até que ponto somos irmãos dos animais? diálogo

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ATÉ QUE PONTO SOMOS IRMÃOS DOS ANIMAIS? DIÁLOGO
FILOSÓFICO-TEOLÓGICO COM JORGE RIECHMANN
Afonso Tadeu Murad
Doutor em Teologia
FAJE
[email protected]
Bolsista em produtividade do CNPq
ST 12 – CONSCIÊNCIA PLANETÁRIA, RELIGIÃO E ECOTEOLOGIA
Resumo: Faremos um exercício de interlocução da ecoteologia com o pensador contemporâneo
espanhol Jorge Riechmann. Praticamente desconhecido no Brasil, Riechmann é poeta, ensaísta e
professor de filosofia moral na Universidade de Barcelona; autor de vasta obra dedicada à reflexão
filosófica sobre ecologia e sustentabilidade. Dentre seus trabalhos significativos, escolhemos alguns
capítulos do livro “Todos los animales somos hermanos” (Madrid: Catarata, 2005). Essa obra faz parte da
“trilogia da autocontenção”, conforme expressão de Riechmann, que visa contribuir com a mudança de
mentalidade da humanidade, passando das atitudes destrutivas para o empenho pela sociedade
sustentável. Apresentaremos uma síntese do pensamento do autor e seus principais argumentos, no que
diz respeito à relação dos seres humanos com os outros animais, sobretudo os mamíferos. Riechmann
se considera um pensador materialista, amante da ciência, realista e evolucionista. Aborda com clareza
temas polêmicos, como a polarização entre a ideia de um contínuo fisio-biológico-social do processo de
evolução e a singularidade do humano, a razoabilidade dos “direitos dos animais”, os prováveis motivos
para incluir os vertebrados mamíferos na comunidade moral humana. Distingue o antropocentrismo, em
sentido epistêmico, do sentido moral. Ao servir-se de estudos realizados com alguns primatas (chipanzés
e bonobos) e golfinhos, identifica várias características semelhantes aos humanos. Defende, assim, que
o elemento qualificador do humano não reside na diferença radical, num pretenso “esplêndido isolamento
no cosmos”, e sim num grau mais complexo de evolução. Isso implica, para a humanidade, a
responsabilidade pelo cuidado com os outros seres. Deve-se superar assim a postura que considera os
animais somente como meros instrumentos. Embora esses não sejam pessoas, nem agentes morais,
tem valor intrínseco. Como seres que sentem dor e prazer, comportando certo grau de consciência, tem
direito ao respeito moral. Após caracterizar os argumentos de Riechmann, mostraremos os pontos de
convergência e as dissonâncias com a visão teológica cristã. Concluiremos com uma reflexão acerca da
contribuição do autor para o avanço da ecoteologia.
Palavras-chave: Ecoteologia, Direitos dos animais, Riechmann, Antropocentrismo epistêmico,
Comunidade moral.
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1206
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Introdução
A ecoteologia tem se desenvolvido como uma corrente teológica que busca
desenvolver a consciência planetária à luz da fé cristã, em diálogo com outras ciências
e saberes. O avanço da ecoteologia está condicionado à sua capacidade de acolher a
contribuição das ciências humanas, não somente as ambientais, e de (re)elaborar
categorias teológicas à luz da Bíblia e da Tradição cristã. O presente trabalho move-se
neste âmbito. Toma como interlocutor o filósofo contemporâneo Jorge Riechmann.
Pouco conhecido no Brasil, ele é professor de ética filosófica em Madrid. Dentre as
obras publicadas na Espanha, destaca-se a Trilogia da autocontenção, composta de:
Un mundo vulnerable. Ensayos sobre ecologia, ética y tecnociencia (2005), Gente que
no quiere viajar a Marte (2004) e Todos los animales somos Hermanos (2005), da Ed.
Catarata, de Madrid. Segundo o autor, este conjunto visa “contribuir na tarefa éticopolítica de conter a hybris das sociedades industriais” (RIECHMANN, 2005, p. 23) 1. A
última obra da trilogia pretende “superar preconceitos e convencer que os animais
colocam problemas filosóficos de envergadura para a filosofia prática, estimular o
debate amplo sobre o lugar que os animais deveriam ocupar nas sociedades
industrializadas, proporcionar aos educadores uma ferramenta pedagógica de ética
aplicada, tornar mais fluido o diálogo com os movimentos ecológicos” (p.21). Dela
tomaremos especialmente os três primeiros capítulos.
