a vida bem-sucedida no hinduísmo

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Anais do V Congresso da ANPTECRE
“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”
ISSN:2175-9685
Licenciado sob uma Licença
Creative Commons
A VIDA BEM-SUCEDIDA NO HINDUÍSMO
Lúcio Valera
Mestre
Universidade Federal de Juiz de Fora
[email protected]
CAPES
ST 07 – RELIGIÕES E FILOSOFIAS DA ÍNDIA
Resumo: A preocupação dos antigos com a “vida boa”, que se refletia na busca da felicidade, e
que, na modernidade, cedeu lugar ao que conhecemos por “vida bem-sucedida”, também podia
ser encontrada na civilização hindu. As escolas filosóficas da Índia sempre tiveram como
objetivo bem definido a busca da felicidade, mas no Hinduísmo não há um conceito único de
“vida boa” ou “vida bem-sucedida”. Nele se considera que os seres humanos, segundo o seu
nível de consciência e condicionamento, estão situados em condições diferentes. Portanto, na
tradição hinduísta, esta questão se apresenta de uma forma plural, mas sempre em harmonia
com a condição humana. Não importando se seu ideal seja teológico ou materialista,
imanentista ou transcendentalista, gnóstico ou devocional, a questão do conflito causado pela
pluralidade das respostas, para essa pergunta sempre emergente, não se lhes apresenta. A
tolerância e o respeito pela diferença sempre foram característicos do pensamento e misticismo
da Índia, desde suas origens védicas até o Hinduísmo contemporâneo. Assim o seu caráter
holístico sempre possibilitou a opção de se escolher o melhor momento para se viver, seja ele
teológico, utópico e até mesmo materialista. Portanto, o presente trabalho pretende discutir a
questão de vida bem-sucedida no Hinduísmo e traçar daí um paralelo entre seus conceitos e os
das sabedorias antigas e humanistas do Ocidente. Há pontos em comum entre a Sabedoria dos
antigos, em sua visão da harmonia e ordem cósmica, e o Humanismo, em seu conceito do
homem-Deus, com a visão dos Puruṣārthas “objetivos da existência humana”, encontrada no
Hinduísmo.
Palavras-chave: Hinduísmo; felicidade; soteriologia; mística bhakti.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0702
A preocupação dos antigos com a “vida boa”, que se refletia na busca da
felicidade, e que, na modernidade, cedeu lugar ao que conhecemos por “vida bemsucedida”, também podia ser encontrada na civilização hindu. As escolas filosóficas
ortodoxas da Índia sempre tiveram como objetivo bem definido a busca da felicidade.
Na cultura hindu a transcendência nunca perdeu o seu lugar e a felicidade
geralmente era buscada na plataforma da auto realização. Portanto a meta última da
existência humana seria a realização do Brahman, do “Espírito” (Brahma-sutra, 1.1.1),
que se identificava com o Ātman, o “si-mesmo”, ou seja, situa-se no plano do “ser” que
é “consciente de si-mesmo”. Mas o conceito do ātman não é unívoco; dependendo da
consciência com que se experimenta a realidade ele pode indicar o corpo, a mente ou
o espírito. Essa confluência de opostos sempre caracterizou a compreensão hindu do
papel do homem no mundo. Portanto, no Hinduísmo temos três características
fundamentais que norteiam a existência humana. São eles os três caminhos
ou margas: 1) pravṛti-marga, 2) nivṛtti-marga e 3) upāsana-marga.
Sobre a denominação de pravṛtti indicam-se todas as crenças e práticas
relacionadas com a existência mundana, que incluiria as obrigações religiosas e
sociais. Nivṛtti seriam as atividades de negação ou superação da existência material
temporária, em proveito da realização da natureza eterna do ātman. Enquanto
que upāsana seriam as atividades de meditação e adoração da Divindade, no plano da
vida mística.
Vida boa e vida bem-sucedida
Entre os modernos, o conceito de vida bem-sucedida estabeleceu-se na
plataforma do ter e do estar, mas na civilização hindu se buscava a felicidade e
perfeição existencial no plano do ser, do real, do permanente. Integrava-se, portanto, o
conceito de felicidade ou de vida boa como o de vida bem-sucedida.
