aspectos históricos, teológicos e literários do símbolo reino de deus

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Anais do V Congresso da ANPTECRE
“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”
ISSN:2175-9685
Licenciado sob uma Licença
Creative Commons
ASPECTOS HISTÓRICOS, TEOLÓGICOS E LITERÁRIOS DO SÍMBOLO
REINO DE DEUS
Antonio Manzatto
Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, Bélgica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
ST 01 – DIÁLOGO ENTRE RELIGIÃO, ARTE E LITERATURA
Resumo: As recentes pesquisas sobre o Jesus histórico, chamada comumente de Third Quest,
jogaram luzes sobre o ambiente histórico e cultural no qual Jesus viveu, tornando
compreensível, mais que conhecidos, aspectos de sua existência. Por outro lado, como já o
demonstrava a exegese histórico-crítica, os textos evangélicos que apresentam Jesus não são
simples relatos historiográficos, mas narrativas que sugerem construções teológicas
elaboradas. Os trabalhos mais recentes de exegese utilizam métodos literários para a
compreensão dos relatos evangélicos, exatamente porque tais textos comportam um trabalho
literário de redação no qual estão relacionados história e teologia. Há dados históricos
suficientemente claros para permitir a afirmação de que o Reino de Deus era o centro da
pregação de Jesus; o estudo de aspectos literários dos evangelhos mostra que este símbolo,
Reino de Deus, tem função central nas narrativas que apresentam Jesus. Daí deve decorrer
uma compreensão teológica desta categoria que dê conta, ao mesmo tempo, dos aspectos
históricos e literários que ela comporta, e que seja significante para a humanidade
contemporânea. As características histórico-sociais do símbolo Reino de Deus sobressaem em
uma leitura histórica da vida de Jesus, porque este símbolo se refere a uma nova forma de
organizar a vida em sociedade. Do ponto de vista literário, esta mesma forma de compreensão
ajuda a perceber a estrutura do enredo do texto evangélico. A atualização da compreensão de
tal símbolo deverá, então, ter em conta estes aspectos para manter-se fiel à tradição que
remonta às primeiras comunidades em sua afirmação de fé. Dito de outra forma, Reino de
Deus, tal qual pode ser compreendido historicamente e no funcionamento literário dos textos
evangélicos, possui aspectos sociais bastante pronunciados que não podem ser esquecidos. O
presente estudo analisa as relações entre estes elementos e aponta para uma forma de
organização social que manifesta a compreensão do símbolo Reino de Deus.
Palavras-chave: Reino de Deus, literatura, símbolo, teologia
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0106
Introdução
Reino de Deus é uma das categorias mais utilizadas em teologia. Ela é referida
ao ministério de Jesus, aparece lateralmente em muitos outros capítulos da teologia e
volta a aparecer com destaque quando se enfoca a escatologia, apontado como a
consumação do mundo. Todavia, ele não chega a ser uma categoria estruturante da
reflexão teológica.
É verdade que sua presença, ou a presença de estudos sobre ele, se faz mais
perceptível quando se trabalha com exegese. A impressão que se tem é que o Reino
de Deus é uma categoria bíblica, tão importante como outras categorias bíblicas, mas
permanece a dúvida se é estruturante, no caso, dos estudos bíblicos. Às vezes parece
que sim (PIXLEY, 1986; MEIER, 1993), às vezes parece que não (JEREMIAS, 2008;
CERFAUX, 2012).
Fato é que a categoria Reino de Deus é trabalhada, mas não exaustivamente.
Talvez a dificuldade seja a de caracterizar seu conteúdo, mais simbólico que históricoconcreto. Daí a tentativa desta reflexão, situando perspectivas que podem contribuir
para uma compreensão mais ampla de seu significado. Por outro lado, se trata de uma
categoria chave para se compreender a pregação de Jesus e mesmo toda sua vida e
ministério (PAGOLA, 2010). Os evangelhos se referem ao Reino de Deus à exaustão e
o situam como peça fundamental do ensinamento de Jesus. Não há a mínima
possibilidade de, na atualidade, se referir a Jesus de Nazaré prescindido da
compreensão do significado do Reino de Deus sob diversos pontos de vista, e é para
isto que aponta a presente reflexão.
