Paulo II: Perseguição aos cristãos nos dias de hoje

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Índice
TEXTO INTRODUTÓRIO:
Papa João Paulo II: Perseguição aos cristãos nos dias de hoje
APRESENTAÇÃO
I. A IGREJA SOB A BANDEIRA DO QUARTO CRESCENTE
Introdução
SUDÃO
Cristãos e africanos: desfavorecidos economicamente, perseguidos
pela sua fé e origem
INDONÉSIA
Desde a independência, violência contra as minorias
PAQUISTÃO
O quotidiano cristão: medo constante de repressões
EGIPTO
Discriminação fora dos centros turísticos
SÍRIA E LÍBANO
Entre o terrorismo do Estado e a tolerância
ARÁBIA SAUDITA
Muçulmanos controlados, cristãos atormentados
NIGÉRIA
Cristãos num país dividido e dilacerado pela violência
TURQUIA
Laicismo autoritário sem lugar para minorias religiosas
IRAQUE
Liberdade relativa e futuro incerto
IRÃO
Promessas da Constituição defraudadas na vida quotidiana
II. A IGREJA SOB A BANDEIRA DA FOICE E DO MARTELO
Introdução
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CHINA
Uma autoridade pública que exige obediência absoluta
VIETNAME
Desde há séculos uma Igreja de mártires
LAOS
Fiéis entre a tolerância e a repressão
COREIA DO NORTE
Escassez de alimentos e violações dos direitos humanos
CUBA
Tolerância condicionada sob um regime autoritário
III. A IGREJA NO MEIO DE UM CONFLITO DE INTERESSES
Introdução
ÍNDIA
Estado secular e nacionalismo hindu agressivo
VENEZUELA
A Igreja como obstáculo à ditadura
GUATEMALA
Crimes contra cristãos encobertos até aos dias de hoje
BÓSNIA-HERZEGOVINA
Agressão sérvia contra cristãos e muçulmanos
Ajuda à Igreja que Sofre
Fontes utilizadas ao longo do livro
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I. A IGREJA SOB A BANDEIRA DO QUARTO CRESCENTE
INTRODUÇÃO
A relação entre o Cristianismo e o Islão não está certamente livre de tensões; e
assim é há séculos. As razões são variadíssimas.
Há certas características que são comuns a ambas as religiões: são monoteístas
e crêem num Deus Criador. Esse Deus - Alá em árabe - não só criou o céu e a
terra, como também deu vida a cada ser humano. Ele revela-se em escrituras
que pretendem ser vinculativas e ter validade absoluta, sendo estas, para os
cristãos, o Antigo e o Novo Testamento e, para os muçulmanos, o Alcorão.
Ambas as religiões reclamam para si um direito absoluto que, no fundo, exclui
um consenso: o de serem ambas profetas e mensageiras da verdade.
A história comum, constantemente marcada por confrontos violentos, deixou
marcas profundas de ambos os lados: cepticismo, preconceitos, desconfiança e
rejeição são regra. Tanto cristãos como muçulmanos possuem, quanto muito,
uma meia-verdade alimentada por um “ouvir dizer”. Até em círculos intelectuais,
os conhecimentos sobre o pensamento, intenções e ideias do outro lado são
bastante parcos. Isto aplica-se tanto às sociedades cristãs como ao mundo
islâmico. No entanto, na Europa, observa-se uma certa indiferença em relação a
ambas as religiões. Os muçulmanos identificam o Cristianismo, muitas vezes,
simplesmente com o Ocidente, que é colocado sob uma suspeita geral
fundamental: a de querer dominar o Islão. A potência económico-científica dos
EUA e da Europa, que impõem os seus interesses, bem como o recente
comportamento militar dos EUA e de outros Estados europeus na região do
Golfo são encarados como uma ameaça. A pretensão dos não-muçulmanos,
portanto, dos “infiéis”, de pôr ordem nos destinos dos fiéis é entendida por
muitos muçulmanos como uma atitude presunçosa e humilhante. As
susceptibilidades são enormes e a consciência da própria impotência também.
“Um dos problemas fulcrais reside no facto de o Islão, como religião universal,
não ter conseguido, até hoje, enfrentar confiadamente a modernidade e os
problemas dos tempos contemporâneos", afirma o intelectual tunisino Mohamed
Talbi, que defende há vários anos um diálogo inter-religioso. Não é, pois, de
admirar que, na maioria das sociedades islâmicas, os cristãos do país sejam
olhados com desconfiança. Os círculos interessados aproveitam e fomentam
esse tipo de atitude.