Segundo Riechmann, na filosofia geralmente o ponto de partida determina em
grande parte o resultado da pesquisa. E neste momento histórico, é necessário um
ponto de partida mais realista. Considerar não somente a racionalidade e a linguagem,
mas também acentuar a corporeidade, a vulnerabilidade, a sociabilidade e a
dependência do ecossistema. Aceitar que somos mamíferos sociais, como passo prévio
a ver-nos como agentes morais (p.23). Na ética, a decisão depende da percepção. O
primeiro passo para transformar a realidade consiste em aprender a vê-la com novo
olhar, e mostrá-la aos demais sob esta luz (p.22).
A questão central é esta: qual é o possível parentesco dos seres humanos com
os (outros) animais? Como esta resposta condiciona posturas ecológicas? Inicialmente,
apresentaremos alguns conceitos básicos do autor. A seguir, seus principais
argumentos em favor do parentesco dos humanos com os animais. E por fim,
observações críticas de natureza filosófico-teológica.
1. Alguns conceitos e distinções básicas do autor
(a) Animais: São denominados de “animais” preferencialmente os seres vivos
vertebrados. Do ponto de vista técnico, seriam organismos multicelulares, heterótrofos
e diploides (nota 14, p. 81). Para efeito de reflexão, o autor toma os animais mamíferos
que, no processo evolutivo, estão mais próximos ao humano, como os Chimpanzés, os
Golfinhos e os Bonobos (Chimpanzés menos corpulentos, que habitam no sul do rio
congo, marcados por complexa vida social). Neste sentido, Riechmann assume
componentes da visão zoocêntrica.
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Como o trabalho é monotemático e as citações fazem referência à mesma obra do autor, será indicado somente o
número da página.
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(b) Antropocentrismo e biocentrismo em sentido moral: o primeiro sustenta que
os interesses humanos são moralmente mais importantes do que os dos animais ou da
natureza como um todo. Opõe-se ao biocentrismo, que afirma que todo ser vivo merece
respeito moral (p.42-43). Há uma intercessão de antropocentrismo débil e biocentrismo
débil, quando se defende que todos os seres vivos merecem respeito, mas com
diferente intensidade. Os mais evoluídos e com capacidades mais ricas mereceriam
mais respeito do que os animais menos complexos. Seriam excludentes e aversos ao
diálogo: o antropocentrismo forte, ao negar que nenhum ser não-humano mereça
respeito moral, e o biocentrismo moral forte, por rejeitar distinções de qualquer tipo,
referente às diferentes classes de seres vivos.
(c) Antropocentrismo em sentido epistêmico: Cada ser vivo existe dentro de um
mundo sensorial, cognitivo e experiencial de sua espécie. Um animal vê o mundo a
partir de sua espécie. Assim, a cegonha seria “cegonhocêntrica”, e a cobra,
ofídiocêntrica. “Enquanto espécie biológica dotada de certos mecanismos sensoriais e
estrutura neuronal, os humanos percebemos e concebemos o mundo de certa maneira
única, diferente de animais de outra espécie. Vivemos em um mundo cujo centro nós
ocupamos, porque somos nós” (p.43) . O antropocentrismo epistêmico resulta inevitável
e moralmente neutro. Inegavelmente, o ser humano ocupa um lugar singular na
biosfera. Suas capacidades peculiares (e especialmente seu poder destrutivo) o situam
num lugar central, em relação aos outros seres vivos. O equívoco reside não no
antropocentrismo débil, mas no supremacismo humano e no especicismo (preconceito
de espécie). A questão não é ver o mundo através dos olhos de outro animal, e sim “ter
um ponto de vista humano que nos impeça de tratar ao animal como uma mera coisa
indigna de qualquer respeito moral” (p.45).