Dimensão histórica do Reino de Deus
A primeira busca pelo Jesus histórico, chamada “old quest”, se situa no século 19
e tem como destaques os trabalhos de Reimarus, Hess, Straus, Hase e outros ainda,
enumerados pelo trabalho de Schweitzer que caracteriza o período e o encerra
(SCHWEITZER, 2005). Se antes dela se pensava, normalmente, que os textos bíblicos
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eram narrações exatas do que havia acontecido na vida de Jesus, depois dela toma
corpo a consciência da distinção entre o Jesus da História e o Cristo da Fé.
A segunda busca pelo Jesus histórico, a “new quest”, é pós-bultmaniana.
Käsemann e outros teólogos discípulos de Bultmann se distanciam do mestre e buscam
reconstruir a possibilidade do estudo histórico de Jesus que havia sido questionada
pelo positivismo histórico e pela insistência na primazia do Cristo da Fé. Bornkam,
Fuchs, Ebeling e mesmo não-bultmanianos como Joaquim Jeremias são emblemáticos
do período (GIBELLINI, 2002).
Já a terceira busca pelo Jesus histórico, a “third quest” atualmente em voga, quer
conhecer o personagem histórico através, principalmente, do conhecimento possível
sobre o mundo onde ele viveu e as narrativas que o apresentam (CROSSAN, 1994). Os
evangelhos são tomados como documentos históricos, mais não fosse, pela sua
antiguidade, e mesmo que não se possa dizer que tal ou tal perícope é histórica como
tal, ao menos o conjunto dos evangelhos dão uma leitura possível e perceptível daquele
personagem. Assim, se privilegiam a linguística e as categorias de análise literária nos
relatos evangélicos; por outro lado, os avanços dos estudos de história assim como os
de arqueologia, antropologia cultural e outros, dão uma leitura do mundo onde o
personagem se situa, o que permite compreende-lo naquele contexto determinado. Dito
de outra forma, os relatos evangélicos, quando situados no ambiente histórico e cultural
que os produziu, permitem uma leitura bastante clara do personagem Jesus situado no
contexto que é o seu. Texto e personagem, inseridos em seu ambiente histórico real,
permitem uma compreensão bastante clara do personagem e do que os textos
apresentam como leitura e proposta.
Há consenso em dizer que o anúncio da chegada do Reino de Deus é marca da
pregação de Jesus, tanto que há quem diga que seu movimento foi conhecido, ou
deveria sê-lo, como “movimento do reino” (CROSSAN, 1994; MEIER, 1993). Significa
dizer que a pregação de Jesus, seu ensinamento e toda sua vida se articulam em torno
da questão do Reino de Deus, ou seja, para compreender Jesus é necessário situá-lo
em referência a esta categoria.
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Entende-se que uma pregação assim poderia suscitar esperança entre seus
ouvintes e entre aqueles que se dispunham a ajudá-lo a concretizar o ideal que ele
anuncia. Estes ouvintes entendem o Reino, evidentemente, como uma concretização
histórica e anseiam, então, por sua chegada e instalação. Confiando que aquele que o
anuncia é aquele enviado que vai realizá-lo, se apressam a segui-lo e são
surpreendidos, seguidamente, pelo comportamento de Jesus que os evangelhos
apresentam. E são surpreendidos mais ainda por sua prisão e morte, de tal forma que
ficam paralisados. Sob este ponto de vista histórico, a morte de Jesus por causa de seu
anúncio do Reino nos é perfeitamente compreensível. Afinal, as autoridades, sobretudo
o Império Romano, enxergam logo o perigo de quem anuncia uma forma de vida
diferente daquela do império e um governo diferente daquele de César. Daí a
necessidade de crucificarem Jesus, uma punição exemplar para quem teve a pretensão
de anunciar um mundo alternativo àquele realizado pelo imperador.
O que surpreende os seguidores de Jesus talvez não seja a oposição que ele
suscitou ou a perseguição por parte das autoridades, mas o fato de não haver nenhuma
intervenção divina e miraculosa para defendê-lo. Pensam então terem-se enganado e,
desiludidos, voltam escondidos para retomarem suas vidas. A surpresa da fé escapa à
percepção histórica, a não ser pelo fato deles permanecerem se referindo à pessoa de
Jesus e, desta forma, entenderem o Reino como aquele acontecimento que ainda virá,
agora quando o Messias voltar e, na sua demora, projetarem-no para a escatologia,
ressaltando o caráter simbólico deste Reino. Tanto que, como forma de aguardá-lo em
perspectiva dinâmica, entendem vivenciá-lo na formação da comunidade.