E do outro lado? Como reagem os ocidentais? Após inúmeros atentados
terroristas de grupos islâmicos, reina um clima de insegurança. Depois do
assassinato do realizador holandês, Theo van Gogh, a 2 de Novembro de 2004,
em Amesterdão, aguçaram-se as discussões nos Países Baixos. Alguns meios
de comunicação social atiçam uma histeria que remete para ressentimentos
subconscientes: “Uma observação inteiramente pessoal e aparentemente
secundária deveria dar que pensar: o facto de se colocarem quase
automaticamente aspas quando se trata da perseguição de muçulmanos por
‘cristãos’ e de não se fazer a correspondente diferenciação no caso contrário.
Pois também não é próprio do Islão perseguir cristãos, mesmo que para isso os
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extremistas militantes possam basear-se num ou noutro verso do Alcorão, que
dissociam do contexto histórico. Contudo, a longa história das relações entre
cristãos e muçulmanos associa os cristãos a uma imagem claramente
denegrida” (Spuler-Stegemann, p. 123).
A carga da própria História foi uma das causas que levou a Alemanha a dialogar
com o Islão. No entanto, este diálogo permanece superficial, porque apaga as
diferenças e particularidades existentes e simula um consenso que não existe.
Esta não é uma atitude menos alienada da realidade que a islamofobia.
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Quem limita a liberdade religiosa?
Enquanto nas democracias de cariz ocidental os muçulmanos possuem direitos
que, de um modo geral, lhes permitem exercer o seu culto, tanto particular como
publicamente, criar associações, realizar reuniões, divulgar publicações,
construir casas de Deus, etc. (direitos que até os protegem do alcance dos seus
países de origem), em inúmeros Estados com uma maioria islâmica, os cristãos
são tratados como cidadãos de segunda classe, devido à sua fé: “O êxodo de
minorias não-islâmicas de países islâmicos iniciou um curso imparável” (SpulerStegemann, p. 124).
No entanto, é preciso fazer distinções quando procuramos as causas da
situação precária dos cristãos num determinado círculo cultural, se não
quisermos condenar totalmente uma outra religião e, colectivamente, os seus
fiéis:
Por um lado, há que responsabilizar um interesse ou uma ideologia de Estado
dos países em questão que, em matéria de direitos humanos, não são
propriamente escrupulosos. A política que, de facto, é dirigida contra os cristãos
pode ter uma motivação, por exemplo, económica: no Sudão, a guerra civil
contra o Sul cristão do país serve, ou serviu, o interesse do Estado na
exploração de riquezas locais do solo. Na Turquia, domina a ideologia laica do
kemalismo, o Islão turco, que, controlado e talhado à medida do Estado, é a
única religião tratada com benevolência.
A repressão da liberdade religiosa pelo Estado nos países afectados é,
frequentemente, dirigida contra a livre prática do próprio Islão, sempre que se
trata de uma crença que representa uma minoria nesse país (por exemplo, xiitas
na Arábia Saudita ou sunitas no Irão) ou tece ambições políticas, o que não é
propriamente alheio à essência do Islão, antes pelo contrário. Assim, explodiu
uma onda de violência na Argélia após o partido islâmico ter ganho umas
eleições e, consequentemente, a perspectiva de chegar ao poder. O regime
impediu-o, detendo os titulares do mandato democraticamente eleitos e os
respectivos funcionários do partido. São precisamente as forças islâmicas que
registam um incremento constante devido ao ressentimento que a população
nutre em relação aos políticos beatos, corruptos ou ocidentalizados, sobretudo
na Arábia Saudita, parceiro de exportação de petróleo dos EUA e, ao mesmo
tempo, o país que alberga precariamente as cidades sagradas de Meca e
Medina.
Por outro lado, os Estados deste ambiente cultural não têm qualquer dificuldade
em servir-se do apoio social, quando jogam a cartada religiosa para justificar
medidas que excluem, atormentam ou reprimem os cristãos. Pois tal como
existem passagens no Alcorão que podem servir para defender uma convivência
com cristãos, existem outras que exprimem a componente agressiva desta
religião. Nem no círculo cultural muçulmano, nem no cristão, se pode presumir
que haja, na generalidade, um conhecimento equilibrado e diferenciado da
própria religião e das suas prescrições e, menos ainda, da religião alheia.
Precisamente em atitudes problemáticas, é bastante frequente verificar-se uma
fusão de particularidades culturais, de ressentimentos regionais ou de tradições
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supersticiosas com unilateralidades religiosas. É por isso que os instigadores e
fanáticos não têm qualquer dificuldade em ganhar influência política ou em
encontrar colaboradores para desordens e acções parapoliciais. Na Nigéria,
existem os hisba, encarregados de entregar à polícia os muçulmanos que não
respeitam a Sharia, mas que são conhecidos por executarem imediatamente a
detenção e punição, por conta própria. O governador de Zamfara, Ahmed Saui
Jerima, por sua vez, mantém uma polícia da Sharia particular, que utiliza
também para intimidar rivais políticos.
