Quando aprendemos a ler, uma dada área do nosso córtex visual

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ID: 56819744
27-11-2014
Tiragem: 34943
Pág: 36
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 25,70 x 30,75 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 3
Aprender a ler
reorganiza o nosso
cérebro e melhora o
desempenho visual
Quando aprendemos a ler, uma dada área do nosso córtex visual passa a dedicar-se
ao reconhecimento da escrita. E esta reorganização funcional do cérebro acontece seja qual for a idade
em que se faz a aprendizagem da leitura — e parece ser idêntica em todas as línguas
Ana Gerschenfeld
N
unca é tarde de
mais para aprender a ler. Esta é
uma das conclusões de um estudo
publicado na última edição da revista Proceedings of the
National Academy
of Sciences (PNAS)
por uma equipa de investigadores de França, Bélgica, Portugal
e Brasil.
Mais: a aprendizagem da leitura
aumenta o desempenho visual das
pessoas, permitindo-lhes detectar
diferenças entre objectos de todo
o tipo — e não apenas na escrita —
mais depressa do que as pessoas
totalmente iletradas.
Estes cientistas já tinham publicado, em 2010, na revista Science,
um primeiro estudo sobre a forma
como a aprendizagem da leitura
deixa uma “marca” no cérebro humano. Na altura, compararam a actividade cerebral de pessoas analfabetas e de pessoas que sabiam ler
através da técnica de ressonância
magnética funcional. E concluíram
que a aprendizagem da leitura reorganiza literalmente o sistema visual
humano. Mais precisamente, mostraram que o facto de uma pessoa
aprender a ler leva ao aparecimento,
no seu córtex visual, de uma área,
chamada VWFA (visual word form
area) e especializada no reconhecimento das letras e das palavras
escritas.
Todavia, escreve agora na PNAS
a mesma equipa — que inclui José
Morais, conhecido especialista português de psicologia experimental
da Universidade Livre de Bruxelas;
Paulo Ventura, da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa;
Stanislas Dehaene, reputado investigador do Collège de France; e vários
outros neurocientistas, psicólogos e
especialistas de cognição humana —,
o estudo da Science não chegava para perceber quais eram as etapas do
processamento da informação visual
que eram alteradas pela aprendizagem da leitura. É esta lacuna que o
actual artigo visa agora colmatar.
Diga-se antes de mais que um dos
pioneiros da ideia de que o cérebro
muda quando se aprende a ler é português: trata-se do neurocientista
Alexandre Castro Caldas, actualmente director do Instituto de Ciências
da Saúde da Universidade Católica
Portuguesa, em Lisboa.
Voltando ao actual estudo, os autores submeteram voluntários adultos brasileiros e portugueses — 24
que sabiam ler, 16 ex-analfabetos e
nove totalmente iletrados — a testes
de discriminação visual enquanto
registavam a sua actividade cerebral.
Só que, desta vez, essa actividade foi
recolhida através de múltiplos eléctrodos aplicados no coro cabeludo
— ou seja, por electroencefalografia,
uma técnica mais precisa.
O teste consistia na apresentação
sucessiva de pares de imagens pertencentes a seis categorias de objectos diferentes: sequências de letras
(“pseudo-palavras”), sequências
de caracteres que parecem escritos
num alfabeto diferente (designadas
por “falsas fontes”), rostos, casas,
ferramentas e padrões axadrezados.
Cada par de imagens continha duas
imagens idênticas, duas imagens “em
espelho” ou duas imagens diferentes de objectos da mesma categoria.
Como os processos de discriminação visual em estudo não são
conscientes, não era pedido aos
participantes para discriminarem
conscientemente as imagens de cada par. De facto, “os participantes
deviam simplesmente estar atentos
[às imagens] e carregar num botão
de cada vez que surgia uma imagem
que não fazia parte do par (uma estrela preta)”, lê-se na PNAS.
Primeiro efeito da literacia: menos
de 200 milissegundos após a apresentação de sequências de letras
escritas, a actividade cerebral das
pessoas que sabiam ler aumentava
de forma espectacular na já referida
área VWFA, especializada no tratamento visual da escrita e situada na
zona lateral traseira do hemisfério
esquerdo do cérebro (nas pessoas
dextras). “O que isto significa é que
os efeitos da literacia emergem muito cedo no processo de tratamento
da informação visual”, disse Paulo
Ventura em entrevista telefónica ao
PÚBLICO.
Tigre à esquerda e à direita
“Um outro efeito muito forte [da literacia] é o aumento da precisão da
nossa discriminação dos objectos
visuais”, acrescenta este cientista.
Acontece que as pessoas que sabem
ler discriminam melhor duas imagens semelhantes (mas não idênticas) do que as pessoas iletradas. E
ainda um terceiro efeito detectado
pelos cientistas tem a ver com as
imagens “em espelho”— onde, mais
uma vez, o desempenho de quem
sabe ler é muito melhor do que o
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27-11-2014
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JOSÉ FERNANDES
de quem não sabe. “Saber distinguir
entre um ‘b’ e um ‘d’ e entre um ‘p’
e um ‘q’ basta para melhorar drasticamente a nossa discriminação das
imagens em espelho”, frisa Paulo
Ventura.
