Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro Diretrizes de Atendimento de Sífilis em Adultos Isabella Barbosa Cleinman Silvia Beatriz May Etiologia: Sífilis é uma doença bacteriana causada pela espiroqueta Treponema pallidum, a qual não é cultivável in vitro. Modo de transmissão: O principal modo de transmissão da sífilis é por via sexual, sendo a chance de aquisição da doença quando exposto a relação sexual com um indivíduo infectado pelo T. pallidum de 30%. Outros modos de transmissão incluem: • contato direto com lesão ativa (ex: lesão cutânea da sífilis secundária) • via transplacentária • transfusão sanguínea • inoculação direta acidental (ex: acidente ocupacional após coleta de sangue de paciente infectado) Manifestações clínicas: O período de incubação da sífilis é de 21 dias (∆t 3-90 dias). Sífilis primária: cancro duro ocorre no local da inoculação, e é caracterizado por lesão ulcerada única, indolor (exceto se infecção bacteriana secundária), de bordos bem delimitados, com cura espontânea em 2-8 semanas após o seu surgimento. Em imunodeprimidos, podem ser observadas múltiplas úlceras. Em mulheres, o cancro é dificilmente observável, por ser indolor e ter localização intravaginal. Sífilis secundária: resulta da multiplicação e disseminação do organismo, e persiste até que o hospedeiro seja capaz de desenvolver resposta imune adequada. A manifestação mais clássica é erupção maculopapular eritematoacastanhada difusa, não vesicular (com exceção da sífilis congênita), que acomete também palmas e plantas. Sintomas constitucionais também estão presentes, como febre baixa, artralgia, faringite, linfadenopatia generalizada e anorexia. Sífilis latente: é definida por teste sorológico treponêmico positivo, porém sem evidências clínicas da doença. É classificada em sífilis latente precoce quando ocorre em menos de 1 ano após a infecção primária, e sífilis latente tardia quando ocorre a partir de 1 ano apos a infecção primaria, podendo durar até 10 anos. A maioria das recorrências ocorre no período de sífilis latente precoce. Sífilis terciária: doença inflamatória lentamente progressiva que pode afetar qualquer órgão e produzir doença clínica 5-30 anos apos a infecção inicial. Geralmente, é subdividida em: • sífilis cardiovascular: resulta do acometimento do vasa vasorum da aorta seguido por formação de aneurisma. Há predileção pela aorta ascendente com consequente fraqueza do anel valvar e regurgitação aórtica. • goma sifilítica: lesão granulomatosa não específica que pode ocorrer em qualquer tecido, porém é mais comum no sistema esquelético, pele e mucosas. Tem importância clínica devido à intensa destruição local que provoca. Neurossífilis: pode haver acometimento do SNC de forma assintomática. Com exceção das pupilas de Argyll-Robertson e de tabes dorsalis, que são manifestaçãoes da forma terciária, os sinais e sintomas de neurossífilis são inespecíficos (ex: convulsão, hemiparesia/plegia, alteração de personalidade, hiperreflexia, ataxia, comprometimento de pares cranianos). Em pacientes jovens que apresentem acidente vascular isquêmico, a sífilis deve ser fortemente considerada. Indicações de punção lombar: • • • • • persistência ou recorrência do sintomas, independente da fase clínica manutenção ou aumento dos títulos de VDRL no 6o mês de seguimento VDRL ≥ 1:8 na última dosagem do seguimento de cada fase clínica paciente com infecção pelo HIV se CD4 ≤ 350 e/ou VDRL ≥ 1:32 paciente sem infecção pelo HIV se sinais de comprometimento neurológico (ex: alteração auditiva, alteração do nível de consciência, alteração de par craniano, meningite aguda ou crônica), evidências de sífilis terciária ativa (goma ou aortite), e/ou falha de resposta sorológica ao tratamento Infecção pelo HIV: Sabe-se que a ulceração causada pelo T. pallidum promove upregulation do co-receptor CCR5, o que facilita a transmissão do HIV. Pacientes infectados pelo HIV tendem a apresentar curso mais agressivo, caracterizado por mais sintomas constitucionais, maior envolvimento de órgãos, erupção atípica, múltiplas úlceras genitais, cancro concomitante