Há dois tipos de atividades: preyas é o que é agradável de imediato, e śreyas é o
bem ultimo. O sistema social hindu foi organizado originalmente para conduzir à meta
final de śreyas, boa fortuna, felicidade ou bem-aventurança final. Mas até que isso
aconteça, a pessoa terá de lidar com a questão de preyas. Somente então, tendo
conseguido ocupar tudo – sua vida, bens e palavras – não somente para si próprio, mas
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também para os outros, ela conseguirá fazer o derradeiro sacrifício do prazer
temporário e imediato dos sentidos (preyas) em proveito do bem permanente (śreyas).
Mas isso só poderá ser feito por quem estiver inserido dentro do esquema
do dharma. Dharma seria aquilo que mantém e constitui a base da própria existência1.
Seria o primeiro passo para a felicidade ou śreyas, buscada nos três caminhos
(mārgas) mencionados acima.
O Hinduísmo descreve que a maioria da humanidade seria composta de seres
humanos que ainda não realizam sua natureza espiritual e que, portanto, a vida
segundo o dharma seria fator de diferenciação entre vida humana e a vida meramente
animal. Na vida animal a busca de satisfação ou prazer (preyas) estaria relacionada
apenas com os instintos animais básicos, ou seja, com: 1) comer, 2) dormir, 3)
defender-se e 4) acasalar-se. Mas os seres humanos teriam algo mais que os
distinguiriam dos animais. Eles podem aceitar conscientemente os princípios
do dharma, os princípios da religião definidos como dever.
Conforme o status de sua consciência – o que é determinado pelos seus atos
(karma) e pela influência das leis da natureza (os guṇas) – o homem está sujeito a
determinadas tendências que os levariam a estabelecer diversos objetivos existenciais.
Tais objetivos específicos seriam os puruṣārthas ou interesses (artha) dos seres
humanos (puruṣa).
Os puruṣārthas, portanto seriam quatro: 1) dharma - religiosidade ou harmonia
com as leis morais ou da natureza; 2) artha - desenvolvimento econômico ou segurança
material; 3) kāma - prazer ou gratificação dos Sentidos; e 4) mokṣa - liberação ou
emancipação da matéria. Podemos considerar dharma como valor moral, artha como
valor econômico, kāma como valor psicológico e mokṣa como valor espiritual. Todos
eles são considerados vitais e integrados em um esquema de valores.
Quem observa o dharma, levaria uma vida segundo os rituais e deveres
religiosos, em harmonia com o Cosmos e suas leis. Nesse ponto a ética hinduísta seria
a dos sacrifícios, pois eles garantiriam e se identificavam com a harmonia cósmica;
assemelhando de alguma forma com a ética cósmica encontrada no Epicurismo. A vida
1
A palavra dharma (da raiz verbal dhṛ “manter”) tem o sentido de “dever” ou de “aquilo que mantém”. Dhāraṇādharma ity āhur dharmo dhārayati prajāḥ “Aquilo que sustenta, aquilo que mantém juntos as pessoas, isso é
o dharma.”(Mahābhārata, Karṇa Parva, 69.59).
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no
dharma
possibilitaria
a
obtenção
de artha,
desenvolvimento
econômico.
Consequentemente, quem obtém artha pode ir buscar kāma a satisfação de seus
desejos.
Os três primeiros puruṣārthas (dharma, artha e kāma) não são finais ou
permanentes, pois tratam principalmente da religião material, do desenvolvimento
econômico, da satisfação dos sentidos e não podem satisfazer as necessidades
perenes da alma. Portanto, quem progressivamente passa por eles e realiza que seus
frutos são transitórios, chega a um estado de esgotamento material e sede de
transcendência.
O desgosto e a frustração com a existência material conduz à busca de liberação
ou emancipação espiritual conhecida como mokṣa. Seria o quarto puruṣārtha, que é
eterno e final. Mokṣa, também significaria união mística com a Divindade. Essa união
seria de dois tipos: 1) Kaivalya - a absorção da alma individual, com perda da sua
individualidade, na unidade ontológica do Ser, que é a “mística do ser”; e 2) Prema - a
comunhão da alma individual, com retenção da sua individualidade, com Deus, que é a
“mística do amor”.