2. O ser humano é tão radicalmente diferente dos outros mamíferos superiores?
Segundo Riechmann, há uma ideia profundamente arraigada na cultura
ocidental: existiria uma barreira intransponível, uma diferença radical, um abismo
ontológico entre os humanos e as demais espécies vivas do planeta. Um “esplêndido
isolamento”. A partir desta tese se extraem importantes consequências morais. Criamse as condições para os humanos se tornarem efetivamente sós, exterminando a vida
que os rodeia (p.36, 39). No entanto, a tese da diferença antropológica resulta
dificilmente compatível com o conhecimento científico de que hoje dispomos, após as
descobertas de Darwin. O Autor sustenta “a ideia de um contínuo de níveis entre o
físico, o biológico, o social e o cultural, com propriedades emergentes para cada um
destes níveis, mas sem constituir nenhum deles uma realidade separada dos outros”
(p.36).
A espécie humana é uma entre outras, como algumas propriedades emergentes,
não compartilhadas com os demais animais, mas não separada deles por uma barreira
infranqueável. Existem diferenças relevantes e limites que os distinguem, mas eles
estão dentro de um contínuo evolutivo. Os humanos e os chipanzés compartilham um
antepassado comum e diferem em menos de 1% de seu material genético. Os
mamíferos somos similares em nossa infraestrutura biológica (p.37). Realmente os
humanos são únicos, mas não tão diferentes do resto do reino animal, especialmente
os mamíferos que possuem cérebro e comportamento social complexo.
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Riechmann pretende debilitar a tese do “abismo ontológico”, do “esplêndido
isolamento” entre os humanos e os outros seres, a partir de casos de duas espécies
concretas: chimpanzés e golfinhos. A proximidade de DNA entre os humanos, o
chimpanzé e o bonobo traz uma nova luz para a discussão a respeito de animais, ética
e direito. Argumentos do autor (p.53-56):
a) Segundo os etólogos2, a cultura não é um traço característico e exclusivo da
espécie humana. Há culturas animais, mas não “aceleração cultural”, como acontece
conosco. Entre os orangotangos se identificaram ao menos 24 comportamentos que se
transmitem culturalmente, como sons, jogos e uso de ferramenta. Chimpanzés e
Bonobos apresentam condutas que reúnem requisitos básicos apontados pela
antropologia cultural, como inovação, disseminação, estandartização, durabilidade,
difusão e tradição (p.53). Os chimpanzés são animais culturais. Aprendem a distinguir
centenas de plantas e substâncias, para alimentação e remédio. Cada grupo tem suas
próprias tradições. As fêmeas somente aprendem a criar seus filhos se vem as outras
(inclusive através de vídeos).
b) O uso de ferramentas não é especificamente humano. Os chimpanzés utilizam
ferramentas para uma série de atividades, tais como: romper alimentos sólidos,
examinar objetos desconhecidos, espantar insetos, cavar, recolher água, limpar o
corpo. Somente o ser humano os superam.
c) Os grande símios3 compartilham conosco: vida em comunidade, vínculos
emocionais, memória e sentido do tempo (passado, presente, futuro). Segundo o
etólogo Jane Goodal, cada chimpanzé tem personalidade única e biografia individual
(p.54). Chipanzés socializados em famílias humanas se recordam das pessoas com as
quais conviveram, muitos anos depois.
d) O uso de sistemas de comunicação complexos não é exclusivo do ser
humano. Alguns mamíferos superiores tem surpreendentes capacidades prélinguísticas. Segundo George Mounin*, primatas socializados entre humanos
desenvolvem, entre outras coisas: caráter simbólico e convencional (relação entre
significante e significado), intencionalidade em situações sociais, mensagens
proposicionais, referência a coisas ou fatos que não estão presentes e capacidade
metafórica.
e) Chimpanzés que aprenderam a falar por sinais, ensinam aos seus filhotes.
Eles são capazes de mentir, fazer brincadeiras e compreender frases simples de
nossos idiomas.
O primatólogo Jordi Sabater Pi* aponta as seguintes capacidades
comportamentais comuns ao chimpanzé e ao humano: (a) autoreconhecimento frente
ao espelho, consciência do eu, noção de morte; (b) comunicação a nível emocional,
proposicional e simbólica; (c) atividade cooperativa (caça em comum e distribuição dos
alimentos entre os adultos), (d) relações familiares estáveis e duradouras a nível de
mãe, filhos e netos; relações sexuais não promíscuas, rejeição do incesto primário, (e)
certa sensibilidade estética (p.56).