com manifestações de secundarismo e predisposição de desenvolvimento de neurossífilis sintomática. Nestes pacientes é recomendado o rastreio quando do diagnóstico da infecção pelo HIV, e de forma anual com solicitação de VDRL. Vale ressaltar que naqueles com VDRL reator, a punção lombar é recomendada para exclusão de acometimento de SNC caso o paciente apresente: CD4 ≤ 350 e/ou VDRL ≥ 1:32. Gestantes: O rastreio de infecção pelo T. pallidum deve ser feito com a dosagem de VDRL em cada trimestre da gestação na paciente com infecção pelo HIV, no 1º e 3º trimestres na paciente sem infecção pelo HIV, no momento do parto, e em qualquer gestante que der origem a um natimorto com mais de 20 semanas gestacionais. Nenhum recém-nascido deve ser liberado da maternidade sem o conhecimento do status sorológico da mãe (≥ 1 sorologia durante a gestação, preferencialmente confirmada no momento do parto) Considera-se como sífilis em gestante a presença de evidências clínicas e/ou sorologia não treponêmica reagente, com qualquer titulação, mesmo na ausência de resultado de teste treponêmico, realizada no pré-natal ou no momento do parto ou curetagem. Entretanto, recomendamos a confirmação, quando possível, com teste treponêmico, em virtude da gestação ser causa de VDRL falso-positivo. Sífilis em gestantes é uma doença de notificação compulsória. Se a ultrassonografia morfológica, realizada no segundo trimestre, demonstrar alguma das características abaixo, há maior risco de falha do tratamento fetal: • hepatomegalia • ascite • hidropsia • anemia fetal • espessamento placentário O tratamento de gestantes é específico para o estágio da infecção que apresentar no momento do diagnóstico. Alguns estudos demonstram vantagem em tratar gestantes com uma dose extra do recomendado para a fase clínica da doença (ex: tratamento de sífilis primária com esquema de sífilis secundária). É considerado tratamento inadequado: • antibiótico que não penicilina • tratamento incompleto, mesmo tendo sido feito com penicilina • tratamento não adequado para a fase clínica da doença • intervalo > 1 semana entre as doses de penicilina • tratamento com menos de 30 dias antes do parto • elevação do titulo após o tratamento • parceiro(s) não tratado(s) ou tratado(s) inadequadamente • desconhecimento sobre tratamento do(s) parceiro(s) • ausência de documentação ou da queda dos títulos do(s) parceiro(s) após o tratamento O seguimento para controle de cura com VDRL é trimestral, e deve-se retratar se houver ausência de resposta ou aumento de 2 diluições (ex: 1:4 → 1:16). Diagnóstico diferencial: Sífilis primária: cancro mole, herpes genital, donovanose, linfogranuloma venéreo, câncer. Sífilis secundária: doenças exantemáticas não vesiculosas, farmacodermias, colagenoses, hanseníase virchowiana. Quando investigar sífilis: • • • • • • • • paciente diagnosticado com qualquer doença sexualmente transmissível (DST) parceiro(s) sexual(ais) de indivíduo diagnosticado com DST paciente com lesão genital ulcerada paciente com erupção cutânea difusa paciente jovem com acidente vascular isquêmico paciente de qualquer idade em investigação etiológica de quadro demencial gestantes paciente com infecção pelo HIV com vida sexual ativa (solicitar VDRL anualmente) Métodos diagnósticos: Microscopia em campo escuro é utilizada quando há lesões ativas (sífilis primária e secundária). Deve-se limpar a lesão com solução salina, secar com gaze e apoiar uma lâmina sobre a lesão. Não deve-se limpar a lesão com solução bactericida, pois organismos mortos/imóveis não são úteis para o diagnóstico. Uma lesão só é considerada negativa após 3 exames negativos. Vale ressaltar que pesquisa de T. pallidum em campo escuro de lesões em cavidade oral não são úteis, pois pode-se confundir com treponemas comensais. PCR não é disponível comercialmente, somente em laboratórios de pesquisa, e não é capaz de distinguir entre organismos vivos ou mortos. Testes não treponêmicos (VDRL, RPR) são úteis para screening em áreas de alta prevalência de sífilis, e para monitorizar resposta ao tratamento clínico (há significância quando