Dimensão literária do Reino de Deus
Interessante perceber, segundo Ricoeur, como o Reino de Deus aparece como
categoria primeira e estruturante do texto evangélico (RICOEUR, 2006). Mas talvez se
possa afirmar mais claramente que o Reino de Deus é a categoria que une e dá sentido
ao ministério de Jesus, sua vida, morte e ressurreição. Sem entrar no debate de saber
se assim foi efetivamente do ponto de vista histórico, ao menos isso é o que
apresentam os textos evangélicos ou tal estrutura é neles perceptível.
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Os evangelhos são unânimes em se referir à mensagem de Jesus como sendo o
anúncio do Reino de Deus. Assim aparece claramente nos sinóticos e em João com o
vocabulário de vida eterna. Tal Reino ele o compreendia segundo as categorias de seu
tempo, mas se pode resumir sua compreensão como sendo a de uma nova aliança a
ser vivida com Deus e entre o povo. Não é nova no sentido de novo conteúdo, mas de
uma aliança renovada onde o povo se configura como Povo de Deus e Deus como
sendo o Deus do Povo. Mas para ser Povo de Deus, é preciso que primeiramente seja
povo, isto é, que os seus membros mantenham entre si relações de fraternidade, a
começar com o cuidado para com os que estão nos últimos lugares. Este anúncio de
Jesus, se suscita entusiasmo por parte daqueles que são os beneficiários primeiros e
maiores do Reino, a saber os pobres, suscita também oposição, e bastante violenta.
Ele veio para os seus e os seus não o receberam, lamenta o evangelho de João (1,11).
Tal oposição vai crescendo e se intensificando no curso da narrativa e o
enfrentamento final vai sendo colocado em perspectiva, ou seja, se percebe qual será
este enfrentamento desde o início, visto que são as autoridades, tanto religiosas quanto
políticas, que se opõem a Jesus. E efetivamente ele será crucificado por decisão do
Império Romano em ligação com as autoridades do Templo. Não se trata de uma
condenação por motivos fúteis, mas se enxerga no pregador do Reino um perigo
grande porque suscitava fé e seguidores. Jesus morreu na cruz pela causa do Reino e
não por um fortuito desígnio divino, mesmo porque a vontade de Deus era a instalação
de seu Reino, tarefa para a qual enviou seu Messias.
Desta forma o Reino de Deus é a categoria que une, literariamente, a vida, a
morte e a ressurreição de Jesus. Tudo o que ele anunciou e realizou foi esta proposta
de vida nova nos seus ensinamentos, em seus milagres, em sua prática de vida. Por
não concordarem com sua visão de futuro em vista do Reino as autoridades o
crucificam, mas sua ressurreição foi a confirmação da ação de Deus que realmente
quer o Reino e o realiza. A linguagem que fala da retirada do mal, da superação do
pecado, da reconciliação, da salvação e da vida eterna, tem sua plenificação neste
Reino instaurado definitivamente pelo Messias ressuscitado, constituído agora como
Senhor. A estrutura literária das narrativas faz perceber o fio condutor de toda a trama
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da vida de Jesus, do início até a crucificação, e o encaminhamento teológico
subsequente parece bastante claro.
Dimensão teológica do Reino de Deus
O Reino é esta realidade totalizante esperada como libertação da dominação
presente sofrida pelos pobres que padecem sob o peso do jugo de seus opressores.
Nele se realiza o governo de Deus que protege os fracos, diferente dos outros governos
que privilegiam os fortes. Por ser assim o Reino é a convivência humana sem
dominação, sem exploração e sem opressão dos fortes sobre os fracos, sendo então a
afirmação básica da igualdade fundamental de todos os seres humanos, revestidos de
dignidade exatamente porque humanos (SOBRINO, 2006). Em outras palavras, trata-se
da vivência da fraternidade fundamentada em relações entendidas como se fossem de
parentesco, já que somos todos irmãos. No Reino se realiza a salvação porque, de um
lado, o mal é retirado do mundo e de outro lado, se vive na presença de Deus.