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Etologia é considerado um ramo da biologia, que se ocupa do estudo comparado do comportamento animal.
Qualquer primata da subordem dos antropóides, que tem focinho reduzido e olhos em posição frontal.
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Então, conclui Riechmann, não se justifica a expulsão dos chimpanzés e outros
grandes símios do círculo dos seres dignos de consideração moral (p.57).
E os golfinhos? Apresentam vida social rica e complexa. Habitam em grupos,
comunicam-se de diversas maneiras. Mostram afetos, emoções e paixões, realizam
cálculos e dirigem suas ações para fins, participam deliberadamente em jogos e outras
atividades sociais. Tomam a maioria de suas decisões por consenso dentro do grupo.
Suas notáveis habilidades comunicativas possibilitam também comunicação com os
humanos (p.57-58).
Do ponto de vista evolutivo, vários sentimentos e habilidades cognitivas
subjacentes à moralidade humana existiam antes que surgisse a nossa espécie. O
primatólogo holandês Frans de Waal* identificou as tendências e capacidades
protomorais em várias espécies, sem as quais seria difícil imaginar a moralidade
humana. Os outros animais não possuem uma moralidade como os humanos, mas
apresentam várias habilidades morais relevantes (p.58-59).
Portanto, no que diz respeito à racionalidade e à moralidade, não haveria
somente uma linha divisória entre os humanos e outras espécies inteligentes, mas
também uma escala ou espectro (p.59).
3. Razões para incluir os animais na comunidade moral
Os animais tem valor em si mesmos, ou esses são somente instrumentais?
Temos deveres morais diretos para com os animais, ou somente deveres indiretos, que
derivam de nossas obrigações para com os humanos? No primeiro caso, o que justifica
tal opção? O autor adota uma concepção imanente da moral e dos direitos. Prescinde
de um fundamento metafísico transcendente para os juízos de valor. Sustenta que se
deve tecer as melhores razões possíveis para defender, tornar plausíveis e
fundamentar (em sentido débil) as normas, os valores e os direitos dos animais.
Para Kant, que neste sentido representa a doutrina filosófica tradicional no
ocidente, somente os seres humanos são fins em si mesmos, e portanto, merecem
consideração moral própria. Mas, segundo Riechmann, “os animais são igualmente fins
em si mesmos. Tem seu próprio bem e nunca deveriam ser tratados como meros
instrumentos” (p.67). Seria então eticamente injustificável o antropocentrismo
excludente que prevaleceu em nossa tradição filosófica. Os animais não são agentes
morais (nem tampouco as crianças de tenra idade), mas somente pacientes morais.
Mas isso não impede que sejam tratados como fins em si mesmos. A principal razão
consiste no fato de que os animais, sobretudo os mamíferos superiores, são
sencientes. Aqui reside o núcleo do argumento zoocêntrico utilitarista, delineado por
Angélika Krebs*, que segue a linha de Henry Salt* (Direitos dos animais) e Peter
Singer* (Libertação animal). Esses autores elegem a capacidade de sentir como critério
moralmente relevante, no lugar da razão, da linguagem ou da liberdade.
Resumidamente, seriam estes os argumentos em defesa dos direitos dos animais, a
partir da categoria “senciência” (p.68-69):
a) Os critérios intersubjetivos aplicados para atribuir capacidade sensitiva a
outros seres humanos são aplicáveis também aos animais. Os mamíferos tem sistema
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nervoso do mesmo tipo que o nosso. Mamíferos (e aves) sentem prazer e dor. Portanto,
são sencientes (em espanhol: sintientes).
b) Nas sensações está implícito um momento de valoração positiva ou negativa.
Por isso, para os seres sencientes, haveria distintos graus de qualidade de vida
subjetiva. Seu existir pode ser melhor ou pior, para eles mesmos. Eles tem interesse
por uma “vida boa” (buena vida).
c) O ser humano vive moralmente quando concede a mesma importância à “vida
boa” para todos os outros seres humanos.
d) Os animais podem ter uma “vida má” ou “vida boa”. Excluí-los do universo
moral seria um especismo, que guarda analogia com outras formas de discriminação,
como o sexismo ou racismo. Com a diferença que mulheres e negros são sujeitos
(agentes) morais. Os animais, não. Apenas “pacientes morais”.
e) Somente vive moralmente quem concede a mesma importância à boa vida de
todos os seres sencientes. Assim, os animais são dignos de consideração moral por si
mesmos e temos deveres morais dignos para com eles.