Religião e Estado no Islão
Embora a Constituição da maioria dos Estados islâmicos conceda liberdade
religiosa aos não-muçulmanos, estes, na verdade, são apenas tolerados, já que
não possuem determinados direitos. A inexistente neutralidade destes Estados
em questões religiosas é por eles justificada com motivos religiosos: os
seguidores de outras religiões estão fora da sociedade islâmica, da ummah (em
árabe), um conceito que o próprio profeta Maomé difundiu.
Os fiéis têm de seguir o Alcorão, a Suna e a Sharia; caso contrário, colocam-se
ao mesmo nível dos infiéis e, consequentemente, contra as leis e a vontade de
Deus. A fé não é uma questão privada, dizendo antes respeito a todos os níveis
da existência humana. Idealmente, a religião e o Estado ou a religião e a política
também formam uma unidade. No entender liberal, o Estado é uma instância
neutral que não pode favorecer nenhuma religião. Isto contradiz o pensamento
muçulmano, pois o Estado não pode ser, de forma alguma, neutral; por isso, a
religião também não prevê uma separação entre o público e privado.
Se um muçulmano se converter ao Cristianismo, é um acontecimento de
interesse público. O seu passo representa uma afronta ao Islão e, como tal,
pode ser reprimido por todos. “A apostasia voluntária do Islão representa um
crime digno de morte para alguém que nasceu como muçulmano ou
posteriormente se converteu ao Islão, tanto na concepção tradicional como na
opinião generalizada de teólogos contemporâneos influentes” (Schirmacher, I, p.
106).
Tendencialmente, no entendimento jurídico islâmico, uma conversão que leva ao
afastamento do Islão é um acto punível que o Estado tem de reprimir. Na
Turquia, onde foi abolido o direito islâmico como base da Constituição, mudar de
religião é possível, de jure, mas, de facto, é difícil, porque não é nada simples
substituir o campo “muçulmano” por “cristão”, nos documentos pessoais.
Para os líderes religiosos islâmicos, que frequentemente exercem uma forte
influência política, a transição para outra religião é naturalmente uma
insanidade, uma vez que, no seu pensamento, só o Islão é que pode completar
a existência humana. Consequentemente, a confissão judaica ou cristã é, na
melhor das hipóteses, tolerada (em árabe dhimmi, hóspedes, vigiados) e o
desejo de igualdade de tratamento de outras religiões é considerado uma
presunção. O direito para a missão (em árabe da´wa, chamamento, convite) só
assiste aos muçulmanos.
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Esta prática contradiz a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações
Unidas, de 10 de Dezembro de 1948, que foi assinada por praticamente todos
os Estados islâmicos. A Declaração só foi rejeitada pela Arábia Saudita, que
considera o parágrafo dezoito sobre a liberdade religiosa uma “propaganda
cruzadística”.
Neste contexto surge sempre o conceito de jihad, que significa literalmente
“esforço, empenho” e que, por norma, é traduzido por “guerra santa”. A par dos
“cinco pilares do Islão”, nomeadamente, credo, oração, esmola, jejum e
peregrinação, a jihad aparece referida em sexto lugar. Os jurisconsultos
muçulmanos distinguem quatro tipos: a jihad do coração, ou a luta defensiva do
Homem contra as más tentações e o demónio; a jihad da língua, ou o empenho
verbal na defesa da verdade, a jihad das mãos, ou o empenho activo pelo bem;
e a jihad da espada, ou a luta e guerra contra os infiéis e inimigos da fé. Perante
um cenário de violência crescente por parte de grupos islâmicos contra infiéis e
muçulmanos, este último tipo é dominante, pelo menos, na percepção do
Ocidente.
No entanto, devemos salvaguardar-nos de simplificações. No mundo islâmico, a
Sharia não é aplicada em parte alguma no seu sentido integral e original, mesmo
que os partidos político-religiosos tenham constantemente por objectivo a
reimplementação do direito islâmico e que, em alguns Estados, já tenha sido
mesmo proclamada. Também na História, este direito jamais passou de uma lei
ideal, nunca aplicada na sua totalidade. Na maioria dos países islâmicos, o
direito vigente rege-se apenas em parte pelas leis do Alcorão e da tradição.
“Existem grupos islâmicos que reclamam constantemente a implementação da
Sharia na sua totalidade, porque a consideram irrenunciável, enquanto lei de
Deus” (Schirrmacher, I, p. 278).