é observada diferença de duas titulações entre exames consecutivos). O titulo varia durante a infecção, sendo mais elevado nas fases precoces, com ápice na sífilis secundária, e posterior tendência a queda. Testes treponêmicos (FTA-ABS) detectam antígenos específicos do T. pallidum e são úteis para verificar a positividade do teste não treponêmico. Uma vez positivos, persistem positivos por toda a vida em mais de 90% dos casos tratados adequadamente. Quando ambos os testes, não treponêmico e treponêmico, são positivos a probabilidade de doença ativa é bastante alta. Entretanto, quando somente o treponêmico é positivo persiste a dúvida (ex: infecção tratada, infecção ativa em fase tardia, falso-positivo), e o tratamento deve ser individualizado. Positividade de testes sorológicos em pacientes com sífilis não tratados: Precoce (1ª e 2ª) Tardia Não treponêmico 70 – 100 % 60 – 98 % Treponêmico 50 – 85 % 97 – 100 % Adaptado de Mandell GL, Principles and Practice of Infectious Diseases, 7ª ed Chama-se atenção para o efeito prozona, observado na sífilis secundária, onde apesar de evidência clínica de doença ativa o VRDL é não reator. Ocorre em virtude da intensa antigenemia, não se visualizando aglutinação durante a realização do exame. Para isto, é necessário progredir com a diluição, para assim observar reatividade do exame. Causas de VDRL falso-positivo: • infecciosas: leptospirose, hanseníase, endocardite subaguda, malária, hepatite (principalmente C), mononucleose, tuberculose, tripanossomíase, pneumonia por pneumococo e por Mycoplasma sp. • não infecciosas: uso de drogas ilícitas intravenosas, colagenoses, gravidez, febre reumática, transfusão sanguínea, vacinação, doença hepática crônica. Para diagnóstico de acometimento de sistema nervoso central (SNC), o método sorológico de escolha é o VDRL. Caso haja visualização de sangue no líquor a olho nu, deve-se desconsiderar o seu valor de VDRL, pois pode corresponder à contaminação. Alterações liquóricas compatíveis com meningite sifilítica incluem pleocitose (> 5 células) e elevação da proteinorraquia (>50 mg/dL). Tratamento: Fase de Infecção Tratamento de Primeira Linha Sífilis Primária Penicilina Benzatina 2,4 milhões U IM dose única Sífilis Secundária e Latente Precoce Penicilina Benzatina 2,4 milhões U IM, com intervalo de 1 semana entre cada dose, total 2 doses Sífilis Terciária e Latente Tardia (exceto neurossífilis) Penicilina Benzatina 2,4 milhões U IM, com intervalo de 1 semana entre cada dose, total 3 doses Neurossífilis Penicilina Cristalina 3-4 milhões U IV 4/4 horas por 14 dias Para os casos de sífilis secundária, terciária, latente precoce ou tardia, caso o paciente tenha um intervalo maior que 14 dias entre as doses de penicilina benzatina, recomenda-se reiniciar o tratamento. O complemento do tratamento de neurossífilis, com três doses de penicilina benzatina, seguindo o mesmo esquema de tratamento de sífilis terciária e latente tardia, fica a critério do médico assistente, pois não há relatos na literatura que indiquem seu benefício nem malefício. Atenção especial deve ser dada para a ocorrência de reação de JarischHerxheimer, para que não seja confundida com alergia à penicilina. Costuma ter início em 1-2 horas após a administração do antibiótico, e é caracterizada por febre, mialgia, cefaléia, taqucardia, taquipnéia e hipotensão. Ocorre devido a grande liberação de antígenos com o tratamento eficaz. Dura aproximadamente 12-24 horas, e deve ser tratada apenas com sintomáticos. Seguimento: Fase de Infecção VDRL a partir do final do tto Sífilis Primária 3, 6 e 12 meses Sífilis Secundária e Latente Precoce 3, 6, 12 e 24 meses Sífilis Terciária e Latente Tardia 3, 6, 12, 24, 36, 48 e 72 meses Deve-se considerar retratamento e investigação de acometimento de SNC, se: • persistência ou recorrência dos sintomas • manutenção ou elevação do VDRL no 6o mês de seguimento • VDRL ≥ 1:8 na última dosagem do seguimento de cada fase Após o tratamento de meningite sifilítica, deve-se realizar punção lombar de controle a cada 6 meses, por um período de 2 anos. Caso não haja normalização