Em segundo lugar, Riechmann serve-se do argumento dos casos marginais
(p.70). Considera que há seres humanos que carecem de certas habilidades e
capacidades linguísticas, emocionais, intelectuais, e sensomotoras, a ponto de se
encontrarem num nível igual ou inferior a outros animais superiores, como os bebês e
aqueles que tem graves deficiências mentais. Mesmo não apresentando as
características plenas do humano ideal e adulto, eles merecem respeito e
consideração.
Como responder então ao argumento de Kant, de que a racionalidade/liberdade
é o valor constitutivo e o traço diferencial do ser humano enquanto tal? Ora, a razão
prática, a racionalidade/liberdade é o diferencial não do homem enquanto tal, e sim da
pessoa. Tanto bebês quanto chimpanzés possuem elevadas características e
capacidades e devem ser respeitados. Assim, aceita-se o argumento zoocêntrico,
mantendo o marco das categorias morais de Kant (p.70).
Em terceiro lugar, justifica-se os direitos dos animais a partir do princípio humano
da empatia, ou seja, a virtude moral de se colocar no lugar do outro, sobretudo o que
está em situação vulnerável. “Uma situação extraordinariamente reveladora da
qualidade moral de uma pessoa é aquele na qual pode exercer poder sobre seres mais
fracos do que ela” (p. 31). Platão observava que a pedra de toque da qualidade moral
consistia na maneira de tratar os escravos (in: Leis 777d). Quem trata de forma
desumana a outro ser “que sente”, submetido ao seu poder, mostra para com ele uma
natureza desumana. Esta chave vale para a relação com o terceiro mundo e o mundo
natural não humano (espécies vivas, seus integrantes individuais, o conjunto da
biosfera) (p.31). “A capacidade de nos colocar imaginativamente no lugar do outro
(sobretudo quando esse é vulnerável e sofredor) é um pressuposto da vida moral em
geral, e também uma condição prévia para o desenvolvimento de outras capacidades
morais” (p.71). Tal ética da compaixão ou da simpatia/empatia deve se estender aos
animais e às futuras gerações humanas.
O respeito pelos animais implicaria necessariamente em não se alimentar deles
a adotar o vegetarianismo? Riechmann não se posiciona de forma unívoca. Baseado no
pensamento clássico de H. Salt*, afirma: “é moralmente inaceitável a criação de
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animais em condições que suponham dores agudas ou duradouras, multilações físicas
ou danos emocionais, medo, isolamento, grave limitação de movimentos, frustação
permanente de comportamentos instintivos” (p.72). Seria permitido criar e matar
animais, se necessário. Mas nunca tortura-los ou degradá-los.
Argumenta-se que pode se matar os animais, pois eles são criaturas do
presente. Ou seja, não dispõem de orientação projetiva e teleológica, orientada para o
futuro, como os humanos. No entanto, alguns animais superiores tem um sentido de
temporalidade, com recordações e expectativas, embora sejam mais simples e
imediatas do que os humanos. Ora, e se tal morte atenta contra a “vida boa” (ou bemviver) deles, privando-os do cumprimento de suas potencialidades específicas? (p.72)
4. A ilustração da ilustração4: ampliar a comunidade ética
Por fim, Riechmann sustenta que a mudança de visão com relação aos animais,
sobretudo os mamíferos, traz consigo um novo momento, de “ilustração da ilustração”.
Isso leva a ampliar a noção de direito e a dilatar a comunidade ética.
Pouco a pouco, a ilustração colocou o princípio de que os seres humanos
nascem essencialmente livres e iguais. Ora, se existem tantas diferenças, de sexo,
etnia, estatura, disposições intelectuais e estéticas, em que sentido pode-se dizer que
somos iguais? A ilustração “afirma que (os humanos) são iguais em dignidade, em
direitos, em tudo o que se refere à sua participação na vida pública; que todos são
igualmente merecedores de respeito” (p.73). As referidas diferenças não devem impedir
que todos tenham os mesmos direitos na vida política, social e econômica. Os fatos não
podem justificar nenhum princípio de igualdade ou desigualdade, já que tal princípio
não é uma descrição de fatos, mas sim uma norma, princípio ou ideal moral.