A vitória sobre o mal é uma das formas antigas de se referir à salvação, seja ELE
entendido como o caos, como o dragão ou como o inimigo. Sua derrota é exigência
para que os salvos vivam sem o temor da volta à dominação antiga e ao sofrimento. E
sendo vitória definitiva sobre o mal, então se pode falar em salvação definitiva. O Reino
significa, exatamente, vitória sobre aquilo que impede os pobres e fracos de viverem
com dignidade, vitória sobre a dominação, porque será de vivência fraterna. O mundo
de dominação é visto como o oposto do Reino exatamente porque oprime e mata, e por
isso é pecado que precisa ser retirado do mundo (SOBRINO, 1991). Não é simples
pecado de não observação de algum aspecto ritual, mas é pecado que mata os pobres
e impede a humanidade de viver o amor. Por isso retirar a dominação do mundo é a
realização da salvação de Deus, e o Reino é onde os pobres poderão viver como
irmãos e no amor de Deus.
É imperativo, então, que se compreenda a salvação como a realização do Reino
de Deus, este símbolo que reúne todos os conteúdos salvíficos que foram sendo
desenvolvidos ao longo da história. Muito se discutiu há tempos atrás sobre a
historicidade ou não do Reino de Deus, já que não há discussão sobre sua
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característica escatológica, que é consensual. A questão parece ser a de saber se
alguma estrutura histórico-política pode significar a totalidade do que é o Reino e,
evidentemente, vista desta forma, a conclusão deve ser pela negativa (BENTO XVI,
2007). Aliás já houve na história a identificação de estruturas políticas com o Reino de
Deus, seja o que foi dito do Império Romano quando o cristianismo foi ali tornado
religião oficial, ou seja o que foi dito de reinos e impérios medievais. Desta forma
parece que tudo contribui para a compreensão transcendental, espiritual e escatológica
do Reino de Deus, exatamente porque tais estruturas foram incapazes de terminar com
a dominação e a opressão, exatamente porque estruturadas a partir delas.
É curioso perceber, no entanto, que não existem problemas para que se diga que
a Igreja é sacramento do Reino ou mesmo sua historicização, embora todos
reconheçamos que na Igreja também existem estruturas políticas imperfeitas. É fato
que, depois da ressurreição, os discípulos de Jesus não falam tanto do Reino de Deus
que ele proclamava, mas falam dele, Jesus. Isso não significa que, para os discípulos, o
Reino deixa de ter incidência histórica, mas o que eles fazem é insistir na realidade
messiânica de Jesus, o que significa afirmar, indiretamente, o acontecimento do Reino
de Deus. Tanto que o trabalho que realizam é a formação de comunidades fraternas.
Donde se segue que o Reino de Deus, desde o princípio, foi visto com real incidência
histórica, inclusive no interior da Igreja. Ela é a comunidade sacramento do Reino pois a
ele se refere e a ele remete, como já significava aquele dito de Tertuliano: “vede como
eles se amam”.
As estruturas sócio-políticas que favorecem a libertação dos pobres, a afirmação
da igualdade e a vivência da fraternidade humana são vistas como estruturas que
aproximam do Reino, mesmo se não o realizam em plenitude. Ou seja, ainda que
tenham limites, tudo o que favorece a historicização do Reino é melhor do que aquilo
que dele afasta. Sua plenificação na escatologia permanece ação de Deus, mas esta
ação já se faz sentir na história porque este é o lugar de Deus agir.
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Conclusão
Importante é perceber como o conceito de Reino de Deus, plural e diversificado,
pode ajudar a compreender o ser de Deus e o ser humano que vive no mundo, e este o
trabalho da teologia a partir do dado revelado. Deus e o humano se relacionam, e
teologia e literatura são concordantes em reconhecê-lo, o que faz com que o
conhecimento de uma ajude na elaboração do conhecimento da outra. Que haja, então,
uma dimensão teologal no conceito de Reino de Deus parece evidente. O que pode ser
recuperado é a perspectiva antropológica do Reino, que constitui o humano porque é
sua verdade e o motiva porque é sua destinação.
O ser humano se realiza na fraternidade e não na dominação. Os dominadores
se desumanizam como bem o mostra a história, porque o pecado não constrói. A
verdade humana não está na afirmação do poder, mas na convivência, e não é preciso
enxergar aqui afirmações moralizantes. Por outro lado, o humano é ser em construção,
em peregrinação histórica, em tarefa de edificar o futuro. A construção de uma
sociedade que supere as dominações é motivadora não apenas do ponto de vista éticomoral, mas sobretudo do ponto de vista antropológico, porque é aí que o humano se
faz, aí é que ele se torna verdadeiramente humano.
Referenciais
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CERFAUX, L. Cristo na teologia de Paulo. Santo André: Academia Cristã, 2012.
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