E de facto, os autores constataram
que estas melhorias do desempenho
visual associadas à literacia não se limitam às palavras escritas, estendendo-se também às outras categorias
de imagens apresentadas. “A literacia melhora o processamento visual
em geral”, diz Paulo Ventura.
E a seguir, brinda-nos com uma
colorida analogia: “Por exemplo,
se eu vir um tigre aproximar-se pela direita ou pela esquerda, o meu
sistema visual detecta que se trata
de um tigre, que é o que interessa (e
depois localizo o tigre). Ora, nós usamos este sistema até começarmos a
ir à escola, altura em que temos de
aprender a distinguir entre pares de
letras em espelho. E se eu antes tratava duas imagens em espelho como
idênticas, quando aprendo a ler pas-
so a discriminá-las — e passo a ver o
tigre da esquerda e o tigre da direita
como objectos diferentes.”
Ainda uma outra diferença foi
observada pelos autores, desta vez
ao nível do reconhecimento das caras, entre a actividade cerebral dos
participantes letrados e iletrados.
“A aprendizagem da leitura tem dois
efeitos muito importantes no funcionamento das regiões cerebrais
envolvidas no processamento visual”, resume por sua vez José Morais
num email: “Aumenta a capacidade
de discriminação de objectos muito
para além da identificação das letras; e conduz a uma reorganização
do processamento das caras.”
Reciclagem neuronal
O co-autor Stanislas Dehaene tem
uma teoria acerca desta reorganização cerebral ligada às caras, como
nos explica ainda Paulo Ventura: “As
áreas do cérebro que respondem à
identidade do rosto estão sobretudo no hemisfério direito e um pou-
co — muito pouco — no esquerdo.”
E a teoria de Stanislas de Dehaene
é que, na altura da aprendizagem
da leitura, ocorre uma “reciclagem
neuronal”.
Mais precisamente, segundo
Dehaene, refere Paulo Ventura, “a
invenção da leitura é demasiado recente (foi há uns 5000 anos) para
ter tido impacto ao nível do genoma
humano.” E o que isto quer dizer,
frisa ainda este investigador, é que
não fomos formatados para a leitura pela evolução — e que, por isso,
quando aprendemos a ler, temos de
“recrutar” para essa nova função
uma área do cérebro que até ali servia para outra coisa — neste caso,
para identificar rostos. “É como se
essa área fosse invadida, reciclada
para uma nova função”, diz Paulo
Ventura.
Mais: a partir do momento em
que aprendemos a ler, essa região
especializada que é a VWFA, essa
“zona cerebral das palavras escritas”, passa a existir. E é a mesma
em todas as línguas — em português,
em russo, hebraico, japonês, mandarim...
De facto, os resultados agora obtidos abonam em favor da ideia de
reciclagem neuronal. Estudos anteriores já tinham observado que,
quando lhes são apresentadas imagens de faces, as pessoas iletradas
activam uma área do seu hemisfério cerebral esquerdo que “calha”
justamente na área VWFA de reconhecimento da escrita usada pelas
pessoas letradas. Ora, os autores
do actual estudo constataram que,
quando as pessoas letradas estão a
discriminar duas faces, a actividade da região VWFA diminui. Mas,
ao mesmo tempo, a actividade aumenta numa área homóloga do seu
hemisfério cerebral direito. O que
sugere efectivamente que uma componente do processamento visual
dos rostos humanos terá sido “deslocada” de um hemisfério cerebral
para o outro quando o lugar onde
inicialmente residia ficou “ocupa-
do” pela aprendizagem da leitura.
Terá havido, portanto, reciclagem
neuronal.
Quer isto dizer que quando
aprendemos a ler, passamos a
reconhecer menos bem as faces?
“Não, antes pelo contrário”, responde Paulo Ventura. “Discriminamos melhor as faces, devido à
melhoria [geral] do processamento
da informação visual.”
Há ainda uma boa notícia a
destacar neste trabalho: os autores terminam dizendo que os seu
estudo confirma que, no cérebro
dos ex-iletrados — aqueles que
aprenderam a ler na idade adulta
—, a área específica VWFA, que se
activa com a leitura no hemisfério
esquerdo, também existe. “Não interessa a idade em que se aprende
a ler; a melhoria do processamento
da informação visual pode ser adquirida aos seis anos ou em adulto”, diz Paulo Ventura. “Nunca é
tarde para usufruir dos benefícios
cerebrais que a leitura traz”.
ID: 56819744
27-11-2014
Tiragem: 34943
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País: Portugal
Cores: Cor
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Área: 5,10 x 3,76 cm²
Âmbito: Informação Geral
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