Isso significaria que os animais seriam tratados como os humanos? Não. A partir
de Peter Singer*, pode-se afirmar que “a extensão de um grupo a outro do princípio
básico de igualdade não implica que tenhamos que tratar aos dois grupos exatamente
do mesmo modo. Nem tampouco garante os mesmos direitos a ambos os grupos. O
que devamos ou não fazer dependerá da natureza dos membros dos dois grupos. O
princípio básico da igualdade não requer um tratamento igual ou idêntico, e sim uma
consideração igual (dos interesses em jogo). Igual consideração para seres diferentes
pode conduzir a distintos tratamentos e direitos diferentes” (Nota 39, p.83).
Na visão da 1ª ilustração, o progresso moral consiste precisamente em que,
apesar de muitas e evidentes diferenças entre os seres humanos, vamos aprendendo a
respeitar os demais, como iguais a nós. Relativizamos estes diferenças, colocando em
primeiro plano o que nos une, e não o que nos separa.
Ao aprofundar tal pensamento no atual contexto histórico, caminhamos para “a
ilustração da ilustração”, que manifesta o parentesco que nos vincula com todos os
seres vivos, e mais estreitamente, com os animais superiores. Enfatizamos mais o que
nos une, e não o que nos separa. Se a 1ª ilustração buscava a paz entre os humanos,
em meio a conflitos, essa visa a paz com a Natureza não humana (p.73). Essa 2ª
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A palavra alemã “Aufkaerung” é traduzida em espanhol como “ilustración”. Já em português se utiliza
“iluminismo”, ou também “ilustração”, adotada aqui.
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ilustração sublinha “que todos os seres vivos temos uma origem comum (evolutiva), que
todos pertencemos à mesma natureza, e que a biosfera é o espaço comum vital de
todos nós” (p.74). A igualdade humana se ampliaria para a igualdade senciente,
considerando as diferenças. Nas palavras de Riechmann: “defendo um critério material
de justiça baseado nas capacidades sensoriais, emocionais e intelectuais típicas das
diferentes classes de animais, frente a outros possíveis critérios, particularmente frente
ao especismo, que traça uma divisão injustificada entre nossa própria espécie e todas
as outras (p.74).
Tratar aos semelhantes como semelhantes e aos diferentes como diferentes
implicará abster de causar sofrimento desnecessário aos animais. Mas não significa
considera-los como se fossem humanos, pois existem diferenças relevantes. Assim, os
direitos nunca serão os mesmos. Por exemplo, não se concedem aos outros animais
direito de expressão ou liberdade de voto. Os direitos potencialmente reconhecíveis a
um ser vivo dependem de suas características próprias (p.74-75).
Em síntese, ilustrar a ilustração leva a ampliar os limites da comunidade moral,
até incluir nela os animais. Enquanto pacientes morais, esses seriam considerados não
instrumentalmente, mas como fins em si mesmo, como sujeitos de dignidade e objetos
de respeito. Em sentido estrito, somente as pessoas integram a comunidade moral,
devido às suas elevadas capacidades (autoconsciência, linguagem articulada,
racionalidade, autonomia, etc). No entanto, há boas razões para incluir nesta
comunidade os seres vivos não-pessoas, que possuem interesses. Eles não devem ser
tratados como meras coisas, sem significação moral. Integrariam a comunidade moral,
em sentido amplo. Assim, diferentemente da visão kantiana, fariam parte da
comunidade moral tanto os agentes quanto os pacientes morais (p. 76). Assim, “o que
converte os animais em nossos próximos, o que os faz merecedores do respeito básico
não é a capacidade intelectual ou a excelência no raciocínio prático, mas sim a
capacidade de sofrer e ter prazer, de ter uma “buena vida”, e a confraternidade
emocional que sentimos por eles” (p.78).