Diálogo – difícil e necessário
As ideias religiosas de muçulmanos e cristãos estão, há séculos, sujeitas aos
mais variados desenvolvimentos e interpretações sociais. No Cristianismo, o
Renascimento, a Reforma e o Iluminismo foram responsáveis por uma
modificação profunda do significado e da posição da(s) Igreja(s) cristã(s) no
Estado e na sociedade, bem como para o Homem individualmente. A religião foi
submetida a uma crítica, que à crença na redenção opôs a crença numa
evolução. No Islão, esta ideia também acabou por se revelar em rasgos, mas
por fim acabou por ser abafada, muitas vezes com violência. A crítica à religião
continua a ser uma questão perigosa em países de maioria muçulmana,
verificando-se, por isso, raramente.
Quando muçulmanos e cristãos falam sobre liberdade, direitos humanos e
tolerância, atribuem significados diferentes a estes conceitos. A título de
exemplo, os Estados islâmicos assinam a Declaração dos Direitos Humanos das
Nações Unidas e, ao mesmo tempo, restringem o direito do livre culto, o que não
constitui uma contradição para os mesmos. Na verdade, segundo o pensamento
islâmico, os direitos humanos estão sempre subordinados ao Alcorão e à Sharia.
Não é, pois, de admirar que a Arábia Saudita só tenha assinado a Declaração
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Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948 com um atraso de
dezassete anos e que tenha substituído no texto a palavra “Homem” por
“Muçulmano”.
Isto também se torna evidente na leitura da Declaração do Cairo sobre os
Direitos Humanos no Islão, votada a 5 de Agosto de 1990 por mais de cinquenta
ministros de Negócios Estrangeiros de Estados islâmicos, em nome da
Conferência Islâmica. O artigo 1.º sublinha que todas as pessoas são iguais,
independentemente da raça, cor da pele, língua, sexo, religião, opinião política
ou estatuto social. Contudo, segundo o artigo 25.º da Declaração do Cairo, todos
os direitos e liberdades estão subordinados à Sharia (caminho; direito islâmico),
que é designada como “única fonte competente para a interpretação e
explicação” de cada artigo desta Declaração. Assim, a liberdade religiosa em
sociedades islâmicas significa, para as minorias religiosas, que não podem ser
obrigadas a converter-se ao Islão, mas que isso não implica que lhes assistam
os mesmos direitos concedidos aos muçulmanos.
O Arcebispo de Izmir, Giuseppe Bernardini, chamou a atenção para o facto de
“ser necessário distinguir, no Islão, entre uma minoria com tendência para a
violência e uma maioria pacífica e honrosa. Porém, em nome da ordem de Alá,
todos se unem para marchar em conjunto.” E Joseph Coutts, Bispo de
Faisalabad, no Paquistão, frisa que o maior problema de um diálogo com os
muçulmanos consiste na falta de uma instância central vinculadora do lado
islâmico. Esta é uma opinião confirmada por Mohamed Talbi: “Em minha
opinião, seria imprescindível uma instância independente das organizações
políticas e dos Estados, que representasse o pensamento islâmico em todas as
suas expressões e pudesse actuar como interlocutor perante outras religiões do
mundo.”
Apesar deste tipo de obstáculos, a Igreja Católica assumiu, ou melhor,
comprometeu-se expressamente com uma atitude de diálogo. Assim consta na
Declaração Nostra aetate, do Concílio Vaticano II, sobre as relações da Igreja
com as religiões não cristãs: “A Igreja olha também com estima para os
muçulmanos. Adoram eles o Deus Único, vivo e subsistente, misericordioso e
omnipotente, criador do céu e da terra, que falou aos homens e a cujos
decretos, mesmo ocultos, procuram submeter-se de todo o coração, como a
Deus se submeteu Abraão, que a fé islâmica de bom grado evoca. Embora sem
o reconhecerem como Deus, veneram Jesus como profeta e honram Maria, sua
mãe virginal, à qual por vezes invocam devotamente. Esperam pelo dia do juízo,
no qual Deus remunerará todos os homens, uma vez ressuscitados. Têm, por
isso, em apreço a vida moral e prestam culto a Deus, sobretudo com a oração, a
esmola e o jejum.
E se é verdade que, no decurso dos séculos, surgiram entre cristãos e
muçulmanos não poucas discórdias e ódios, este sagrado Concílio exorta todos
a que, esquecendo o passado, sinceramente se exercitem na compreensão
mútua e juntos defendam e promovam a justiça social, os bens morais, e a paz e
liberdade para todos os homens.”
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