dos parâmetros liquóricos, deve-se retratar. Marra e colaboradores consideram que se o diagnóstico de acometimento do SNC foi feito a partir de VDRL reator no liquor e pleocitose, o seguimento desses pacientes pode ser realizado com dosagem de VDRL sérico, visto que a normalização do VRDL sérico estaria relacionada à normalização de tais parâmetros no liquor. Alergia à penicilina: A dessensibilização à penicilina deve ser realizada naqueles pacientes que apresentem acometimento do SNC, uveíte e em gestantes, visto que não há antibiótico mais eficaz que a penicilina para o tratamento de tais situações. A dessensibilização à penicilina só é recomendada naqueles pacientes que apresentem reação de hipersensibilidade IgE mediada, caracterizada por urticária, angioedema e anafilaxia. A realização de testes cutâneos de hipersensibilidade só é útil para detectar reações imediatas e deve ser feita imediatamente antes da administração da droga. Preconizamos sua realização nos casos duvidosos. Naqueles em que há certeza de alergia à penicilina, não há necessidade de investigação com testes cutâneos, podendo realizar a dessensibilização imediatamente. São contra-indicações à dessensibilização e aos testes cutâneos história de síndrome de Stevens-Jonhson, necrólise epidérmica tóxica ou dermatite exfoliativa. Uma vez ocorrida a dessensibilização, a penicilina deve ser administrada imediatamente para evitar nova granulação dos mastócitos. Não há benefício na administração de anti-histamínicos e corticóides antes da dessensibilização, pois estas medicações não impedem a ocorrência da reação alérgica, e podem mascarar alguns sintomas precoces, retardando o tratamento adequado. Idealmente, a dessensibilização deve ser realizada em ambiente de terapia intensiva com todo material de suporte para manejo de parada cardiorespiratória ao alcance. Gestantes que não podem ser dessensibilizadas, devem ser tratadas com tratamento alternativo, preconizamos o uso de ceftriaxone, o feto de ser considerado como não tratado e o caso deve ser notificado como sífilis congênita. Fase clínica Sífilis Primária e Secundária Sífilis Latente Precoce Tratamento para alérgicos Doxiciclina 100mg 12/12h por 15 dias Tetraciclina 500mg 6/6h por 15 dias Doxicilcina 100mg 12/12h por 28 dias Tratamento alternativo Penicilina Procaína 2,4 milhões + Probenecide 500mg por 14 dias Ceftriaxone 250mg por 5 dias Penicilina Procaína 2,4 milhões + Probenecide 500mg por 14 dias Ceftriaxone 250mg por 5 dias Penicilina Procaína 2,4 milhões + Probenecide 500mg por 14 dias Sífilis Latente Tardia e Terciária Neurossífilis Doxicilcina 100mg 12/12h por 28 dias Doxicilcina 100mg 12/12h por 28 dias Ceftriaxone 1g por 14 dias Penicilina Cristalina 3-4 milhões 4/4h por 14 dias Ceftriaxone 2g por 14 dias Preparo de mistura de determinantes menores ou solução de Penicilina G 10.000 U/mL 1 gota de reagente e 1 gota de SF no antebraço, 2 cm distância Encaminhar ao médico para conduta adequada Puntura: agulha sem causar sangramento ou puntor descartável, 90° Leitura negativa Pápula, eritema ou prurido, > 4mm Teste intradérmico Ministério da Saúde, Manual: Testes de Sensibilidade a Penicilina, 1999 CDC, Sexually Transmitted Diseases Treatment Guidelines, 2010 Preparo de mistura de determinantes menores ou solução de Penicilina G 10.000 U/mL Injetar 0,01 mL de reagente e de SF no antebraço, 2 cm distância Teste negativo Elevação da pápula (com ou sem eritema), eritema ou prurido, > 2mm Encaminhar ao médico para conduta adequada Tratamento com penicilina Ministério da Saúde, Manual: Testes de Sensibilidade a Penicilina, 1999 CDC, Sexually Transmitted Diseases Treatment Guidelines, 2010 Referências: 1. 2. 3. 4. 5. Mandell GL, Principles and Practice of Infectious Diseases, 7ª ed Ministério da Saúde, Manual de controle das DST, 4ª ed, 2006 Ministério da Saúde, Manual: Testes de Sensibilidade a Penicilina, 1999 CDC, Sexually Transmitted Diseases Treatment Guidelines, 2010 Ministério da Saúde, Recomendações para TARV em Adultos Infectados pelo HIV, 2008 6. Marra et al, Clinical infectious Diseases, 2008; 47:893-9