Conclusão: considerações em vista do diálogo
Apresentaremos, em forma de tópicos, alguns pontos úteis para a ecoteologia, a
partir da contribuição do filósofo Jorge Riechmann.
a) Toda reflexão teológica em diálogo com a sociedade contemporânea
necessita de “mediações hermenêuticas pré-teológicas”. Essa entra em relação dialogal
com ciências e saberes, para assim compreender seu objeto em toda complexidade e
fazer novas reflexões. A teologia clássica se construiu em estreita relação com a
filosofia aristotélica, relida por Tomás de Aquino. Já a teologia da libertação latinoamericana privilegiou as mediações sócio-analíticas, utilizando-as de forma criteriosa
(LIBANIO, 1987, p. 157-204). A ecoteologia estabelece um diálogo com as ciências
ambientais, as ciências sociais e a filosofia, dentre outras. Neste sentido, a reflexão de
Riechmann fornece importantes dados de mediação hermenêutica pré-teológica e
enriquece o horizonte teórico de ecotelogia, pois articula a filosofia com as “ciências da
natureza” e uma nítida opção em vista da sociedade sustentável, da continuidade da
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vida no planeta. Ele conjuga ciência, filosofia e perspectiva planetária. Tal perspectiva
inter e transdisciplinar é cara à ecoteologia.
b) O autor faz algumas distinções lúcidas, especialmente para pessoas e grupos
que estão engajadas na causa ecológica. Apresenta, de forma sucinta e precisa, os
conceitos de “antropocentrismo moral”, “biocentrismo” e “zoocentrismo”. Esclarece que
somente posições abertas (que ele denomina “débeis”) estimulam o diálogo. Diferencia
o antropocentrismo moral do epistêmico. Como isso, ajuda a superar os extremismos
de cada corrente em jogo. Sustenta que os ecossistemas são moralmente relevantes
porque o são as criaturas humanas e não humanas, que dependem deles. Assim, “não
há que se escolher entre os seres humanos e a biosfera. A razão mais forte para
preservar a segunda é justamente proteger os interesses dos seres humanos presentes
e futuros, e dos demais seres vivos com os quais compartilhamos esta grande casa
ecossistêmica” (p.30). Desta forma, Riechmann se coloca numa posição “pluricêntrica”,
que supera tanto o antropocentrismo egóico quanto o biocentrismo ingênuo. Como faz
a ecoteologia.
c) Embora, nesta parte de sua obra, vários argumentos de Riechmann estejam
no horizonte zoocêntrico, ele reconhece os limites dessa perspectiva. Esclarece que
aceitar os “direitos dos animais” não significa tratá-los como humanos, mas sim de
acordo com os “interesses” de sua espécie, em vista da “buena vida” para todos. Os
animais não são pessoas, mas devem fazer parte da comunidade moral humana. E isso
não implica, de forma nenhuma, abandonar as grandes causas sociais, étnicas,
culturais, de gênero que hoje mobilizam a humanidade. Também é essa a postura da
ecoteologia latino-americana.
d) Baseado nos estudos de etólogos e primatólogos, Riechmann denuncia a
fragilidade do argumento antropocêntrico “forte” de que haveria “abismo ontológico
radical” e “esplêndido isolamento” dos humanos em relação a todas as outras espécies.
Assim, fornece razões filosóficos para justificar que há um parentesco entre nós e
certas espécies de mamíferos superiores. Tais argumentos, embora de pouca utilidade
no cotidiano (pois não convivemos com chimpanzés, bonobos e golfinhos) sinalizam
que a fraternidade-sororidade com os animais tem fundamento (débil, segundo ele) na
escala de evolução das espécies. Vários autores modernos e contemporâneos, muitos
deles citados por Riechmann, alinham-se na defesa dos animais e na afirmação de
seus direitos. Dentre eles, H. Salt, P. Singer, T. Regan e T. Benton. Os argumentos
mais comuns consistem em: características proto-morais, cognitivas e comunicativas;
serem sencientes (sentirem dor e prazer); poder levar uma vida melhor ou pior, terem
interesses, poder ser sujeitos de sua própria vida.