A harmonia com o cosmo (pravṛtti-mārga)
A marca característica do Hinduísmo, a doutrina do Brahman ou Realidade
Única, baseia-se na ideia de que a natureza de todas as entidades vivas não só está
intrinsicamente “unida à totalidade da natureza”, mas possui também a “potencialidade
de transcender a ordem natural”. O ātman (o si-mesmo, o eu) dentro de cada um, vive
esquecido de sua posição constitucional como parte integrante do Brahman, e deve ser
guiado em uma existência que o ajude a avançar no caminho da recordação, em
direção
à
felicidade
de
sua
natureza
essencial.
Esse
seria
o
bem
último, śreyas ou niḥśreya, a meta última da existência.
Mas, considera-se o caminho do karma, ou das ações meritórias (punya) neste
mundo, como o primeiro passo para essa recordação. Seria o que já foi descrito como o
caminho de pravṛtti-mārga. É o caminho que busca não a liberação ou emancipação
espiritual, mas sim, uma existência progressiva através de uma forma de misticismo
sacrificial que, em harmonia com os princípios do dharma, buscaria o acúmulo
de karma pleno de méritos.
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Esse caminho se caracteriza pela crença no poder dos sacrifícios védicos de
produzir efeitos nesta vida e em outra vida, e na existência de uma lei inalterável e
eterna envolvida nesses sacrifícios. Seria uma vida cuja meta seria bhoga, o prazer ou
desfrute material nessa vida e depois no Paraíso.
Prakṛti, a natureza material, é o solo material da criação e constituída de três
qualidades ou modos, os gunas. Eles, que são ao mesmo tempo suas partes inerentes
e constitutivas, se constituem de: 1) rajas, movimento, dinamismo, excitação, prazer,
ansiedade, paixão etc.; 2) tamas, restrição, resistência, inércia, massa, peso, preguiça,
opacidade, ignorância etc.; 3) sattva, luz, iluminação, harmonia, equilíbrio, claridade,
alegria, leveza, bondade etc. Eles teriam como equivalentes os conceitos platônicos
de Logistikon, o elemento racional, que corresponderia a sattva, Thumos, o elemento
da paixão, que corresponderia a rajas, e Epitmumia, o desejo cego, que corresponderia
a tamas (Eliade 1978, p. 258).
Autoconhecimento e liberação (Nivṛtti-marga)
O caminho de jñāna (do conhecimento) ou nivṛtti (da negação) surge como uma
contestação do caminho religioso ritualista, mas isto não se apresenta da mesma forma
que ocorre na filosofia moderna, que se apresenta, segundo Luc Ferry, como “uma
tentativa de assumir as questões religiosas de um modo não religioso e até mesmo
antirreligioso” (Ferry 2004, p. 170).
O caminho de karma (da ação) ou pravṛtti (da aceitação) parte do pressuposto de
que ações meritórias, sacrifícios ou rituais religiosos podem aprimorar o karma do
indivíduo e criar condições para a obtenção da felicidade ou bem último (śreyas), nesta
vida, ou em outros nascimentos. O caminho do conhecimento, entretanto, apesar de
não negar a validade conjectural do caminho da ação, questiona o status de seu
conceito de śreyas, o bem último, por ele ser temporário. Ou seja, se com a extinção do
mérito cármico a pessoa tem que voltar a este mundo temporário, como poderia haver
um bem último?
As diferentes escolas do pensamento hindu (darśanas), bem como seus mestres
(ācāryas ou gurus), sempre estiveram de comum acordo que o propósito da filosofia 2
2
A palavra em sânscrito utilizada na Índia para designar “filosofia” é “darśana”, que vem da raiz verbal dŗś “ver”
ou “observar”, e significa literalmente “ponto de vista”.
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seria a extinção da dor e do sofrimento e a consequente obtenção da bem-aventurança
final (śreyas). O primeiro passo nessa direção trataria da aquisição de conhecimento
(jñāna) sobre a verdadeira natureza das coisas. Isso libertaria o homem da ignorância,
que é a causa do sofrimento.
A preocupação em preparar as pessoas para exclusivamente discernir sobre
verdades metafísicas, nunca foi preocupação da filosofia hindu. Nela encontramos
sistematizada uma gama de metodologias que possibilitam a obtenção de uma
compreensão racional da realidade, juntamente – não em oposição – com o cultivo de
introspecção e autoconhecimento, que levaria à realização da Verdade Absoluta.