e) Como o nosso autor, a ecoteologia aceita os resultados das pesquisas
científicas a respeito da evolução das espécies e rejeita a tese fundamentalista do
criacionismo. Além disso, a ecoteologia afirma que o respeito aos outros animais está
fundada na fé de que toda a criação provém das “mãos amorosas” de Deus, que se
retrai para que as criaturas sejam elas mesmas (MOLTMANN, 2007, p.86-87). Segundo
a analogia bíblica de Gênesis 2, o ser humano é criado “do barro da Terra” e do
Espírito, sopro divino de vida. Ora, tal Espírito está presente, em diferentes graus, em
todos os seres vivos. Deus mesmo renova a face da Terra (Sl 104). O criador permite
que suas criaturas existam, entra em sua criação, envolve-se com ela para morar e
permanecer nela (MOLTMANN, 2007, p.159). Existe uma solidariedade básica entre
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todos os seres vivos, pois são criados pela comunidade trinitária: em virtude do
desígnio gratuito e kenótico do Pai, com a capacidade de intelecção do Filho/palavra, e
as múltiplas relações interdependentes do Espírito (TAVARES, 2010, p.57-70). Todos
os seres participam, de diferentes modos, do único e mesmo projeto criador, salvador e
recapitulador, que se consuma no “Novo Céu e Nova Terra” (MURAD, 2009, p. 277297).
Portanto, a “fraternidade universal” de todos os seres não pode ser tomada de
forma absoluta nem unívoca. A fé cristã sustenta que os seres abióticos (água, solo, ar,
energia do sol) e os bióticos (microorganismos, plantas e animais) fazem parte de uma
“comunidade de vida”, gratuitamente desejada por Deus, mas diferente dele. O respeito
às outras criaturas e o reconhecimento de certa alteridade, e portanto de direitos,
comporta graus distintos. Como Riechmann, reconhece-se um determinado “nível de
parentesco”, especialmente com algumas espécies de primatas superiores. Mas tal
descoberta não se impõe com norma moral inquestionável. Além disso, permanecem
em aberto várias questões, tais como: alcances e limites dos direitos dos animais em
face dos direitos humanos dos pobres e dos excluídos, respeito aos animais e
vegetarianismo, fundamentos bíblico-teológicos da “fraternidade universal” dos
humanos em relação aos animais. Abre-se assim um longo e promissor caminho de
reflexão (e prática) para a ecoteologia latino-americana!
Referenciais
LIBANIO, J.B. Teologia da Libertação. Um roteiro didático. São Paulo: Loyola, 1987.
MOLTMANN, J. Ciência e sabedoria. Um diálogo entre ciência natural e teologia. São Paulo: Loyola,
2007.
MOREIRA FILHO, L.D. Ética animal (2), disponível em: http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologiasabedoria/32/artigo239960-1.asp acesso em 05 jun 2015 (A respeito do pensamento de Tom Regan)
MURAD, A. O núcleo da ecoteologia e a unidade da experiência salvífica, Rev. Pistis e Práxis, Curitiba, v.
1, n. 2, p. 277-297, jul./dez. 2009
Os filósofos da libertação animal (T. Regan, P. Singer, G. Francione, B. Rollin), disponível em:
http://direitosanimaisunicamp.blogspot.com.br/ acesso em 05 junho 2015.
RIECHMANN, J. Todos los animales somos Hermanos. Ensayos sobre el lugar de los animales en las
sociedades industrializadas. Madrid: Catarata, 2005.
TAVARES, S.S., Teologia da Criação. Outro olhar – novas relações. Petrópolis: Vozes, 2010.
* Autores e obras citadas por Riechmann:
DE WAAL, F. Bien natural. Los Orígenes del bien y del mal en los humanos y otros animales. Barcelona:
Herder, 1977.
KREBS, A. Haben wir moralische Pflichten gegenüber Tieren? Da pathozentrische Argument in der
Naturethik in: Deutsche Zeitschrift für Philosophie 41/6 (1993), p.997ss.
MOUNIN, G. Language, comunication,chimpanzés in: Current Anthropology 17, 1976.
SABATER PI, J. El chimpancé y los Orígenes de la cultura. Barcelona: Antropos, 1992, 3.ed.
SALT, H. Los derechos de los animales. Madrid: Catarata, 1999
SINGER, P. Libertação animal. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010 (original de 1975).
Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST1206
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