Os sábios ou videntes hindus (os ṛṣis) tinham discernimento para observar as
coisas com seu sentido interno, com sua visão intuitiva. Porque conheciam os limites da
razão, não se preocupavam unicamente em ter uma atitude racional crítica, mas sim
cultivar gradual e progressivamente as potencialidades humanas internas. E sempre
dentro do molde prático de uma disciplina. Assim a filosofia no Oriente sempre foi
acompanhada da prática de métodos de yoga, ascese, meditação, mantras (cantos ou
preces) ou ritual. O conceito hindu de razão era o de uma razão superior, que se
igualava à Razão divina. Daí a necessidade de sempre correlacionar e autenticar
o insight filosófico individual com o insight místico ou a revelação universal, muito bem
ilustrado nas escrituras védicas e na vida dos grandes sábios e santos. Essa é a
característica dos dārśanas hindus ortodoxos.
Luc Ferry fala sobre os três fios condutores ou tarefas da filosofia: 1) theoría – a
contemplação
das
coisas
divinas; 2) prâxis –
os
exercícios
da
sabedoria;
e 3) soteorologia – a ideia da salvação (Ferry 2004, p. 44-47). Podemos encontrar
esses mesmos conceitos gnosiológicos no pensamento hindu, pois quando se utiliza a
palavra jñāna “conhecimento” tem se em vista sempre os três aspectos dele:
1) sambandha– o “relacionamento”, 2) abhidheya – o “sentido ou o que deve ser
expresso”, e 3) prayojana – a “meta ou propósito”.
Em sambandha-jñāna há o conhecimento que permite compreender a relação
que leva ao conhecimento do “Ser” (Brahman), do “Si-mesmo” (Ātman) e de “Deus”
(Bhagavān). Após sambandha-jñāna, pode-se chegar ao estágio de abhidheya-jñāna,
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que seria o conhecimento de como agir nessa relação. Por fim teríamos prayojanajñāna o conhecimento que conduz à meta final da existência. Todo relacionamento e
toda ação tem sempre em vista uma meta prayojana.
Nessa luz, a filosofia apresenta-se como arte de viver plenamente e não apenas
como teoria sobre o universo. Sua finalidade precípua seria desvendar e integrar na
consciência o que as forças da vida recusaram e ocultaram. A contribuição do
pensamento hindu foi a descoberta do Eu ou Si-mesmo (ātman) como entidade
imperecível e independente, alicerce da personalidade consciente e da estrutura
corporal. Tudo o que normalmente conhecemos e expressamos de nós mesmos
pertence à esfera da impermanência, na imanência do tempo e espaço, mas este Simesmo (ātman) é imutável por todo o sempre, além do tempo, além do espaço e da
malha obnubiladora da causalidade, além de qualquer medida, além do domínio da
visão. As atitudes entre o mestre hindu e seu discípulo estão determinadas pelas
exigências de uma suprema tarefa de transformação e superação dos limites da
consciência.
Segundo Zimmer: “A filosofia indiana sempre permaneceu tradicional, sempre
auxiliada e renovada pelas vivências interiores da prática do yoga..., a filosofia e a
religião diferem em alguns pontos, mas nunca houve um ataque total e dissolvente por
parte do criticismo puro contra o baluarte imemorial do sentimento religioso popular”
(Zimmer, 1986, p. 35).
A Mística do Amor (Upāsana-mārga)
Como
um
desenvolvimento
devoção upāsana
ou bhakti-mārga,
do karma com
visão
a
de
do nivṛtti-marga encontramos
que
renúncia
procurou
do jñāna. O
reconcilia
caminho
o
caminho
da
o
materialismo
de bhakti situar-se-
3
ia na emergência histórica da religiosidade monoteísta hindu , que, em contraste com
as aristocracias do ritualismo brâmane do karma (no caminho pravṛtti) e do gnosticismo
do jñāna (no caminho nivṛtti), surgiria como uma inovação teológica. Nele a ideia
“messiânica” do avatāra, que identifica Vishnu com o Ser supremo e a realidade última,
surgiria com energia e vigor.
3
O movimento Bhakti, que teve sua emergência a partir dos ensinamentos de Krishna na Bhagavad-gītā e
no Bhāgavata Purāṇa, se desenvolveu a partir da Idade Média em vários movimentos que culminaram nos
ensinamentos de Caitanya (1485-1533 E.C.).
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No caminho do conhecimento, a única realidade é o Ser, impessoal, e sem
atributos; toda a diversidade e variedade (viśeṣa), por ser produto de Māyā, são ilusões.
Mas para os seguidores de bhakti, somente a variedade material é ilusória, por ser
temporária e baseada na dualidade. A variedade material é um reflexo ou sombra da
variedade encontrada na energia espiritual. Na energia espiritual, pelo contrário, a vida
é governada pela lei da unidade, pela lei da harmonia. O amor é a lei da harmonia na
sua forma mais elevada.
O amor espiritual é eterno, e não se confunde com a paixão transitória e ilusória
da matéria, mas identifica-se com prema-bhakti, a devoção amorosa, ou amor a Deus.
Rūpa Gosvāmī (1489-1564 d.C.) define a forma mais elevada de bhakti como sendo a
busca desinteressada e ininterrupta de Deus, sem nenhum interesse no conhecimento
soteriológico ou nas atividades morais fruitivas. Essa devoção tem muitas nuanças, que
recebem o nome de rasa, ou bhakti-rasa.
Rasa significa “suco” ou “gosto” e representa o essencial em tudo que possamos
experimentar; seria o sentimento que extraímos de qualquer coisa ou de qualquer
relacionamento. Na teologia vaishnava ele se refere à experiência estética última na
transcendência – o relacionamento amoroso com a Divindade, a plenitude ou satisfação
emocional da alma (Tripurari, 1993, p. 105). O conceito de rasa, portanto é amplo, indo
além da questão “ontológica” do Ser, – no Brahman – e mais além ainda da questão
“moral” da consciência ou conhecimento, – no Ātman. Ele é um princípio eterno,
relacionado com a questão “estética”, no relacionamento da alma com Deus.
As Upaniṣads descrevem Deus como a personificação ou oceano de rasa. A Rasa dános um insight sobre quem verdadeiramente somos, sobre o que somos no mundo
espiritual. Na Taittiriya Upaniṣad afirma-se que: “A realidade última é rasa, ou seja,
doçura ou experiência espiritual estética; unicamente ela pode dar a bemaventurança”.4
Conclusão
Segundo Ferry, os modernos perderam o sentido de “boa vida”, encontrado nos
estoicos, nos cristãos medievais e em Nietzsche, e substituíram-no pelo sentido de
4
Raso vai saḥ. rasaṁ hy evāyaṁ. labdhvānandī bhavati ... eṣa hy evānandayāti (Taittiriya Upaniṣad, 2.7.1).
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“vida bem-sucedida”. Mas no Hinduísmo não há um conceito único de “vida boa” ou
“vida bem-sucedida”. Nele se considera que os seres humanos, segundo seu nível de
consciência e condicionamento, estão situados em condições diferentes. Portanto, esta
questão se apresenta de uma forma plural, mas sempre em harmonia com a condição
humana. Não importando se seu ideal seja teológico ou materialista, imanentista ou
transcendentalista.
Isso explicaria porque a questão do conflito causado pela pluralidade das
respostas para essa pergunta sempre emergente, não se lhes apresenta. A tolerância e
o respeito pela diferença sempre foram característicos do Hinduísmo. Assim o seu
caráter holístico possibilita a opção de se escolher o melhor momento para se viver,
seja ele teológico, utópico e até mesmo materialista.
Um estudo bem feito do conceito de “vida bem-sucedida” no Hinduísmo poderia
se apresentar como uma contribuição para se possa recuperar, nas palavras de Mircea
Eliade, “a concepção arcaica da realidade total imaginada como a alternância de
princípios opostos, mas complementares” (Eliade, 1978, p. 267. n. 15).
Assim, torna-se relevante a proposta de Nietzsche de se viver a vida intensa e
conscientemente. Somente assim poderemos compreender as singularidades da nossa
existência.
Referenciais
AZEVEDO, Murillo Nunes de, O pensamento do extremo oriente, São Paulo:
Pensamento, 1977.
ELIADE, Mircea, História das crenças e das idéias religiosas. Tomo II, Vol. 1, Rio de
Janeiro: Zahar, 1978.
FERRY, Luc. O que é uma vida bem-sucedida? Rio de Janeiro: Difel, 2004.
TRIPURARI, Swami. Rasa – Love Relationship in Transcendence. Oregon: Gaudiya
M.S., 1993.
ZIMMER, Heinrich, Filosofias da Índia. São Paulo: Palas Athena, 1986.
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